Entrevista com Tarcísio Filho: “O mundo é muito grande para direcionar o barco para um só porto. O importante não é o chegar mas o caminhar.”

Um dinossauro assumido, Tarcísio Filho já foi prefeito municipal de Cataguases, MG, e procurador-chefe da PRMG por dois mandatos. Hoje, dedica-se ao trabalho em um dos ofícios criminais da capital mineira e diz contar em seu gabinete com dois dos melhores servidores do MPU.

Segundo ele, “administrar pressupõe gostar de gente. Ninguém pode realizar nada na administração se não consegue ouvir ou conversar com o próximo.” Apesar de sua experiência administrativa, e a despeito de continuar exercendo o magistério universitário, Tarcísio está hoje em sua fase monacal: “procuro fazer bem meu trabalho, mas não participando de nada mais”.

Sua experiência na administração pública, aliás, deu-lhe uma aguçada sensibilidade para os casos de defesa do patrimônio público. Segundo ele, nossa atuação nessa área deve ser cuidadosa, pois “muito do que fazemos aqui tem efeitos políticos evidentes e pode influenciar o próprio processo político, levando a instituição a ter um papel no jogo político que ela em princípio não pode ter.”

Entenda melhor esse corajoso posicionamento — e outros tantos — nessa nossa 34ª entrevista — na verdade um interessante ‘caminhar’ em direção a outras tantas descobertas de ontem, de hoje e de amanhã.

 

Antes de ser procurador da República, você foi prefeito municipal de Cataguases, MG. É uma trajetória inusitada, rara, no MPF. Sua experiência pretérita certamente o habilita a trabalhar com olhar clínico em casos de improbidade administrativa envolvendo prefeituras do interior do Estado. Que experiências traz daquela época? Você chegou a usar seus conhecimentos ‘do outro lado’ da trincheira?

Sim, fui prefeito de Cataguases entre 1993 e 1996, antes de assumir o cargo que por enquanto ainda exerço. Não acho que isso seja uma coisa inusitada e nem mesmo rara. Lembro-me, só para ficar num exemplo, que o douto subprocurador-geral João Batista, que durante muito tempo foi secretário-geral da instituição e um dos mais brilhantes Diretores da nossa ANPR, foi Prefeito de Queluz, no Estado de São Paulo.

Já pensei muito sobre essa experiência e tenho cada vez mais a percepção de que ela me dotou de algumas perspectivas que faltam aos colegas, muitos que só se preocupam em fazer a leitura literal das disposições que envolvem o atuar da Administração Pública. Não quero criar nenhuma polêmica aqui, mas não posso deixar de dizer, nesta perspectiva, que só uma compreensão dos limites da administração permite a construção de uma imputação suficientemente clara de um ato de improbidade ou de um ato ilícito.

Por tudo que experienciei, lá e cá, acho que devemos fazer uma leitura diária do inciso LVII do artigo 5º da Constituição, levando-o para além da esfera criminal. Sinceramente acho que ninguém, agente público algum, poderá ou poderia ser “considerado culpado até o trânsito em julgado” tanto da sentença penal condenatória, como também da própria ação que lhe impute ato de improbidade. Não podemos nos esquecer de que muito do que fazemos do lado de cá tem efeitos políticos evidentes e pode, no limite pior, influenciar o próprio processo político, levando a instituição a ter um papel no jogo político que ela não pode ter, em princípio, evidentemente, já que o correto Papel Político dela está em outra esfera.

É claro que no exercício profissional, qualquer que seja ele, ninguém pode deixar de ser o que foi. Assim, meu caro, já aproveitei muito de minha experiência, tanto de um modo como de outro. Agora, se isto é positivo ou negativo não sou capaz de avaliar.

Acho que vivemos um paradoxo hoje no país. Os prefeitos municipais que porventura busquem cumprir as leis geralmente são preteridos na indicação de convênios federais por meio de emendas parlamentares; e, como consequência disso, porque não levaram obras ou outras benfeitorias para a cidade, perdem o voto de seus eleitores. Acredita que a população em geral está preocupada com a corrupção com dinheiro público – ou o povo ‘quer ver obra’?

Boa pergunta. Há que se ter muito claro que o processo de destinação dos recursos públicos por meio de emendas pode funcionar de forma esperada ou pode dar causa a inúmeros tipos de ilícitos. Só para ficarmos em alguns exemplos, menciono aqui os recursos repassados pelo Ministério da Saúde e que foram objeto da publicamente conhecida “Operação Sanguessuga”. Lembro aqui das investigações que vocês em Governador Valadares fizeram e conduzem sobre a malversação dos recursos do Ministério do Turismo no bojo das “festas culturais” realizadas nos pequenos municípios e que, com certeza, aconteceram e acontecem em todo o país. Poderia citar outros exemplos, mas fiquemos nestes.

Alguém acha, pelo amor de Deus, que o processo de destinação de emendas vai ser alterado? Algum deputado vai propor mudanças num sistema que só existe para assegurar sua própria sobrevivência política. Veja bem: não estou dizendo Política, com ‘p’ maiúsculo. Ao contrário, o que se vê hoje é a implementação do chamado ‘orçamento vinculado’. De certo, aí, é que continuaremos a ter muito trabalho. Meu ponto, nisto, é que ficamos com todo o trabalho. Há ainda muitos colegas que entendem que a CGU deve continuar “sorteando” municípios pelo país e realizando o controle dos programas federais por esta “ponta”. O que não pensam é que o órgão foi estruturado para o desenvolvimento de ações de controle interno, que eram responsabilidade da finada Secretaria Federal de Controle Interno e que passou a atuar, na minha perspectiva, de um modo mais fácil. Afinal, pisar no rabo dos outros é muito mais fácil. Se se tivesse mantido o processo de controle interno eu não faria nenhuma consideração, mas acabaram com ele. E então…

Há uma outra observação necessária: o papel do administrador não se resume no ‘fazer’. Tão importante quanto fazer é impedir que se faça. Vou, neste ponto, lançar mão das observações do editor do jornal Uruguaio La Diaria sobre o período do governo Mujica naquele país: a realização de “balanços”, exige “separar esse balanço de outros cuja importância é inegável. Um seria um balanço global (…), outro seria o balanço do que o próprio Mujica fez ou deixou de fazer. Outro seria o balanço do que ele impediu que fosse feito ou deixou que fosse feito. Outro, ainda, seria o que ele desejou fazer e não pôde e, por último, há também o que ele pôde fazer, mas não quis fazê-lo”. Complicado, não?

Administrar, assim, é muito mais do que fazer e me parece que o próprio titular da soberania, no fundo no fundo, sabe disto muito bem. Voltando ao seu questionamento: a população, meu caro, na verdade quer, sim, “ver obra”, mas obra sem corrupção. Não tenho dúvida de que ela pensa assim. Em razão disso a nossa responsabilidade na condução de nossos procedimentos aumenta. No final de tudo, tenho a percepção de que ela aprende votando, aprende participando do próprio processo democrático, e estaria apta a assumir seu próprio papel político: controlar, através do próprio processo popular, o agir administrativo dos agentes políticos. Afinal, é ou não é ela o destinatário final de tudo o que fazemos e do que os próprios políticos pretendem fazer?

A esse propósito, você tem opinião formada sobre a regra de vedação de doações de pessoas jurídica às campanhas eleitorais? E sobre o financiamento público de campanha?

Não tenho opinião formada sobre a doação de pessoas jurídicas nos processos eleitorais. Aliás, acho que este é um falso problema. Em minha opinião, o que é fundamental, neste processo, é transparência ou, como queiram, a luz do sol incidindo sobre tudo. O eleitor precisa saber quem financia ou destina recursos para quem. Só assim o processo político poderia se desenvolver de modo isento, sem influências negativas; e só assim as escolhas seriam mais adequadamente conduzidas. No final, aqui também, trata-se de aprendizagem. Agora, no outro ponto, sinceramente, sou forçado a ser contra o financiamento público por uma razão muito simples: o financiamento privado vai continuar existindo. Alguém, sinceramente, acha que os interesses privados vão se afastar do processo político? Vão largar o osso? Sinceramente prefiro acreditar no coelhinho da páscoa.

Da última vez que a gente conversou você disse que seu gabinete não necessita de projeto de dinamização, pois já é dinâmico. Isso porque, na sua opinião, você tem dois dos melhores servidores do MPU. É um privilégio poder falar assim da equipe com a qual trabalhamos. Eu também tenho comigo três dos melhores servidores do MPU. No seu caso, eles estão com você hoje por conta do seu ‘olhar clínico’ para selecioná-los, por conta da formação que você deu a eles ou pela sua própria antiguidade?

Tenho tido muita sorte com aqueles que me auxiliam. Não só aqui, mas na política também foi assim. Procuro transformar o ambiente em que desenvolvo minhas atividades em um ambiente tranquilo, adequado para que tudo se dê como se deve. Acho que você também deve ser assim, pois já o ouvi falando de Josémaria Escrivá. Tento, com isto, formar uma relação produtiva com aqueles que me rodeiam, e sei que com isto eu acabo aprendendo e me aperfeiçoando mais do que eles. E é isto o que pretendo fazer sempre: aprender. Sinceramente, Bruno, quem me conhece de fato sabe disto: minha melhor característica pessoal é ter a certeza de que ninguém sabe ou pode saber tudo, dominar tudo em qualquer ramo do conhecimento, muito menos no âmbito da convivência pessoal. Não sei nada e estou sempre disposto a aprender, a conversar e a construir, de modo conjunto, o que for preciso para melhorar nossos ambientes. Talvez nisto esteja a resposta para o que acontece com meu gabinete.

Agora, não sei dizer se minha equipe atual foi resultado de escolhas pela antiguidade ou pelo meu olhar clínico. Só tenho certeza de que aprendo sempre com os dois, Toninho e o Sérgio, como aprendi com os outros que trabalharam comigo.

A perspectiva de ir para a Procuradoria Regional da República não o atrai?

Sim, atrai muito. Desde que seja para a Segunda Região. O problema que me impede de seguir caminho e abrir espaço para os colegas que ainda pretendem chegar a BH é de natureza familiar. Ninguém lá em casa quer mudar. E sozinho, meu caro, não vou a lugar nenhum. Isto significa que a Flavinha vai continuar ainda por muito tempo no Mato Grosso.

O pouco que convivemos me deu uma sensação de que você não é adepto das etiquetas contemporâneas. Um amigo meu diria que você ‘não usa creme hidratante e não faz questão de ser educado com todos, não fala manso, nem leva desaforo para casa’. Entre os homens, é um perfil em franca extinção, concorda?

Concordo. Me sinto um dinossauro. Fazer o quê? Prefiro não ter nenhum amigo aqui dentro do que deixar de ser franco. A hipocrisia que vejo é algo que não consigo aceitar nem muito menos levar para casa. Até porque, meu caro, ela não leva a lugar nenhum, nem pode fazer do hipócrita o que ele pretende ser. Tenho me afastado muito do dia a dia da Procuradoria, procurando fazer bem meu trabalho, mas não participando de nada mais. Veja que na última vez em que tentei voltar não consegui nem mesmo os votos suficientes para ser Coordenador de Estágio da PRMG. Aliás, você votou em quem?

Rapaz. Não me lembro…

Pois é. Acho que vou continuar enterrado. Minha expectativa, aí, é de que as coisas, mesmo com meu pessimismo, acabem acontecendo e possamos prestar à sociedade o serviço de que ela precisa.

O que o diverte no trabalho e fora dele?

No trabalho gosto dos desafios. Fora do trabalho, de tudo o que me permita aprender.

Você foi procurador-chefe da PRMG por dois mandatos. Quais são as maiores dificuldades do exercício dessa função administrativa e quais as maiores delícias?

As delícias estão nos contatos pessoais com todo mundo. Sempre entendi que administrar pressupõe gostar de gente. Ninguém pode realizar nada na administração se não consegue ouvir ou conversar com o próximo. Muita gente acha que pode administrar numa torre de marfim; e o resultado, neste caso, como temos visto, é o desgaste das relações pessoais, sejam elas profissionais — o que atinge até o andamento do serviço –, seja as de amizade, que deixam de existir.

As dificuldades, meu caro, já mencionei: estão nas hipocrisias dos que pensam poder ser o que não são, vendendo uma imagem pessoal longe daquilo que na verdade são.

Você é professor universitário. Que disciplinas você leciona e o que tem tratado de modo especial com seus alunos?

Tenho lecionado Introdução à Economia, Direito Administrativo e Direito Ambiental. Me sinto confortável em qualquer disciplina do direito público mas não costumo negar desafios. Acho, sinceramente, que nestas ocasiões temos uma grande oportunidade de aprender. Em sala de aula — comigo pelo menos é assim –, eu nunca ensinei mais do que aprendi. E é exatamente por isto que continuo lecionando.

Como assim, Tarcísio? Eu sempre escuto isso de ‘aprendo muito com meus alunos’. Mas não deveria ser, essencialmente, o contrário? Eu sei que nunca deixamos de aprender com tudo e com todos. Mas um aluno que aprendeu menos com o professor do que o professor aprendeu com ele não ‘ficou no prejuízo’?

Claro que não! Os professores, todos, aprendemos sempre com os alunos! Até porque a docência tem uma inevitável relação dialógica com a discência. Veja que um questionamento qualquer de um aluno pode levar a novas perspectivas teóricas. Pelo menos tem sido esta minha experiência. E é por isto que gosto cada vez mais de lecionar. Permita-me lembrar um epigrama da Cecília Meireles — é o de n. 10 do livro ‘Viagem’ –, que termina com estes três belíssimos versos: “sem levar dessa trajetória / nem esse prêmio de perfume / que as flores concedem ao vento”. É assim na vida que temos. É assim na relação com os alunos.

Uma última pergunta: se sua vida fosse uma embarcação em pleno mar, em que direção você considera estar indo hoje?

