Entrevista com Tarcísio Filho: “O mundo é muito grande para direcionar o barco para um só porto. O importante não é o chegar mas o caminhar.”

Um dinossauro assumido, Tarcísio Filho já foi prefeito municipal de Cataguases, MG, e procurador-chefe da PRMG por dois mandatos. Hoje, dedica-se ao trabalho em um dos ofícios criminais da capital mineira e diz contar em seu gabinete com dois dos melhores servidores do MPU.

Segundo ele, “administrar pressupõe gostar de gente. Ninguém pode realizar nada na administração se não consegue ouvir ou conversar com o próximo.” Apesar de sua experiência administrativa, e a despeito de continuar exercendo o magistério universitário, Tarcísio está hoje em sua fase monacal: “procuro fazer bem meu trabalho, mas não participando de nada mais”.

Sua experiência na administração pública, aliás, deu-lhe uma aguçada sensibilidade para os casos de defesa do patrimônio público. Segundo ele, nossa atuação nessa área deve ser cuidadosa, pois “muito do que fazemos aqui tem efeitos políticos evidentes e pode influenciar o próprio processo político, levando a instituição a ter um papel no jogo político que ela em princípio não pode ter.”

Entenda melhor esse corajoso posicionamento — e outros tantos — nessa nossa 34ª entrevista — na verdade um interessante ‘caminhar’ em direção a outras tantas descobertas de ontem, de hoje e de amanhã.

 

Antes de ser procurador da República, você foi prefeito municipal de Cataguases, MG. É uma trajetória inusitada, rara, no MPF. Sua experiência pretérita certamente o habilita a trabalhar com olhar clínico em casos de improbidade administrativa envolvendo prefeituras do interior do Estado. Que experiências traz daquela época? Você chegou a usar seus conhecimentos ‘do outro lado’ da trincheira?

Sim, fui prefeito de Cataguases entre 1993 e 1996, antes de assumir o cargo que por enquanto ainda exerço. Não acho que isso seja uma coisa inusitada e nem mesmo rara. Lembro-me, só para ficar num exemplo, que o douto subprocurador-geral João Batista, que durante muito tempo foi secretário-geral da instituição e um dos mais brilhantes Diretores da nossa ANPR, foi Prefeito de Queluz, no Estado de São Paulo.

Já pensei muito sobre essa experiência e tenho cada vez mais a percepção de que ela me dotou de algumas perspectivas que faltam aos colegas, muitos que só se preocupam em fazer a leitura literal das disposições que envolvem o atuar da Administração Pública. Não quero criar nenhuma polêmica aqui, mas não posso deixar de dizer, nesta perspectiva, que só uma compreensão dos limites da administração permite a construção de uma imputação suficientemente clara de um ato de improbidade ou de um ato ilícito.

Por tudo que experienciei, lá e cá, acho que devemos fazer uma leitura diária do inciso LVII do artigo 5º da Constituição, levando-o para além da esfera criminal. Sinceramente acho que ninguém, agente público algum, poderá ou poderia ser “considerado culpado até o trânsito em julgado” tanto da sentença penal condenatória, como também da própria ação que lhe impute ato de improbidade. Não podemos nos esquecer de que muito do que fazemos do lado de cá tem efeitos políticos evidentes e pode, no limite pior, influenciar o próprio processo político, levando a instituição a ter um papel no jogo político que ela não pode ter, em princípio, evidentemente, já que o correto Papel Político dela está em outra esfera.

É claro que no exercício profissional, qualquer que seja ele, ninguém pode deixar de ser o que foi. Assim, meu caro, já aproveitei muito de minha experiência, tanto de um modo como de outro. Agora, se isto é positivo ou negativo não sou capaz de avaliar.

Acho que vivemos um paradoxo hoje no país. Os prefeitos municipais que porventura busquem cumprir as leis geralmente são preteridos na indicação de convênios federais por meio de emendas parlamentares; e, como consequência disso, porque não levaram obras ou outras benfeitorias para a cidade, perdem o voto de seus eleitores. Acredita que a população em geral está preocupada com a corrupção com dinheiro público – ou o povo ‘quer ver obra’?

Boa pergunta. Há que se ter muito claro que o processo de destinação dos recursos públicos por meio de emendas pode funcionar de forma esperada ou pode dar causa a inúmeros tipos de ilícitos. Só para ficarmos em alguns exemplos, menciono aqui os recursos repassados pelo Ministério da Saúde e que foram objeto da publicamente conhecida “Operação Sanguessuga”. Lembro aqui das investigações que vocês em Governador Valadares fizeram e conduzem sobre a malversação dos recursos do Ministério do Turismo no bojo das “festas culturais” realizadas nos pequenos municípios e que, com certeza, aconteceram e acontecem em todo o país. Poderia citar outros exemplos, mas fiquemos nestes.

