Entrevista com João Felipe Miu: “A criatividade e a arte são expressões nobres do espírito. É onde nossa imagem e semelhança de Deus ficam mais evidentes”.

João Felipe Miu, atualmente lotado na PRM Nova Friburgo, é, como muitos de nós, um incansável estudioso. Reconhecendo que sua ‘juventude’ profissional naturalmente limita, ainda hoje, sua perspectiva, João Felipe falou nesta entrevista sobre as recentes mudanças na nossa estrutura administrativa: a criação da assessoria do PGR e a nomeação de procuradores para funções administrativas, apesar de indispensáveis à melhoria de nossa atuação, trazem um risco de ‘aristocratização’ da carreira e da perda de objetividade em decisões funcionais que envolvam os procuradores.

Leitor do filósofo Olavo de Carvalho, a quem conheceu pessoalmente, imagina que ainda não haja ninguém capaz de fazer um juízo qualificado sobre a sua vasta obra. Segundo acredita, isso acontece porque Olavo dialoga com autores sobre os quais, aqui, ninguém leu e, principalmente, sobre os quais ninguém refletiu. A admiração de João Felipe pelo filósofo se evidencia na resposta à nossa última pergunta: eis um interessante exemplo do chamado ‘conhecimento por presença’, como concebido pelo professor.

Refletindo sobre uma passagem das Confissões de Santo Agostinho, João Felipe diz que só ‘descansa’ realmente quando percebe que está agindo como Jesus agiria: “É quando percebo que estou, ainda que um mero milímetro, mais parecido com Jesus. Nesse instante o descanso é total e a existência é plena”.

Chegamos, enfim, à nossa 30ª entrevista, permeada de reflexões agudas e de um bocado de sinceridade.

Na apresentação que fiz a este site de entrevistas, disse que percebia em nossos colegas uma sensação geral de pessimismo com a carreira. “Já foram maiores no passado, as suas esperanças…”, disse então. Eis que em pouco mais oito meses muita coisa mudou no MPF: temos hoje reconhecidas, por lei ou por decisão judicial, diversas reivindicações administrativas e remuneratórias muito antigas, o PGR criou a tão-esperada assessoria de procuradores em seu gabinete, a Operação Lavajato tem dado uma visibilidade muito positiva à nossa instituição. Já não temos hoje tantos motivos para o pessimismo. Acredita que poderíamos aproveitar esse bom momento para pautar ou resolver alguma grande questão que possivelmente esteja adormecida em nossos escaninhos institucionais?

Tenho grande amor pela nossa instituição. Aqui fui estagiário por dois anos, analista processual por oito meses e completei em 2014 seis anos como PR. É ainda uma condição de ‘jovem’, que coloca limitações naturais à minha perspectiva. Mas enxergo duas questões importantes e atuais, que precisam ser enfrentadas para o amadurecimento da instituição. Primeiro, seria um risco do que chamo de ‘processo de AGUzição’ da carreira. Algumas estruturas novas, que são indispensáveis à melhoria da atuação do MPF, como a assessoria do PGR e designações de mais membros para funções administrativas, trazem consigo o risco de ‘aristocratização’ da carreira e a perda de certa objetividade em decisões funcionais que envolvem membros. É uma degeneração que acomete instituições como a AGU e alguns MPs estaduais, onde os laços pessoais, o ‘carreirismo’ e o marketing pessoal adquirem um peso muito maior do que o natural e passam a corromper valores institucionais estruturantes, como a democracia interna. No plano da atividade-fim, a consequência geral será grave: os procuradores da República serão estimulados a buscar uma atuação funcional cada vez mais voltada ao interesse próprio, pequeno, e não ao interesse maior da sociedade, republicano, que dá nome ao nosso cargo. É um risco que enxergo.

O outro ponto não seria um risco, mas um aprimoramento, e também se relaciona com a democracia interna. O MPF precisa debater melhor como faz a formação das suas ‘vontades’ institucionais nos assuntos que envolvem acirrada polêmica na sociedade. Não digo em relação ao exercício das competências do PGR, por óbvio, que segue, digamos, um regime presidencial e que tem na eleição via lista tríplice sua fonte de legitimação e momento de debate. Falo da posição das câmaras de coordenação e, especialmente, dos grupos de trabalho e participação em conselhos, em temas como aborto, redução da idade penal, desarmamento, ensino religioso, ação afirmativa, política LGBT, criminalização de discurso, entre muitos outros. A meu ver não é possível fingir que esses assuntos não permitem diferentes e até opostas leituras do ordenamento jurídico, a depender da cosmovisão de cada um. As visões são às vezes tão opostas que aquilo que para um discurso pode ser um direito fundamental ‘novo’, para outro discurso pode ser uma violação constitucional. Como formar a vontade da instituição nesses casos? Como ela vai se portar nos debates públicos? Vou dar um exemplo. A PFDC teve até 2012 um GT de ‘direitos sexuais e reprodutivos’, que tratava de alguns assuntos polêmicos como aborto e prostituição. Como esse GT foi formado? Como foi a seleção de seus membros? Havia pluralidade de visões na composição do GT? Foi buscada a participação de diferentes visões com representatividade social? São questões que precisam ser pensadas. E acho que nessas questões precisamos criar soluções similares às do parlamento. Ali, é assegurada a participação de todos os partidos, na medida de sua representatividade. Essa seria uma forma de evitar a alienação da instituição em relação à sociedade civil, que não pensa univocamente sobre essas questões. E inibe-se também a instrumentalização pura e simples de nosso órgão por grupos de pressão e de militância política.

