Mineiro radicado no Pará, Daniel Azeredo é o idealizador de dois projetos que em poucos anos conseguiram reduzir o desmatamento na Amazônia brasileira em mais de 50%. Um trabalho assim tão grandioso não se faz sozinho, nem se conclui da noite para o dia; também não se faz sem uma grande capacidade de resistência: diante das pressões e até ameaças, Daniel lembra: “tivemos de administrar todo o conflito através do diálogo, da conquista da opinião pública para o trabalho do MPF, da abertura para a discussão técnica dos modelos que apresentávamos e da certeza de que não poderíamos esmorecer.”
Ao falar da corrupção como hábito nacional, Daniel imagina que haja como que uma relação de competição entre sociedade e governo, “em que o cidadão luta para perder o mínimo possível para o Estado e ganhar o máximo, ainda que através da corrupção.”
Já há nove anos longe de Belo Horizonte, relembra dos bons momentos que passou na cidade — do Parque das Mangabeiras, do Mineirão, do caminho para a escola; e reconhece que depois desse exílio voluntário passou, ‘com um amor de visitante’, a gostar da cidade, “do jeito das pessoas e de tudo que temos”.
Leitor atento de Machado de Assis e de Fernando Sabino, Daniel imagina que a vida presente e o homem presente constituiriam, estivessem eles vivos, matéria suficientemente rica para a sua imaginação e escrita. Estamos inteiramente de acordo sobre esse ponto, aliás. Que apareçam, pois, novos machados nas desoladas terras de nossa atual literatura nacional.
Acompanhe nosso 31º dedo de prosa, em mineirês castiço.
A atuação do Ministério Público Federal que se tornou conhecida como “Carne Legal”, juntamente com o projeto “Municípios Verdes”, conseguiu reduzir o desmatamento na Amazônia em mais de 50%. Você é conhecido como seu idealizador. Como surgiu a concepção desse programa?
Os projetos “Carne Legal” e “Municípios Verdes” surgiram, antes de tudo, pela sensação de que a nossa atuação tradicional possuía pouco ou nenhum efeito na proteção da floresta. Apesar de, diariamente, processarmos e obtermos condenações penais de desmatadores ou mesmo ações civis públicas de reparação ambiental nada era recuperado e a devastação da vegetação se mantinha em níveis alarmantes.
Esse sentimento de que nosso trabalho pouco rendia fez com começássemos a aprofundar o conhecimento da realidade social e econômica da região. Fomos entender melhor os personagens desse jogo complexo e pelo menos iniciar a compreensão sobre perguntas fundamentais, dentre inúmeras outras, como: (a) quem desmata? (b) por que desmata? (c) o que ganha quem desmata? (d) quem mais ganha com o desmatamento? (e) como se desmata? (f) como se escolhe a área a ser desmatada? (g) por que o desmatador não tem medo da punição? (h) para que se desmata? (i) qual a destinação final da área desmatada?
A partir desse estudo inicial conseguimos vislumbrar uma grande organização econômica, formada na Amazônia, de empresas regulares e formais que, ao se abastecerem de matéria-prima da floresta, fomentam e alimentam não somente o desmatamento ilegal, bem como uma série de lesões a direitos fundamentais das populações tradicionais, indígenas e mesmo de trabalhadores comuns que raramente têm os direitos trabalhistas respeitados.
Realizamos uma investigação que durou mais de um ano para documentar, de maneira detalhada, as relações econômicas da região, desde a origem do boi na área desmatada –focamos no gado por ser ele o principal vetor de desmatamento, mas, posteriormente, atuamos com a mesma metodologia nos grãos, instituições financeiras e outros — até um banco de couro de um automóvel, ou um tênis de uma marca líder mundial ou mesmo a carne em um grande centro no país ou no exterior.
A partir daí realizamos um estudo jurídico sobre a responsabilidade solidária civil, em matéria ambiental, de todos esses atores — qual o limite da responsabilidade, por exemplo, de uma montadora de carros em Minas Gerais sobre o desmatamento realizado na Amazônia — e iniciamos os processos de construção da solução. Digo solução porque não foi o nosso foco primeiro a punição dos responsáveis, mas sim a construção de um novo paradigma de produção que tivesse o respeito ao meio ambiente como um de seus valores fundamentais.
Tínhamos no nosso trabalho a identificação de mais de trezentas mil propriedades rurais somente no Estado do Pará que precisariam ser regularizadas e, na outra ponta, mais de noventa mil lojas de supermercados no país que se abasteciam dessa matéria-prima. No meio deles, cerca de cem frigoríficos que intermediavam a produção e, naquele ano, eram desconhecidos do consumidor, embora sempre estivessem entre as maiores empresas do mundo no ramo da alimentação.