Alguém acha, pelo amor de Deus, que o processo de destinação de emendas vai ser alterado? Algum deputado vai propor mudanças num sistema que só existe para assegurar sua própria sobrevivência política. Veja bem: não estou dizendo Política, com ‘p’ maiúsculo. Ao contrário, o que se vê hoje é a implementação do chamado ‘orçamento vinculado’. De certo, aí, é que continuaremos a ter muito trabalho. Meu ponto, nisto, é que ficamos com todo o trabalho. Há ainda muitos colegas que entendem que a CGU deve continuar “sorteando” municípios pelo país e realizando o controle dos programas federais por esta “ponta”. O que não pensam é que o órgão foi estruturado para o desenvolvimento de ações de controle interno, que eram responsabilidade da finada Secretaria Federal de Controle Interno e que passou a atuar, na minha perspectiva, de um modo mais fácil. Afinal, pisar no rabo dos outros é muito mais fácil. Se se tivesse mantido o processo de controle interno eu não faria nenhuma consideração, mas acabaram com ele. E então…

Há uma outra observação necessária: o papel do administrador não se resume no ‘fazer’. Tão importante quanto fazer é impedir que se faça. Vou, neste ponto, lançar mão das observações do editor do jornal Uruguaio La Diaria sobre o período do governo Mujica naquele país: a realização de “balanços”, exige “separar esse balanço de outros cuja importância é inegável. Um seria um balanço global (…), outro seria o balanço do que o próprio Mujica fez ou deixou de fazer. Outro seria o balanço do que ele impediu que fosse feito ou deixou que fosse feito. Outro, ainda, seria o que ele desejou fazer e não pôde e, por último, há também o que ele pôde fazer, mas não quis fazê-lo”. Complicado, não?

Administrar, assim, é muito mais do que fazer e me parece que o próprio titular da soberania, no fundo no fundo, sabe disto muito bem. Voltando ao seu questionamento: a população, meu caro, na verdade quer, sim, “ver obra”, mas obra sem corrupção. Não tenho dúvida de que ela pensa assim. Em razão disso a nossa responsabilidade na condução de nossos procedimentos aumenta. No final de tudo, tenho a percepção de que ela aprende votando, aprende participando do próprio processo democrático, e estaria apta a assumir seu próprio papel político: controlar, através do próprio processo popular, o agir administrativo dos agentes políticos. Afinal, é ou não é ela o destinatário final de tudo o que fazemos e do que os próprios políticos pretendem fazer?

A esse propósito, você tem opinião formada sobre a regra de vedação de doações de pessoas jurídica às campanhas eleitorais? E sobre o financiamento público de campanha?

Não tenho opinião formada sobre a doação de pessoas jurídicas nos processos eleitorais. Aliás, acho que este é um falso problema. Em minha opinião, o que é fundamental, neste processo, é transparência ou, como queiram, a luz do sol incidindo sobre tudo. O eleitor precisa saber quem financia ou destina recursos para quem. Só assim o processo político poderia se desenvolver de modo isento, sem influências negativas; e só assim as escolhas seriam mais adequadamente conduzidas. No final, aqui também, trata-se de aprendizagem. Agora, no outro ponto, sinceramente, sou forçado a ser contra o financiamento público por uma razão muito simples: o financiamento privado vai continuar existindo. Alguém, sinceramente, acha que os interesses privados vão se afastar do processo político? Vão largar o osso? Sinceramente prefiro acreditar no coelhinho da páscoa.

Da última vez que a gente conversou você disse que seu gabinete não necessita de projeto de dinamização, pois já é dinâmico. Isso porque, na sua opinião, você tem dois dos melhores servidores do MPU. É um privilégio poder falar assim da equipe com a qual trabalhamos. Eu também tenho comigo três dos melhores servidores do MPU. No seu caso, eles estão com você hoje por conta do seu ‘olhar clínico’ para selecioná-los, por conta da formação que você deu a eles ou pela sua própria antiguidade?

Tenho tido muita sorte com aqueles que me auxiliam. Não só aqui, mas na política também foi assim. Procuro transformar o ambiente em que desenvolvo minhas atividades em um ambiente tranquilo, adequado para que tudo se dê como se deve. Acho que você também deve ser assim, pois já o ouvi falando de Josémaria Escrivá. Tento, com isto, formar uma relação produtiva com aqueles que me rodeiam, e sei que com isto eu acabo aprendendo e me aperfeiçoando mais do que eles. E é isto o que pretendo fazer sempre: aprender. Sinceramente, Bruno, quem me conhece de fato sabe disto: minha melhor característica pessoal é ter a certeza de que ninguém sabe ou pode saber tudo, dominar tudo em qualquer ramo do conhecimento, muito menos no âmbito da convivência pessoal. Não sei nada e estou sempre disposto a aprender, a conversar e a construir, de modo conjunto, o que for preciso para melhorar nossos ambientes. Talvez nisto esteja a resposta para o que acontece com meu gabinete.