Na última vez que conversamos você estava lendo ‘The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution’, de Shulamith Firestone, que você considera uma obra central para compreender a ideologia de gênero defendida por movimentos radicais de hoje. Qual é a tese defendida pela autora e como, na sua visão, ela criou raízes nos grupos de feministas atuais? Acredita que a leitura desse livro faria bem aos colegas do Ministério Público?

Shulamith Firestone pertence à segunda fase do movimento de liberação feminista, com viés radical, que, a partir da década de 80, passou a dominar o feminismo como movimento político. A terceira fase é liderada no plano intelectual por Judith Butler. Estudar tudo isso é muito interessante para quem gosta de política e se preocupa com o futuro de nossa sociedade.

Note: hoje já é difícil encontrar representantes do feminismo clássico, que se propunha, muito justamente, a buscar isonomia no tratamento legal e econômico entre a mulher e o homem. Em boa parte essas conquistas já vieram e causaram profundas mudanças sociais. Mas o movimento feminista de hoje, radicalizado, tem propostas muito diferentes.

Em ‘The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution’, Firestone faz uma releitura da luta de classes marxista para opor homens e mulheres e ensina que a ‘revolução feminista’ passa necessariamente pelo controle dos meios reprodutivos. A família biológica e a maternidade são vistos negativamente, porque fontes de dependência da mulher em relação a seu opressor, o homem. Daí a centralidade do aborto. O aborto e o avanço da tecnologia seriam meios eficazes de neutralizar as condições biológicas da mulher que produzem dependência em relação ao homem. É uma tese meio grosseira, eu diria, mas que moldou e molda a mente das feministas de hoje.

Numa leitura pessoal, é também exemplo evidente de crença gnóstica, de que fala Hans Jonas e Eric Voegelin. A mulher viveria ‘aprisionada’ na sua condição biológica e o conhecimento iniciático revolucionário promoverá sua libertação. A leitura desse ‘manifesto’ ajuda a desmistificar os motivos por que o feminismo de hoje tem no aborto e no ataque à família biológica sua luta primordial. A ‘saúde pública’, por exemplo, não está entre as preocupações desse movimento, embora a propaganda diga que está por motivos táticos bem conhecidos para quem estuda ação política e marxismo.

Por trás de muitas das bandeiras defendidas por uma minoria hoje, bastante diferentes entre si, como o feminismo, gayzismo, liberação de drogas, política de cotas raciais, defesa da pedofilia, está geralmente a tentativa de criar tensões entre grupos de interesse, em prejuízo de uma relativa coesão social e frequentemente com prejuízo a grupos tradicionais. E nesse barco têm ingressado muitas pessoas desavisadas. Acredito que você consiga enxergar essas contendas pelo ponto de vista espiritual. Nesse sentido, o que está em jogo nesses embates?

Esse é um tema sobre o qual já vi você esboçar algo na nossa rede de procuradores. Suspeito que você possa falar sobre ele bem melhor do que eu. Posso lhe devolver a pergunta?

Prometo que ainda escreverei algo sobre isso…

Bem. O que você chama de pessoas ‘desavisadas’, acredito, tem um nome mais ‘técnico’ em ação política, digamos assim. É o chamado ‘useful idiot‘ ou idiota útil. É a pessoa que acaba por promover determinada agenda política contrária a seu modo de vida e valores, por ignorância, capturado que foi pela propaganda e estratégia do grupo de pressão. Esse termo não tem uma conotação de menosprezo, não. Foi cunhado no período de Stálin para designar intelectuais e artistas ocidentais que serviam inconscientemente à política soviética. Ernest Hemingway é um grande exemplo. O termo é técnico no sentido de que exprime fielmente uma realidade, que, no Brasil, passou a ser a regra dos últimos trinta anos ou mais. Afinal, como pode uma sociedade em que prevalecem valores tradicionais, como família, vida, liberdade de expressão, economia de mercado, ver avançar em tempo recorde a agenda de grupos que são contrários a esses valores ou que se omitem nas políticas públicas que os defenderiam?

Os exemplos são muitos. Boa parte de meus amigos, pessoas que vivem para suas famílias e filhos, que compartilham valores tradicionais, acreditam na economia de mercado, muitos cristãos sérios também, até pouco tempo atrás votavam em candidatos do PT, PSOL e PCdoB. É só você estudar minimamente o programa desses partidos e verá que a agenda deles é incompatível com esses valores. O programa do PSOL, por exemplo, segue uma cartilha pré-queda da União Soviética, para quem sequer a social-democracia serve. Mas por que o PSOL ainda ganhava votos de pessoas conservadoras? Porque, assim como o PT e outros partidos de esquerda, soube usar a propaganda do ‘monopólio moral’ a seu favor. Então o cara é contra o aborto, defende a família e a liberdade de expressão, investe na bolsa de valores, e vota no Chico Alencar, que é um político que sabe usar bem a imagem da ‘moralidade’ em prol de uma plataforma revolucionária e de engenharia social. Esse eleitor conservador não percebia que, com esse voto, fortalecia políticas radicalmente contrárias a seu modo de vida e valores. Minha cunhada, por exemplo, votou no Chico Alencar em 2010, e elegeu quem na rebarba? O Jean Wyllys. Nada contra o Jean Wyllys. Ele tem seu lugar na democracia, muito importante até. Tem que defender os interesses da minoria que representa, com toda a legitimidade. O que ele não pode é ser eleito com voto conservador, porque aí é disfunção político-eleitoral.