Muitos colegas gostariam de me ver respondendo a esta questão dizendo que a embarcação está indo para o fundo do mar. Mas a verdade é que este mundo é muito grande para direcionar o barco para um só porto. Acho que o importante não é o chegar mas o caminhar.

 

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Entrevista com Wesley Alves: “Uma bela música recompõe nossa ordem interna e nos ajuda a suportar os ‘pesos da vida’.”

Depois de ter trabalhado no gabinete do Min. Dias Toffoli, no Supremo Tribunal Federal, Wesley Alves, procurador da República em Franca, SP, decidiu tentar o concurso do Ministério Público Federal — cuja carreira, uma vez aprovado, iniciou em Rondônia.

Segundo compreende, “ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas otimista com a promessa da redenção divina” o impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sua concepção do papel profissional do cristão pressupõe que não utilizemos nossas posições sociais como meio de transformar nosso Estado em uma teocracia, mas, sim, devemos, como José e Daniel, seguir nossa vocação “com excelência e diligência, obtendo o respeito das pessoas e melhorando a vida daqueles sobre os quais exercemos autoridade”.

Crítico do pensamento progressista de esquerda, diz que ele “conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos”. Segundo Wesley, essa tentativa falhou; como consequência, “a sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado”.

Uma entrevista instrutiva com um colega que está trilhando, consciente das dificuldades que certamente virão e pronto a enfrentá-las, o caminho de sua formação intelectual — dinâmica a ponto de abranger na unidade de sua consciência as lições metodológicas de A.-D. Sertillanges e as modas de viola de Tião Carreiro: eis o nosso 33º encontro, com um bandeirante mineiro em terras paulistas.

 

Como está o trabalho na PRM de Franca, Wesley?

Bem, nos dez meses em que estou na PRM de Franca já pude conhecer bem a ‘casa’ e a cidade, dar continuidade ao trabalho desenvolvido pela colega anterior e promover algumas ações relevantes. Antes de vir para o Estado de São Paulo, estive na Procuradoria da República em Rondônia, minha primeira lotação, onde exerci um ofício com atribuição nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Aqui em Franca, ao lado de nossa colega Daniela Poppi, exerço todas as atribuições inerentes à atividade-fim do MPF. Ampliar o campo de atuação, especialmente neste início de carreira, tem-me sido muito importante, principalmente por colocar em prova minhas virtudes e limitações. Estou bastante entusiasmado e creio que o MPF em Franca tem muito a contribuir para a melhoria das condições de vida da população local.

Você foi analista judiciário do STF por quatro anos antes de ingressar no MPF. O que você fazia lá?

Durante dois anos, permaneci lotado na Central de Atendimento do Cidadão, setor para onde são dirigidas todas as postulações feitas ao STF e em que lhes é conferido o primeiro tratamento. Depois integrei o gabinete do Ministro Dias Toffoli, onde eu e mais quatro colegas éramos responsáveis pelos recursos extraordinários e agravos de instrumento cíveis distribuídos ao gabinete, exceto os que envolviam matéria tributária. Trabalhar na mais alta corte do Brasil, conviver com ministros, lidar com processos de grande relevância para o país foi para mim muito gratificante e contribuiu decisivamente para meu amadurecimento pessoal e profissional. No entanto, chegou um momento no qual concluí que eu não deveria passar o restante de minha vida exercendo esse trabalho e que eu deveria atender ao chamado para me tornar membro do MPF.

E eis aqui você. Mas, mudando de assunto: a música caipira que você escuta — Renato Teixeira, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro — sobrevive apesar de todos os modismos culturais e mercadológicos contemporâneos. O número de brasileiros que não têm acesso à televisão diminui a cada dia. A cultura popular de raiz, porém, não desaparece. Você acha que a música brasileira está em crise? Ou essa impressão vem apenas de uma exagerada exposição que a mídia faz de artistas desqualificados e de pessoas insossas que buscam apenas divertir e entreter o público?

Lamentavelmente, não posso dizer que a percepção de que a arte e a cultura brasileiras estão em crise é equivocada. Essa crise se deve, essencialmente, ao processo de deseducação a que somos, todos nós brasileiros, submetidos. Nascemos já com um intuito natural de beleza, simetria, ordem, proporção, harmonia; tudo isso está enraizado em nossa natureza. Um bolo que fica torto, disforme, por exemplo, pouco nos apetece, independentemente de ele ter ficado saboroso. Esse senso pode ser estimulado e desenvolvido ou, então, tolhido. Infelizmente, os educadores de hoje ‘ensinam’ às crianças que tudo é relativo e que elas não podem ter certeza sobre nada; que determinada obra ou música não podem ser consideradas bonitas ou feias, porque esse tipo de julgamento depende da perspectiva pela qual elas são observadas e da particular visão de mundo que o autor quis expressar por meio delas. E sem um mínimo senso de ordem e beleza, temos dificuldade de distinguir Machado de Assis de Paulo Coelho, um funk de uma canção de Bach, um ‘sertanejo universitário’ de uma moda de viola de Tião Carreiro. Aprecio vários estilos musicais e, por influência de meus pais e avós, tenho um gosto especial pela música caipira. Uma bela música recompõe nossa ordem interna e nos ajuda a suportar os ‘pesos da vida’. Sou um homem da cidade, mas tenho o campo como uma espécie de refúgio. A música caipira me proporciona paz, liberdade e me faz experimentar a simplicidade que a vida no campo oferece. Suprir as deficiências que há em minha formação cultural e estética é um dos objetivos que tenho para os próximos anos.

Da última vez que conversamos você disse que se considera ‘pessimista quanto ao futuro da humanidade e por outro lado otimista com a promessa da redenção divina, por meio de Jesus Cristo’. Como essa visão de mundo influencia o seu relacionamento com as pessoas e o seu modo de trabalhar na Procuradoria da República?

Como cristão, creio que somente um homem que tem destruídas suas esperanças a respeito de seus próprios méritos, valores e justiça pessoal pode reconhecer o mérito e a necessidade da morte de Jesus Cristo para nossa salvação. O reconhecimento dessa condição deve nos tornar humildes e pacientes, de modo que tomar conhecimento das falhas das demais pessoas, com quem compartilhamos das mesmas debilidades, deve ser uma oportunidade de confessar nossos próprios pecados e misérias a Deus. É nesse sentido que posso afirmar que aquela convicção — ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas também otimista com a promessa da redenção divina — me impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sei que tropecei em uma contradição. A humildade é um sentimento extremamente perigoso! Ninguém é capaz de vê-la no espelho sem perdê-la imediatamente. No entanto, embora incapaz de ‘ser’ genuinamente humilde, o homem é capacitado por Deus a ‘agir concretamente’ de forma humilde e a ter paciência. Como ensina o professor Olavo de Carvalho, a verdadeira humildade se alimenta da grandeza de Deus, e por isso é a única grandeza do homem capaz de frear seu orgulho, sem sufocar sua grandeza.

Sãos essas mesmas qualidades, a humildade e a paciência, que procuro cultivar no exercício do cargo de procurador da República. Exerço minha profissão para a glória de Deus e tenho certeza que em tudo ele me auxilia. Mas não justifico minha vocação profissional por aquilo que a torna espiritual. Certa vez um sapateiro perguntou a Lutero o que ele deveria fazer agora que conhecia o Evangelho. O clérigo lhe disse para fazer bons sapatos e os vender a preços justos. Como qualquer atividade secular, a atividade pública não é atividade evangelística, mas o desenvolvimento das atividades terrenas também foi uma missão confiada aos homens. É um trabalho secular, porém, ordenado e mandado por Deus. José e Daniel, personagens do velho testamento, são bons exemplos de ‘cristãos’ no exercício de atividade públicas. Eles não procuraram tornar seus cargos em meios de transformar seus reinos em teocracias, como foi Israel. Simplesmente seguiram sua vocação com excelência e diligência, obtendo o respeito dos regentes estrangeiros e melhorando a vida daqueles sobre os quais exerciam autoridade. Quando tomavam decisões no tribunal, José e Daniel tinham de basear seus julgamentos nas leis egípcias e babilônicas, e não na lei hebraica, embora jamais tenham endossado algo que violasse suas próprias relações com Deus. Portanto, o artista cristão não necessita justificar sua vocação por aquilo que a torna evangelística, pois ela deve simplesmente entreter e expressar excelência artística. Do mesmo modo, um juiz cristão não deve proferir sentenças cristãs. As formas especificamente cristãs de culto, de educação e de piedade devem ser ministradas no lar e na igreja.

Em que sentido você diz que o Estado pós-moderno, que tudo cuida e em tudo está presente, é o maior responsável pelos problemas da humanidade?

A miséria, tal como a gravidade, nos arrasta para a profundeza das águas assim que paramos de nos movimentar, tão logo deixamos de ser empreendedores e de produzir os bens de que necessitamos para sobreviver. Não vivemos em um mundo de abundância natural. Esse fato, apesar de óbvio para quem tem bom senso, foi ignorado pelo pensamento progressista de esquerda, que conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos. Isso seria garantido pela instituição de um Estado socialista ou de bem-estar social, os quais assumiriam a responsabilidade de suprir as necessidades humanas mais básicas e de tornar os homens mais felizes.

Não bastasse o amplo fracasso desses projetos, que em alguns lugares causou a morte de milhões de pessoas e em todos disseminou a corrupção, a consagração de benefícios materiais em direitos que devem ser atendidos a todo custo demandou a formação de Estados gigantescos e poderosos e destituiu das pessoas os valores morais mais básicos de convivência humana, como por exemplo os sentimentos de gratidão e de responsabilidade. A sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado; a família foi suplantada pelo ensino oficial; a necessidade de trabalhar e de empreender foi substituída pela confiança no auxílio estatal; a noção de dever cedeu espaço aos direitos universais; a vida inteira foi politizada e partidarizada. O Estado cresceu e nós diminuímos. E não houve contrapartida, porque aquelas promessas de prosperidade jamais foram cumpridas pelo Estado, digo, pelas ‘pessoas de bem’ responsáveis por guiar a humanidade.

Quando se pensa na estratégia do filósofo e agitador cultural italiano Antonio Gramsci, penso ser possível dividir as pessoas em três grupos: os que seguem à risca a sua cartilha em busca de promover a chamada ‘revolução cultural’, saibam ou não de sua origem e propósitos, aqueles que buscam, mais ou menos perplexos, defender-se de seus efeitos; e, por fim, um terceiro grupo, da imensa maioria das pessoas, que carregam o seu piano diário, trabalham, alheias à agitação que se faz em nome das transformações sociais que o italiano imaginou. Parece-me que é a esse terceiro grupo, majoritariamente, que a pensadora brasileira Marilena Chauí disse odiar com todas as suas forças (“eu odeio a classe média”). Fico pensando que, descontada sua histérica manifestação de ódio, a tese de fundo dela faz sentido: o povo começa a ganhar dinheiro como fruto de seu trabalho e não quer mais saber de fazer a revolução. Até o fim dos tempos, porém, muita gente boa se perde e se perderá na defesa de bandeiras tortas e sem futuro. Já que você gosta de música caipira, lembro-me do verso mais triste da música brasileira: “Meus irmãos perderam-se na vida à custa de aventuras”. Essas aventuras, parece, têm sido a perdição de muitos… Como você vê essa questão?

Você traçou com precisão o atual quadro social brasileiro. Foram as ideias desse ideólogo comunista que promoveram o adestramento mental das pessoas que hoje, envelhecidas mas imaturas, comandam o Brasil e despejam sobre ele todo o azedume de seu ressentimento, inoculando nos jovens a mentira de que nascemos todos bons e lindos, mas ‘o sistema’ nos tornou feios e está usurpando nosso direito político à felicidade. Desorientados, ressentidos e livres de qualquer responsabilidade por suas escolhas individuais, os ‘teleguiados’ despejam sobre tudo e todos a culpa de suas frustrações e se lançam na aventura de mudar o mundo, de acabar com os conflitos no Oriente Médio e com a fome na África. Mas nem sempre seus objetivos são tão grandiosos: eles também vão aos shoppings fazer ‘rolezinhos’ e exigir o direito constitucional de comprar um iPhone. Por trás dessas causas e discursos que negam a realidade estão a incompetência para a vida e a recusa de aceitar a si mesmo. E os agentes da revolução cultural, fiéis à cartilha gramsciana, souberam muito bem explorar essa ‘oportunidade histórica’. Tédio, sensação de vazio, vaidade, ressentimento e tutti quanti são sentimentos humanos aos quais todos estamos sujeitos. Não ceder a eles exige maturidade. Para sermos homens, no sentido mais profundo da palavra, devemos aprender a não dar espaço a esses vícios, não no sentido de ignorá-los ou negar sua influência, mas sim reconhecer que estamos sujeitos a eles, compreendê-los e fazer com que nossos bons impulsos se sobressaiam.

Ao abordar seu plano de estudos, você diz tê-lo iniciado a partir da perplexidade que lhe tomou diante da complexidade da realidade. O que você quer dizer quando fala que ‘a realidade é muito mais complexa do que parece’?

Quando eu lhe disse isso, e não faz muito tempo, falei sobre o que não sabia e apenas expressei minha ignorância. Não sei se a realidade é mais complexa do que parece ou se nós é que somos incapazes de apreender seus aspectos mais essenciais. Não tenho ainda competência para fazer esse julgamento e não posso transferir minha inaptidão de conhecer as coisas a elas próprias. Mas há algo sobre o qual nosso ‘bom senso’ não se engana: o fato de que as pessoas nascem, crescem, comem, se reproduzem, se amam ou se odeiam e depois morrem. Em torno disso orbitam nossas preocupações e perplexidades. E isso foi observado por um sábio há mais de três mil anos, conforme está em Eclesiastes 1:4-9.

→ Você reconhece que há em sua formação uma grande lacuna no campo cultural e moral. Em que consiste essa lacuna e o que tem feito para tentar saná-la?

