“Precisamos ter a humildade de reconhecer que, nos casos mais complexos, o Direito sozinho não nos dá todas as respostas.” Veja nossa entrevista com Eliana Torelly.

Depois de concluir, nos EUA, o mestrado sobre proteção de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, Eliana já foi coordenadora do GT Comunidades Tradicionais, da 6ª CCR. Lá pôde, juntamente com outros colegas, atuar em diversos casos e refletir sobre a necessidade de criação de um sistema diferenciado de proteção desses conhecimentos. Segundo sua própria experiência, “a atuação na 6ª CCR desperta novos olhares naqueles que são encantados com o tema”.

Vegetariana por opção filosófica, Eliana vez por outra faz incursões no atletismo: ano retrasado participou da meia-maratona de Orlando, na Flórida. Mas, a seus próprios olhos, nada define melhor sua essência do que o “pertencimento à Igreja de Cristo”, onde se sente feliz por se colocar a serviço. Católica, atua como catequista de crianças e trabalha junto com o marido em encontros de casais e de jovens.

A santidade, para Eliana, é uma via aberta a todos e a cada um dos cristãos. Através da reflexão sobre as leituras que tem feito de vidas dos santos, descobriu que a “espiritualidade cristã assume diferentes formas. Não existe uma receita única para a santidade. É um caminho que trilhamos no curso de nossas vidas.”

Acompanhe nosso descontraído e interessante 32º dedo de prosa, com a procuradora regional Eliana Torelly.

 

A sua origem familiar é um retrato bem rico da formação brasileira. Você é brasiliense e seu pai, carioca, é filho de mãe carioca de origem suíça e pai gaúcho de origem italiana; sua mãe é amazonense, filha de mãe amazonense de origem portuguesa e pai pernambucano, filho de espanhóis. Para coroar, você se casou com um baiano. Fico imaginando que deva ser um alívio ter uma palavra que explique sua condição em meio a tantas origens diversas – e essa palavra é ‘brasileira’. O que é, para você Eliana, ser brasileira apesar de tantas influências?

Lembra da música do Chico: “O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, O meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano”? Então, sou “Antônia Brasileira”! Na verdade tenho orgulho da minha história, tão diversificada e tão única. O fato de ter nascido em Brasília, no centro do país, fortalece esse sentimento de unidade na diversidade. Já houve tempos em que achei que não pertencia a lugar nenhum, mas agora é diferente: sou uma brasiliense que traz em si uma síntese do Brasil.

Você fez mestrado nos Estados Unidos, escreveu sobre a proteção de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e trabalhou como representante do MPF no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, órgão que autoriza o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais. Em que consistia o seu trabalho e o que de mais interessante você vivenciou durante esse período?

O tema que escolhi para pesquisar ainda é pouco conhecido. Tratei da necessidade de adoção de um sistema diferenciado de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que muitas vezes são objeto de apropriação indevida em face da ausência de proteção jurídica em nível internacional. Aqui no MPF temos um grupo pequeno de colegas interessados no assunto, mas que são verdadeiros apaixonados pelo tema: Maria Luiza Grabner, Sandra Kishi, Anselmo Cordeiro, Wilson Rocha e Antônio Dalóia, com apoio da nossa querida Deborah Duprat. Juntos temos tido oportunidade de atuar na defesa de comunidades tradicionais e indígenas contra a exploração indevida de seus conhecimentos tradicionais, o que tem sido uma experiência enriquecedora.

Duas causas em que atuei me marcaram profundamente: um litígio entre quebradeiras de babaçu no Maranhão e uma grande empresa do ramo cosmético e outro entre os índios Ashaninkas do Acre e um pesquisador que se apropriou dos saberes desse povo e repassou para empresas, também do ramo cosmético. Atuar nesses feitos é muito mais do que um trabalho: é uma vivência que muda profundamente sua maneira de enxergar o mundo, pois te desperta para culturas e realidades muito diferentes. Foi uma feliz coincidência fazer mestrado sobre o tema e poder trabalhar diretamente com o assunto, como poucas pessoas no Brasil e no mundo.

Você tem atuação na 6ª CCR há algum tempo. O Direito Penal tem sido invocado para tratar de uma grave questão: o chamado infanticídio indígena, que vitima recém-nascidos que na visão de determinadas comunidades não devem continuar vivendo. De um lado, busca-se a punição ora dos índios que o cometem ou dos agentes públicos que o acobertam; de outro, por vezes, busca-se a persecução penal de agentes públicos ou de voluntários que conseguem poupar a vida de um recém-nascido. Você vê alguma saída para grande problema jurídico e sociológico?

A atuação na 6ª CCR, conforme disse na resposta anterior, desperta novos olhares naqueles que são encantados com o tema. Penso que a questão pode ser tratada de diferentes modos, mas nenhum deles passa pelo direito penal! Estamos falando de culturas e visões de mundo distintas, não há que se falar aqui em punição, certo e errado e outros simplificações. É claro que o direito à vida é o direito humano por excelência, a ser defendido em todas as circunstâncias. Mas acredito que há como chegar a um bom termo sem que se tenha que criminalizar condutas que nada mais são do que respostas culturais a necessidade de sobrevivência. À medida em que essas populações tiverem seus direitos básicos garantidos, especialmente a proteção de seus territórios e atenção à saúde, penso que essas práticas serão abandonadas, como já ocorre atualmente. Esse é um tema sensível, no qual precisamos ter a humildade de reconhecer que só o Direito não nos dá todas as respostas, mas temos que nos socorrer de outras ciências, especialmente a antropologia.

Na última vez que conversamos, você disse que tem um interesse especial pela Segunda Guerra Mundial e que, por exemplo, já leu quase todos os livros do Antony Beevor sobre o assunto. Como começou esse seu interesse? Você, católica, consegue ver algum significado espiritual nesse conflito desde seus preâmbulos até seu efetivo desfecho?

Me impressionou muito a fala do Papa Bento XVI quando visitou Auschwitz: “Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto?”. É muito difícil compreender os horrores da guerra e do sofrimento humano, mas há lições a serem aprendidas. Na mesma oportunidade Bento XVI disse que o passado não é apenas passado, mas ele nos indica os caminhos que devemos ou não percorrer. Certas coisas nunca devem ser esquecidas.

Seus planos de viagem já chegaram à Ásia, continente que costuma ficar de fora do planejamento até mesmo dos turistas mais experientes. Há algum lugar ou cidade em que você sempre volta nas suas viagens?

Amo viajar e isso é algo que passei para os meus filhos. Estamos sempre planejando a próxima viagem. Estive no Japão no começo do ano e fiquei encantada com o povo, a cultura, as paisagens, os templos, cada pedacinho daquele país tão peculiar. Mas, e sendo bem clichê, é sempre bom dar uma passadinha em Paris para treinar o francês, rever algum daqueles museus maravilhosos e ir à missa na Capela da Medalha Milagrosa, que considero um lugar muito especial!

Ser católico hoje é em algum sentido o mesmo que ser católico nos primeiros séculos da Igreja, na Idade Média ou no Renascimento. Mas em outro sentido acredito que há lá suas diferenças. Que desafios o mundo contemporâneo traz para o cristão? Acredita que em geral os cristãos têm conseguido se orientar suficientemente no meio do mundo?

A Igreja Católica, a barca de Pedro, vai navegando através dos séculos enfrentando tempestades e calmarias, mas segue seu itinerário rumo ao Pai. Essa noção de que tantos outros já navegaram os mesmos mares é muito reconfortante para o católico de hoje, pois ao contrário do que pensamos, há pouca novidade debaixo do céu! Os cristãos ainda hoje enfrentam um desafio que se repete através dos séculos: o martírio e a perseguição, que atualmente assolam as comunidades cristãs do oriente médio, especialmente no Iraque com o surgimento do grupo Estado Islâmico. Nós aqui no ocidente, por outro lado, temos que achar sentido para o cristianismo num mundo extremamente secularizado, no qual muitas vezes somos tidos como tolos e ridicularizados por causa da fé. Mas isso não nos desanima, apenas confirma tudo o que Jesus nos disse que aconteceria.

Leitora de hagiografias, há algum santo ou santa que tenha a sua devoção? Vou repetir a você a pergunta que o Rodrigo Prado faz a mim há algumas semanas: quem é o santo, Eliana?