Mas essa disfunção está acabando. As eleições de 2014 provaram isso e o novo voto da minha cunhada também… E posso dizer que isso só foi possível a partir da ‘ressurreição’, digamos assim, do pensamento conservador no Brasil. Do pensamento conservador verdadeiro, tenho que dizer, não aquele que a esquerda gostaria que fosse. Estou falando de autores como Edmund Burke, Eric Voegelin, Russell Kirk, Roger Scruton, Rosenstock-Huessy, Michael Oakeshott, Raymond Aron, entre muitos outros. E o intelectual por trás dessa ressurreição no Brasil se chama Olavo de Carvalho.

Por falar nisso, como você entrou em contato com a obra do prof. Olavo de Carvalho? Além de ser o veículo dessa ‘ressurreição’, o que a obra dele representa para você hoje?

Para conhecer a obra do Olavo de Carvalho é preciso lê-lo. Eu comecei casualmente a ler os artigos dele aos sábados no ‘oglobo’, por volta de 2001. Nessa fase eu estagiava no BNDES, que volta e meia trazia para palestras internas economistas liberais como Armindo Fraga, Gustavo Franco, entre outros. Era a época em que os estudantes bradavam o slogan ‘Fora FHC, fora FMI’. Eu nasci em berço pedetista de Brizola. Meus pais eram filiados e me levavam a comícios vestido com lenço vermelho de gaúcho. Não é piada não! Na escola, como foi a regra para minha geração, ouvia dos professores o discurso corrente de esquerda. Meu professor de história falava russo e o de geografia, lembro-me bem, fez-nos ler um livro sobre a queda iminente do império americano. Imagina! Então é claro que cheguei à faculdade nutrindo previsível carinho pelo socialismo e as ideias de esquerda.

Mas no BNDES e a partir de bibliografias tiradas dos artigos do Olavo de Carvalho comecei a ler mais autores liberais e conservadores. Antes disso já tinha lido alguns padres da Igreja e, sobre todos eles, Santo Agostinho. Então a associação foi meio bombástica mesmo. Você lê Confissões de Agostinho, percebe o valor de ser honesto consigo mesmo e perante Deus, e depois você lê Olavo de Carvalho, Eric Voegelin, Raymond Aron. Pronto. É inescapável. O Olavo de Carvalho é o maior educador do Brasil há pelo menos vinte anos. Para mim ele foi a interlocução necessária para compreender e superar anos de doutrinação progressista que recebi em casa e na escola. Simples assim.

Mas, então. O prof. Olavo é muitas vezes ridicularizado por suas posições políticas e pelo modo como as expõe (e principalmente expunha no extinto programa semanal de rádio TrueOutspeak). Chamam-no de autoproclamado filósofo, ex-astrólogo. Consideram-no mal-educado e desinformado. Apesar disso, sua atividade como filósofo e professor já cativou pelo menos duas gerações de pessoas e é, individualmente, como você mesmo acabou de falar, responsável por uma renovação intelectual, e também editorial, provavelmente sem precedentes no Brasil. Até aqui estamos de acordo?

Plenamente de acordo. Eu tive o privilégio de acompanhar esse processo que chamei de ‘ressurreição’ conservadora desde 2001. E a renovação é assustadora. Ainda mais assustador é que o Olavo de Carvalho fez isso praticamente sozinho, como verdadeiro franco atirador, sem nenhum posto universitário, sem partido político por trás, nada. Impressionante. Como foi possível? A resposta é: foi possível porque ele é um intelectual de envergadura, escritor de alto nível e que sabe quem é, de onde está falando e em que momento vive. Pude conhecê-lo pessoalmente e você vê um sujeito completamente à vontade, sem afetações, que não deve nada a ninguém e não precisa agradar a ninguém, a nenhum grupo. Isso dá uma liberdade incalculável para refletir sobre qualquer assunto, sem preconceitos e compromissos, o que é quase impossível de se fazer na condição de professor universitário no Brasil, por exemplo.

Sim, porque desse modo o pensamento não encontra fronteiras de investigação. Quem é livre vai investigar seriamente qualquer e todas as coisas, sem reservas, de filosofia à religião, de teoria quântica a astrologia, de teoria literária à sociologia ou a algum campo inominado do saber. Não vai se deter por prestígio intelectual nem se deixará iludir pelos limites evidentes dos métodos matematizantes. Agora, o trabalho do Olavo de Carvalho só foi possível porque existia um vácuo na circulação de ideias no Brasil, que deixou de publicar autores conservadores após a redemocratização, quando a esquerda já tinha monopolizado o debate universitário e as redações de jornais. Eu sou testemunha disso. Em 2001 ou 2002, fui à Bienal do Livro no Rio de Janeiro. No estande da UNB havia uma estante meio escondida e, na prateleira mais baixa, livros em saldão com preço a dois reais. Lá estavam diversas obras da coleção ‘amarela’ de pensamento político da UNB, publicada na década de 80, entre elas ‘Nova Ciência da Política’, de Voegelin. Foi sintomático. Hoje você não compra esse livro, usado, por menos de cem reais. A minha modesta biblioteca deve ter quintuplicado de valor nesse período!