Embora nunca as tenha ignorado completamente, cultura, arte e espiritualidade sempre foram por mim colocadas em segundo plano, como questões às quais eu deveria dedicar atenção somente quando houvesse tempo sobrando ou depois que eu houvesse alcançado meu objetivo profissional. Logo que fui aprovado no concurso de procurador da República e antes de assumir o cargo, senti-me então autorizado a compatibilizar o estudo do direito com o de filosofia, ciência política, religião e arte. Comecei então a assistir a aulas do Seminário de Filosofia do professor Olavo de Carvalho, adquiri dezenas de livros sobre esses assuntos, mergulhei-me de corpo inteiro nesse empreendimento. Durante aproximadamente dez meses li mais sobre ciência política e filosofia do que o havia feito em dez anos. Até então, e a aprovação no difícil concurso para o cargo de procurador da República reforçou isto, sentia-me satisfeito comigo mesmo e o impulso inicial para ampliar meus conhecimentos estava voltado a confirmar ou reafirmar minhas ‘opiniões’. Não demorou e muito perdi o senso de orientação diante do turbilhão de novidades com que eu me deparava e por perceber como eram superficiais muitas de minhas convicções. Essa chacoalhada aumentou minha curiosidade e me ensinou que é preciso ter paciência e disciplina para prosseguir com um projeto de (re)educação, que deverá durar a vida inteira.

Se eu entendi bem você começou um plano de estudos há cerca de um ou dois anos. Tem tido dificuldade em começar, em assimilar os autores desconhecidos? Que livros, orientações ou mesmo inquietações, você pode repassar a quem queira começar uma vida de estudos séria?

O professor Olavo de Carvalho diz que somente aprendemos determinada coisa quando esquecemos que a aprendemos, ou seja, quando esse conhecimento nos altera e passa a fazer parte do nosso próprio ser. Somente me lembro daquilo que eu sou, disse o francês Jean Filloux. Por isso, transmito a essencial recomendação do professor Olavo de que devemos iniciar nossos estudos a partir daquilo que consideramos realmente importante em nossas vidas e que de alguma forma nos modificará, pois somente assim trataremos o problema com seriedade e responsabilidade. Depois de compreender e aceitar essa orientação, convencido de que não conseguiria ‘abraçar o mundo’ de uma só vez, dediquei-me a estudar a cosmovisão cristã e o pensamento conservador. A quem ainda, como eu, pouco sabe a respeito do conservadorismo, sugiro a leitura de ‘A Política da Prudência’, do norte-americano Russell Kirk, ‘A Vida Na Sarjeta’, de Theodore Dalrymple, e o livro que estou terminando de ler ‘Nossa Cultura…ou o que Restou Dela’, deste mesmo autor. No que diz respeito à cosmovisão cristã, recomendo ‘O cristianismo puro e simples’, de C. S. Lewis, ‘Cristo e Cultura: Uma Releitura’, de D. A. Carson, ‘Dando nome ao elefante’, de James W. Sire, e o livro mais atual de todos, a Bíblia, porque trata do Deus eterno e quando fala do homem se reporta ao que ele tem de permanente. E aconselho aos que me leem a não demorar o quanto demorei: leiam logo ‘A vida intelectual’, de Antonin Sertillanges.

 

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Entrevista com Ryanna Veras: “A sociedade atual é extremamente dinâmica. Temos de escrever nossa história diariamente”.

Orgulhosa da história do Ministério Público Federal e de seu trabalho na instituição, Ryanna acredita que o MPF representa o que há de mais desenvolvido no serviço público brasileiro hoje. Assevera, porém, que diante da dinâmica da sociedade atual, em que novas questões surgem diariamente “temos de escrever nossa história diariamente”.

Ryanna passou sua infância em Santo André, SP, onde tinha uma vida simples mas repleta de amigos. “Brincávamos na rua, de jogos de tabuleiro, saíamos de bicicleta por todo o bairro sem qualquer preocupação. Foi uma época muito especial, com menos insegurança, que infelizmente meu filho não conseguirá experimentar”.

Ryanna começou sua carreira em 2002 na PRM Santo André e desde 2007 trabalha na área criminal da PRSP, na capital paulista. Embora veja como mais positiva para a sociedade a atuação cível do Ministério Público, optou pela área criminal pela afinidade intelectual com a matéria e pelo desafio de, apesar dos percalços, dar um melhor de si em um trabalho marcado pelas desilusões de um sistema de justiça permeado de contradições.

Além de dedicar-se aos seus processos criminais, Ryanna divide seu tempo entre os cuidados com seu filho, a vida espiritual, o trabalho voluntário e as aulas de piano — que a ajudaram a trazer disciplina para as outras atividades. ‘No meio do caminho da vida’, como Dante, reflete: “A vida até os trinta é um grande laboratório de experiências. Depois começa outro período que não é menos bonito e desafiador”.

Entre uma e outra atividade, Ryanna arrumou um tempinho para conversar conosco. Eis o nosso 20º ‘dedo de prosa’, um interlúdio agradável aos ouvidos da alma. Puxem uma cadeira e vejam se não tenho razão.

Você trabalha na área criminal desde que entrou para o MPF, Ryanna?

Não. Eu tive uma breve passagem pela área cível quando de 2002 a 2007 trabalhei na Procuradoria da República em Santo André, que hoje também abrange a Subseção Judiciária de São Bernado do Campo.

A atuação na tutela coletiva não chama a sua atenção hoje?

A nossa atuação no cível é, na minha opinião, muito mais positiva para a sociedade que a atuação criminal. Consegue obter benefícios em larga escala para as pessoas coletivamente. Mas a minha opção pela área criminal tem um misto de afinidade intelectual pela matéria e de um desafio de fazer algo de bom.

Sente que em geral nós temos cumprido com louvor nossas atribuições criminais?

Nessa área o Estado vive um misto de frustração, por não conseguir conter a sensação de insegurança da sociedade; e de autoafirmação, por tentar se mostrar presente por meio de penas retributivas e desumanas. É preciso repensar a política criminal e o papel do Direito Penal na atualidade. E isso me atrai.

Há alguns anos você morou em Londres, onde se tornou Master in Science em Criminal Justice Policy pela London School of Economics. Como foi essa experiência?

Foi uma experiência única. Conhecer pessoas do mundo todo e debater com elas, tomar contato com um ensino de alta qualidade, e viver a rotina de um outro país é algo maravilhoso. Ao mesmo tempo, é um incentivo ainda maior para trabalhar pelo nosso país, trazer para cá a literatura e o conhecimento que consegui adquirir lá e tentar de alguma forma devolver ao meu país o que foi investido na minha capacitação.

É possível dizer com justiça que você está satisfeita com o seu trabalho no MPF?

Tenho muito orgulho da história do MPF e do meu trabalho na instituição. Acho que o MPF representa o que há de mais desenvolvido no serviço público brasileiro hoje. Trabalha com alto nível de eficiência, com pessoal motivado, baixos índices de corrupção e condições de trabalho razoáveis. Entretanto, ainda há muito a se conquistar. A sociedade atual é extremamente dinâmica e novas questões surgem diariamente. Temos de escrever nossa história diariamente, como um órgão neutro, combativo e sempre ao lado da sociedade na luta pela justiça.

Mudando de assunto, onde você passou sua infância, Ryanna? Que lembranças traz daquela época?

Eu passei minha infância em Santo André, na região do Grande ABC. Tinha uma vida humilde, mas com muitos amigos. Brincávamos na rua, de jogos de tabuleiro, saíamos de bicicleta por todo o bairro sem qualquer preocupação. Foi uma época muito especial, com menos insegurança, que infelizmente meu filho não conseguirá experimentar.

Acredita que alguma circunstância dessa época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Na minha família são todos da área da saúde então tive pouco contato com o mundo das leis. Minha opção pelo Direito foi natural. Eu gostava mais de ciências humanas. Naquela época eu nem tinha noção das opções de carreira que podia ter. Era só Direito, Engenharia ou Medicina… Era tudo muito limitado.

E você ainda toca piano?

O piano é um hobby que mantenho até hoje. Faço aula semanalmente e treino sempre nas horas vagas. Acredito que os treinos de piano me ajudaram a trazer disciplina para todas as outras atividades. Como não sou uma pianista por vocação, preciso repetir muito e estudar para conseguir uma boa performance.

Acredita que a disciplina e a técnica que você adquiriu nas aulas de piano a ajudam de alguma forma na vida e no trabalho?

Sem dúvida. Essa disciplina me ajudou muito nos estudos para o concurso e, hoje em dia, me ajuda na organização da rotina profissional.

Nosso colega João Brandão já me disse que ‘a música é a sonoplastia da vida’… Eu particularmente gostei dessa definição. Existe alguma música que represente adequadamente hoje o que se passa na sua vida interior, Ryanna?

São tantas músicas que fizeram parte da nossa vida, não é verdade? Cada uma traz uma lembrança própria, vozes, cheiros, sensações… Atualmente, estou numa fase muita particular, entrando na segunda metade da vida. É nessa hora em que reflito sobre tudo o que aprendi, o que fiz, quais são os verdadeiros valores da vida. Tenho me dedicado muito à minha vida espiritual e ao trabalho voluntário. Quero fazer a minha parte, deixar um legado para as pessoas e para isso tenho buscado dedicar meu tempo ao que realmente tem valor no mundo. No momento, vou citar Society, do Eddie Vedder. É muito questionadora, como eu estou hoje.

Se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá?

Considero que até os trinta a vida é um grande laboratório de experiências. Devemos nos arriscar, acertar ou errar, sentir, experimentar sensações, viajar, nutrir a alma. É uma fase brilhante da vida. De vitalidade física e de uma imaturidade que é necessária para nos permitir a nos envolver nas mais diversas atividades. Acho que é até os trinta que adquirimos a bagagem que nos será útil para o resto da vida. É uma fase da vida que deve ser desfrutada intensamente. Depois dos trinta começa outro período que não é menos bonito e desafiador. Temos que pensar no que queremos deixar escrito na nossa história e isso é muito assustador. Ninguém quer passar a vida apenas dormindo, trabalhando e viajando. Espero que aos sessenta anos eu tenha feito coisas boas pela minha família, pelos amigos e pela sociedade. Ter histórias de lutas e de superação. Ser um exemplo para meu filho. Poder incentivar os mais jovens.

Imagine-se sobrevoando a história da humanidade. Usando a imagem criada por Antoine de Saint-Exupéry, você vislumbra algumas luzes na planície. Que luzes lhe parecem as mais interessantes? Por quê?

Sem sombra de dúvida eu gostaria muito de ver o Buda Gautama, Jesus, Confúcio… No Tao costumam chamá-los de seres iluminados, pessoas que se fizeram presente neste planeta para mostrar o caminho para a humanidade.

Independentemente da minha religião, é grande a admiração que eu tenho pela gratidão e pelo coração desses homens. Com certeza eles são a luz.

 

Links de interesse:

“O conselho que dou aos colegas mais novos é que se dediquem ao máximo, de corpo e alma. É preciso dar o melhor de si”. Entrevista com Brasilino Santos.

Brasilino Santos começou sua carreira no MPF em 1984 atuando perante o STF, depois, desceu para o TRF e, com muito custo, conseguiu sua desejada lotação na PRDF, onde atuou como Procurador da República. Após essa inusitada trajetória institucional, ele foi finalmente promovido a Subprocurador-Geral e atua, desde 2004, por direito próprio, perante o STJ.

Brasiliense por adoção e por nome, Brasilino defende a Capital da República com as unhas e os dentes de um cidadão orgulhoso. Para ele, o modo como muitos se referem à cidade “desagrada ao brasiliense comum, muitas vezes confundido pelo país afora com certos políticos de qualidades morais duvidosas que, eleitos nas suas bases, habitam nossa Capital durante seus mandatos e retornam às suas bases sem nada haver construído para a sociedade”.

Sua infância foi banhada pelas águas do Rio Carinhanha, afluente do São Francisco que divide Bahia e Minas Gerais, no município de Cocos, BA. Foi uma infância muito sofrida, devido às dificuldades financeiras do meio rural, mas, ainda assim, uma infância feliz devido à liberdade que usufruía com seus irmãos e poucos amigos.

Antes de entrar para o MPF, Brasilino formou-se em Técnico em Contabilidade e, durante sua formação jurídica, aprendeu e cresceu sob a atenta tutoria do então ministro do TFR Carlos Madeira e do Advogado e Promotor de Justiça Pedro Sobreira Pirajá, até que, depois de Promotor de Justiça no DF, a vida o levou a ingressar no MPF em 1984.

Um colega experiente e, ao mesmo tempo, um aprendiz em formação, já foi membro de praticamente todas as CCRs e atuou como auxiliar das corregedorias do MPF e do CNMP. Alegra-se quando lhe chegam notícias do sucesso profissional de seus ex-estagiários. Feliz com as sementes que lança e com a colheita que os mais jovens naturalmente fazem de seus frutos.

Com esta 17ª entrevista, ‘Um dedo de prosa’ sobe um patamar e finalmente alcança o edifício-sede da PGR em Brasília, de onde o Brasilino nos brindou com esse interessante colóquio, um misto de memória e de testemunho.

 

Há um sentimento entre alguns colegas de que Brasília é uma ilha isolada do resto do País. Você, que é brasiliense até no nome, concorda com essa percepção? Brasília é uma síntese perfeita de que Brasil?

Sim, de fato existe essa percepção. Alguns até se referem a Brasília como ‘a ilha da fantasia’. Já ouvi diversas vezes estas expressões com referência a Brasília. Certa vez, uma senhora que me atendia numa loja no Shopping Paulista se referiu de modo descortês à nossa Capital. A ela respondi que não seria uma exclusividade nossa, pois, por exemplo, São Paulo produziu Paulo Maluf e tantos outros corruptos de triste memória. E os corruptos que trabalham em Brasília quase sempre são oriundos de outros Estados. Aí ela se calou… e mudamos de assunto.