Eu lecionava à época Direito Tributário, que é uma de minhas disciplinas favoritas, e acabei focando o controle e as regras no intermediário que, por ser em menor número, facilitaria o controle em uma espécie de “substituição tributária ambiental”.
O desmatamento na Amazônia, antes do trabalho do MPF, era de mais de 12.000 Km2 por ano e conseguimos mantê-lo abaixo dos 5.000 Km2 por ano desde então, o que representa uma queda hoje em torno de 60%.
Estamos em constante aperfeiçoamento do trabalho com o duplo objetivo de estabilizar os ganhos alcançados e superar nossos índices de redução.
Você certamente encontrou resistência durante as diversas fases de implementação desses programas. Que momentos você destacaria dessa atuação em que foi mais necessária a força estatal do MPF?
Sem dúvida destacaria o início do processo. Tudo era muito novo, seja para nós, seja para o setor produtivo. A fronteira agrícola brasileira hoje está na Amazônia. A fertilidade da terra, a luminosidade e a umidade tornam a floresta solo ideal para a criação de gado e plantio de grãos. Acrescente a isso o alto valor de mercado da madeira que cobre a terra e o custo zero da área que é pública e você encontra o novo ‘eldorado’ do setor produtivo brasileiro. Este já conhecia e estava acostumado a driblar facilmente as regras vigentes sobre a proibição de desmatar.
É um setor economicamente muito forte: um dos frigoríficos é hoje a maior empresa de alimentos do mundo e a maior empresa do Brasil seja qual for o ramo analisado, ao passo que soja e gado correspondem a cerca de 1/5 de todo o PIB brasileiro e 1/5 dessa produção já se consolidou na Amazônia com altíssimas taxas de crescimento na região nos últimos quinze anos.
O setor possui uma bancada parlamentar fortíssima de cerda de 1/3 dos membros do Congresso Nacional e reagiu fortemente a nossas ações com todo o tipo de expediente: ameaças pessoais e institucionais, representações e ações judiciais. Tivemos de administrar todo o conflito através do diálogo, da conquista da opinião pública para o trabalho do MPF, da abertura para a discussão técnica dos modelos que apresentávamos e da certeza de que não poderíamos esmorecer na defesa de nossa missão constitucional.
Em que consistem as atividades do Grupo de Trabalho Amazônia Legal, da 4ª CCR, que você coordena? Que trabalhos relevantes estão em andamento?
O Grupo de Trabalho Amazônia Legal surgiu com dois focos principais: (1) expandir os projetos “Carne legal” e “Municípios Verdes” aos outros Estados da Amazônia e (2) fomentar a continuidade de trabalhos relevantes através da atuação coordenada na região que sofre continuamente com a vasta rotatividade de membros do MPF.
Além de estarmos desenvolvendo esses projetos nos demais Estados, desenvolvemos trabalhos conjuntos em relação aos assentamentos do Incra na região, sobre a implantação do cadastro ambiental rural em todo o país, sobre a responsabilidade ambiental das instituições financeiras, sobre a transparência dos órgãos públicos, sobre o programa do governo federal Terra Legal, sobre a produção de grãos e outros temas que aparecem no dia a dia de todos os colegas da região.
Embora eu não tenha opinião formada sobre a questão, sempre acabo ‘apanhando’ quando a levanto. É o seguinte. O tratamento dado aos filmes da trilogia de “O Poderoso Chefão” não ajudaria a glamourizar, aos olhos da população esclarecida, o estilo de vida dos gângsters e a abrir nossa sensibilidade moral à possibilidade de tê-lo como aceitável? Falo isso porque a beleza estética dos filmes chega a nos fascinar…
De fato, não vejo verdades ou certezas nesses pontos de maneira que sua leitura me parece extremamente interessante. Vou apenas aqui sugerir outra possibilidade que caminhe na linha oposta. Seria a de que Coppola mostra a decadência moral de Michael que, de herói de guerra, se transforma em um criminoso impiedoso cuja ambição não tem limites. Parece que Michael representa a sociedade americana, corrupta e hipócrita. Deixa-se clara a institucionalização do crime, onde os mais respeitáveis agem de maneira ardilosa e vil para se manterem no poder. Nessa maneira de análise, não há nada de engraçado ou compensador na violência, mas, pelo contrário, há cada vez mais torpeza, mais conluios, mais traições, levando a uma situação insustentável no qual o protagonista se vê mergulhado, cada vez mais, nas sombras da corrupção, em sentido amplo. Talvez possamos utilizar o jargão de que o crime não compensa se o que se quer é alcançar a felicidade.
Mudando de assunto: que lembranças tem de sua infância em Belo Horizonte?
