Depois de ter trabalhado no gabinete do Min. Dias Toffoli, no Supremo Tribunal Federal, Wesley Alves, procurador da República em Franca, SP, decidiu tentar o concurso do Ministério Público Federal — cuja carreira, uma vez aprovado, iniciou em Rondônia.
Segundo compreende, “ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas otimista com a promessa da redenção divina” o impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sua concepção do papel profissional do cristão pressupõe que não utilizemos nossas posições sociais como meio de transformar nosso Estado em uma teocracia, mas, sim, devemos, como José e Daniel, seguir nossa vocação “com excelência e diligência, obtendo o respeito das pessoas e melhorando a vida daqueles sobre os quais exercemos autoridade”.
Crítico do pensamento progressista de esquerda, diz que ele “conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos”. Segundo Wesley, essa tentativa falhou; como consequência, “a sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado”.
Uma entrevista instrutiva com um colega que está trilhando, consciente das dificuldades que certamente virão e pronto a enfrentá-las, o caminho de sua formação intelectual — dinâmica a ponto de abranger na unidade de sua consciência as lições metodológicas de A.-D. Sertillanges e as modas de viola de Tião Carreiro: eis o nosso 33º encontro, com um bandeirante mineiro em terras paulistas.
Como está o trabalho na PRM de Franca, Wesley?
Bem, nos dez meses em que estou na PRM de Franca já pude conhecer bem a ‘casa’ e a cidade, dar continuidade ao trabalho desenvolvido pela colega anterior e promover algumas ações relevantes. Antes de vir para o Estado de São Paulo, estive na Procuradoria da República em Rondônia, minha primeira lotação, onde exerci um ofício com atribuição nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Aqui em Franca, ao lado de nossa colega Daniela Poppi, exerço todas as atribuições inerentes à atividade-fim do MPF. Ampliar o campo de atuação, especialmente neste início de carreira, tem-me sido muito importante, principalmente por colocar em prova minhas virtudes e limitações. Estou bastante entusiasmado e creio que o MPF em Franca tem muito a contribuir para a melhoria das condições de vida da população local.
Você foi analista judiciário do STF por quatro anos antes de ingressar no MPF. O que você fazia lá?
Durante dois anos, permaneci lotado na Central de Atendimento do Cidadão, setor para onde são dirigidas todas as postulações feitas ao STF e em que lhes é conferido o primeiro tratamento. Depois integrei o gabinete do Ministro Dias Toffoli, onde eu e mais quatro colegas éramos responsáveis pelos recursos extraordinários e agravos de instrumento cíveis distribuídos ao gabinete, exceto os que envolviam matéria tributária. Trabalhar na mais alta corte do Brasil, conviver com ministros, lidar com processos de grande relevância para o país foi para mim muito gratificante e contribuiu decisivamente para meu amadurecimento pessoal e profissional. No entanto, chegou um momento no qual concluí que eu não deveria passar o restante de minha vida exercendo esse trabalho e que eu deveria atender ao chamado para me tornar membro do MPF.
E eis aqui você. Mas, mudando de assunto: a música caipira que você escuta — Renato Teixeira, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro — sobrevive apesar de todos os modismos culturais e mercadológicos contemporâneos. O número de brasileiros que não têm acesso à televisão diminui a cada dia. A cultura popular de raiz, porém, não desaparece. Você acha que a música brasileira está em crise? Ou essa impressão vem apenas de uma exagerada exposição que a mídia faz de artistas desqualificados e de pessoas insossas que buscam apenas divertir e entreter o público?