Agora, não sei dizer se minha equipe atual foi resultado de escolhas pela antiguidade ou pelo meu olhar clínico. Só tenho certeza de que aprendo sempre com os dois, Toninho e o Sérgio, como aprendi com os outros que trabalharam comigo.

A perspectiva de ir para a Procuradoria Regional da República não o atrai?

Sim, atrai muito. Desde que seja para a Segunda Região. O problema que me impede de seguir caminho e abrir espaço para os colegas que ainda pretendem chegar a BH é de natureza familiar. Ninguém lá em casa quer mudar. E sozinho, meu caro, não vou a lugar nenhum. Isto significa que a Flavinha vai continuar ainda por muito tempo no Mato Grosso.

O pouco que convivemos me deu uma sensação de que você não é adepto das etiquetas contemporâneas. Um amigo meu diria que você ‘não usa creme hidratante e não faz questão de ser educado com todos, não fala manso, nem leva desaforo para casa’. Entre os homens, é um perfil em franca extinção, concorda?

Concordo. Me sinto um dinossauro. Fazer o quê? Prefiro não ter nenhum amigo aqui dentro do que deixar de ser franco. A hipocrisia que vejo é algo que não consigo aceitar nem muito menos levar para casa. Até porque, meu caro, ela não leva a lugar nenhum, nem pode fazer do hipócrita o que ele pretende ser. Tenho me afastado muito do dia a dia da Procuradoria, procurando fazer bem meu trabalho, mas não participando de nada mais. Veja que na última vez em que tentei voltar não consegui nem mesmo os votos suficientes para ser Coordenador de Estágio da PRMG. Aliás, você votou em quem?

Rapaz. Não me lembro…

Pois é. Acho que vou continuar enterrado. Minha expectativa, aí, é de que as coisas, mesmo com meu pessimismo, acabem acontecendo e possamos prestar à sociedade o serviço de que ela precisa.

O que o diverte no trabalho e fora dele?

No trabalho gosto dos desafios. Fora do trabalho, de tudo o que me permita aprender.

Você foi procurador-chefe da PRMG por dois mandatos. Quais são as maiores dificuldades do exercício dessa função administrativa e quais as maiores delícias?

As delícias estão nos contatos pessoais com todo mundo. Sempre entendi que administrar pressupõe gostar de gente. Ninguém pode realizar nada na administração se não consegue ouvir ou conversar com o próximo. Muita gente acha que pode administrar numa torre de marfim; e o resultado, neste caso, como temos visto, é o desgaste das relações pessoais, sejam elas profissionais — o que atinge até o andamento do serviço –, seja as de amizade, que deixam de existir.

As dificuldades, meu caro, já mencionei: estão nas hipocrisias dos que pensam poder ser o que não são, vendendo uma imagem pessoal longe daquilo que na verdade são.

Você é professor universitário. Que disciplinas você leciona e o que tem tratado de modo especial com seus alunos?

Tenho lecionado Introdução à Economia, Direito Administrativo e Direito Ambiental. Me sinto confortável em qualquer disciplina do direito público mas não costumo negar desafios. Acho, sinceramente, que nestas ocasiões temos uma grande oportunidade de aprender. Em sala de aula — comigo pelo menos é assim –, eu nunca ensinei mais do que aprendi. E é exatamente por isto que continuo lecionando.

Como assim, Tarcísio? Eu sempre escuto isso de ‘aprendo muito com meus alunos’. Mas não deveria ser, essencialmente, o contrário? Eu sei que nunca deixamos de aprender com tudo e com todos. Mas um aluno que aprendeu menos com o professor do que o professor aprendeu com ele não ‘ficou no prejuízo’?

Claro que não! Os professores, todos, aprendemos sempre com os alunos! Até porque a docência tem uma inevitável relação dialógica com a discência. Veja que um questionamento qualquer de um aluno pode levar a novas perspectivas teóricas. Pelo menos tem sido esta minha experiência. E é por isto que gosto cada vez mais de lecionar. Permita-me lembrar um epigrama da Cecília Meireles — é o de n. 10 do livro ‘Viagem’ –, que termina com estes três belíssimos versos: “sem levar dessa trajetória / nem esse prêmio de perfume / que as flores concedem ao vento”. É assim na vida que temos. É assim na relação com os alunos.

Uma última pergunta: se sua vida fosse uma embarcação em pleno mar, em que direção você considera estar indo hoje?

Muitos colegas gostariam de me ver respondendo a esta questão dizendo que a embarcação está indo para o fundo do mar. Mas a verdade é que este mundo é muito grande para direcionar o barco para um só porto. Acho que o importante não é o chegar mas o caminhar.

 

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