A minha impressão é a de que daqui a cinquenta anos o prof. Olavo continuará a ser lido, como filósofo e como analista político. Você imagina algum brasileiro atualmente vivo que terá esse mesmo tratamento?

Certamente será lido. E serão necessárias obras para entender isso que hoje eu chamei de ‘ressurreição’ conservadora. Ele é a peça maior dessa renovação. Vem dele a crítica cultural que tornou possível ver o quanto empobrecidas culturalmente se encontram as gerações nascidas no país a partir da década de 70. Mas o tamanho e a envergadura do Olavo de Carvalho só poderão ser medidos após a sua morte. Atualmente tenho a impressão de que não há no Brasil gente apta a fazer um juízo qualificado da obra dele. Afinal, como julgar um pensador que dialoga com autores sobre os quais ninguém leu e, principalmente, ninguém refletiu nestas terras?

Um professor respeitado que me é próximo, de esquerda, disse que ignora Olavo de Carvalho porque ele não tem interlocutor na academia. O que ele não compreendeu é que para toda a esquerda nacional o Olavo de Carvalho é a interlocução! E, claro, esse professor nunca ouviu falar, por exemplo, do interessante debate que Olavo teve com o sociólogo russo Alexandre Duguin, convertido em livro. É o que eu disse antes: não se pode conhecer o autor sem lê-lo.

Mudando de assunto, imagino que reconheça, como cristão, que nossa carreira nos submete a algumas ‘tentações específicas’. Na sua opinião, a que dificuldades essa condição nos expõe especificamente?

Você faz perguntas agudas, meu camarada! Eu acho essa questão importante, porque não vejo muito na nossa carreira essa reflexão sobre os modos de atuar, riscos, abusos, limites. Quem atuou em PRM sabe muito bem quanto poder temos como procuradores. Às vezes isso não é sentido em algumas capitais. Mas nosso ofício é essencialmente ‘exercício de poder’. A Operação Lavajato é prova disso. Afetou todo o país, da economia à política. E todo exercício de poder deve ser feito, no regime democrático, dentro de padrões democráticos, plurais, com reverência à lei positivada, à ordem jurídica, cuja conservação é nossa função institucional, expressa no art. 127 da Constituição de 1988. Leia lá.

Vejo em alguns colegas a tentação de misturar uma agenda política pessoal, frquentemente de cunho revolucionário ou de direito alternativo, com as funções do cargo. Deixam de ser procuradores para serem militantes políticos investidos em um cargo de Estado. Então a primeira tentação seria essa, da ‘militância’, do abuso político do cargo, de viés autoritário. Essa militância costuma vir associada a um sentimento de tipo messiânico. A pessoa está ali para salvar a República. Isso é muito perigoso, porque o sujeito com inspiração messiânica se acha acima do bem e do mal e enxerga a ética na atuação e a pluralidade na sociedade como empecilhos, entraves, e não como limites saudáveis ao poder. A militância também é o que permite que o poder de Estado exercido pelo MPF seja instrumentalizado para atender a interesses de grupos de pressão, numa espiral autoritária que inibe o debate público mais amplo e o amadurecimento democrático da sociedade.

A propósito, através de um colega que convidei para participar destas entrevistas, conheci parte do pensamento do sociólogo Hans Joas. Esse senhor diz que “Os direitos humanos são fruto, principalmente, de resistência contra a aliança de poder entre Estado e Igreja ou contra o cristianismo como um todo”. A noção que está por trás dos direitos humanos hoje dá margem a esse tipo de pensamento, que tem conquistado muitos colegas. A PFDC, onde até há pouco se concentravam as questões sobre direitos humanos no MPF, é na sua opinião um espaço plural?

Acho que já falei sobre isso aqui anteriormente. O MPF precisa debater como fazer esse ajuste democrático interno, que atenda mais à pluralidade de posições do que a um ‘dirigismo’ constitucional previamente dado, baseado em um ‘projeto de sociedade’ cujo dono não é a sociedade real, viva, que está lá fora, mas grupos e elites organizados. Esse ‘dirigismo’ hoje é sinônimo de autoritarismo e isso vai ficar cada dia mais evidente para a opinião pública. Ou criamos soluções democráticas para lidar com a pluralidade e espelhar melhor a sociedade, ou não vamos estar aptos a cumprir adequadamente nossas funções.

Mas sou otimista. Acho que já há iniciativas nesse caminho, como o chamamento para GTs da 2ª CCR, ainda sob a Raquel Dodge, creio, e a possibilidade de votações eletrônicas temáticas. Também tenho extrema admiração pelo Aurélio Rios, nosso atual PFDC, em quem vejo muita sabedoria para lidar com a pluralidade. Há pessoas mais radicais, sim, militantes até. Mas temos pessoas na cúpula com enormes qualidades, pessoais e profissionais, para planejar o futuro da instituição em conformidade com os interesses da sociedade. Não creio que nenhuma forma de autoritarismo, aberto ou velado, irá prevalecer no MPF. Vamos acompanhar.

Há um tempo você estava lendo o filósofo alemão Eric Voegelin. O que a obra dele lhe mostrou ou lhe tem mostrado?