A expressão ‘ilha da fantasia’ indica uma ilha paradisíaca onde qualquer desejo pode ser realizado, objeto de conhecido seriado que tem sido passado na televisão ao longo dos tempos. Trata-se, no entanto, em se referindo a Brasília, de uma ironia que muito desagrada ao brasiliense comum, muitas vezes confundido pelo país afora com certos políticos de qualidades morais duvidosas que, eleitos nas suas bases, habitam nossa Capital durante seus mandatos e retornam às suas bases sem nada haver construído para a sociedade, mas sim para o próprio patrimônio.

Podemos até aceitar que se trata de uma ‘ilha isolada’ do restante do país, pois deve ter sido idealizada por motivos de segurança do território nacional, ainda nos tempos das invasões estrangeiras — caso, por exemplo, das invasões holandesas e francesas. Foi nos tempos em que o perigo maior – para a integridade nacional – vinha do mar. Por isso os portugueses já planejavam levar a sede do poder para o centro do país, equidistante das fronteiras, para assim se protegerem dos piratas e dos demais ataques que vinham do mar, além de situar-se num ponto equidistante das demais Províncias.

Esse antigo sonho veio a ser positivado na Constituição de 1891, que dispôs que cada uma das antigas Províncias formaria um Estado e que o antigo Município Neutro — denominação que tevez a Capital do Império entre 1834 e 1890 — constituiria o Distrito Federal. Este continuaria a ser a Capital da União, enquanto não se estabelecesse no Planalto Central. Conforme art. 3º da Constituição Republicana, ficou “pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados”, que seria “oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital federal”.

Por iniciativa de Floriano, foi demarcada a área, entre 1892 a 1894, pela denominada Comissão Cruls, chefiada pelo astrólogo Luiz Cruls. A pedra fundamental da Comissão está na região administrativa de Planaltina-DF.

Talvez o fato de tratar-se de uma jovem Capital, distante da maioria das demais, haja levado a alguém a pensar em uma ilha, o que atualmente já não corresponde à realidade, pois a vinda da Capital para o Centro deu causa à formação de numerosos núcleos populacionais em suas proximidades, assim como ensejou um deslocamento populacional cada vez mais expressivo rumo às regiões Centro-oeste e Norte.

Apesar de todo esse deslocamento populacional, que vai se multiplicando e avançando rumo às áreas ainda inexploradas da região norte, Brasília ainda é uma sociedade em formação. Agora é que estão surgindo os verdadeiros filhos de Brasília ou os netos dos filhos dos Candangos. Ainda são frágeis as tradições e os traços culturais próprios. Antes um verdadeiro faroeste, o tempo vai se encarregando de construir esse núcleo de formação populacional cuja semente foi o Candango. Candango, no sentido mais apropriado, é quem veio para construir Brasília ou, mais genericamente, quem nasceu no Distrito Federal. Na realidade, quem nasce no Distrito Federal não tem ainda uma denominação mais adequada, tal qual, por exemplo, têm o goiano, o baiano e o mineiro.

Enfim, primeiro por sua composição recente na história, já que foi construída a partir de 1956 e inaugurada em 1960; depois, por suas peculiaridades como unidade da federação sui generis, Brasília parece um corpo estranho que surgiu, apesar das adversidades. É certo que até hoje o pessoal do Rio de Janeiro lamenta a mudança da Capital para o Centro do Brasil. O Rio ficou pobre. Para a Capital Federal são canalizados recursos financeiros de todas as Unidades da Federação, o que deixou de existir lá na antiga sede do poder. O Estado, com a mudança da Capital, perdeu expressiva fonte de rendas e teve que criar mecanismos próprios de arrecadação para suprir as dificuldades orçamentárias que surgiram e a cada vez mais se tornam mais sensíveis.

No atual momento, tenho a impressão que Brasília já não pode mais ser considerada como uma ilha. É que estão presentes aqui representantes de todos os Estados brasileiros, havendo a maior diversidade possível, a maior mistura de diferentes origens de pessoas, vindas de todos os recantos do território nacional. A isto se pode chamar de ‘integração nacional’. E se todos os Estados integram a Capital da República, aqui não é mais uma ilha isolada do restante do Brasil. Todo o Brasil está aqui. As distâncias foram reduzidas, desde o tempo em que predominava o transporte por animais, quando seria normal uma carta demorar vários meses para chegar do Rio de Janeiro a Brasília. Basta lembrar que a Comissão Cruls veio a cavalo. Mais ou menos trinta anos depois é que começaram a surgir os primeiros ancestrais dos nossos automóveis.

Por outro lado, quanto à alta Administração Federal, cada senador, cada deputado, ministro de estado, ministros de tribunais superiores que se deslocam dos estados para cá, por força de sua escolha, sua eleição, sua nomeação, transferência ou remoção, trazem consigo pessoas de suas relações familiares e sociais, assim como de suas relações profissionais. E muitos vão ficando depois, por aqui, e outros retornam e voltam, sendo marcante a característica da representatividade dos interesses das Unidades Federativas de origem no setor central do Brasil.

Outro exemplo é a Universidade de Brasília, que é vocacionada a ter as melhores referências no corpo docente, porque formado por numerosos professores que vêm cedidos pelas universidades dos Estados de origem. É o caso, por exemplo, de ministros de tribunais, de membros do Ministério Público, de assessores de ministros de Estado, de assessores de parlamentares, e assim por diante, que saem de altos postos acadêmicos nas universidades de origem para cá.

Esse termo ‘ilha isolada’ ou ‘ilha da fantasia’ também costuma ser relacionado a atos de improbidade e imoralidade administrativa, que realmente costumam ser negociados em Brasília, por ser aqui a sede do poder federal. Mas essas negociações têm, porém, como beneficiários, em sua maior parte, de regra, os interesses provincianos. Basta tomar para exemplo o caso das obras públicas, que, de regra, não estão em Brasília, mas nos Estados representados pelos parlamentares que, como de costume, têm a missão de carrear recursos e melhorias para seus Estados. Basta lembrar as denominadas emendas orçamentárias.

Você, Brasilino, está às voltas com as anistias a ex-cabos da Aeronáutica… Em que sentido isso é um problema para o Ministério Público? Há alguma solução em vista?

Trata-se de caso que venho acompanhando desde o ano de 2003, quando ainda oficiava na PRDF, e por isso tenho conhecimento de causa para tratar da verdadeira ‘fábrica de anistias’ que surgiu na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, contemplando pessoas que, comprovadamente, não foram vítimas de perseguição política.

Conforme Portarias Interministeriais n° 134 e n° 430, ambas de 2011, baixadas, conjuntamente, pelo Ministro de Estado da Justiça e pelo Advogado-Geral da União, foi determinada a revisão de 2.530 anistias — número elevado depois para 2.558 — suspeitas de falsidade no que respeita aos motivos de sua concessão a ex-cabos da Aeronáutica.

Os atos de anistia tiveram fundamento único na Portaria n° 1.104-GM3/64, do Ministro da Aeronáutica, que foi interpretada, por equívoco, pela Comissão de Anistia, como se se tratasse de ato de exceção, e a partir de então seguiram-se às centenas e depois aos milhares as concessões de anistias em bloco, sem que os destinatários houvessem sido vítimas de perseguição ou de punição por motivos políticos, como previsto no art. 8º do ADCT e na legislação ordinária que rege o assunto, tudo em prejuízo de quantos sejam realmente merecedores da anistia, os destinatários das normas que a instituiu, por haverem sofrido, realmente, perseguições e punições por motivos políticos durante o estado de exceção.

Certo é que quando o Ministro da Justiça, com base nas conclusões do Grupo de Trabalho Interministerial, composto por nove membros — quatro representantes da Advocacia-Geral da União e cinco representantes do próprio Ministério da Justiça –, havia decretado a nulidade de 428 casos de anistias comprovadamente falsas, pois não se tratava de perseguidos por motivos políticos, conforme se comprovou durante exaustivas investigações, sobreveio a concessão de mandados de seguranças, pelo Superior Tribunal de Justiça, ao fundamento de que, ultrapassado o prazo de cinco anos desde o ato concessivo de anistia, teria havido decadência, e por isso não se poderia decretar a nulidade.

Houve diversos recursos extraordinários para o Supremo Tribunal Federal, já admitidos e em trâmite, alguns já inadmitidos perante o Supremo Tribunal Federal, e enquanto isso os falsos anistiados, ex-cabos, prosseguem recebendo como suboficiais, ou como oficiais, da Aeronáutica, como se houvessem sido vítimas de perseguição ou punição, durante os Governos Militares, fato que comprovadamente não ocorreu.

Aliás, sobre o mesmo assunto, já no ano de 2004, conforme Portaria n° 594, de 12.2.2004, do Ministro de Estado da Justiça, foi decretada a nulidade de 495 atos concessivos de anistia a estes mesmos integrantes da categoria dos ex-cabos da Aeronáutica, igualmente por não haverem sofrido qualquer espécie de punição ou perseguição, durante o regime militar, menos ainda por motivos políticos ou ideológicos.

Somados os 495 com os 2.558 somam-se mais de 3 mil anistias concedidas a quem jamais fez jus.

Também em 2004, no âmbito do Ministério Público Federal, foi instaurado o Inquérito Civil Público n° 1.16.000.001386/2004-93, que, infelizmente, foi arquivado na origem e ora se encontra em trâmite perante a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, que cuida do Patrimônio Público e Social e Combate à Corrupção, destinado a apurar a notícia, à época, da concessão de centenas de anistias a ex-cabos da Aeronáutica, com fundamento único na Portaria n° 1.104-GM3/64, portanto, em contrariedade ao art. 8° do ADCT da Constituição de 1988 e ao art. 2° da Lei de Anistia — Lei 10.559/2002.

Além disso, depois, naquele mencionado ICP, foi instituído Grupo de Trabalho denominado ‘Anistias concedidas com base na Portaria n° 1.104-GM3/64’, na 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal – Patrimônio Público e Social e Combate à Corrupção, destinado a “apurar as circunstâncias em que foram concedidas anistias por motivo de conclusão do tempo de serviço militar na Força Aérea Brasileira”.

Esse Grupo de Trabalho, apesar de publicado o convite para sua composição, em nossa rede corporativa, ainda não se completou e, portanto, não está ainda em funcionamento. Por enquanto, estou solitário nessa árdua e invencível missão.

Além do mais, a partir de janeiro de 2014, desde quando designado para o exercício das atribuições junto à 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que trata de Direito Público, temos oficiado em numerosos mandados de segurança impetrados por ex-cabos da Aeronáutica, os beneficiários daquelas mais de 3 mil anistias falsas, contra atos do Ministro de Estado da Justiça e ou do Ministro de Estado da Defesa, ora buscando o pagamento de débitos retroativos, ora impugnando a declaração de nulidade dos atos concessivos de anistia. A tese dos ex-Cabos, que foi exposta em todos os mandados de segurança, é que a intenção da Portaria nº 1.104-GM3/64, do Ministério da Aeronáutica teria sido apenas a de perseguir e expulsar os Cabos que completassem oito anos de tempo de serviço na Força Aérea. Isso não é verdade, pois mesmo quem tivesse seis anos foi beneficiado com a prorrogação do período de permanência em dois anos. Em suma, mesmo aqueles que contavam entre seis e oito anos poderiam completar até dez anos no serviço militar, e tiveram o direito de prosseguir, desde que, antes do final dos dois anos de prorrogação automática, fossem aprovados para ingresso na Escola de Sargentos, caso em que continuariam regidos pelas normas anteriores à Portaria nº 1.104-GM3, de 1964. Nesse caso teriam assegurada a permanência na FAB, da mesma forma que aqueles que contavam mais de oito anos de tempo de serviço militar, na data da Portaria nº 1.104-GM3, de 1964. Os Cabos que houvessem completado 8 anos de serviço militar tiveram assegurada a permanência na Força Aérea, tendo permanecido regidos pelas regras anteriores, o que autorizava os reengajamentos até quando completassem 45 anos de idade, conforme a legislação que vinha da década de 40, quando foi criada a Força Aérea.

Nossa preocupação, no caso dos ex-Cabos falsários, decorre da alta relevância da causa, envolvendo excessiva quantidade de anistias, que chegou a mais de 3 mil, concedidas a ex-cabos da Aeronáutica com fundamento em fato inexistente, casos em que comprovadamente não houve punição ou perseguição política, mas, isto sim, apenas o licenciamento por causa unicamente da conclusão do tempo de serviço militar previsto na Portaria nº 1.104-GM3, de 1964, da mesma forma, para todos, sem ostentar qualquer norma com tratamento discriminatório ou de exceção.

Essas anistias falsas dos ex-cabos da Aeronáutica, no momento, acarretam prejuízos ao Tesouro Nacional de mais de dezesseis milhões de reais mensais, há débitos retroativos de cerca de quinhentos e trinta e um milhões de reais e já foram desembolsados quase um bilhão e meio de reais referente a pagamentos retroativos — na verdade R$ 1.493.242.053,38, compreendidos como tais os relativos ao período que vai da concessão da anistia até a data da Constituição de 1988.

E, além de a folha de pagamentos mensais desde a concessão de cada ato de anistia, implicar numa despesa de perto de R$ 2 bilhões em cada dez anos, tudo pago indevidamente, conforme se constata dos dados noticiados num ofício do Comandante-Geral do Pessoal da Aeronáutica, que tenho em minhas mãos.

E, para concluir, o que mais tristeza nos causa, é que se pode estimar que até o momento, compreendendo a soma dos pagamentos feitos aos ex-Cabos da Força Aérea, tanto pela manutenção da folha de pagamentos mensais como dos pagamentos retroativos, já houve um desembolso que supera a cifra de R$ 4 bilhões. Todavia, qualquer tentativa de barrar este assalto de quantias bilionárias, segundo o STJ, seria ilegal! Pasmem!