Tenho várias e ótimas lembranças. Do nosso time de futebol que se doava de maneira extenuante pelos pequenos campeonatos que participava do bairro; do guaraná depois do jogo com vitória ou derrota; das conversas e reuniões com os amigos de escola e de bairro; da alegria da vitória do cruzeiro e do aborrecimento a mim direcionado pela vitória atleticana; do Mineirão cheio de barracas ao redor e entupido de gente em pé dentro; do meu caminho de ida para a escola; dos meus professores; de uma cidade mais suja do que está hoje; da rodoviária lotada; do Parque Municipal, do Parque das Mangabeiras e das praças.
Eu também morei em Belo Horizonte até o começo da vida adulta. Comigo aconteceu que já estando doze anos morando fora da cidade acabei me ‘apaixonando’ por outras tantas em que morei ou por que passei, que me trouxeram coisas novas e muito boas. Você ainda visita Belo Horizonte? Isso também aconteceu com você?
Visito com frequência e aconteceu comigo o inverso. Após nove anos fora, passei a gostar mais da cidade, do jeito das pessoas e de tudo que temos. Talvez seja apenas amor de visitante.
Entre seus autores preferidos estão Machado de Assis e Fernando Sabino. É opinião corrente entre os críticos que a literatura brasileira atual não tem tratado das grandes e das pequenas questões que atormentam a vida real de todos nós. Alguns chegam a dizer que não temos algo como ‘literatura brasileira atual’. Estivessem vivos e em atividade ambos os escritores, você é capaz de imaginar que roteiro e personagens cada um deles utilizaria em seus romances hoje?
Em relação à temática, acho que Machado de Assis e Fernando Sabino não mudariam muita coisa. Machado, por exemplo, é um autor que se prende no ser humano e nas suas falhas morais, por isto atemporal. Poderia até mudar o cenário, mas as observações perspicazes continuariam centradas em personagens esféricos, revelando a hipocrisia dos homens. Já Fernando Sabino também é um autor voltado para reflexões humanistas. Talvez hoje a sua angústia perpassasse pela vida acelerada que nos impomos e as coisas que perdemos no caminho por causa disso.
Voltemos a nossas atribuições. Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude ou, quando não, originará um contrato administrativo ineficiente com gastos mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina algo que pudesse começar a mudar esse quadro?
Tenho a idêntica impressão. Observo os municípios amazônicos pobres e população miserável. Observo os gestores amazônicos ricos e com padrão de vida elevadíssimo. Tivéssemos um nível cultural e educacional consolidado no país, a simples observação da nossa realidade seria um escândalo no nosso mais famoso jornal.
Somente a transparência e o uso de tecnologias podem mudar esse quadro. Todas as licitações deveriam ser filmadas e gravadas, assim como hoje o são as audiências da justiça, e transmitidas on line na internet, assim como hoje acontece com milhares de salas de diversão erótica no país. E deveríamos ter ferramentas para que o usuário do serviço público denunciasse a ausência de bens comprados. Por exemplo, se daria ampla divulgação na internet sobre as licitações de todas as escolas informando o dinheiro gasto para cada uma e o que foi comprado e, na mesma internet ou em totens de atendimento físico, qualquer aluno, pai ou professor anonimamente poderia informar que apesar de a Prefeitura ter comprado carne somente se come pão há um mês.
Poderiam ser criados sistemas de controles automáticos e informatizados em que essas demandas eram publicizadas e o gestor teria um prazo para se manifestar com documentos e fotografias. E sua resposta também seria divulgada na internet. Os órgãos de controle, dentre eles o MPF, fariam filtros para priorizar ações mais fortes tais como visita in loco e etc.
Tenho pensado que provavelmente ainda vige em nossa alma nacional, no fundo de nosso inconsciente coletivo, a impressão de que ainda somos explorados por uma metrópole desalmada; e de que portanto, tudo o que conseguirmos extrair dos negócios públicos virá em prejuízo da Corte Portuguesa e em benefício de nós outros deste lado de cá. Só que Corte Portuguesa já não há…
Se Corte Portuguesa já não há, talvez a metrópole desalmada seja a ilha política dos governantes que, no imaginário coletivo, tudo querem para si próprios e trabalham apenas em prol da manutenção do próprio poder político ou econômico.
Talvez a sociedade viva um processo autopoiético em que a população produz seus políticos e, ao mesmo tempo, vive um processo de antagonismo intenso em relação a eles, mas não dispõe de meios para interromper essa “equivocada” produção. Até porque parte desses instrumentos dependem de fomento do governante — como é o caso da educação, por exemplo.
A relação entre sociedade e governo estabelecida seria, assim, de competição, em que o cidadão luta para perder o mínimo possível para o Estado e ganhar o máximo, ainda que através da corrupção. Afinal, o Estado brasileiro parece ser inerentemente ilícito no imaginário coletivo. Dentre os diversos males dessa realidade está a incapacidade de olhar e procurar aquilo que existe de bom e adequado no cenário político brasileiro.
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