Voegelin é autor de uma obra vasta. Posso falar com pouco mais propriedade sobre a leitura que ele fez da modernidade, como processo de imanentização de inspiração gnóstica e milenarista. Sem compreender o gnosticismo e o milenarismo não se pode compreender adequadamente a modernidade e os movimentos políticos dos últimos três séculos.

Mudando de assunto, onde você passou sua infância? Que semente plantada naquela época gera frutos ainda hoje, e qual, porventura, não chegou a tanto?

Passei minha infância no interior, em Petrópolis. Tive uma infância muito livre. Meu irmão, minha irmã e eu brincávamos na rua, por todo lado. Minha mãe sempre pregou liberdade com responsabilidade, incentivando muito nossa criatividade. Ela foi professora de música por algum tempo, mas depois largou, infelizmente. Cresci valorizando a criatividade e a arte, como expressões nobres do espírito. É onde nossa imagem e semelhança de Deus ficam mais evidentes. Uma semente plantada que espera por gerar frutos é a artística. Ainda não a explorei na medida de que recebi. Com meus filhos agora isso vem mudando. Aqui em casa minha esposa e eu estamos sempre encenando personagens divertidos para interagir com as crianças. Quando eles crescerem mais um pouco vamos montar jogos teatrais. Vai ser divertido.

Santo Agostinho, talvez querendo dar a entender que todos nascemos com determinadas habilidades e que colocá-las em prática é algo inerente ao nosso ser, disse que algo como ‘o nosso lugar é o nosso descanso’ (Confissões, Livro XIII, Capítulo 9). Isso toca de perto o tema de vocação. Nossa vocação é o nosso descanso. Pensando nisso tudo, pergunto: qual é o ‘sofá da sua vida’, João? Onde é que você, dedicando-se a algo, efetivamente encontra descanso?

Não conhecia essa frase de Santo Agostinho. Vou meditar mais sobre ela. Vocação é um tema central na vida. Deus nos chamou, vocacionou, para sermos semelhantes a Cristo. Jesus não era apenas carpinteiro; era filho, irmão, professor, conselheiro, pastor, médico. Acho que só descanso realmente quando percebo que estou agindo como Jesus agiria, independentemente do que esteja fazendo. É algo mais fácil de explicar para quem crê. É quando percebo que estou, ainda que um mero milímetro, mais parecido com Jesus. Nesse instante o descanso é total e a existência plena. Paradoxalmente, é quando nossa personalidade fica mais nítida, um pouco mais livre das sombras que a encobrem. Se pudesse me reportar a um texto para tentar explicar esse ‘lugar’, seria o último capítulo de ‘Cristianismo Puro e Simples’ de C. S. Lewis.

Tenho feito esta pergunta a outros colegas: Se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá?

Além de poder ver o Fluminense tetracampeão mundial e o Brasil devolver o 7×1 sobre a Alemanha?! Eu espero poder convidar o jovem a passar um dia comigo, com minha família e com meus amigos de muitos anos, e a voltar a me perguntar novamente no fim do dia, se ele ainda achar necessário.

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“A perda de nossas legítimas vantagens remuneratórias representou no passado uma perda na qualidade no recrutamento. E qualquer instituição é tão boa quanto as pessoas que a compõem.”. Veja nossa entrevista com Tomaz Leonardos.

Houve um tempo em que, no Rio de Janeiro, os procuradores da República trabalhavam ao lado da fábrica da cervejaria Antártica, “com cheiro forte de cevada fermentando nos tanques”. “Éramos nós, uma máquina de escrever Remington, uma secretaria e uma estagiária para cada procurador”, diz Tomaz Leonardos, testemunha viva da época.

Carioca de ascendência grega, um ‘jurássico assumido’, Tomaz prestou um único concurso em toda a sua vida: o famoso concurso de 1984, que congregou na mesma lista de aprovados o atual PGR Rodrigo Janot e dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa.

Embora sua família não tenha sofrido represálias direta ou indiretas na época do Regime Militar, Tomaz acredita que ter crescido na época da repressão “nos fez meio alienados da política, até porque era muita censura, desinformação e ufanismo”.

A memória de Tomaz é um depósito vivo — de casos novos e de casos ‘nem tão novos assim’. Por essa razão e por outras que logo ficarão claras, é uma satisfação tê-lo como nosso entrevistado neste 29º dedo de prosa.

Como foi sua formação antes de entrar para o Ministério Público?

Eu sou carioca criado em Ipanema na década de 1960, quando as praias eram limpas e, segundo Nelson Motta, ‘Ipanema era a sucursal do Paraíso’€ — frase lapidar que me marcou do seu ótimo best seller ‘Ao som do mar e à luz do céu profundo’. Sou flamenguista de formação católica. Estudei no Colégio Santo Inácio. Depois, fiz Direito na UERJ e Administração de Empresas na Faculdade Cândido Mendes. Na juventude, gostava de ler, de remar de caiaque, de andar a cavalo na Serra dos Órgãos e de nadar. De certa feita, nadei numa final emocionante de Campeonato Carioca de Natação pelo Flamengo com sunga rubro-negra e com a Torcida Jovem, a Charanga do Mengão e a Flamante presentes e umas dez mil pessoas assistindo lá no Vasco. O Djan Garrido Madruga, que representava o Fluminense, ganhou disparado, óbvio. Depois ele foi medalhista de bronze nas Olimpíadas de 1980, em Moscou, em um tempo bom, que não havia nadador bombado. O cara era um fenômeno.