Desde criança tenho uma devoção particular por Santo Antônio de Pádua, sabia de cor as orações para pedir a intercessão desse franciscano tão querido. Rezava para ele quando tinha provas, quando perdia um objeto ou quando alguém da família ficava doente. São lembranças muito doces. Depois que passei a me interessar pela vida de outros santos fui percebendo que a espiritualidade cristã assume diferentes formas e que não existe uma receita única para a santidade. Seja pela pobreza franciscana, o pequeno caminho de Santa Terezinha, o monaquismo de São Bento, a mística de São João da Cruz e outros tantos! A santidade não é algo estanque, é o caminho que trilhamos no curso de nossas vidas.

Que poesia ou música melhor representa um traço que você hoje acredita ser importante na sua personalidade?

Há uma estrofe do poema “Mãos Dadas” do Drummond que foi meu mote por um período da minha vida em que eu precisava aprender a não remoer o passado e não me preocupar com o futuro: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Até hoje essa frase é importante para mim. Fiquei feliz de ver que você, Bruno, cita outra estrofe do mesmo poema na apresentação deste blog de entrevistas. Legal a sintonia!

 

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Entrevista com Elizeta Ramos: “Quando cheguei ao final da carreira de Ministério Público Estadual resolvi correr atrás de outra semelhante, onde fosse possível começar de novo. Acho mesmo que gosto de recomeços!”

Um caso raro — e talvez único — no Ministério Público brasileiro, Elizeta chegou ao último grau da carreira do Ministério Público do Estado do Amazonas e, através de novo concurso e disputadas promoções, também ao último grau da carreira do MPF.

Lembrando de um passado nem tão distante, onde cada passo que se dava na vida era muito valorizado, Elizeta dá um testemunho que serve de lição aos mais jovens: “fico perplexa quando vejo acomodação e desanimo por parte da juventude, que hoje pode desfrutar de um mundo sem fronteiras”. Segundo ela, “a facilidade pode atrapalhar o ser humano; com ela parece que as ideias, as expectativas, os valores, as ambições ficam reduzidas a um patamar mínimo”.

Sua alegria e disposição, Elizeta em parte herdou de seus pais, muito alegres, e em parte ouvindo a ‘Irene preta e boa’ de Manuel Bandeira, que entrou no Céu sem precisar pedir licença.

E parece que sempre foi assim… Frequentava bailes de rua na adolescência, tocava pianola em um conjunto, e era a atriz que, nas aulas de teatro, sempre interpretava as personagens mais falantes. Se Elizeta tivesse vivido essa época em Águas Formosas, MG, certamente diriam: essa moça é muito ‘siligristida’…

Divertido e muito tocante, eis o nosso 28º ‘dedo de prosa’.

 

Bruno: De estagiária a subprocuradora-geral da República, como foi a sua trajetória profissional, Elizeta?

Elizeta: Doce e amarga, com altos e baixos, sucessos e perdas, mas rica e cheia de ação, emoção e novidades.

Numa retrospectiva rápida posso dizer que iniciei minha carreira como estagiária da Defensoria Pública no Rio de Janeiro por dois anos, naquele tempo de mil novecentos e se esqueça, Guanabara. E devo a este estágio muito do que consegui fazer como membro do Ministério Público, por mais paradoxal que possa parecer. Ali tive preciosos ensinamentos doutrinários, éticos e práticos que me valem até hoje.

Bruno: É engraçado você dizer isso. Em que sentido você deve ao estágio na Defensoria Pública muito do que conseguiu fazer no MPF? Em que sentido você diz isso?

Elizeta: É que o início da carreira do Ministério Público era a Defensoria Pública. Desse modo os defensores sabiam que depois de determinado tempo seriam promotores e assim os estagiários tinham dupla experiência. Com eles aprendi, por exemplo, que a defesa prévia era o momento de serem arroladas as testemunhas e mais nada. Na minha primeira peça sustentei várias teses e o defensor olhava para mim e dizia que estava ruim, fora de contexto. E eu não entendia. Fiz bem umas quatro até que a última ele rasgou e me deu a lição de que o menos ali era mais, pois qualquer coisa que eu escrevesse serviria de base para as alegações finais do promotor. É claro que chorei muito quando ele desprezou todas as minhas ‘lindas’ manifestações, pois tinha passado horas a fio estudando para elaborá-las. Esse foi um ensinamento que levei e trago comigo para o resto da vida e todas as vezes que leio uma defesa prévia ‘recheada’  de teses jurídicas agradeço ao advogado por tornar mais tranquila a acusação.

Lá também aprendi a ser fiel ao cliente — individual ou sociedade — entregando-me de corpo e alma ao trabalho do momento. E mais, ainda que eu não estivesse muito convencida da tese, mas desde que tivesse que atuar, que eu procurasse ser o mais profissional possível. Essa era uma fórmula que jamais falhava num júri, por exemplo.

Bruno: Sim, depois do estágio na Defensoria Pública, você se formou. Qual foi seu primeiro emprego depois da faculdade?

Elizeta: Pois é. Já formada fiz o primeiro concurso de que tive conhecimento, e que ocorreu no Amazonas, para o Ministério Público. Com 23 anos de idade, assumi o cargo de promotora de justiça na Comarca de Boca do Acre, em 1978, onde passei seis meses. A comarca estava sem juiz e, por isso, acabem me tornando responsável por assuntos que envolviam terras, posses e propriedades, índios, meio ambiente — e ainda isso nem era moda! –, dentre outros, até mesmo como mediadora. Lá,também atuei em matéria eleitoral.

Removida para Parintins, onde fiquei três anos, passei a ter minhas atribuições de MP mais bem traçadas. Funcionava em todos os processos, cíveis e criminais, elaborando pareceres, recursos, contrarrazões, fazia audiências todos os dias, júri, até mesmo em comarcas contíguas, exercia as funções de promotora eleitoral, atendia o público em geral e, como morava ao lado do Fórum, o trabalho era diuturno.

Já com bastante experiência fui promovida e atuei, na Capital, na Vara de Júri e Execuções Penais, quando ainda não havia a Lei n. 7.210/84 e assim as balizas de trabalho externo, regimes, e tudo o mais eram dados pelo promotor de justiça. Atuei também em Família, Criminal, Fazenda Pública, Menores, enfim, em praticamente tudo. Após um tempo fui novamente promovida para ocupar o cargo de procuradora de justiça, com assento no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas e na Chefia da Assessoria do Procurador-Geral de Justiça na parte criminal. Chegando ao fim de uma carreira, tendo sido, inclusive, membro de banca examinadora em dois concursos, e ainda nova, resolvi começar outra…

Bruno: Mas isso é muito inusitado! O que lhe passou pela cabeça, Elizeta?

Elizeta: Sei lá! Acho que o mesmo que passou quando sai do Rio de Janeiro para Boca do Acre no Amazonas. Dessa vez eu fiz o caminho inverso pois já estava na hora de voltar. Quando cheguei ao final da carreira de Ministério Público Estadual resolvi correr atrás de outra semelhante, que eu também respeitava, mas onde fosse possível começar de novo. Acho mesmo que gosto de recomeços!

Léon Tolstoi  disse que “o lugar que ocupamos é menos importante do que aquele para o qual nos dirigimos”. Por acreditar nisso, segui caminhando. Como só sei ser Ministério Público e não tendo qualquer aptidão para a magistratura — e, assim, fugindo de concorrer ao quinto constitucional –, resolvi fazer o concurso para o Ministério Público Federal, onde, após ter passado no concurso público de provas e títulos, fui mandada para o Espírito Santo.

Em Vitória exerci a substituição do Eleitoral e da Chefia da Procuradoria da República, além das atribuições naturais do cargo. Atuei não só no criminal — eu preferia elaborar todas as denúncias, alegações finais, recursos criminais do que contestar uma ação como advogada da União –, mas também em importantes causas previdenciárias, que atingiam os aposentados na época, em ações civis públicas, e especialmente no inquérito civil contra a Aracruz Celulose que foi um marco na minha vida institucional.

Bruno: O que o inquérito civil contra a Aracruz Celulose teve de tão especial? O que ele lhe ensinou?

Elizeta: Eu não tinha a mínima experiência nessa área e me vi deslumbrada com uma matéria completamente nova, ritos novos, trabalhando com peritos capacitados, vendo como as empresas podem influir, e muito, nos depoimentos dos empregados, nas provas; enfim, como elas são ‘poderosas’ E o Ministério Público atuando com responsabilidade e auxiliado por uma equipe de primeira. Acho que me senti importante porque estava fazendo a diferença e numa área na qual eu nunca havia sequer pensando em atuar. Creio que a novidade me moveu!

Aprendi o valor do conjunto, aprendi a ver a beleza e a utilidade no diálogo, na participação e no respeito mútuo. Venci algumas barreiras juntamente colegas que me ajudaram com suas experiências, força, coragem, a exemplo do Wagner Mathias e do Onofre Martins. Até então o meu trabalho sempre tinha sido muito solitário.