O entendimento atualmente adotado pela 1ª Seção do STJ, em inúmeros mandados de segurança, causa até enjoo e incurável depressão. Ali foi adotada a tese dos ex-Cabos falsários, no sentido de que a revisão administrativa objeto das Portarias Interministeriais nº 134, de 15.02.2011, e 430, de 07.04.2011, baixadas pelo Ministro da Justiça e pelo Advogado-Geral da União, não poderia ocorrer, sob o fundamento de que teria havido a decadência do direito de decretar a nulidade, na via administrativa, nos termos do art. 54 da Lei nº 9.784/1999, porque não estaria provada a má-fé dos beneficiários da anistia concedida.

Já houve diversos recursos extraordinários admitidos no Superior Tribunal de Justiça, que estão aguardando julgamento no Supremo Tribunal Federal, onde, lamentavelmente, já foram alguns deles inadmitidos por decisões monocráticas de Ministros da Suprema Corte, algumas confirmadas via agravo regimental, como no caso dos RREE 806056, 806100, 784731, 784736 e 781961/DF. A quem se interessar pelo assunto, pode-se começar pela leitura do acórdão proferido no MS n° 18.606/DF, publicado no DJe 28.6.2013, precedente pioneiro sobre a pérola da decadência.

Penso que o raciocínio deveria ser outro. Como poderiam os ex-cabos da Aeronáutica ser considerados de boa-fé, se obtiveram o direito a anistia sem jamais terem sido vítimas de qualquer espécie de perseguição ou punição e menos ainda por motivos políticos? Dizer que não está demonstrada a má-fé nestes casos é o mesmo que reconhecer a boa fé de alguém que consegue um benefício de aposentadoria mediante falsificação de anotações na carteira do trabalho em que conste, por exemplo, haver trabalhado como funcionário público ou no setor privado, sem que, na vida real, jamais tenha sido servidor público ou empregado, nem de qualquer forma contribuído para a previdência social.

Mudando de assunto, Brasilino, onde você passou sua infância? Que lembranças tem da sua meninice?

Toda a minha infância e adolescência – até completar dezoito anos, quando saí para prestar o serviço militar – foi vivida predominantemente no meio rural, no interior da Bahia, no interior de Goiás e em Brasília. Aqui cheguei aos onze anos de idade, com meus pais, trabalhadores rurais. Fiz o curso primário, do primeiro ao quinto ano, em escola evangélica. Depois fiz o curso ginasial, em quatro anos, e o curso colegial, em mais quatro anos, como Técnico em Contabilidade, concluído em 1975.

Tive uma infância muito sofrida, devido à pobreza do meio rural. Por outro lado, foi uma infância muito feliz, haja vista os espaços de liberdade que eram praticamente ilimitados. Tudo era permitido. Minha vida, nos primeiros tempos, foi algo que em muito se assemelha aos acontecimentos narrados em ‘Três Garotos em Férias no Rio Tietê’, de Francisco de Barros Júnior, que conta a aventura de um tio que desce o Rio Tietê num bote, acampando e ensinando os sobrinhos a respeitar e proteger a natureza. Não se trata do Rio Tietê imundo, sujo, malcheiroso e agredido, que atravessa a Capital dos Bandeirantes. A Capital trata mal o seu rio mais importante. Trata-se daquele outro, de águas limpas, que corria entre florestas densas, até que por ali chegou a civilização e o destruiu.

Sempre gostei muito da água dos rios, córregos e riachos, nas quais passava os dias a banhar com os irmãos e alguns amigos. Até porque, nascido nas margens do Rio Carinhanha, afluente do São Francisco, que faz divisa da Bahia com Minas Gerais, no Município de Cocos, antes distrito do Município de Carinhanha, e naquele Rio, até hoje, há muitos peixes [ainda mansos, porque pouco perseguidos pelos pescadores] e as águas ainda são limpas, bastante apropriadas para os passeios de canoa e uma excelente pescaria, além do banho em suas águas limpas e cheirosas. Cheiro de matas, cheiro de florestas. Cheiro de água pura.

Aqui mesmo, em Sobradinho, DF, onde cheguei aos onze anos de idade, desfrutei das delícias das águas de um regato que por ali se escorre, até quando, depois de 1970, suas águas se transformaram em escoadouro de esgotos e de lá para cá tudo se perdeu. Deixou de existir aquilo que, no início, era uma espécie de clube de uso coletivo, para onde a meninada se deslocava nas horas de sol ardente, principalmente nas tardes.

E ainda havia dois clubes, com piscinas, na beira do regato de Sobradinho, o SODESO e o BANCREVEA, que ainda sobrevivem, em Sobradinho-DF, onde ainda se pode encontrar algum amigo daqueles tempos de escola primária, dos tempos de ginásio e de colégio.

E como você chegou ao Ministério Público Federal?

Meus estudos foram me levando naturalmente ao Ministério Público. Veja. Eu cursei o pré-primário na Escola Evangélica Erasmo Braga, em São Gabriel, Goiás, em 1963, de onde nos mudamos para Sobradinho, DF, quando reiniciei os estudos na Escola Classe do Nazareno, outra escola evangélica, onde de 1964 a 1967 eu fiz o curso primário.

Eu agradeço muito pela formação evangélica que me foi proporcionada, pela educação religiosa, pelo civismo e pelo rigor disciplinar, base da formação moral que me conduz pelo restante da vida. Quem é levado para escolas religiosas, desde os primeiros momentos da existência, não necessitará de correção no futuro. Ali o caráter é moldado, estimulam-se os bons costumes, a educação é baseada em princípios cristãos, que são sempre muito sólidos e eternos.

E na Escola Classe do Nazareno, cujas atividades foram encerradas em 1967, a educação cívica era reforçada, pois todos os dias eram hasteadas a Bandeira Brasileira e a Bandeira do Distrito Federal, e todos, em harmonia, cantávamos o Hino a Brasília, o Hino à Bandeira e o Hino Nacional, antes do começo das aulas.

O ginasial e o colegial foram cursados, respectivamente, de 1968 a 1971 e de 1972 a 1975, no antigo Colégio de Sobradinho. E dali, saí com o diploma de Técnico em Contabilidade, tendo sido vitorioso, no mesmo ano de 1975, num concurso público para o Fisco de Goiás, aplicado pela Fundação Carlos Chagas, onde atuei numa das mais prestigiosas carreiras do Estado.

Volvendo no tempo, prestei o serviço militar, no 8º Grupo de Artilharia Antiaérea, em Brasília, atual 32º Grupo de Artilharia de Canhões, em 1971, de onde saí com o Certificado de Reservista de 1ª Categoria. Aquele ano foi um dos mais marcantes na minha vida, pois, na Caserna, aprendi o sentido do respeito à Pátria e do fiel cumprimento dos deveres de cidadão. São aprendizados que jamais serão esquecidos, pois ficam interiorizados no pensamento do jovem e o acompanham pela eternidade.

De abril de 1976 a dezembro de 1977, fui Agente Arrecadador de Tributos Estaduais, cargo integrante do Fisco do Estado de Goiás, de onde saí para o cargo de Auxiliar Judiciário, tendo sido, logo no início, designado para uma função de confiança, como Secretário Datilógrafo, no Gabinete do Ministro Carlos Madeira [no extinto Tribunal Federal de Recursos], depois, Ministro do Supremo Tribunal Federal, onde se aposentou. Esse ministro foi, antes, Professor de Direito Público e Juiz Federal, durante dez anos no Maranhão, e foi uma das pessoas que mais inspiração me proporcionou rumo às carreiras jurídicas, pessoa a quem sou muito grato pelo tanto que influenciou positivamente minha vida, e com quem trabalhei desde o início de 1978 até o início de 1983. Trata-se de uma das pessoas mais respeitáveis, justas, dignas e honestas das que tive a oportunidade de conhecer.

Também desde início de 1978 fui Estagiário do Advogado e Promotor de Justiça Pedro Sobreira Pirajá, pessoa que me ensinou a maior parte dos conhecimentos de que faço uso até hoje. Tratava-se de alguém que saiu do Ceará para o Rio de Janeiro, onde foi seminarista, depois Oficial do Exército. Também era formado em Economia e dominava o Latim. Foi quem mais me orientou e mostrou os caminhos da retidão, tão necessários para a carreira do Ministério Público, e com quem permaneci até meados de 1984, quando já havia passado pelo Ministério Público do DF e estava no Ministério Público Federal.

Durantes os anos de 1978 a 1981, formei-me Bacharel em Direito, na Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal, e de 1987 a 1991, obtive o Grau de Mestre em Direito Público, na Universidade de Brasília, com a defesa da dissertação “Medidas Provisórias no Direito Comparado e no Brasil”, publicada em 1994 pela Editora LTr, São Paulo, edição esgotada.

Tomei posse no Ministério Público do Distrito Federal em 23.2.1983, como Defensor Público, que atualmente corresponde ao cargo de Promotor de Justiça Adjunto. Depois de seis meses, aproximadamente, passei a exercer predominantemente o cargo de Promotor Público Substituto, com atribuições em questões de família, órfãos e sucessões, predominantemente, e na área criminal.

Em 1º.10.1984, tomei posse como Procurador da República. Em março de 1993 fui promovido a Procurador Regional da República e, em dezembro de 2003, ao cargo de Subprocurador-Geral da República.

Logo que cheguei no MPF, passei a atuar como uma espécie de auxiliar de Subprocuradores-Gerais da República, que existia à época, atividade consistente em estudar os autos de processos e elaborar pareceres que eram assinados pelo Procurador da República e aprovados pelos Subprocuradores-Gerais da República. Comecei analisando processos criminais e elaborando pareceres perante o Supremo Tribunal Federal. Depois, surgiu um grupo de trabalho perante o Tribunal Federal de Recursos, para desobstruir numerosos recursos ordinários trabalhistas. Os pareceres eram submetidos à aprovação dos Subprocuradores-Gerais da República.

Foi um período muito enriquecedor e de intenso aprendizado e aperfeiçoamento, pois contávamos com a orientação de pessoas que, além de educadíssimas, nos tratavam de igual para igual, não obstante serem portadoras de elevada formação jurídica e larga experiência profissional.

Eram pessoas que se dedicavam, com muita paciência, horas e horas, ao trabalho de ouvir as ponderações e esclarecimentos sobre a defesa de certos pontos de vista, à correção dos nossos pareceres e aos esclarecimentos dos pontos em que deveriam ser aperfeiçoados. Os pareceres eram feitos e assinados por nós e aprovados pelo Subprocurador-Geral com lotação perante o Tribunal Federal de Recursos ou perante o Supremo Tribunal Federal, conforme o caso. Só tenho a agradecer a tantos Subprocuradores-Gerais que tanto tempo se dedicaram a me ensinar e em muito contribuíram para o meu aperfeiçoamento pessoal e profissional. Com eles aprendi a levar cada vez mais a sério o exercício dessas tão relevantes atribuições ministeriais.

Após a Constituição de 1988, entendeu-se como incompatível com o perfil institucional do Ministério Público o trabalho de auxiliar de Subprocurador-Geral. Daí, passei a oficiar perante a PRDF, de onde saí somente para o cargo de Subprocurador-Geral, quando passei a atuar perante o STJ, de onde não mais saí.

Curioso é que, enquanto para todo Procurador da República, ao tomar posse, o natural seria iniciar em 1º grau e somente anos e anos depois galgar para o 2º e o 3º graus, ocorreu o contrário com os que tomaram posse no MPF com lotação em Brasília em 1º.10.1984. Primeiro, o colega Gilmar Mendes foi escolhido pelo PGR, por haver sido o 1º classificado no concurso, para oficiar perante o Supremo Tribunal Federal. No mesmo ato foram escolhidos para atuar na PRDF aqueles que haviam feito opção pelo exercício da advocacia, que foi exigida antes da posse. Tal opção consistiria em que os que renunciassem ao exercício da advocacia receberiam uma gratificação de dedicação exclusiva, prevista em lei. Feitas as designações referidas, os demais foram colocados à disposição dos Subprocuradores-Gerais com assento no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Federal de Recursos, aos quais incumbiria a escolha para de Procuradores da República auxiliá-los no estudo dos processos e elaboração de pareceres, nas respectivas áreas de atuação.

Feito isto, o professor Inocêncio Mártires, então PGR, deu por encerrada a reunião, que não deve ter durado mais que três minutos, alertou que sua decisão era inapelável, e saiu.

Devido àquela decisão, não abririam vaga na 1ª instância, durante anos, e fui obrigado a permanecer no Supremo Tribunal Federal, no estudo e elaboração de pareceres em processos criminais, até quando surgiu um mutirão, no Tribunal Federal de Recursos, destinado a analisar mais ou menos 6.000 processos que ali estavam represados, a depender com vista em aberto para o Ministério Público Federal. No TRF atuei principalmente em recursos ordinários trabalhistas e em matéria administrativa em geral. E só depois de vários meses no TRF é que consegui, afinal, minha “ascensão” ao 1º grau. Como já estava cansado de atuar no 2º e no 3º graus, prometi a mim mesmo, embora sem jamais haver dito a ninguém, que dali não sairia jamais, a não ser direto para o Superior Tribunal de Justiça. E foi o que, de fato, ocorreu.

Uma observação é que antes havia os cargos de procurador da República de 2ª categoria e de 1ª categoria, com atuação em 1º grau, enquanto os Subprocuradores-Gerais tinham atuação no TRF e no STF. Os Subprocuradores não eram cargos de provimento efetivo, mas, sim, por livre escolha do PGR, e permaneciam enquanto bem servissem, podendo, serem dispensados a qualquer momento, caso em que retornavam para o exercício do cargo efetivo em 1º grau.