Lamentavelmente, não posso dizer que a percepção de que a arte e a cultura brasileiras estão em crise é equivocada. Essa crise se deve, essencialmente, ao processo de deseducação a que somos, todos nós brasileiros, submetidos. Nascemos já com um intuito natural de beleza, simetria, ordem, proporção, harmonia; tudo isso está enraizado em nossa natureza. Um bolo que fica torto, disforme, por exemplo, pouco nos apetece, independentemente de ele ter ficado saboroso. Esse senso pode ser estimulado e desenvolvido ou, então, tolhido. Infelizmente, os educadores de hoje ‘ensinam’ às crianças que tudo é relativo e que elas não podem ter certeza sobre nada; que determinada obra ou música não podem ser consideradas bonitas ou feias, porque esse tipo de julgamento depende da perspectiva pela qual elas são observadas e da particular visão de mundo que o autor quis expressar por meio delas. E sem um mínimo senso de ordem e beleza, temos dificuldade de distinguir Machado de Assis de Paulo Coelho, um funk de uma canção de Bach, um ‘sertanejo universitário’ de uma moda de viola de Tião Carreiro. Aprecio vários estilos musicais e, por influência de meus pais e avós, tenho um gosto especial pela música caipira. Uma bela música recompõe nossa ordem interna e nos ajuda a suportar os ‘pesos da vida’. Sou um homem da cidade, mas tenho o campo como uma espécie de refúgio. A música caipira me proporciona paz, liberdade e me faz experimentar a simplicidade que a vida no campo oferece. Suprir as deficiências que há em minha formação cultural e estética é um dos objetivos que tenho para os próximos anos.
Da última vez que conversamos você disse que se considera ‘pessimista quanto ao futuro da humanidade e por outro lado otimista com a promessa da redenção divina, por meio de Jesus Cristo’. Como essa visão de mundo influencia o seu relacionamento com as pessoas e o seu modo de trabalhar na Procuradoria da República?
Como cristão, creio que somente um homem que tem destruídas suas esperanças a respeito de seus próprios méritos, valores e justiça pessoal pode reconhecer o mérito e a necessidade da morte de Jesus Cristo para nossa salvação. O reconhecimento dessa condição deve nos tornar humildes e pacientes, de modo que tomar conhecimento das falhas das demais pessoas, com quem compartilhamos das mesmas debilidades, deve ser uma oportunidade de confessar nossos próprios pecados e misérias a Deus. É nesse sentido que posso afirmar que aquela convicção — ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas também otimista com a promessa da redenção divina — me impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sei que tropecei em uma contradição. A humildade é um sentimento extremamente perigoso! Ninguém é capaz de vê-la no espelho sem perdê-la imediatamente. No entanto, embora incapaz de ‘ser’ genuinamente humilde, o homem é capacitado por Deus a ‘agir concretamente’ de forma humilde e a ter paciência. Como ensina o professor Olavo de Carvalho, a verdadeira humildade se alimenta da grandeza de Deus, e por isso é a única grandeza do homem capaz de frear seu orgulho, sem sufocar sua grandeza.
Sãos essas mesmas qualidades, a humildade e a paciência, que procuro cultivar no exercício do cargo de procurador da República. Exerço minha profissão para a glória de Deus e tenho certeza que em tudo ele me auxilia. Mas não justifico minha vocação profissional por aquilo que a torna espiritual. Certa vez um sapateiro perguntou a Lutero o que ele deveria fazer agora que conhecia o Evangelho. O clérigo lhe disse para fazer bons sapatos e os vender a preços justos. Como qualquer atividade secular, a atividade pública não é atividade evangelística, mas o desenvolvimento das atividades terrenas também foi uma missão confiada aos homens. É um trabalho secular, porém, ordenado e mandado por Deus. José e Daniel, personagens do velho testamento, são bons exemplos de ‘cristãos’ no exercício de atividade públicas. Eles não procuraram tornar seus cargos em meios de transformar seus reinos em teocracias, como foi Israel. Simplesmente seguiram sua vocação com excelência e diligência, obtendo o respeito dos regentes estrangeiros e melhorando a vida daqueles sobre os quais exerciam autoridade. Quando tomavam decisões no tribunal, José e Daniel tinham de basear seus julgamentos nas leis egípcias e babilônicas, e não na lei hebraica, embora jamais tenham endossado algo que violasse suas próprias relações com Deus. Portanto, o artista cristão não necessita justificar sua vocação por aquilo que a torna evangelística, pois ela deve simplesmente entreter e expressar excelência artística. Do mesmo modo, um juiz cristão não deve proferir sentenças cristãs. As formas especificamente cristãs de culto, de educação e de piedade devem ser ministradas no lar e na igreja.
Em que sentido você diz que o Estado pós-moderno, que tudo cuida e em tudo está presente, é o maior responsável pelos problemas da humanidade?