Bruno: Depois disso você pediu remoção para Brasília…

Elizeta: Sim. Removida para Brasília, ainda como procuradora da República, atuei na área criminal, onde permaneci depois da promoção para a Procuradoria Regional da República da 1ª Região. Participei de algumas operações, dentre elas a ‘Diamante’, com colegas brilhantes.

Minha promoção ao último grau da carreira ocorreu em 02 de dezembro de 2010, ocasião em que fui designada para funcionar nos feitos cíveis do STJ, inclusive participando das sessões da 2ª Turma daquela Corte — onde, aliás, permaneço até hoje. No ano seguinte fui designada para atuar nos feitos criminais e compor a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão na qualidade de titular, pois dela já havia participado como suplente.

Em tudo isso não me faltam casos interessantes, alguns engraçados e outros estarrecedores, para contar de cada lugar. Quem sabe um dia eu pare para recordar e faça um manuscrito?

Bruno: Por falta de incentivo e de leitores essa ideia não fracassará, Elizeta. Tenha certeza… Outra coisa. Lembro que ao falar da organização de seu gabinete na PGR, você me disse que tem feito pedidos de agilização de julgamentos dos processos que “dormem nos gabinetes dos magistrados como as almas do purgatório”. Ainda não conhecia essa metáfora, que é quase-prefeita. É que as almas do purgatório, como Dante Alighieri as retrata na Divina Comédia, pedem a todo o momento que os vivos rezem por elas, para encurtar seu tempo de sofrimento. Conta para a gente um pouco desse trabalho. E aproveitando essa excelente figura de linguagem, pergunto: há também nos tribunais, na sua opinião, determinados processos que já foram condenados à aflição eterna ou eleitos para os píncaros da glória – como se diz, que ‘vão direto para o céu’?

Elizeta: É um trabalho difícil, mas temos conseguido algumas vitórias. No ano passado mesmo, fiz muitos pedidos de preferência e os Ministros atenderam e julgaram todos os feitos. Mas é claro que eu sei — e não tenho a ilusão de pensar o contrário — que vários, e os mais importantes, ficam na ‘aflição eterna’ justamente para que aqueles que têm os nomes ali escritos desfrutem de uma vida terrena mais suave…

Ainda sobre esse assunto, no início da minha carreira dizia o defensor público — olha aí mais um ensinamento dentre tantos que recebi na época — que o processo penal se ganhava na Delegacia de Polícia. E realmente eu vi isso em toda a minha carreira. Pobres coitados ficavam a vida toda para serem julgados, empunhados, enquanto os mais poderosos resolviam com seus advogados no inquérito policial como deveria ser feita a prova, ou aguardando a prescrição. No início os promotores eram bastante passivos, frequentando apenas os seus gabinetes e recebendo os autos da maneira que as demais autoridades queriam. Felizmente isso se foi modificando, o MP começou a atuar em várias frentes e de forma independente. Deixamos de ser meros burocratas e nos transformamos em parte ativa e fiscais da lei, tanto em matéria criminal, como na cível.

Bruno: Qual é o seu segredo para manter a disposição e a alegria, Elizeta?

Elizeta: Acho que fiquei impressionada com Manuel Bandeira quando escreveu Irene preta / Irene Boa / Irene sempre de bom humor / Imagino Irene entrando no céu: / — Licença, meu branco! / E São Pedro bonachão: / — Entra Irene, você não precisa pedir licença. Ou seja, os bem humorados sempre são acarinhados, tanto no Céu como na Terra.

Mas, na verdade mesmo, tirando a brincadeira, devo isso ao DNA. Meus pais são muito alegres e dispostos. E eu sempre fui assim, desde criancinha. No colégio das Irmãs de Caridade, onde estudei no primário, ganhava notas ótimas em todas as matérias, mas em comportamento…  só o suficiente para não reprovar mesmo.

De qualquer forma, fazia teatro, e sempre me colocavam para fazer o papel de quem mais falava. Não sei por quê. Fazia balé, tocava piano, coquinho, sininho, muitas atividades. Na adolescência frequentava os bailes da rua, e todos queriam dançar comigo, pois eu arrasava! Tocava pianola em um conjunto, lia o que podia, embora o acesso aos livros naquela época fosse mais difícil; frequentava bibliotecas e estudava muito.

Bruno: A propósito, você iniciou um curso de psicologia que não chegou a terminar. E disse que com as aulas que teve aprendeu a valorizar ‘o antigo e o novo, a liberdade de ação e de expressão, os contrastes’. Que coisas antigas você valoriza e que contrastes a deixam perplexa hoje em dia?

Elizeta: Valorizo pessoas como os meus pais, que eram de classe média pobre e me deram toda a educação possível sem me deixar faltar nada. Valorizo as amizades que se faziam antigamente, época em que não havia computador e muito menos celular. Eu nem tinha telefone fixo na infância. O amor dos professores, que eram verdadeiros educadores, por seus alunos. Quantas vezes ganhei coleções de livros deles, que viam que eu gostava de estudar e era interessada por vários assuntos!

Mas valorizo também tudo o que é novo em termos tecnológicos e o que facilita a nossa vida. Acho que trazem a alegria do começo, a iniciativa, as ideias sem preconceitos. Você já viu como uma criança sabe tudo? Pergunte a ela algumas coisas e ficará até bobo com as respostas…

Os antigos já trazem algumas decepções e tristezas, certos limites, mas trazem também uma visão geral que sempre ajuda na hora de uma ‘composição’. Um não existe sem o outro. O só novo seria um mudar diário sem consequências e sem estabilidade. O só antigo seria a mesmice, sem evolução.

Acho que como subprocuradora-distribuidora de processos, logo que cheguei na PGR, e também no CSMPF, pude mostrar um pouco como valorizo as diferenças e os contrastes.

Fico perplexa quando vejo acomodação e desanimo por parte da juventude, que hoje pode desfrutar de um mundo sem fronteiras. Tudo antigamente, cada passo que se dava, era muito valorizado. Também fico perplexa em ver como a facilidade pode atrapalhar o ser humano. Com a facilidade parece que as ideias, as expectativas, os valores, as ambições, tudo fica reduzido a um patamar mínimo.

Bruno: No seu ‘tesouro da juventude’, guardado consigo, há muito da boa literatura brasileira, grandes romancistas e muita poesia. Ainda há traços dessa época na Elizeta de hoje?

Elizeta: Claro. Adoro poesias, só não tenho mais cabeça para decorá-las, como fazia na infância.

Mas nas horas de chateação eu abro um livro de poesias — e temos alguns colegas que são inspirados… –, leio e me delicio com a imaginação do poeta e com a sapiência das obras. Gosto também de fazer palavras cruzadas mais difíceis e de uma boa literatura brasileira, que sempre abre fronteiras em nossa mente e em nosso coração. Ninguém continua o mesmo depois de ler um bom livro. Em qualquer de suas manifestações, aí está a beleza da arte. A arte transforma!

Bruno: Você chegou a participar de concertos de piano na adolescência. Além dessa semente plantada na juventude, há alguma outra que você teve de deixar pelos caminhos da vida?

Elizeta: Nenhuma que pudesse dar frutos. O piano foi importante porque colocou música clássica e popular, de uma forma emocionante, nos meus ouvidos. Eu aproveitei para evoluir e senti que tinha até talento, mas não era virtuose e nem tinha vocação para dedicar horas a fio à música, especialmente à música clássica. Usei muito desse instrumento para dar vazão às raivas e às iras que tinha de vez em quando, ou seja, sentava e tocava Bach, Beethoven, e outros compositores fortes em suas obras. Mas o ser humano tem cada coisa, não é?

Bruno: E como tem…

Elizeta: Imagina que eu, menina ainda, queria ser aeromoça, mas não tinha altura, não era loura, não tinha olhos azuis… Fico olhando as aeromoças de hoje, revoltada, e pensando que eu poderia ter inovado! Depois eu queria fazer Direito e seguir carreira jurídica. E essa semente germinou… Sou realizada, pois estou além do que imaginei estar algum dia, na área em que sempre quis e lutei para estar.