Quando os Tribunais Regionais Federais foram criados pela Constituição de 1988 foram criados os cargos de Procurador Regional da República. Assim, conforme previsto na legislação própria, eu não seria obrigado a atuar perante o Tribunal Regional Federal, embora tivesse preferência para ocupar qualquer vaga que surgisse. Mas a ascensão dependeria de opção. A opção para permanecer em 1º grau era tácita. A outra deveria ser expressa. Sempre optei por permanecer em 1º grau, até quando saí da PRDF direto para a PGR, onde fui designado para atuar perante o Superior Tribunal de Justiça.

Curioso é que, já promovido, em 02.12.2003, a Subprocurador-Geral da República, ainda permaneci atuando perante a Justiça Federal de 1º grau, durante os meses de dezembro de 2003 e janeiro de 2004, enquanto estava sendo providenciada a aquisição dos móveis para o meu gabinete, a sala 211 do Bloco A do Edifício da PGR. Eu comecei a oficiar perante o Superior Tribunal de Justiça somente em 1º de fevereiro de 2004.

Nos tempos de PRDF, exerci, como Substituto, o cargo de Procurador-Chefe, além de ter sido o Coordenador da Área Criminal, também por certo tempo, e membro suplente da 4ª CCR — Câmara do Meio Ambiente. Também exerci, temporariamente, o cargo de Procurador Regional Eleitoral nos Estados do Tocantins, do Amapá e do Acre, em diversas oportunidades, além de haver atuado também como Procurador da República, naqueles mesmos Estados, durante vários períodos, e noutros momentos também exerci as atribuições de Procurador-Chefe, temporariamente, nos mesmos Estados. Ainda, como Procurador da República e sempre de forma temporária e como voluntário, oficiei em Criciúma, SC, em São Bernardo do Campo, São José do Rio Preto, Sorocaba e Franca e em São Paulo, SP, em Imperatriz, MA, e em Marabá e Santarém, PA.

Ainda durante os tempos de PRDF, aceitei o cargo em comissão, de assessor, junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, exercido de julho de 1989 a novembro de 1991, e depois, durante o Governo Itamar Franco, o cargo de Consultor Jurídico, de julho de 1993 a junho de 1995, então sob a nomenclatura de Assessor-Chefe, na Secretaria da Administração Federal da Presidência da República, hoje integrante da estrutura do Ministério da Administração Federal, período durante o qual houve a designação para assessor jurídico de uma Comissão Especial da Presidência da República, destinada à apuração de casos de corrupção, e depois para assessorar a Secretaria de Reforma do Estado, já durante o Governo Fernando Henrique Cardoso.

Também durante o período de atuação na PRDF, exerci, durante mais ou menos dois mandatos, o cargo de Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, o que ocorreu em parte do ano de 2002, durante o ano de 2003 e parte do ano de 2004, nomeação por decreto do Governo do Distrito Federal, por indicação do Conselho Superior do Ministério Público Federal.

No Superior Tribunal de Justiça, atuei perante a Segunda Turma, de Direito Público, durante mais de ano, logo no início de 2004, tendo ido a seguir para a Quinta e a Sexta Turma, de Direito Penal, de 2005 a 2013, quando retornei para a Primeira Seção, de Direito Público, onde me encontro até o momento.

A movimentação de processos na PGR é grande, Brasilino? Chegam a acumular de modo incômodo nos gabinetes?

Sim, é grande. Durante os anos em que permaneci na área criminal, o volume de distribuição subiu dos aproximadamente cem processos por mês, em média, tendo chegado a atingir até mais de quinhentos, quantitativo que só não subia mais porque havia a regra da isonomia, que implicava a distribuição do excedente de forma igualitária para todos. E assim, os colegas lotados na Primeira Seção, Direito Público, e na Segunda Seção, Direito Privado, contemplados com menor número de processos na distribuição, também recebiam habeas corpus e outros excedentes criminais, até igualar a distribuição.

Com o aumento do quadro de Subprocuradores-Gerais da República, na gestão do atual PGR, surgiram novas regras de distribuição. Aumentou-se o quantitativo de colegas nas áreas de direito penal e direito público, na tentativa de corresponder, de forma isonômica, aos quantitativos, não só quanto à distribuição, como igualmente quanto ao número de sessões a que se deve comparecer no Superior Tribunal de Justiça.

O maior aumento da distribuição de processos veio com a EC 45/2004, que determinou a distribuição do acervo total imediatamente logo após a chegada dos autos com vista ao Ministério Público Federal.

No ano de 2013, chegaram ao gabinete 1.691 processos nos quais deveria ser emitido parecer, o que equivale à média de 140 por mês. Como se trata de um Tribunal de competência universal, caso do Superior Tribunal de Justiça, quase tudo é inédito e demanda estudos às vezes originários. Há momentos em que tudo o que se aprendeu não é suficiente. Todos os conhecimentos acumulados nas mais de três décadas só em atividades ministeriais, há momentos em que de nada servem, pois vão surgindo questões inéditas e que merecem resposta inovadora. As questões jurídicas vão se atualizando constantemente, o que impõe a necessidade de atualização e reciclagem de conhecimentos.

Mesmo assim, foram emitidos, em 2013, 1.370 pareceres, o que equivale à média de 114 por mês. Ficou um saldo remanescente de 674, o que é, sem dúvida, frustrante, dada a invencibilidade do volume de trabalho e a falta de tempo para elaborar pareceres com os requisitos de qualidade desejáveis. Ainda bem que a distribuição tem sido sensivelmente reduzida durante a administração do atual PGR. De janeiro a setembro de 2014, entraram 923 processos judiciais para parecer e recursos, o equivalente a 102 por mês, e restava um saldo de 686, no início de outubro, o que, mesmo com a redução, não deixa de ser frustrante, dada a constatação da incapacidade profissional para dar vazão ao trabalho, sem perder de vista a desejada boa qualidade da prestação jurisdicional.

Erros judiciários são constatados rotineiramente, e não temos instrumentos adequados para corrigi-los, a começar pela carência de recursos humanos. Ainda bem que renovamos a cada dia o pensamento no sentido de que o que não se pode fazer são pareceres com qualidade que não corresponda às expectativas que a sociedade deve ter relativamente ao bom conceito do Ministério Público.

Diante de tanto trabalho, como é a rotina de seu gabinete? Você tem bons assessores?

A rotina do trabalho consiste basicamente em corrigir as minutas de pareceres feitas pelos assessores, que são incumbidos do primeiro exame do processo, que atualmente é eletrônico. Estamos sempre orientando sobre qual o entendimento deverá ser adotado em cada caso, isto após reunião com cada assessor relativamente a cada processo sob análise, depois de lido e resumido em forma de relato dos fatos e fundamentos mais relevantes objeto do recurso especial, do habeas corpus, do mandado de segurança, do recurso ordinário em mandado de segurança, dos agravos em recurso especial. São essas as espécies de processos mais ocorrentes.

O quadro do gabinete compreende seis servidores e nem sempre completo. Todos indistintamente colaboram na análise dos processos e na elaboração de minutas de parecer, trabalho que é executado igualmente por dois estagiários. O quadro de três estagiários dificilmente funciona completo. Por sua vez, os assessores se incumbem de orientar e ensinar os estagiários.

A qualidade do trabalho nunca é satisfatória por causa da quantidade. Todavia, há vários casos em que, dada a maior complexidade e relevância da questão, exige-se maior demora e reflexão no seu aperfeiçoamento, com pesquisas de doutrina e jurisprudência mais aprofundadas.

Um dos assessores é incumbido cumulativamente dos serviços administrativos de secretaria, incluindo a agenda e a requisição de material de consumo, integrantes da parte administrativa do gabinete, enquanto outro é incumbido da revisão final dos pareceres, e de fazer, além dos trabalhos que naturalmente lhe cabem, uma espécie de coordenação dos trabalhos e uma espécie de filtro de controle de qualidade de cada minuta de parecer.

Os trabalhos de elaboração de pareceres podem consumir até três fases, passando por mãos diferentes, a começar, evidentemente, pelo exame dos autos, a cargo de assessores e de estagiários; outra, de elaboração de minutas de pareceres, trabalhos de assessoria com o auxílio de estagiários; e outra de revisão pelo assessor incumbido da revisão final, quase sempre a pedido do Subprocurador, quando nota alguma impropriedade no trabalho. Por último, uma leitura final, novas correções e retorno para complementação, culminando com a assinatura, quando o parecer é assinado eletronicamente e remetido ao Superior Tribunal de Justiça.

Atualmente, tenho três analistas e dois técnicos, que são os assessores do gabinete. Para minha satisfação, é comum chegar a notícia de que alguns de meus estagiários vão alcançando cargos como o de técnico e ou de analista, quer perante o Judiciário, quer perante o Ministério Público Federal. Outros alcançaram os cargos de agente e de delegados de polícia, quer no Distrito Federal, quer na Federal. Outros alcançaram o cargo de juiz de direito e por aí vai. E isto me deixa bastante feliz. Pena que quando, depois de anos preparando um funcionário, quando ele atinge um nível razoável de compreensão, suficiente para a elaboração de boas minutas de parecer, surge uma oportunidade e lá se vai embora do gabinete, e tudo começa outra vez, preparando outros, como ocorreu recentemente, quando uma excelente assessora passou no concurso para a Advocacia da União. Antes, outro havia saído para analista junto ao Superior Tribunal de Justiça, onde foi logo a seguir nomeado assessor de ministro. No momento, outro foi nomeado para analista no Superior Tribunal de Justiça.

E o pior de tudo é que há dificuldades de reposição, pois o deslocamento de um servidor para o gabinete depende da remoção de outro para o seu lugar, se o exigir a chefia do setor onde ele se encontra. E, assim a cada perda de servidor surgem as dificuldades de reposição. E além de tudo, a escolha deve recair em alguém que seja voluntário e que esteja disposto a ter uma carga de serviços bem maior que a naturalmente enfrentada nos demais setores. E há critérios de seleção pelo curriculum, entrevista, análise do temperamento, coleta de informações sobre o comportamento e a vida pregressa, com todos os cuidados possíveis para não entrar alguém que traga a desarmonia ao ambiente de trabalho.

Um detalhe é que, em meu gabinete, somente um dos assessores não é ex-estagiário, sendo esta a forma adotada para selecionar meus auxiliares, sempre os acompanhando para onde forem e, sempre que surja uma vaga, fazendo o convite voltar a integrar o gabinete, o que normalmente tem dado certo, pois já se trata de pessoa cujo perfil foi avaliado tanto por mim como pelos assessores durante um ano ou mais, no período de estágio.

O trabalho é sempre extenuante por causa da competência universal do Superior Tribunal de Justiça, que abrange praticamente todo o universo do conhecimento jurídico, excepcionadas as questões trabalhistas, eleitorais e a matéria constitucional, evidentemente, esta última, privativa do Supremo Tribunal Federal. Sem perder de vista que as questões infraconstitucionais, exceto em matéria penal, quase sempre terminam no Superior Tribunal de Justiça, conforme previsto na Constituição. Disse ‘exceto em matéria penal’ porque, na prática, esta é rotineiramente submetida ao Supremo Tribunal Federal, por causa do habeas corpus, que é sempre cabível, quer originariamente, quer mediante recurso ordinário, para o STF, que reservou, para si, a última palavra nesta área pertinente ao direito à liberdade.

E neste ponto o Ministério Público está quase sempre em desvantagem, pois não pode chegar ao Supremo Tribunal Federal senão através de recurso extraordinário, via estreitíssima, enquanto o réu tem a amplíssima via de recurso ordinário em habeas corpus e mesmo do habeas corpus originário. Também isto ocorre quanto ao mandado de segurança, em que o cidadão tem maiores espaços, enquanto o Ministério Público Federal dificilmente consegue êxito na mesma questão de direito, se houver erro de direito no Superior Tribunal de Justiça ao julgar, o que não é tão incomum como se pode pensar. E isto não por incapacidade profissional, pois para Ministro do Superior Tribunal de Justiça são selecionados os melhores currículos. São realmente pessoas de notável saber jurídico. O problema deve estar mesmo na sobrecarga de processos desproporcional à capacidade de trabalho de qualquer ser humano, por não ser possível, de regra, a compreensão exata do conteúdo do processo antes de julgar, por causa da velocidade que deve ser imposta aos trabalhos.

Além do trabalho estritamente judicial, você também é conhecido por se dedicar intensamente à atividade administrativa…

Sim, sem dúvida. A minha atuação no setor jurisdicional, perante o Superior Tribunal de Justiça, jamais constituiu a parte mais expressiva, a mais exaustiva e a mais relevante das atribuições de um Subprocurador-Geral da República. Muitas vezes, assumi voluntariamente algumas missões, a pedido de Colegas e do PGR, ou seja, as atribuições que poderíamos denominar extrajudiciais, como é caso daquelas correspondentes a Grupos de Trabalho, a atividades perante as Câmaras de Coordenação e Revisão e ao Conselho Institucional, que é órgão recursal das decisões das Câmaras, a atividades perante o Conselho Superior do Ministério Público Federal, a designações para atuar como Corregedor Auxiliar, perante a Corregedoria-Geral do MPF e perante a Corregedoria-Geral do CNMP, atuando como membro de Comissões de Correição e como membro de Comissões de Sindicância, de Inquérito e de Processo Disciplinar, o que consume enormes parcelas de tempo e causa preocupações às vezes indescritíveis.

A pedido do PGR é comum aceitar o trabalho de acompanhamento de causas de interesse do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual perante o Superior Tribunal de Justiça, com a missão de interceder perante os ministros, no acompanhamento de causas de maior relevância, formular pedidos de suspensão de segurança perante o presidente daquela Corte e assim por diante.

Das seis Câmaras de Coordenação e Revisão existentes até a administração do atual PGR, somente não tive atuação na 1ª CCR — Direito Constitucional. Atuei em diferentes momentos na 2ª CCR — Criminal, na 3ª CCR — Consumidor e Ordem Econômica, na 4ª CCR — Meio Ambiente, na 5ª CCR — Patrimônio Público Improbidade e na 6ª CCR — Índios e Minorias.