A miséria, tal como a gravidade, nos arrasta para a profundeza das águas assim que paramos de nos movimentar, tão logo deixamos de ser empreendedores e de produzir os bens de que necessitamos para sobreviver. Não vivemos em um mundo de abundância natural. Esse fato, apesar de óbvio para quem tem bom senso, foi ignorado pelo pensamento progressista de esquerda, que conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos. Isso seria garantido pela instituição de um Estado socialista ou de bem-estar social, os quais assumiriam a responsabilidade de suprir as necessidades humanas mais básicas e de tornar os homens mais felizes.
Não bastasse o amplo fracasso desses projetos, que em alguns lugares causou a morte de milhões de pessoas e em todos disseminou a corrupção, a consagração de benefícios materiais em direitos que devem ser atendidos a todo custo demandou a formação de Estados gigantescos e poderosos e destituiu das pessoas os valores morais mais básicos de convivência humana, como por exemplo os sentimentos de gratidão e de responsabilidade. A sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado; a família foi suplantada pelo ensino oficial; a necessidade de trabalhar e de empreender foi substituída pela confiança no auxílio estatal; a noção de dever cedeu espaço aos direitos universais; a vida inteira foi politizada e partidarizada. O Estado cresceu e nós diminuímos. E não houve contrapartida, porque aquelas promessas de prosperidade jamais foram cumpridas pelo Estado, digo, pelas ‘pessoas de bem’ responsáveis por guiar a humanidade.
Quando se pensa na estratégia do filósofo e agitador cultural italiano Antonio Gramsci, penso ser possível dividir as pessoas em três grupos: os que seguem à risca a sua cartilha em busca de promover a chamada ‘revolução cultural’, saibam ou não de sua origem e propósitos, aqueles que buscam, mais ou menos perplexos, defender-se de seus efeitos; e, por fim, um terceiro grupo, da imensa maioria das pessoas, que carregam o seu piano diário, trabalham, alheias à agitação que se faz em nome das transformações sociais que o italiano imaginou. Parece-me que é a esse terceiro grupo, majoritariamente, que a pensadora brasileira Marilena Chauí disse odiar com todas as suas forças (“eu odeio a classe média”). Fico pensando que, descontada sua histérica manifestação de ódio, a tese de fundo dela faz sentido: o povo começa a ganhar dinheiro como fruto de seu trabalho e não quer mais saber de fazer a revolução. Até o fim dos tempos, porém, muita gente boa se perde e se perderá na defesa de bandeiras tortas e sem futuro. Já que você gosta de música caipira, lembro-me do verso mais triste da música brasileira: “Meus irmãos perderam-se na vida à custa de aventuras”. Essas aventuras, parece, têm sido a perdição de muitos… Como você vê essa questão?
Você traçou com precisão o atual quadro social brasileiro. Foram as ideias desse ideólogo comunista que promoveram o adestramento mental das pessoas que hoje, envelhecidas mas imaturas, comandam o Brasil e despejam sobre ele todo o azedume de seu ressentimento, inoculando nos jovens a mentira de que nascemos todos bons e lindos, mas ‘o sistema’ nos tornou feios e está usurpando nosso direito político à felicidade. Desorientados, ressentidos e livres de qualquer responsabilidade por suas escolhas individuais, os ‘teleguiados’ despejam sobre tudo e todos a culpa de suas frustrações e se lançam na aventura de mudar o mundo, de acabar com os conflitos no Oriente Médio e com a fome na África. Mas nem sempre seus objetivos são tão grandiosos: eles também vão aos shoppings fazer ‘rolezinhos’ e exigir o direito constitucional de comprar um iPhone. Por trás dessas causas e discursos que negam a realidade estão a incompetência para a vida e a recusa de aceitar a si mesmo. E os agentes da revolução cultural, fiéis à cartilha gramsciana, souberam muito bem explorar essa ‘oportunidade histórica’. Tédio, sensação de vazio, vaidade, ressentimento e tutti quanti são sentimentos humanos aos quais todos estamos sujeitos. Não ceder a eles exige maturidade. Para sermos homens, no sentido mais profundo da palavra, devemos aprender a não dar espaço a esses vícios, não no sentido de ignorá-los ou negar sua influência, mas sim reconhecer que estamos sujeitos a eles, compreendê-los e fazer com que nossos bons impulsos se sobressaiam.