Elizeta: Aliás, eu bem que gostaria de saber como você se distraía e fazia suas raivas passarem na infância e mocidade e também se deixou sementes plantadas pelo caminho…

Bruno: Eu ainda não pensei na minha história sob esse ponto de vista… Bom, na minha infância eu me distraía, por exemplo, desenhando as coisas e rabiscando letras, palavras e pequenas frases nos cadernos. Gostava de organizar o material da escola, apontar os lápis, colocar tudo no estojo e na mochila. E também gostava muito de ouvir os discos de vinil do meu pai — Sá & Guarabira, Novos Baianos, Beatles, John Lennon, George Harrison, o Michael Jackson do The Jackson 5 e outros. Era o momento de nossa parcial comunhão. O detalhe é que eu também tinha o costume de jogar os discos dele nas paredes da sala. Como se fossem ‘discos voadores’. Ocorre-me agora que isso podia ser a semente de uma vocação, a vocação de crítico musical. Algo como: não gostou do disco?, parede nele… Mas, para ser mais ‘ortodoxo’, prefiro catalogar esse hábito, que, garanto, abandonei aos seis anos de idade, entre as atividades que me aliviavam a raiva, uma raiva que a maioria das crianças desenvolve desde muito novinhas, talvez por funcionarem meio que como antena dos adultos.

Na adolescência continuei me distraindo com a música e cheguei a fazer parte de um conjunto cover dos Beatles, onde tocava guitarra e simulava, com muito esforço e pouco resultado, os solos do George Harrison e a voz do John Lennon. Talvez isso contribuísse também para dissipar um pouco da raiva. Eu particularmente acho que depois de uma certa fase, que talvez tenha começado no disco Beatles For Sale, o John Lennon passou a viver, e a cantar, com raiva. Raiva e melancolia. Imitá-lo, pelo menos através da voz, talvez permitisse que eu desse vazão aos meus sentimentos afins. Certamente devia haver outras formas mais interessantes de lidar com isso, mas foi o que deu para fazer…

Você quer saber se eu deixei sementes plantadas ao longo do caminho. A guitarra, o rock em geral, foi uma dessas sementes. Não que eu pensasse em me profissionalizar. Não é isso. Mas acredito que cheguei a investir um bom tempo e uma parcela da minha vida afetiva nesse gênero musical que hoje não me diz nada. Ficou lá atrás.

Algumas ‘sementes’ a gente deixa porque renuncia aos seus frutos possíveis. A renúncia a uma especialização temática dentro do Direito, por exemplo, é uma dessas. Há alguns anos eu planejava iniciar um mestrado em Direito Penal. Hoje, não mais. Abrir mão de ser promotor de justiça também doeu um pouco durante um tempo. São possibilidades que foram ficando para trás.

Mas está lá nos Evangelhos. Se a semente não é jogada em solo fértil e bem cuidado ela não dará frutos. Saber que sementes devemos semear na nossa vida, e saber como e quando devemos fazê-lo, é uma arte. Saber as que devemos abandonar, também.

Elizeta: Eu lhe agradeço, Bruno, pela ideia dessa audição, que mostra toda a diversidade que há entre nós, colegas e amigos do MPF. E deixo aqui a mensagem de George Bernard Shaw, que disse que “precisamos de algumas pessoas malucas; vejam só para onde as pessoas normais nos levaram” .

 

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“O que mais dificulta a apuração dos atos de corrupção no Brasil é o fato de que se trata de uma forma institucionalizada de se fazer política”. Veja nossa entrevista com Raquel Branquinho.

Raquel passou parte de sua infância em uma fazenda no interior de Goiás, onde entre entristecida e confusa assistiu ao desaparecimento de seu cachorrinho ‘Vinagre’. Histórias que não são esquecidas… De Goiás para Brasília, a trajetória de uma vida. Hoje, procuradora regional, ela encontra satisfação fora do trabalho no convívio com seus filhos, nas leituras e nas viagens que faz.

Com uma vasta experiência na área do patrimônio público dentro do Ministério Público Federal, ela acredita que a dificuldade em investigar e obter a condenação de agentes públicos corruptos está em que geralmente os maiores prejuízos ao erário decorrem de “uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas”.

A morosidade da justiça brasileira é, para Raquel, um dos maiores fatores de impunidade. Além disso, os órgãos de fiscalização e controle trabalham muitas vezes com a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, com pouca efetividade. Seu testemunho é firme e direto: “Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais”.

De sua participação na investigação e na formulação da acusação que originou a Ação Penal 470 (Mensalão), ela extraiu a lição de que “quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz”.

Acompanhe o nosso 27ª ‘dedo de prosa’, um rico testemunho de uma procuradora que vive, de forma dinâmica e reflexiva, as vitórias e as amarguras da defesa do patrimônio público brasileiro neste começo de século.

 

Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude e que, quando menos, os gastos realizados nos contratos administrativos são mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina alguma modificação legislativa que pudesse começar a alterar esse quadro?

De fato nós, cidadãos brasileiros, diante de tantas notícias que acompanhamos na mídia dos mais diversos tipos de fraudes em licitações, não podemos dissociar do nosso imaginário que as contratações que envolvem dinheiro público são decorrentes de negociações espúrias.

Na condição de procuradora da República, atuei, durante anos, na área de defesa do patrimônio público e da probidade administrativa em Brasília, especificamente na área de licitação pública. Em razão do contato diário com a matéria, posso afirmar que, infelizmente, não obstante a existência de uma legislação para coibir abusos e estabelecer transparência, eficácia, impessoalidade e limite de preços às aquisições e serviços, é muito alto o índice de fraudes em licitações públicas que resultam em sobrepreço e superfaturamento, decorrentes de prévios ajustes entre representantes do setor público e privado — ajustes quase sempre de difícil ou quase impossível caracterização probatória.

O que mais dificulta a apuração é o fato de que não se trata de crimes praticados por servidores públicos de forma isolada, ou seja, sem grandes conexões, no exercício de sua função. Trata-se, ao meu sentir, de uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas. Assim, o que comanda o gasto público são os interesses dos partidos políticos. E isso não apenas favorece empresas privadas, que ganham muito por diversos tipos de fraudes, mas também partidos políticos e pessoas físicas, que se beneficiam do retorno de parte desse dinheiro indevidamente pago nessas contratações.

Há necessidade, sim, de mudança da legislação. Principalmente, dos regimes especiais que foram criados nos últimos anos para flexibilizar as contratações públicas. Uma importante alteração, principalmente na área de obras públicas, é a exigência de projeto prévio bem detalhado no aspecto quantitativo e de preços. Outra modificação importante é a da legislação sobre preços referenciais, muito ampla e que, de forma ‘legítima’, em obras de maior vulto, já permite uma margem oculta de lucro em torno de 25% às empreiteiras, consórcios etc.

A morosidade da justiça é geralmente apontada como uma das causas da impunidade em nosso país, principalmente em casos de corrupção com verbas públicas. Que fazer?

Infelizmente, não para desconsiderar o fato de que a morosidade da Justiça é, efetivamente, um dos maiores fatores da impunidade no Brasil, sobretudo nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Deveríamos simplificar alguns ritos, sem qualquer alteração no devido processo legal. Por exemplo, as duas fases de defesa antes do recebimento da inicial da ação de improbidade ou da denúncia em algumas espécies de processo criminal.

Poderiam ser criadas varas especializadas para a matéria de improbidade administrativa e as ações de improbidade deveriam ter prioridade na tramitação judicial. Também há algumas alterações possíveis na legislação penal para se permitir a execução provisória da pena em processos julgados em segundo grau de jurisdição; a diminuição das hipóteses de recursos excepcionais, ou seja, que não se atenham à matéria fática; e o desenvolvimento de uma doutrina jurídica que não aplique o garantismo de forma irracional como ocorre no Brasil. Essa última questão nos colocaria na linha dos países mais avançados que conseguem, com muita tranquilidade, equilibrar a garantia do devido processo legal e a efetividade da Justiça.

Como vê a atuação da Controladoria-Geral da União e da Polícia Federal em casos de corrupção nos últimos anos?

Infelizmente, no Brasil, há vários órgãos com atribuição de apuração de fatos irregulares, inclusive com sobreposição de atribuições em alguns aspectos, mas o que vemos é a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, acumulam uma quantidade imensa de papel, mas que não trazem nenhuma efetividade ao seu termo.

A CGU, nos últimos doze anos, não obstante tratar-se de órgão vinculado ao Poder Executivo, conseguiu, de certa forma, romper com essa lógica, inovando e estabelecendo dinâmicas de auditoria e corregedoria mais efetivas. A atuação conjunta entre CGU e MPF e por vezes Polícia Federal, nos casos em que atuei, sempre deram bons resultados. Criou-se um arcabouço jurídico que permitiu à CGU trabalhar de forma muito mais efetiva e durante todos esses anos é o único órgão federal que conseguiu chegar aos mais diversos locais do país para apurar a aplicação das verbas públicas federais nos municípios.

Infelizmente, a CGU, como diversos outros órgãos, não obstante a excelência do trabalho do seu corpo técnico, depende de uma diretriz firme, o mais independente possível e com a estrutura material e de pessoal adequadas.

Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais. A sistemática de fiscalização por sorteio em municípios incomodou muito os gestores municipais e, de certa forma, também foi esvaziada. Agora, houve mudança da sua direção máxima, que sempre esteve nas mãos do então Ministro Jorge Hage que, sem sombra de dúvidas, foi um excelente Controlador, e a minha posição é de espectadora sem grandes expectativas.

O aparelhamento da CGU é algo possível e muito perigoso para o país. O saldo do trabalho da CGU nesses anos, a meu ver, é muito positivo e, ao contrário do TCU, que é um Tribunal cujos julgamentos são naturalmente imbuídos de força política, os relatórios de auditoria da CGU são perenes, ou seja, uma vez aprovados, não são alterados a cada nova revisão, como ocorre no TCU, cujos processos demoram anos para serem concluídos.

Quanto à Polícia Federal, apesar de vários problemas internos, como disputas políticas, a sua também vinculação ao Poder Executivo, tem feito um trabalho razoável no combate à corrupção na parte, ao meu ver, das operações policiais. Ainda falta uma maior especialização dos delegados, agentes e escrivães na investigação de crimes de colarinho branco, inclusive de corrupção. Paralelamente às operações de busca e apreensão e escuta telefônica, é necessário que sejam feitas análises e outros tipos de investigação para robustecer a materialidade e autoria de forma rápida — o que não tem acontecido. São deflagradas grandes operações, que acumulam uma grande quantidade de material e que, depois, carece de análise e uma investigação mais concatenada for falta de pessoal, recursos financeiros ou mesmo interesse.

Que aprendizado você extraiu de sua atuação na investigação que fundamentou a acusação formulada pelo Ministério Público Federal na AP 470 (Mensalão)? Que balanço faz do julgamento já concluído?

Bem, o principal aprendizado é de que quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz.

A minha atuação no caso permitiu uma consolidação de experiência na investigação de crimes de grande porte, do colarinho branco, que demandam uma investigação muito mais estruturada e organizada entre Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário. O caso Mensalão alcançou esse estado da arte e, ao meu ver, por esse motivo, foi muito bem sucedido na sua primeira etapa, ou seja, até o julgamento da ação pela Suprema Corte.

Não obstante discordar da forma como foram aplicadas as penas e também da interferência política do Planalto no julgamento, com a nomeação de Ministros que se mostraram totalmente favoráveis às teses absurdas de defesas de alguns réus, faço um balanço positivo pois foi um leading case no próprio STF e a única ação penal que processou e efetivamente julgou e condenou a cúpula de partidos políticos, do Governo e de banqueiros envolvidos em crimes contra a administração.

Em sua atuação na PRR da 1ª Região certamente você, aliada à sua experiência, tem uma visão privilegiada do trabalho dos colegas da base e de sua perspectiva de frutos uma vez superada a fase de tramitação do processo no primeiro grau de jurisdição. Que sugestões daria aos colegas para ajudar a melhorar a instrução das ações penais contra servidores públicos e das ações por ato de improbidade e aumentar assim suas chances de sucesso?

Bem, se eu pudesse dar uma sugestão aos meus colegas seria para que passem a atuar sempre de forma mais dinâmica, saindo do gabinete para ir ao encontro dos fatos, reunindo-se com a Polícia, com as representações da CGU, do TCU etc. Que, de fato, acompanhem as investigações e não as transformem apenas em meros expedientes burocráticos de entrada e saída do gabinete. As ações de improbidade, assim como as ações criminais, demandam uma prévia fase investigativa para se estabelecer autoria e materialidade, bem consolidadas. Assim, temos que pensar antes de agir para estruturar, na melhor forma possível, as investigações, não dependendo apenas da atuação de outros órgãos, como Polícia Federal, CGU etc.

Ocasionalmente, analiso inquéritos que tramitam durante anos, com simples carimbos de concessão de prazo por parte do Ministério Público, sem qualquer análise mais acurada, que poderia determinar, logo no início das investigações, diligências bastante simples mas que conduziriam ao seu êxito ao invés do insucesso, como sempre ocorre. Muitas vezes medidas simples são suficientes para se concluir uma investigação, desde que a investigação seja efetivamente acompanhada pelo titular da ação penal.

Como você encontra satisfação pessoal fora do trabalho?

Fora do trabalho, encontro satisfação pessoal no convívio com meus filhos, na leitura e em viagens. Gosto muito de viajar. Também gosto de ler e fazer alguns cursos, principalmente de inglês, pela internet.

Qual é a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?

Eu venho de uma família que sempre teve muita dificuldade financeira, mas sempre fui muito incentivada a estudar para ‘mudar de vida’. Uma das lembranças mais antigas que tenho é da época em que morávamos em uma fazenda do meu avô, no interior de Goiás. Eu tinha uns quatro ou cinco anos e sofri muito com a morte de um cachorro chamado ‘Vinagre’, que brincava muito comigo. Disseram, na época, que alguém tinha dado veneno para o Vinagre e eu lembro que sofri muito sem entender o motivo de uma ação dessa natureza.

 

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Entrevista com Oswaldo Silva: “O nosso emprego é o melhor do mundo. Somos bem pagos para fazer cumprir a Constituição e para promover a justiça, até mesmo contra o governo”.

“O que me levou a abraçar o comunismo na adolescência foi (…) um sentimento humanista que me levava a crer na bondade da natureza humana (…). Infelizmente cresci e amadureci (…). Abandonei o comunismo. Decididamente não foi feito para humanos”. É assim, em linhas gerais, que Oswaldo define, da adolescência à vida adulta, a história de sua desilusão política.

Ele é o criador de um método para aferição objetiva do merecimento dos candidatos à promoção dentro do Ministério Público Federal. Seus esforços têm contado com a participação dos colegas candidatos, e o tem auxiliado na fundamentação de seus votos no Conselho Superior. Apesar disso, reconhece que “não há hoje como medir, objetivamente,  eficiência, presteza e dedicação no desempenho de suas funções (…) e eu mesmo tenho dificuldade em imaginar como fazê-lo”.

Mineiro de Juiz de Fora, Oswaldo fez carreira no Distrito Federal, onde participou dos primeiros anos do Ministério Público pós-redemocratização. Tempos de ouro! De sua infância em Juiz de Fora guarda lembranças como as lembranças da infância de Manuel Bandeira: a inocência perdida, como ‘num desvão da casa de dona Aninha Viegas’. ‘A vida e suas verdades essenciais’…

Uma conversa honesta e ‘sem nove horas’ com o colega que está, para a felicidade de sua Penélope, prestes a retornar de sua Odisséia. Acompanhe-nos em nossa 26ª entrevista, direta e — por isso mesmo — esclarecedora.

 

Você foi filiado ao Partido Comunista por nove anos, quando Cuba já era uma ditadura e Stálin já era o Stálin que conhecemos hoje. O que o animava naquela época?

Na verdade fui filiado dos dezoito anos, em 1977, até 1987, quando ingressei no MPF, no entanto já me considerava comunista desde os quinze anos, quando caiu em minha mão O Manifesto Comunista, de Karl Marx. O que me levou a abraçar o comunismo, na adolescência, foi menos uma opção científica decorrente de todas as obras que li naquela época e mais um sentimento humanista que me levava a crer na bondade da natureza humana e a crer que o comunismo era o único meio pelo qual o ser humano poderia materializar o bem-estar geral. Não tinha noção exata do que havia ocorrido de fato durante o estalinismo e o maoísmo, porque acreditava que todo a material publicado sobre isto naquela época era propaganda anti-comunista patrocinada pela ditadura militar. Ou seja: a própria cena à literatura comunista tinha esse efeito colateral. Por outro lado, mesmo quando a informação era certificada por pessoas confiáveis, acreditava eu que todos os crimes do comunismo eram perpetrados por traidores da ideia e que, apesar de Stálin, Mao e outros, o comunismo venceria como teoria e prática, nas mãos de homens que colocassem o interesse coletivo acima do individual.

Infelizmente cresci e amadureci o suficiente para conhecer a natureza humana que é resumida magnificamente num dito popular nordestino: “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Abandonei o comunismo. Decididamente não foi feito para humanos.

Como comunista ‘de carteirinha’, já desfiliado há vinte e sete anos do Partido Comunista, que leitura você faz hoje do nosso Regime Militar (1964-85)?