Fiz o curso da Cultura Inglesa completo e o da Aliança Francesa também. Um dia colegas recém-formados da UERJ me falaram no Centro do Rio que estavam abertas as inscrições para o MPF. Fui lá e me inscrevi, achando que não tinha nenhuma chance. Desde novo sonhava em ser advogado, pois muito admirava meu avô Thomas Leonardos, ex-conselheiro federal da OAB, presidente do IAB e cônsul da Grécia. Era jurista e autor de várias obras de Direito da Propriedade Intelectual e atuou como advogado e consultor jurídico de personalidades famosas do passado, como Oswaldo Aranha, Carlos Lacerda e Aristóteles Onassis. Esse último o contratou, já que grego só confia em grego, para defender seus interesses na América Latina. E assim prossegui, com pouco tempo para estudar, uma vez que já trabalhava no escritório de marcas e patentes da família.

Fiz o concurso do MPF de 1984, que começou em 1983, e passei, para minha própria surpresa, com apenas 25 anos e com apenas dois anos e meio de formado. Na realidade foi pura sorte. Caiu na prova exatamente tudo o que estude. Coisa do destino. Era para ser. Foi o único concurso que fiz em toda a minha vida.

Quando você entrou na carreira, vocês eram pouco mais de cem procuradores da República em todo o Brasil. Como era a interlocução com os colegas? Todos se conheciam pelo nome?

Sim, Bruno, éramos pouca gente nos quadros e muito serviço. As procuradorias da República nos Estados eram como compartimentos estanques e só existiam nas capitais. Não havia ainda a interiorização da Justiça Federal. Na década de 80, nós mal víamos ou conversávamos com colegas de outros Estados e com os da PGR. O nosso Encontro Nacional de Procuradores da República nem existia naquela época.  A instituição engatinhava e buscava novos caminhos para atuar e se afirmar. Em 1985 veio a lei da ação civil pública. Mas era confuso. Estávamos atrelados à estrutura do Executivo e estávamos subordinados de certa forma ao Ministro da Justiça. Não havia ainda nem a inamovibilidade nem a independência funcional ampla que veio com a Constituição de 1988. Colegas antigos que em mandado de segurança ousavam dar pareceres contra a União na época do regime militar chegaram a ser ameaçados, por Brasília, de remoção para outros Estados menos palatáveis. Pelo menos foi isso o que ouvi.

Com relação à minha pessoa só sofri pressão uma vez. Veio da chefe da Censura Federal, a famosa Dra. Solange Hernandez, que me ligou irada, pois eu me recusava a recorrer, como advogado da União, de liminares de liberação de filmes que haviam sido totalmente censurados. Os pareceres dos censores da Polícia Federal eram tão ridículos que todos nós ríamos muito ao lê-los. O sujeito botava lá “esse filme agradaria muito a uma plateia de degenerados e pervertidos”. Tem que rir. Cinema só entra quem quer e quem compra ingresso. E a censura tem que ser classificatória. Óbvio.

Você entrou na PRRJ com apenas 25 anos e com isso era o procurador mais novo da sua geração. Ao entrar no MPF, você sentiu algum desconforto em razão da idade?

Na verdade, não. Nunca fui discriminado por ser o mais novo. Fomos recebidos aqui de braços abertos pelos colegas antigos, Carlos Roberto Siqueira Castro, Alcir Molina, Alcides Martins e Paulo César Espírito Santo; e também pelos nomeados sem concurso que ainda estavam na ativa à época, José Naufel, €“dicionarista gentil e corcunda, Carlos Geminiano, Vicente Saraiva e Celso Passos. Nessa foto aqui, de 1984, estamos eu e o procurador-chefe da PRRJ na época, Carlos Roberto Siqueira Castro. Isso foi na nossa posse no Rio de Janeiro.

Carlos Roberto Siqueira Castro, então procurador-chefe da PRRJ, e Tomaz Henrique Leonardos, procurador da República recém-empossado (1984)

Aqui nessa outra está o PGR Inocêncio Mártires e o presidente do STF Min. Cordeiro Guerra, que nos prestigiou na cerimônia de posse.

PGR Inocêncio Mártires e o então presidente do STF Min. Cordeiro Guerra, na posse de procuradores da República (1984)

Só posso agradecer a esses gentis colegas que nos estenderam a mão e nos deram dicas valiosas , já que PR rookie não sabe nada mesmo. Até acha que sabe, mas só tem cultura, garra e vontade. E pato novo não deve mergulhar fundo senão se afoga. Entrei sabendo que não sabia quase nada. Por isso me metia em tudo que era curso de extensão.

Quais eram as condições de trabalho do procurador da República na década de 80, quando você assumiu?