No momento, por questões de saúde precária, renunciei a todos os trabalhos extrajudiciais, declinei de vários convites, enquanto tento contornar os reflexos de uma enfermidade que está me reduzindo a capacidade de trabalho.

Mas ainda resta, de compromissos antigos, o acompanhamento em estágio probatório, o que implica o dever de análise dos trabalhos, para fins de aferição dos requisitos de eficiência e qualidades profissionais, tais como assiduidade, disciplina, capacidade de iniciativa, produtividade, responsabilidade, qualidade do serviço etc, incluído o dever de elaboração de relatórios temporários e final, conclusivos sobre os resultados positivos ou negativos inerentes às atividades institucionais dos colegas estagiários, o que implica dedicação de tempo extraordinário e viagens para outros Estados.

Quanto aos trabalhos de auxílio às Corregedorias, tanto do MPF quanto do CNMP, divide-se em duas espécies, a saber: a) as correições em procuradorias gerais de justiça e em procuradorias regionais da República, além de outros órgãos do Ministério Público Federal e Estadual, tendo por objetivo avaliar a qualidade dos serviços prestados, a fim de oferecer sugestões de melhoria, além de apontar eventuais faltas disciplinares cometidas; b) processos disciplinares, compreendendo sindicâncias, inquéritos e processos administrativos disciplinares, o que compreende a apuração da materialidade e da autoria de faltas de natureza disciplinar e as sugestões de aplicação das penalidades cabíveis, a serem submetidas à apreciação dos corregedores, do MPF e do CNMP, e dos correspondentes conselhos.

Tudo isso implica às vezes pesados ônus não só decorrentes dos afastamentos da sede de trabalho, do acúmulo de atividades judiciais que são adiadas e do trabalho de apuração de fatos e dos estudos de doutrina e jurisprudência, a fim de orientar a aplicação das normas de direito disciplinar as mais adequadas possíveis, com o mínimo de erro de fato ou de direito, a fim de não causar nenhum male injusto a ninguém.

A distribuição de feitos judiciais somente se suspende durante as viagens a serviço das corregedorias, do MPF e do CNMP, e isto ocorreu recentemente, pois não era admissível antes. Mesmo estas interrupções de distribuição ainda é pouco, haja vista que o maior trabalho é a elaboração de relatórios de atividades, que já começa no momento mesmo da designação para integrar a Comissão. E além da apuração rigorosa dos fatos, dentro dos prazos definidos previamente em lei, a pesquisa de doutrina e jurisprudência deve ser a mais exaustiva e cuidadosa possível, a fim de oferecer a proposta de julgamento a mais justa e adequada, de modo a sempre poder merecer a confiança e o respeito por parte das Corregedorias dos membros do Conselho Superior e/ou do Conselho Nacional, no desempenho das missões que nos são confiadas e sempre renovadas.

Você tem tido tempo de ler? O que tem lido ultimamente, Brasilino?

Não. Mas não perco o hábito. Tenho muito interesse na história recente do Brasil, desde Vargas até o atual momento, com destaque para os fatos relacionados à Revolução de 1964 e seus adversários. Pesquiso e medito sobre tudo o que de erros e acertos ocorreu, quais as lições que podem ser extraídas deste recente período histórico e o que fazer para não ocorrerem novamente os mesmos contextos históricos que deram ensejo à Revolução de 1964. Revolução que, a bem da verdade, não foi só dos militares, pois foi, no início, patrocinada pelo poder econômico, pela indústria, no ambiente urbano, e pelos proprietários rurais, no ambiente rural. E o interesse predominante era mesmo evitar o comunismo, conforme tábua de valores que surgem, por exemplo, no discurso de João Goulart, dias antes de seu afastamento do poder.

Certo é que, depois de superado o problema que legitimou sua ascensão ao poder, os militares, que haviam prometido restituir o governo à sociedade civil, faltaram com a palavra e seu governo, daí em diante, tornou-se objeto de resistência, até quando não pôde mais prosseguir diante da conquista de espaços cada vez maiores pela sociedade civil organizada.

Em tempos recentes, cerca de um ano para cá, li, entre outras, as seguintes obras: 1) Operação Araguaia os arquivos secretos da guerrilha, de Taís Morais e Eumano Silva; 2) O coronel rompe o silêncio, de Luiz Maklouf Carvalho; 3) Xambioá: guerrilha no Araguaia, de Pedro Corrêa Cabral; 4) Castello Branco: a marcha para a ditadura, de Lira Neto; 5) Mensalão, de Merval Pereira; 6) 1808, de Laurentino Gomes; 7) 1822, do mesmo Laurentino Gomes; 8) O Cofre do Adhemar, de Alex Solnik; 9) Dirceu: a biografia: do movimento estudantil a Cuba, da guerrilha à clandestinidade, do PT ao poder, do palácio ao Mensalão, de Otávio Cabral; 10) O Cofre do Dr. Rui, de Tom Cardoso; 11) Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armas, de Romualdo Pessoa Campos Filho; 12) Memórias de uma guerra suja, de Cláudio Guerra; 13) Os últimos soldados da guerra fria, de Fernando Morais; 14) As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte no Brasil, de Audálio Dantas.

Você é um colega da chamada ‘velha guarda’, não é? A história do Ministério Público nas décadas de 80 e 90 é a história da conquista de garantias institucionais e de instrumentos processuais que o constituíram como uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns ícones dessa geração convivem hoje com colegas recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. Acredita que a geração que construiu o MPF da primeira década pós-Constituição consolidou uma certa tradição? Se sim, que tradição é essa? Ela foi ou vem sendo transmitida com sucesso às novas gerações?

Como colega que veio da década de 80 posso dizer que, durante o Estado de Exceção, o Ministério Público podia pouco ou quase nada, devido ao predomínio da autoridade das armas sobre a autoridade das ciências. O Ministério Público com a força e o poder que hoje lhe são inerentes, surgiu sob o império da Constituição de 1988, que, por sua vez, teve como inspiração a doutrina que se construiu nas décadas precedentes, que remontam ao início da República, sendo, portanto, a instituição mais republicana de todas as que temos.

Ainda na atualidade, restam espaços de atribuições ainda não cobertos completamente pelo Ministério Público Federal, que tem de enfrentar desafios rotineiramente, tanto no próprio ambiente ministerial, como perante o Judiciário e outros setores do poder público, que ainda lhe são rebeldes.

Certo é que aos poucos os espaços vão sendo conquistados e os meios adequados para vencer os obstáculos vão sendo descobertos e aperfeiçoados. E ainda será possível ocupar muitos espaços vazios, dado o elevado grau de aperfeiçoamento moral e intelectual da nova elite cultural que vem chegando e se formando dentro do Ministério Público.

Como você vê o trabalho dos Procuradores da República recém-empossados? Se pudesse dar a eles três conselhos vindos de sua larga experiência no MPF, quais seriam?

Desde o ingresso na carreira, tenho observado que os quadros do Ministério Público e do Judiciário têm se aperfeiçoado cada vez mais. Certo é que houve um momento inicial em que, na área federal, eram de livre escolha e nomeação, o que ocorreu nos idos de 1966, quando foi criada a Justiça Federal de Primeiro Grau, cujos magistrados eram escolhidos entre advogados e membros do Ministério Público Estadual, tendo sido escolhidos preferencialmente aqueles que tivessem exercido com destaque atividades de combate à corrupção. Aliás, pois esta era a bandeira número um dos Governos Militares e um dos principais motivos do chamado Golpe Militar. E talvez venha daquele momento a inspiração que sempre orientou a conduta dos Membros do MPF até a atualidade.

De uns quinze ou vinte anos para cá, tem sido percebida uma sensível melhoria nas qualidades profissionais dos membros do Judiciário e do Ministério Público, tanto federal como estadual, sem falar nas outras carreiras jurídicas. Parece que estão sendo cada vez melhor selecionados. Há uma tendência à aprovação dos detentores de títulos de mestrado e doutorado. Como o quantitativo de bacharéis que são lançados a cada ano no mercado de trabalho, às centenas e aos milhares, cada vez cresce mais, aumenta o universo de competidores, o que, sem dúvida, contribui para a melhoria da prestação jurisdicional, pois a cada vez mais crescem as possibilidades de melhor seleção dos interessados e os concursos públicos vão se tornando cada vez mais difíceis.

O conselho que daria aos colegas mais novos é que tenham mais prudência, zelo e cuidados especiais no exercício da tão nobre missão que lhes foi confiada. Dediquem-se ao máximo, de corpo e alma. É preciso dar o melhor de si. Busquem incessantemente aperfeiçoar a cada vez mais o conceito de justiça perante a sociedade, na busca incessante da realização do direito material inscrito na Constituição de 1988, cuja pauta de valores ainda está muito longe de se concretizar, em sua maior parte. É preciso enfrentar a cada dia os desafios da carreira no sentido do aperfeiçoamento e realização dos valores humanos, de que tanto carece a nossa sociedade.

 

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“Não vivo apenas dias bons dentro da instituição. O Ministério Público Federal não é perfeito. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza”. Entrevista com Márcio Schusterschitz.

Nascido em Minas Gerais e criado em Belo Horizonte, Márcio Schusterschitz trabalha desde o começo de sua carreira na capital paulista, cidade com a qual diz manter uma relação romântica. Para ele, mudar de cidade é uma oportunidade provocadora. “Costumamos estudar e trabalhar com pessoas com um contexto parecido com o nosso. O mundo é muito grande, as pessoas muito diversas e isso nem sempre nos provoca”.

Estar próximo do Márcio é ter a chance de aprender um novo gracejo ou de rir de um de seus chistes. Quando lhe perguntei qual era a sua ‘escola de humor’, ele foi direto: “Minha escola é minha família. Em casa, somos seis irmãos e o ambiente nunca foi muito sério.” A atmosfera lúdica de sua infância repercutiu em sua atual concepção de liberdade: “É o espaço da expressão que permite a dinâmica de uma sociedade engessada pelo jurídico e a manifestação da individualidade em um espaço de predomínio do público. Quanto mais reprovação e mais censura, menos desenvoltura há para se falar. A comunicação não vale apenas para o que já julgaram merecedor de aprovação”.

Sobre a realização profissional, foi sincero: “O MPF não é perfeito. Não vivo apenas dias bons dentro dele. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza. Ainda estou com a ideia de haver melhorado e amadurecido a cada ano.”

Um dos maiores interesses do Márcio está em estudar a História dos Estados Unidos e de suas instituições jurídicas, assunto sobre o qual planeja escrever um livro. Acredita que “a hegemonia americana provavelmente veio mais rápido do que o amadurecimento do país para exercê-la.” Porém, reconhece que boa parte da crítica aos Estados Unidos é produzida dentro do próprio país, no rastro da profunda tradição americana de debate e de discussão.

Nesta entrevista, buscamos evidenciar o Márcio profissional, o pai de família e o estudioso — que, temperado pelo seu habitual bom humor, fazem dele a pessoa de carne e osso que atende por um dos sobrenomes mais impronunciáveis da nossa carreira. Veja nossa 15ª entrevista — mais um dedo de prosa genuinamente mineiro, com pão de queijo e rapadura.

 

Eu tenho ouvido testemunhos dramáticos a respeito do ânimo de alguns de nossos colegas com o dia a dia do trabalho nas diversas procuradorias da República. Você se sente realizado profissionalmente, Márcio?

Sim, eu me sinto realizado. Existe uma distinção entre o que te realiza e o que é perfeito. O perfeito tem o conforto de não existir. Como não poderia deixar de ser, não vivo apenas dias bons dentro da instituição. O Ministério Público Federal não é perfeito. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza. Acredito que é importante a qualificação, o estudo, a vivência. Apesar de estarmos limitados a uma ou duas promoções em uma carreira inteira – ou, ao que parece, zero – acho que a profissão de procurador da República é uma evolução. Ainda estou com a ideia de haver melhorado e amadurecido a cada ano. Como profissão, além do mais, o Ministério Público Federal me deu muitos dos meus amigos e os recursos para viver minha vida. Tenho vivências na Procuradoria que me deixam feliz e sei que terei outras mais. Isso, de todo modo, é um sentimento pessoal e não uma análise dos rumos corporativos e funcionais do MPF e dos limites de se viver uma carreira de aplicação da lei em um país com suas desconexões, como é o Brasil.

A propósito, em que você tem trabalhado na PRSP ultimamente?

Desde 2011, atuo na área criminal. Houve uma reestruturação da PRSP em 2010 e não continuei na tutela coletiva do consumidor, que era meu ofício até então.

Como surgiu seu interesse pelos temas relacionados à História dos Estados Unidos e ao seu sistema de justiça? Reconhecendo o valor que a sociedade americana tem, a que você atribui o antiamericanismo a que com muita frequência assistimos nas discussões dos mais variados assuntos?

Eu realmente me interesso pela História dos Estados Unidos. Ler é minha distração e o que mais leio é não-ficção. Dentro da não-ficção, tento sempre ler livros de História. Ocorre que a História dos Estados Unidos é, em grande parte, a História do Direito nos Estados Unidos. Acho que o interesse cresceu com a leitura de temas relacionados à Suprema Corte e, a partir daí, à Revolução Americana. Se meu tempo livre permitir, quero escrever um livro sobre a Independência dos Estados Unidos.