Tratou-se de um golpe militar (apoiado e até emulados por civis) contra a ordem constitucional e legal vigente, movida pelo medo das classes civis hegemônicas contra as reformas de base que se desenrolavam mediante processo legislativo constitucional (registre-se no Congresso Nacional) e pelo medo dos militares em relação à indisciplina nas unidades militares. Dado o golpe, os militares gostaram do poder e não cumpriram a promessa de devolver o poder aos civis. Elio Gaspari a definiu magistralmente nos quatro títulos de sua As Ilusões Armadas/O Sacerdote e o Feiticeiro: A Ditadura Envergonhada, a Ditadura Escancarada, A Ditadura Encurralada e Ditadura Derrotada.

Que diferenças salientaria entre ela [a ditadura militar no Brasil] e a ditadura cubana originada da Revolução de 1959?

O que ocorreu em Cuba foi uma revolução, mudou o modo de produção e mudou o proprietário do modo de produção. Isto não ocorreu no Brasil, onde tivemos apenas um um golpe de estado. A proposta da revolução cubana era a ditadura do proletariado, que com o tempo se materializou, infelizmente, com a ditadura dos dirigentes do Partido Comunista.

Mudando de assunto, quando você entrou para o MPF, em 1987, nossa carreira tinha 162 membros. Você conhecia todos os colegas pelo nome? Como era viver o MPF nessa época?

Conhecia quase todos pessoalmente, exceto alguns colegas que, lotados em capitais mais distantes, ou não vinham a Brasília ou não compareciam nos Encontros da ANPR. Eu trabalha euforicamente. O PGR era Pertence, quem eu já tinha apoiado nas campanhas da OAB-DF desde 1981. Quase a metade dos membros do MPF estava lotada em Brasília. Trabalhávamos todos juntos no prédio onde funcionam hoje a PRDF e a ESMPU, lado a lado, explorando todas as possibilidades da recente Lei da Ação Civil Pública,  acompanhando o trabalho da Assembleia Nacional Constituinte. Tudo estava por fazer e tudo estava acontecendo.

Desde então, a leitura que alguns têm feito da Constituição incentiva uma progressiva interferência do Estado (e, notadamente, do Judiciário) em questões que antes estavam restritas à resolução privada ou administrativa. Não corremos o risco de nos tornar excessivamente burocráticos e ‘demandistas’?

Risco de igual magnitude é o de nos tornarmos excessivamente omissos e permitimos que, em vez de resoluções privadas legítimas, tenhamos erro, dolo, simulação ou fraude; e que, em vez de resoluções administrativas legítimas e legais tenhamos abusos, arbitrariedades e ilegalidades. Se a resolução privada ou administrativa está de acordo com a Constituição e com a lei não há que se temer a judicialização.

Você foi CODID-DF — Coordenador de Defesa de Direitos Individuais e Difusos do Distrito Federal. No prefácio que fez ao livro do colega João Batista sobre Ação Civil Pública, o Min. Sepúlveda Pertence, fazendo referência à época da idealização da Lei Federal n. 7.347/85, diz que então começavam a circular nos corredores do Ministério Público ‘certa gente’ estranha em busca da atuação institucional dos promotores e procuradores. Imagino que deva ter sido especialmente interessante viver esse tempo de semeadura. Que lembranças você traz dessa época?

As melhores possíveis. Sentíamo-nos protagonistas de uma nova idade para o MPF, aquela em que nossa função deixou apenas de ser a de dominus litis da ação penal e curador da lei, para sermos os defensores da sociedade e, imagine, contra o Governo! Causávamos, tanto quanto a gente estranha que nos procurava, estranheza em boa parte dos colegas, ao assumirmos esse papel. Registro que esse protagonismo não era apenas dos procuradores mais jovens , do concurso de 1984 ou de 1987, mas ele vicejou na seara lavrada por alguns colegas mais antigos, dos quais posso citar os que participaram da criação da ANPR e os que protagonizaram as ações de repúdio ao ato do então PGR que colaborou para a morte de Pedro Jorge.

No CSMPF, você tem buscado fundamentar seus votos para promoção por merecimento em critérios o mais objetivo possíveis. Por isso tem lançado editais convidando os interessados a que apresentem determinadas informações que você julga relevantes e reveladoras de ‘merecimento’. A experiência, na sua visão, tem dado certo? Há algo ainda possa melhorar?

Tem dado certo para mim. Repito aqui o que já manifestei em meu voto-vista nos autos do Projeto de Resolução que visa regulamentar as promoções por merecimento e que ainda se encontra em tramitação:

“(…) A Resolução que se pretende alterar, tanto quanto as que a antecederam, mercê de não imporem a mensuração da aplicação de seus critérios objetivos, não conseguiu afastar a prevalência de uma abordagem subjetiva de merecimento para a promoção na carreira, fundada, no mais das vezes, no conhecimento pessoal do membro do Conselho Superior das histórias das carreiras de determinados membros, com o quais dividem afinidades (ou divergências) pessoais ou institucionais; ou a confortável opção de prestigiar a antiguidade, como critério de merecimento; ou, ainda, a conjugação dessas duas situações.

Por outro lado, não é tarefa difícil ao Conselheiro, uma vez escolhido intimamente os candidatos de suas preferências, dar um verniz de objetividade à escolha, lendo seus currículos nas sessões do Conselho Superior do Ministério Público, onde a promoção está pautada, visto que, de uma forma ou de outra, todos os colegas, em um campo ou outro, guardam méritos, maiores ou menores, que podem ser ressaltados em público para justificar o voto.

Embora estejam os Conselheiros imbuídos de boa-fé na explicitação dessas histórias das carreiras dos membros candidatos à promoção, ou na leitura de seus currículos, mesmo esse processo é defeituoso porquanto não possibilita um cotejo entre currículos, à míngua de um referencial objetivo e previamente publicizado, para sua comparação”.

Por fim, a Resolução em vigor, Resolução CSMPF 101/2009, estabelece quatro critérios dos quais dois não estão a desigualar os candidatos — produtividade e permanência na sede do ofício/assiduidade. A produtividade encontra-se, mercê das correições ordinárias, quase empatada; e na permanência na sede do ofício/assiduidade, por serem deveres do cargo, são raríssimas as ocorrências na Corregedoria que resultaram em punição. Nas outras duas encontram-se as diferenças — exercício de cargos funções e atividades consideradas relevantes/frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento. No primeiro caso fiz uma relação de cargos, funções e atividades que com a ajuda de colegas foi aumentando a partir de meu primeiro voto, e é sobre elas que peço informações, visto que muitas desses cargos, funções e atividades não são registradas nos assentamentos funcionais do membro — o que está para ser corrigido pela CGMPF.

No seu entendimento, em resumo, que perfil, ou que perfis, de procurador apresenta(m) maior mérito para as promoções?

Aqueles que se enquadram nos quatro critérios da resolução em vigor. Mas anoto que não há hoje como medir, objetivamente,  eficiência, presteza e dedicação no desempenho de suas funções, três dos quatro componentes do primeiro critério elegido pela Resolução CSMPF 101/2009. Eu mesmo tenho dificuldade em imaginar como fazê-lo.

Ainda sobre a promoção por merecimento. A participação em GTs e a dedicação à vida acadêmica são duas atividades que muitos colegas bravos e trabalhadores – e outros, como eu – não se envolvem, pois preferem dedicar-se ao estudo dos processos e das questões mais tormentosas de sua gabinete ou de sua região. A atribuição de pontos para a participação em Grupos de Trabalho não contribui para tornar ainda mais negativa a imagem de ineficiência que eles têm para boa parte da classe?

Penso que não. Exceto se se considerar que a participação em GTs não é função relevante — art. 2º, inciso III, da Resolução em vigor. Penso que é relevante. E muito. Ademais os que participam de GTs não estão privados da distribuição igualitária e não estão liberados de se dedicarem ao estudo de processos e das questões mais tormentosas de seu gabinete ou de sua região. Ouso divergir de tua opinião de que os GTs têm imagem negativa de ineficiência. Ao contrário, sempre forneceram excelentes subsídios técnico-temáticos para os colegas de todas as instâncias.

Você esteve em Eldorado dos Carajás, PA, com o colega Wagner Gonçalves, por ocasião do massacre ocorrido em 17 de abril de 1996. Que impressões lhe ficaram do evento?

Péssimas e inesquecíveis. Para se ter uma ideia inspecionamos todos os dezessete cadáveres que se encontravam, ainda, expostos em um galpão perto do local dos crimes. Chamou-me a atenção que mais de setenta por cento deles tinha apenas uma marca de tiro na testa, ou na cabeça. Isto convenceu-me de que as mortes não ocorreram no momento do confronto entre a PM e os manifestantes, tal como foi gravado em vídeo, senão me engano, pela TV Manchete, mas depois, quando eles foram caçados no acampamento e fuzilados a sangue frio.