As condições de trabalho na PRRJ de 1984 a 1989 eram péssimas. A sede ficava la Lapa, na Rua do Riachuelo, ao lado de sobrados que abrigavam oficinas, vendas, casas de má-reputação e tinha colada a fábrica urbana, pasmemos, da cervejaria Antártica, com cheiro forte de cevada fermentando nos tanques de fermentação, entrando em nossas narinas. Não tinha ar condicionado na maioria das salas. Computador, nem pensar! Éramos nós, uma máquina de escrever Remington, uma secretária e uma estagiária para cada procurador. E todo o serviço que hoje é dividido entre MPF, AGU e PFN. Uma coisa inviável. Era na base de mil processos por semana na mesa. Várias vezes eu e meus colegas tivemos que comprar do nosso bolso resmas de papel e fita pra máquina de escrever para conseguir soltar o serviço. O prédio tosco e velho, que o colega procurador-chefe Carlos Roberto Siqueira Castro conseguira do INSS e adaptou, foi até uma vitória à época, no €“início da década de 80. Serviu para tirar o MPF do Rio de Janeiro do vergonhoso humilhante poleiro no último andar da Justiça Federal, pois a PRRJ funcionava no prédio do antigo Supremo Tribunal Federal, que era a Justiça Federal – e que hoje é um museu.

Você já pode ser considerado um colega ‘da velha guarda’. Ingressou no MPF no concurso de 1984, o mesmo do PGR Rodrigo Janot, dos ilustres Min. Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa e do subprocurador-geral José Bonifácio Andrada, entre outros. Lá se vão 31 anos de Ministério Público. Você se arrepende-se de algo que fez ou que não fez no Ministério Público?

Sim, Bruno, sou um jurássico assumido. Meu concurso acabou sendo especial, pois foi o único que deu um ótimo PGR, o Rodrigo Janot, e dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, que antes atuou aqui conosco na Procuradoria Regional da 2ª Região. Joaquim era nosso laterial direito no time aqui da PRR2. Eu era o goleiro, o colega Celmo, o volante, e o colega Queiroz, o centro-avante enfiado. Entramos nós na década de 80 em uma época romântica, em que o serviço era artesanal. Agora mudou tudo. Tudo é feito pelo computador. E esse processo judicial eletrônico que nos enfiaram goela abaixo, uma coisa que ninguém merece e nem economiza árvore nenhuma; sim, porque todo mundo acaba imprimindo muita coisa, já que olhar tela o dia inteiro acaba com a vista.

Só me arrependo um pouco de não ter feito mestrado lá fora, quando ainda tinha disposição para tanto e quando a liberação pela PGR em relação ao serviço era total. Agora ficou difícil fazer. Parei mesmo na pós-graduação lato senso. Fiz uma de Direito Tributário e outra de Direito da Propriedade Intelectual.

Coisas do arco da velha aconteciam naquela década de 80. Certa vez, o colega faixa preta Alcir Molina começou a bater boca com o juiz federal Ariosto em um depoimento lá na Vara Criminal Federal; visto que o juiz indeferia quase todas as suas perguntas. Um se irritou com o outro, se xingaram e se deram, um ao outro, ordem de prisão simultânea por desacato. Foi uma confusão danada lá no prédio do antigo STF, com Polícia Federal, imprensa e o escambau. Corria o ano de 1987.

Você advoga na área de propriedade intelectual em um escritório fundado em 1919, com unidades no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre. Qual é a origem e a história desse escritório quase centenário?

Sim, eu e vários colegas que entramos antes da Constituição de 1988 ficamos o direito adquirido de exercer advocacia com impedimento parcial, pois na época da posse podíamos advogar nessas condições restritas, e diga-se que muitos sequer teriam feito inscrição no concurso da época não houvesse essa ressalva, pois o vencimento era irrisório. Minha atividade privada part time não me impediu de liderar a estatística de produção de processos despachados em 2003 na PRR2. E isso foi motivo de orgulho para mim, pois temos colegas que são verdadeiras máquinas de trabalhar.

Descendente de imigrantes gregos, você conhece a história de seus antepassados que vieram para o Brasil? Qual é?

A família Leonardos veio de Atenas em meados do século XIX para o Rio de Janeiro. Meu trisavô Othon Leonardos, neto de Athanasio Leonardos, que foi oficial do Exército grego na guerra com a Turquia, foi também cônsul da Grécia no Império. Assim como seu neto, Thomas Leonardos, meu avô, depois viria a ser também nos anos 40 e 50. Meus ancestrais que vieram da Grécia eram comerciantes de móveis e antiguidades. Até consegui, com meus irmãos, obter cidadania grega. Mas como a Grécia quebrou há uns cinco anos, nem mandei fazer o passaporte grego. Me disseram que nos aeroportos europeus os gregos estavam sendo mais maltratados que os cidadãos terceiro-mundistas da América Latina.

Nunca lhe passou pela cabeça aceitar promoção para a Subprocuradoria-Geral? Você confirma a regra de que o carioca não consegue viver longe da praia e do sol…

Realmente, Bruno. Nunca me passou pela cabeça mesmo. Sou carioca da gema criado em Ipanema, como disse. Nunca me imaginei morando em outra cidade, apesar de me incomodar com o calor úmido do verão. O Rio, mesmo violento, poluído e engarrafado, é um lugar lindo pela natureza ímpar. Amigos europeus que visitam o Rio sempre comentam que nunca viram algo tão lindo com matas quase virgens dentro da cidade. Sempre me recuso a concorrer a promoção a subprocurador, assim como tem feito os colegas Carlos Xavier, José Homero e Leivas, também do concurso de 1984. Na realidade, além de achar difícil me adaptar em outra cidade, há que dizer que o acréscimo nos vencimentos é bem baixo e as despesas com passagens de avião e mudança de base seriam enormes. Tanto é assim que duas colegas regionais foram promovidas a subprocuradoras recentemente, se arrependeram e pediram ao PGR para anular a promoção e retornar a PRR de origem. Os ministros do STJ, parece, recebem verba extra referente a quatro passagens semestrais para visitar os Estados de origem. Nosso Conselho Superior já tentou debater a questão de certa feita, mas o assunto não avançou. Não vejo imoralidade nisso, mas em nossa categoria multifacetada decerto alguém verá.