Sobre o chamado antiamericanismo, acho que a resposta é muito arriscada – o que não me impede de tentar. Os Estados Unidos se tornaram a grande potência mundial. Não acho possível que a hegemonia de alguém seja fonte permanente de admiração para resto do mundo. Além do mais, a hegemonia americana provavelmente veio mais rápido do que o amadurecimento do país para exercê-la. O que parece interessante nisso tudo é que boa parte da crítica aos Estados Unidos é produzida no próprio país. Eles têm uma tradição de debate e discussão muito profunda. Engraçado aí é nossa associação entre Estados Unidos, militarismo e imperialismo. O exército norte-americano era tradicionalmente muito pequeno. A aventura imperial americana, que surge com a guerra com a Espanha – um império, por si só – começa sem muita grandiosidade, em 1898 (Filipinas e Porto Rico). No século XIX, o maior empregador público por lá era o serviço postal. Até a 2ª Guerra, o exército americano era menor do que o das principais potências européias. Foi com a Guerra Fria que se construiu o que se chamou de complexo industrial-militar, uma expressão criada precisamente por um presidente americano, Eisenhower. Mas a 2ª Guerra é, paralelamente, o momento de aprofundamento do humanismo nas relações internacionais (com a descolonização, a criação da ONU, a produção de diversos documentos internacionais e a reconstrução da Europa em um modelo de democracias sociais economicamente integradas). Nesse novo contexto, a hegemonia é potencialmente desgastante. Em um mundo de direitos humanos e liberdade para as novas nações, seria preciso legitimar o poder internacional. A diplomacia do canhão, que vitimou a China no século XIX, por exemplo, não pode mais ser tão crua. Ocorre que os países, Estados Unidos inclusive, não se fizeram tão desinteressados quanto a nova ordem internacional poderia fazer supor. Acho que era mais fácil para a Inglaterra e França no século XVIII do que para os americanos hoje.

Eu já estava querendo lhe perguntar isso há algum tempo: a quem queira conhecer os diversos aspectos e épocas da história americana, quais são, na sua opinião, os dez livros mais úteis e interessantes?

São muitos livros de História e não li mais do que alguns poucos. Existem episódios da História dos Estados Unidos que são importantes pela influência sobre outros e que, nem sempre, temos tanto conhecimento. Acho que, de modo geral, a questão racial, o federalismo e a expansão territorial influenciam a maioria dos eventos. Além do mais, a expansão econômica posterior à Guerra Civil é determinante. Recentemente, o realinhamento dos partidos, com a Nova Direita, durante a década de 1970, ainda pauta a política americana. No meio disso, as presidências de Roosevelt, que redefiniram a relação entre estados e união, governo e sociedade e entre os poderes. O New Deal aumentou as competências da união, a intervenção do governo e os poderes da presidência.

Vou preencher minha lista, então, dentro desses limites, com os dez mais recentes que li: 1. From the New Deal to the New Right (Joseph Lowndes); 2. Kissinger (Walter Isaacson); 3. The Unwinding – An Inner History of the New America (George Packer); 4. The Transformation of Virginia (Rhys Isaac); 5. Washington (Ron Chernow); 6. Justice for All: Earl Warren and the Nation He Made (Jim Newton); 7. John Adams (David McCullough); 8. The First Salute (Barbara Tuchman); 9. Benjamin Franklin (Walter Isaacson); 10. The Dark Side (Jane Mayer). Acompanho os livros que vão sendo publicados pela New York Review of Books e pela parte de livros do New York Times e do Washington Post. A produção editorial é grande por lá e, com a internet e o livro eletrônico, é grande também o acesso tanto aos livros quanto às análises sobre eles. A NYRB é especialmente interessante. Uma coisa curiosa na lista acima. As biografias de Kissinger e Franklin são do mesmo autor da biografia do Steve Jobs.

Mudando de assunto, onde você passou sua infância? Que lembranças traz daquela época?

Passei minha infância em Belo Horizonte, no bairro Gutierrez. O que mais me chama atenção quando penso na minha infância é a mudança e evolução do mundo. Vejo minha infância como um mundo de poucas coisas. Não por limites financeiros, estritamente. Era uma mundo de refrigerante só uma vez por semana, restaurante no dias das mães, três ou quatro canais de televisão. Segunda-feira, todo mundo tinha visto os Trapalhões. Era todo mundo muito dentro dos mesmos limites. Especial do Balão Mágico, uma vez por ano, deixava a criançada ansiosa.

Por outro lado, o mundo ficou mais violento, ou, ao menos, mais medroso. Sou mais medroso hoje, como pai, do que meu pai era comigo. Havia um clube no meu bairro e eu chegava lá sozinho, andando. No primário já ia de ônibus sozinho para a escola. Fiz o primário em uma ótima escola pública. Mas, como não era essa facilidade de um pai ou mãe ficar combinado com o outro algo para fazer com as crianças, as amizades da escola ficavam mais na própria escola. Fora dela, a infância era o clube e os amigos do prédio. Futebol e playmobil. Minhas filhas iriam morrer de tédio. Não havia tanta preocupação em dar ocupação para a criança o dia inteiro. Outra coisa que eu lembro era banana amassada com farinha láctea. Comia e ainda jogava açúcar por cima. Não deve ser algo tão estranho para quem gostava de comer leite condensado congelado.

Pois é. Você é mineiro, formado em Direito pela UFMG, e adotou São Paulo como a sua cidade. Não se sente bem em Minas Gerais? O que foi buscar em São Paulo que nosso Estado não lhe ofereceu?

Minha relação com São Paulo é romântica. Minha mulher é daqui. Não a tivesse conhecido, provavelmente não teria vindo para cá (talvez nem fosse procurador). Fora esse motivo pessoal, desenvolvi uma relação muito boa com São Paulo. Quanto mais agora que tenho filhas e elas são daqui. Logo cedo, cheguei à conclusão que não seria preciso escolher. Pode-se ter os dois Estados e as duas capitais no coração. Nossa capacidade de se sentir bem em um lugar não é limitada assim. Talvez a grande mudança seja mudar. Estar em outra cidade exige a reconstrução da rotina e das relações (tanto as novas, quanto as antigas). Acho que isso é uma oportunidade. Costumamos estudar e trabalhar com pessoas com um contexto parecido com o nosso. O mundo é muito grande, as pessoas muito diversas e isso nem sempre nos provoca.

Minha formação foi toda em Belo Horizonte. Minha profissão toda em São Paulo. O que ocorre, de alguma forma, é a ligação afetiva com Belo Horizonte paralisar um pouco minha percepção da cidade. Sempre que vou, procuro me relacionar com o passado, rever a família e antigos amigos. A ideia acabou invertida, um pouco. Hoje é em Belo Horizonte que vou buscar algo, mas algo mais antigo. Como é natural, acabo desenvolvendo meus planos para a cidade onde moro. O que não me impede de reconhecer que as duas cidades sejam realidades algo distintas. Fora o que a gente pode imaginar da diferença de tamanho (todo mundo sempre pensa no trânsito e violência), vejo uma diferença grande. São Paulo é uma cidade com muita gente chegando. Há empregos e as pessoas pensam mais nas carreiras. Belo Horizonte é uma cidade de servidores, profissionais liberais e empresários locais, principalmente. A vida das pessoas em Belo Horizonte é mais linear, sem muitas mudanças de emprego e de cidade, e as relações fora do ambiente de trabalho acabam sendo mais importantes. Provavelmente estou errado nisso. Mas quero arriscar compartilhar uma impressão para não parecer murista.

Não estou bem certo de que você seja ‘murista’, mas é certamente um ótimo humorista. Você é bem humorado também pessoalmente? Tem preferência por algum humorista em especial? Qual foi a sua ‘escola’?

Minha escola é minha família. Em casa, somos seis irmãos e o ambiente nunca foi muito sério. Depois foi o colégio. Fazendo uma conexão com a pergunta anterior, não deve ser o que as pessoas imaginam, mas existe muita brincadeira em Belo Horizonte. O mineiro se sente confortável com os amigos (vão falar que a culpa é do bar). Sempre percebi assim. O engraçado é que sempre pensei no humor e na brincadeira como algo natural, do encontro com pessoas. Não sou tão vinculado ao humor como arte ou produto. No meu tempo livre, nem sempre me preocupo com coisas humorísticas.

Hoje, praticamente parei de assistir televisão. Minhas últimas séries foram dramas, como o Breaking Bad – que achei sensacional. Gosto de ler, mas não leio quase nada humorístico. Para o humor, prefiro os meios visuais. Meu programa preferido é o Monty Python. Na década de 1990, passava no Multishow. A televisão por assinatura trouxe o seriado. Antes, o grupo era conhecido mais pelos filmes. Apesar do Monty Python ser da década de 1960, 1970, prefiro, de modo geral, o humor de hoje. Não sei se é assim, mas poderia arriscar que o humor tem melhorado. No cinema não vejo muito. Os seriados hoje são mais engraçados e o tamanho do seriado é ideal. O formato do filme é muito longo – embora goste de animação. Agora que sou pai, por exemplo, levo minha filha para ver os desenhos no cinema com prazer, embora os filmes sejam infantis. Isso deve querer dizer algo sobre minha maturidade.

É você quem está dizendo isso… Mas, ainda dentro desse assunto, você deve ter acompanhado algumas críticas feitas, nos últimos dois anos, a alguns comediantes brasileiros. Segundo a compreensão de alguns, alguns deles extrapolaram os ‘limites do humor’. Quais são os limites do humor, Márcio?

Sim, eu acho que existem limites para o humor. O que complica a discussão no Brasil é que nos falta uma tradição de discussões sobre a liberdade de expressão. Eu gosto de ler sobre liberdade de expressão e, de um modo geral, se reconhece ao humor um espaço mais amplo do que às demais formas de expressão. Nosso problema é que costumamos ver a equação apenas do lado das suscetibilidades. Se a expressão sempre perde espaço para as suscetibilidades de quem se sente ofendido, não há verdadeiramente liberdade de expressão. Outro problema é a centralização da discussão em determinados nós de verdade. O sentido da liberdade de expressão é a descentralização. A liberdade de expressão provavelmente fica mais importante agora que a intervenção do Estado e do Direito ficou mais ampla. É o espaço da expressão que permite a dinâmica de uma sociedade engessada pelo jurídico e a manifestação da individualidade em um espaço de predomínio do público.

Além do mais, o poder público tem diversas competências, mas ainda não tem a elevação para se permitir ditar a verdade. Há de certa forma uma inversão. A liberdade de expressão é um espaço de debate que permitia, inclusive, o controle do público. Hoje é um fundamento para o controle pelo público. Não discordo de quem diz que o erro se descobre com mais expressão e não com menos. Quanto mais reprovação e mais censura, menos desenvoltura há para se falar. É o que a doutrina chama de efeito resfriador. Quem enxerga a reprovação de alguém que falou, vai preferir ficar calado. Não é a mensagem do Direito cultivar o silêncio. Quando pautamos a expressão em uma sociedade, escolhemos o melhor discurso antes do próprio debate. A comunicação não vale apenas para o que já julgaram merecedor de aprovação.

Mas, mudando de assunto. Sobre seu interesse pelo Código de Defesa do Consumidor. Você também passa raiva com as operadoras de telefonia celular e de TV por assinatura? Acha que o sistema brasileiro de proteção ao consumidor é eficiente para coibir os abusos que ainda existem nesse contexto?

A realidade do consumidor no Brasil não pode ser boa. Antes de chegar no texto do Código do Consumidor, já é ruim. O Brasil é um país muito caro. Não sei se é culpa do modelo de substituição de importações. Embora o país seja industrializado e produza boa parte dos bens de consumo vendidos aqui, os preços são anormais. A Copa do Mundo não me deixa mentir. A primeira percepção do turista é o custo das coisas. O mercado de consumo no Brasil não funciona para produzir utilidade para o consumidor. Não pode haver outra conclusão em um país em que, de um lado, os bens são caros e, de outro, sua qualidade e variedade muito limitadas. Nos setores regulados, isso é pior. Aí, com as barreiras da regulação, a lógica é, menos ainda, o consumidor. Interessa mais para a firma em um setor regulado se preocupar com a regulação do que com o consumidor. É a regulação que gera o lucro, pois o consumidor tem apenas as opções das empresas autorizadas por ela. Se o consumidor não tem opção de correr, o interessante é saber em quais condições o regulador vai exigir a prestação.

Além do mais, as demandas consumeristas não funcionam bem na Justiça. Se a regulação não funciona, é muito desinteressante para o consumidor ir para o Judiciário. Imagine a relação entre custo e benefício de se pagar um advogado para discutir o valor de uma conta de telefone. Isso sem contar que o Judiciário, além de todos os seus problemas, não funciona bem para demandas privadas. Tanto assim que, nos contratos empresariais, muita coisa já migrou para a arbitragem. Além de lento, o Judiciário brasileiro é dominado pela Fazenda Pública. Basta ler o Diário de Justiça. As Turmas do STJ de Direito Privado, na minha opinião, geram menos esclarecimentos sobre o Direito Privado do que o correspondente em Direito Público e Penal nas demais turmas.

E a última pergunta: como você convenceria um agricultor da zona rural de Inhapim, MG, de que vale a pena investir R$ 6,1 bilhões anuais (segundo a nossa proposta orçamentária para 2015) no funcionamento do Ministério Público Federal?

Os ministérios públicos dos Estados são muito mais capilarizados. É uma daquelas coisas do federalismo brasileiro, onde a pena e a verba são da União, mas os braços são do Estado. Teria que pedir alguma dica para o Promotor de Justiça. Minha primeira necessidade seria a de entender o comparativo do que seriam esses 6 bilhões. Como são gastos 6 bilhões no Brasil? Um estádio? Um astronauta? Um financiamento público? Certamente não o convenceria se tivesse que explicar quanto tempo um processo precisa até acabar ou quantos crimes são descobertos. Mas eu acho que o Ministério Público Federal tem uma função importante para explicar não apenas seu orçamento, mas o orçamento da União. O MP é uma de nossas grandes construções e tem um efeito que deveria derramar. Se o Ministério Público trabalhar bem e controlar o respeito aos princípios da República, como é sua função, estaria fazendo valer seu orçamento e protegendo o uso correto dos outros. Mas acho que, como em uma piscina, não se consegue boiar acima do nível da água – embora não seja necessário afundar.

 

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