Você diz que sua atuação pela regularidade do financiamento do SUS, com a colega Raquel Dodge, acabou de alguma forma encontrando ressonância na EC 29/2000 e na LC 141/2012. Em que consistiam basicamente suas preocupações de então?

Os inquéritos civis públicos da saúde abertos o primeiro no final de 1993 e o segundo em 1994, pela valorosa colega Raquel Dodge, desnudaram a crise do financiamento da saúde e do SUS; e revelaram um mecanismo contábil-financeiro de desvio do dinheiro do orçamento da saúde, então um dos maiores da União, para outros setores. Para contornar a revelação do MPF e uma possível ação civil pública,  votou-se a Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 01 de março de 1994, criando Fundo Social de Emergência e chancelando o desvio do dinheiro. O FSE é o avô da DRU.

Nosso trabalho continuou e a luta para um adequado financiamento do SUS também, participamos ativamente da redação da Emenda Constitucional 29/2000 e da Lei Complementar nº 141/2012, reconhecidos que fomos pelo Parlamento e pela sociedade civil como protagonistas da defesa dos arts. 196 a 200 da Constituição e da Lei Orgânica da Saúde.

Você conhece suficientemente a geração dos colegas mais novos? Como colega mais experiente, o que gostaria de lhes confidenciar ao pé do ouvido?

Gostaria de conhecer mais. Conheço-os, os colegas mais novos,  dos cursos de ingresso e vitaliciamento, dos cursos da ESMPU e da participação em GTs das Câmaras. Mas hoje somos mais de mil procuradores. Passo vergonha de não saber o nome da maioria dos colegas e, mais ainda, de esquecer seus nomes…

O que eu gostaria de lhes confidenciar ao pé do ouvido deles é que este é o melhor emprego do mundo. Somos bem pagos para fazer cumprir a Constituição e a lei e para promover a justiça,  até mesmo contra o governo, até mesmo contra nossos colegas;  e se esta é a Constituição-cidadã, estamos no melhor dos mundos.

Tanto na PRR da 1ª Região como na PGR você ocupou importantes cargos de coordenação tanto na área criminal como na de tutela coletiva. Isso se deve a uma pura e simples indefinição ou a uma opção pessoal pela ampliação das perspectivas profissionais?

Éramos poucos e havia muito o que fazer. Não havia a possibilidade de uma especialização como há hoje, tínhamos que ser coringas. Portanto não foi indefinição ou opção pessoal, foi necessidade.

Você planeja se aposentar ainda neste ano, após a finalização do seu mandato no CSMPF. Mas você está muito jovem, Oswaldo!

Fiz esta promessa para minha esposa. Trouxe-a de Belo Horizonte há dez anos e ela sempre quis voltar, fez esse sacrifício por mim. Se ela me liberar da promessa fico mais uns quatro anos, pois gostaria muito de, trabalhando, fazer mestrado e doutorado aqui em Brasília, de modo que ao aposentar estaria apto da dar aulas em curso superior. O curso de especialização eu já fiz, na ESMPU.

O GT saúde da PFDC e a Relatoria da 1a. CCR/MPF para a Aplicação das Verbas Públicas Federais em Saúde se posicionaram pela inconstitucionalidade da terceirização da gestão da saúde, tese da qual você é entusiasta. Em primeiro lugar, pergunto: acredita que a máquina administrativa em algum momento conseguirá superar a iniciativa privada em eficiência na gestão da saúde? Em segundo lugar, constato que boa parte dos colegas da base não tem dado ênfase ao princípio da unidade em benefício de decisões colegiadas deliberadas em Brasília porque, segundo dizem, elas geralmente não espelham o consenso da classe ou as peculiaridades regionais e locais. O que pensa a esse respeito?

Acredito. Os números não me contradizem. Veja os números de dezembro de 2012 a dezembro de 2013: 4,05 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 1,5 bilhões de consultas médicas; 12,2 milhões de internações, 44 milhões de procedimentos oncológicos (2010-2013), 9,1 milhões de procedimentos de quimioterapia. Caramba! tudo — universalidade e integralidade — de graça — gratuidade! Mas é o velho ditado “uma maçã podre contamina o cesto”. Ou de outra forma:  “Notícia não é quando um cachorro morde o homem, mas quando o homem morde o cachorro”. Se 0,01% dessas ações e serviços públicos de saúde acima apontados foram realizados ineficientemente, isto já seria um número escandaloso, não? Número que seria apto a justificar toda a gritaria que a imprensa, os meios de comunicação e as redes sociais fazem contra a gestão pública. Mas pense em 99,99% de procedimentos realizados sem reclamações. Alguém se habilita a divulgar esses fatos? Isto é notícia que vende? Diante desses números o que é ser eficiente ou ineficiente?

Respondendo à segunda parte de sua pergunta, com exceção das decisões da 2ª CCR/MPF em decisões de arquivamento e declínio de atribuição, não há uma estatística da aceitação ou não das decisões colegiadas como orientadoras do trabalho dos colegas. Temos uma maioria silenciosa e uma minoria que vai à rede membros. E não sei se esta, quando reclama, é representativa daquela. De forma que não me sentiria seguro de que elas “geralmente não espelham o consenso da classe ou as peculiaridades regionais e locais”.

As CCRs não tem conseguido, segundo a opinião de alguns, emplacar ações eficazes de coordenação da atuação nacional do MPF. Por quê?

Gostaria de saber quem são esses alguns pois vi várias ações de coordenação, especialmente na 5a. CCR/MPF, na 2a. CCR/MPF e na PFDC que foram eficazes. As que não foram encontraram obstáculos dos mais variadas formas, desde a inércia do procurador natural ou vinculado, o que pode ocorrer por várias razões, até a barreira dos órgãos públicos que deveriam cooperar na ação.

Recentemente ocorreu que nova composição da 4ª CCR fixou entendimento que, na prática, vem invalidando enunciado, a respeito da atribuição do MPF para atuar em casos de mineração irregular, publicado sete meses antes pela coordenação anterior. Não seria o caso de prever mecanismos de estabilização dos entendimentos das CCRs?

Eu esperaria o Egrégio STF e o Egrégio STJ encontrarem uma fórmula de resolverem este antigo problema que mutatis mutandis lhes aflige, para apropriar-me da solução.

De que se lembra de sua infância em Juiz de Fora?

Da inocência perdida.

 

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“A maior parte de meus pareceres é acatada pelo TRF, sempre a favor do humilde e do oprimido, e contra o opressor”. Veja a entrevista com Luiz Francisco Fernandes de Souza.

Leitor de Cícero, Sêneca, dos Santos Padres e notadamente da Bíblia Sagrada, Luiz Francisco se considera um socialista católico. Para ele, Marx e Engels, e principalmente Stálin, distorceram o socialismo (…), que, segundo ele,  não é originalmente “estatização de todos os bens e muito menos ditaduras”.

Ícone do combate à corrupção nos altos círculos de Brasília durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e conhecido por ter trabalhado em processos criminais abertos contra o ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, Luiz foi promovido por antiguidade à Procuradoria Regional da 1ª Região em 2004, onde busca “ajudar pessoas pobres e mover o Estado contra criminosos ricos”.

Avesso a qualquer tipo de turismo, nosso entrevistado — também conhecido por sua simplicidade — encontra seu lugar na convivência com pessoas humildes na Ceilândia, no Guará, no Bandeirante, em Brasília.

Homem de hábitos frugais e preocupado com a saúde, frequenta a academia de ginástica e não nega conselhos de alimentação a quem lhos pede. Luiz Francisco é o Dom Quixote do Planalto Central, sempre pronto — ninguém pode negar — para defender seu próprio ideal de justiça social.

Veja nossa interessante entrevista com o procurador regional Luiz Francisco, em nosso 18º encontro.

O jornalista Augusto Nunes, da Veja, escreve sobre você com alguma frequência, geralmente fazendo referência ao que ele entende como uma paralisação de sua atuação profissional contra a corrupção nos altos círculos do Governo Federal após a eleição de 2002. Essas notícias o incomodam? Você gostaria de explicar o que realmente aconteceu?