Ao abordar seu plano de estudos, você diz tê-lo iniciado a partir da perplexidade que lhe tomou diante da complexidade da realidade. O que você quer dizer quando fala que ‘a realidade é muito mais complexa do que parece’?
Quando eu lhe disse isso, e não faz muito tempo, falei sobre o que não sabia e apenas expressei minha ignorância. Não sei se a realidade é mais complexa do que parece ou se nós é que somos incapazes de apreender seus aspectos mais essenciais. Não tenho ainda competência para fazer esse julgamento e não posso transferir minha inaptidão de conhecer as coisas a elas próprias. Mas há algo sobre o qual nosso ‘bom senso’ não se engana: o fato de que as pessoas nascem, crescem, comem, se reproduzem, se amam ou se odeiam e depois morrem. Em torno disso orbitam nossas preocupações e perplexidades. E isso foi observado por um sábio há mais de três mil anos, conforme está em Eclesiastes 1:4-9.
→ Você reconhece que há em sua formação uma grande lacuna no campo cultural e moral. Em que consiste essa lacuna e o que tem feito para tentar saná-la?
Embora nunca as tenha ignorado completamente, cultura, arte e espiritualidade sempre foram por mim colocadas em segundo plano, como questões às quais eu deveria dedicar atenção somente quando houvesse tempo sobrando ou depois que eu houvesse alcançado meu objetivo profissional. Logo que fui aprovado no concurso de procurador da República e antes de assumir o cargo, senti-me então autorizado a compatibilizar o estudo do direito com o de filosofia, ciência política, religião e arte. Comecei então a assistir a aulas do Seminário de Filosofia do professor Olavo de Carvalho, adquiri dezenas de livros sobre esses assuntos, mergulhei-me de corpo inteiro nesse empreendimento. Durante aproximadamente dez meses li mais sobre ciência política e filosofia do que o havia feito em dez anos. Até então, e a aprovação no difícil concurso para o cargo de procurador da República reforçou isto, sentia-me satisfeito comigo mesmo e o impulso inicial para ampliar meus conhecimentos estava voltado a confirmar ou reafirmar minhas ‘opiniões’. Não demorou e muito perdi o senso de orientação diante do turbilhão de novidades com que eu me deparava e por perceber como eram superficiais muitas de minhas convicções. Essa chacoalhada aumentou minha curiosidade e me ensinou que é preciso ter paciência e disciplina para prosseguir com um projeto de (re)educação, que deverá durar a vida inteira.
Se eu entendi bem você começou um plano de estudos há cerca de um ou dois anos. Tem tido dificuldade em começar, em assimilar os autores desconhecidos? Que livros, orientações ou mesmo inquietações, você pode repassar a quem queira começar uma vida de estudos séria?
O professor Olavo de Carvalho diz que somente aprendemos determinada coisa quando esquecemos que a aprendemos, ou seja, quando esse conhecimento nos altera e passa a fazer parte do nosso próprio ser. Somente me lembro daquilo que eu sou, disse o francês Jean Filloux. Por isso, transmito a essencial recomendação do professor Olavo de que devemos iniciar nossos estudos a partir daquilo que consideramos realmente importante em nossas vidas e que de alguma forma nos modificará, pois somente assim trataremos o problema com seriedade e responsabilidade. Depois de compreender e aceitar essa orientação, convencido de que não conseguiria ‘abraçar o mundo’ de uma só vez, dediquei-me a estudar a cosmovisão cristã e o pensamento conservador. A quem ainda, como eu, pouco sabe a respeito do conservadorismo, sugiro a leitura de ‘A Política da Prudência’, do norte-americano Russell Kirk, ‘A Vida Na Sarjeta’, de Theodore Dalrymple, e o livro que estou terminando de ler ‘Nossa Cultura…ou o que Restou Dela’, deste mesmo autor. No que diz respeito à cosmovisão cristã, recomendo ‘O cristianismo puro e simples’, de C. S. Lewis, ‘Cristo e Cultura: Uma Releitura’, de D. A. Carson, ‘Dando nome ao elefante’, de James W. Sire, e o livro mais atual de todos, a Bíblia, porque trata do Deus eterno e quando fala do homem se reporta ao que ele tem de permanente. E aconselho aos que me leem a não demorar o quanto demorei: leiam logo ‘A vida intelectual’, de Antonin Sertillanges.
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