Perfeitamente. Em 2002, o Cláudio Fonteles, então procurador-geral, me telefonou e disse que eu podia me promover por merecimento. Eu então rejeitei. Fui para Portugal para fazer um mestrado que podia ser transformado em doutorado. Porém, chegando a Lisboa, estudei onze dias e vi que os estudos seriam inúteis para o meu trabalho. Por isso, renunciei ao mestrado e voltei. Cuidei da CPI do Banestado e do caso contra o presidente do BACEN no governo Lula. E lutei por mais verbas para a educação. Até que eu fui promovido por antiguidade, em 2004. Tirei noventa dias de licença-prêmio e trabalhei todos os dias, para deixar limpo o gabinete, e me tornei procurador regional. Foi isso o que aconteceu. Na Regional, não podia mais abrir investigações e nem ficar com elas. Desde 2004, tenho excelente estatística e sempre trabalhei duramente para ajudar pessoas pobres e para mover o Estado contra criminosos ricos. O tal Augusto Nunes é bancado pelos anúncios das multinacionais. Não tem estofo ético para me criticar.

Com o que você tem trabalhado hoje na PRR1? Sente-se realizado com o trabalho?

Estou, sim, muito realizado. Tenho 31 anos de serviço público. Se o tempo extra da PEC de 98, que mudou o tempo de aposentadoria de trinta para 35 anos, for contado posso me aposentar daqui a uns quatro anos e pouco. A maior parte de meus pareceres é acatada pelo TRF, sempre a favor do humilde e do oprimido, e contra o opressor.

Eu me lembro que você esteve na Faculdade de Direito da UFMG em 2000 para uma palestra dirigida aos universitários. Eu, ainda estudante, estava na plateia. Naquela época, Luiz, você era um verdadeiro modelo de atuação para os jovens ‘idealistas’ que sonhavam em entrar no Ministério Público. Hoje, temos divergências praticamente inconciliáveis sobre parte das questões mais sérias de nossas vidas. Você concorda com Churchill, quando ele disse que quem não é socialista aos vinte anos não tem coração; e que quem continua a sê-lo aos cinquenta não tem inteligência?

Não concordo com essa conclusão de Winston Churchill. Ele era belicista, imperialista e neoliberal. Não é exemplo para ninguém. Tenho 52 anos, sou socialista católico, como era Alceu Amoroso Lima, como era Charles de Gaulle, que tem textos lindos de católico contra o imperialismo e o capitalismo — e outros. Ser socialista é ser favorável a uma economia mista, sem miséria, sem grandes fortunas privadas. O modelo da Bíblia, de Aristóteles, dos estóicos, dos Santos Padres. Odeio o capitalismo, o imperialismo e o latifúndio. E odeio também o capital monopolista privado. Eu tenho coração e inteligência e espero morrer como socialista católico.

Eu compreendo sua opção pelo socialismo… Mas, na sua opinião, o que aconteceria se pessoas como Margaret Thatcher, Winston Churchill, Ronald Reagan e os ‘fonding fathers’ americanos governassem todas as nações do planeta por cinquenta anos?

O mundo seria destruído. Pelo amor de Deus! O mundo iria bem se fosse governado por gente como Franklin Delano Roosevelt e outros. Reagan e Thatcher são pessoas banhadas em sangue, como assassinos, e o mesmo vale para Bush e outros.

Você foi seminarista da Ordem dos Jesuítas, não é? O que o modo jesuíta de viver a fé tem a ensinar aos demais cristãos de hoje e à sociedade de um modo geral?

Sim, fui. Ainda sigo em muitos pontos os textos e exemplos de Santo Inácio de Loyola, especialmente a forma de fazer escolhas, dos Exercícios Espirituais, e regras sobre a vida, da autobiografia de Santo Inácio. Tenho muito amor à Igreja e principalmente aos Jesuítas, mas também aos Franciscanos, Dominicanos, Agostinianos e outros.

Ainda sobre esse assunto, um comentarista disse de seu livro ‘Socialismo: uma utopia cristã’ que nele você “mostra de modo convincente que até a metade do século XIX o socialismo ostentava uma clara inspiração religiosa, especialmente cristã” e que “só depois do Manifesto de Marx e Engels é que o socialismo se afastou de suas fontes religiosas.” Na sua opinião, foi Karl Marx e Friedrich Engels que distorceram o Socialismo?

Marx e Engels, e principalmente Stálin, distorceram o socialismo. Socialismo é economia mista, com democracia política, cultural, econômica, difusão de bens, erradicação da miséria e das grandes fortunas privadas. Não é estatização de todos os bens e muito menos ditaduras.

Você se definiu como ‘socialista católico’. Acredita que o Socialismo compreendeu melhor que a Igreja a boa nova de Jesus Cristo?

Veja. Eu sigo a Doutrina Social da Igreja, numa versão que é chamada de socialismo católico. Sigo os ensinamentos da Igreja, e não de Marx, Engels, Lênin ou Stálin. Tenho ampla leitura sobre estes temas e sei distinguir o joio do trigo. Sou acima de tudo católico, e espero morrer assim, com a ajuda de Deus.

A propósito, os regimes comunistas mataram, no século XX, cerca de 100 milhões de pessoas. Nenhum regime comunista foi democrático. Diante disso, você se inclina a favor do livre mercado? O liberalismo econômico, limitado pela intervenção estatal moderada, não é o melhor regime já encontrado até hoje?

Eu sou contra o liberalismo econômico. Sou favorável à difusão de bens e a que todos tenham propriedades privadas. Mas seu uso deverá ser controlado pela ética e pelo Estado, como ensinaram Leão XIII, Pio XI, João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e também o Papa Francisco. Tenho veneração por todos os papas.

O governo de Cuba tem muita proximidade ideológica com personagens nacionais que estão entre os seus preferidos. Você já disse que é necessário que haja democracia e multipartidarismo em Cuba hoje. Acredita que o regime ditatorial de Fidel Castro foi um passo necessário a uma futura e eventual abertura política? Qual é o legado de Fidel Castro para o povo cubano?

O regime ditatorial em Cuba é errado. Deve haver democracia lá, tal como difusão da pequena e média propriedade. Estas são as lutas da Igreja lá, que eu apoio. Gosto de Fidel Castro como guerreiro que combateu o imperialismo. Fidel é pessoa inteligente. Nunca elogiei a falta de democracia e a falta de difusão de bens, pois Deus fez os bens para todos.

Mudando de assunto, Luiz, onde você passou sua infância? Lembra-se de ter sofrido, você, seus pais ou parentes próximos, com a ditadura militar?

Nasci em Brasília. Meu pai era homem pobre, forte, muito inteligente e veio entre os trinta mil que construíram Brasília, como candango. Vivi até os dezesseis anos na Vila Planalto, que era três vezes maior que hoje, tudo em madeira, muito pobre. Minha família não foi perseguida pela ditadura, exceto o General Bragança de Goiânia — não confundir com o General Bragança de MG. O General Bragança de Goiânia é de minha família, parente distante de minha falecida avó e muito amigo de meu falecido pai. Ele foi perseguido pela ditadura. Morreu com mais de noventa anos e jogava xadrez comigo. Além disso, uma família vizinha à nossa teve um filho preso em 1976. Participei de atos da Igreja, especialmente com os Capuchinhos, para soltar o coitado. Minha tia-avó, irmã de minha falecida avó, é freira, professora, de esquerda, como eu.

Quem são, na sua visão, os três maiores artistas de todos os tempos?

Eu sou ótimo em filosofia, literatura, história, economia etc, mas ruim em artes. Gosto de Michelangelo, Beethoven e Leonardo da Vinci, três bons católicos, a meu ver. Gosto de Victor Hugo. Mas gosto principalmente da Bíblia.

Onde o Luiz encontra seu lugar em Brasília? Viaja com frequência?

Eu só convivo com gente pobre, na Ceilândia, no Guará, no Bandeirante. E praticamente nunca viajo, pois odeio turismo.

Você lê com frequência escritores catalogados como ‘conservadores’: G. K. Chesterton, Platão, Cícero, Churchill. Para o filósofo Roger Scruton, “[c]onservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa é encontrar o que você odeia e tentar destruir”. Você concorda com ele? Acha que a sanha de destruir as coisas é uma constante da alma humana?

Chesterton não era conservador, era distributivista, como eu sou. O mesmo para Platão, Aristóteles e os estóicos. Já li bons textos de Churchill sobre a guerra, pois tenho boa leitura sobre estes temas, mas nunca gostei de Churchill. Tenho verdadeira veneração por Cícero, e mais ainda por Sêneca. Quem quer destruir é o Diabo, com os neoliberais. Eu quero ajudar Deus no esforço de criação e renovação do universo, como ensina a boa teologia.

O Brasil tem demonstrado desempenho insuficiente nos mais variados testes internacionais de educação. Você vê relação entre esse desempenho e a pedagogia de Paulo Freire? Em outras palavras, Paulo Freire é culpado pela má-educação dos brasileiros?

Paulo Freire foi o maior educador do Brasil. Não tem culpa alguma pela má educação. A culpa pela má educação é dos liberais.

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