Quando o Regime Militar instaurou-se você tinha cinco anos de idade. Em sua época mais complicada, nove. Completou 25 anos na época da Redemocratização, quando também ingressou no MPF. Você tem alguma lembrança de sua infância relacionada ao Governo Militar? Sua família, ou você, na adolescência, sofreram direta ou indiretamente com os militares?

Crescer na época de ditadura nos fez meio alienados da política, até porque era muita censura, desinformação e ufanismo. Não sofremos represálias diretas nem indiretas, mas poderíamos ter sofrido. Meu avô Thomas Leonardos denunciou na Tribuna da OAB, na década de 70, quando era presidente e conselheiro federal da OAB, que havia muita tortura de presos políticos nos cárceres do Doi-Codi, o que não se sabia na época. Saiu na primeira página do Globo. Meu tio Maurício, engenheiro químico que lecionava Termodinâmica na UFRJ, de certa feita deu fuga a dois diretores do Diretório Acadêmico que estavam sendo caçados pelo Doi-Codi; e os escondeu na própria casa durante uns três dias. Podia ter sido preso e morto por isso. A resistência ao regime militar tem vários heróis anônimos e outros que ganharam notoriedade, como o deputado Rubens Paiva, em cujo processo cível indenizatório contra a União, por seu sequestro e morte, movido por sua viúva Eunice Paiva cheguei a atuar como procurador da República fiscal da lei. Emiti parecer favorável à autora e a seguir a ação foi julgada procedente na Justiça Federal, com a transcrição quase integral do meu parecer na sentença. Uma aventura puxa a outra. Royalties para Monteiro Lobato, que foi promotor como nós.

Que leitura você faz desse período de nossa história nacional?

Acho que o golpe dentro do golpe foi terrível. Foi um período negro. Os militares se apegaram ao poder e o povo foi banido do processo eleitoral. Lembro-me de uma crônica espetacular do Carlos Drummond espinafrando os militares no Jornal do Brasil, na semana da escolha do General João Figueredo para suceder o General Ernesto Geisel.

Já caminhando para o final, falemos da relativa mudança de rumos a que temos assistido no último ano. Na apresentação que fiz a este site de entrevistas, disse que percebia nos colegas uma sensação geral de pessimismo com a carreira. “Já foram maiores no passado, as suas esperanças…”, disse então. Eis que em pouco mais oito meses muita coisa mudou no MPF: temos hoje reconhecidas, por lei ou por decisão judicial, diversas reivindicações administrativas e remuneratórias muito antigas, o PGR criou a tão-esperada assessoria de procuradores em seu gabinete, a Operação Lavajato tem dado uma visibilidade muito positiva à nossa instituição. Já não temos hoje tantos motivos para o pessimismo, penso. Você acredita que poderíamos aproveitar esse bom momento para pautar alguma grande questão que porventura esteja adormecida em nossos escaninhos institucionais?

Sem sombra de dúvida o PGR Rodrigo Janot virou o jogo! Conseguiu para nós procuradores, em um ano, o auxílio-moradia, a gratificação de acumulação de ofícios, a gratificação de chefia – eu sempre chiei em nossa rede corporativa contra a ausência dessa gratificação, já que o procurador chefe acumula funções administrativas. A gratificação da gratificação de chefia existiu no passado, mas foi lamentavelmente suprimida na gestão do PRG Brindeiro. E, por fim, conseguiu um reajuste no nosso subsídio. Nem em nossos melhores sonhos achávamos que isso fosse possível. Há mesmo que defender nossas legítimas vantagens com unhas e dentes, pois a perda delas representou no passado uma perda na qualidade no recrutamento. E, obviamente, qualquer instituição é tão boa quanto as pessoas que a compõem. Respondendo à tua indagação, acho que com o Petrolão resvalando em cabeças coroadas o momento é de cautela, e que a rapadura é doce mas não é mole. Há que reconhecer, todavia, que a imagem do MPF, na mídia e na sociedade, com a entrada do novo PGR e com a incrível Força Tarefa da Operação Lavajato melhorou enormemente. Quanto ao futuro, particularmente eu acho que temos de caminhar junto com a magistratura federal, o que, aliás, o PGR Rodrigo vem conseguindo fazer com maestria e de forma brilhante, com o apoio do Ministro Ricardo Lewandowski. Pois o terreno é minado.

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Entrevista com Monique Cheker: “O Ministério Público é o melhor agente de transformação social. Sou apaixonada pela carreira”.

Inicialmente inclinada à magistratura estadual, Monique Cheker foi por três anos procuradora do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Rio de Janeiro. Hoje, reconhece que foi ‘resgatada’ para a melhor carreira do mundo, pela qual é apaixonada: a carreira de procurador da República. Na sua opinião, “o MP é o melhor agente de transformação social; pode atuar ao lado do Judiciário, com efetivas ações de mudança”.

Porque  as faculdades de Direito não se adequam para formar mentes pensantes, mas, sim, mentes copiadoras, acredita que o meio jurídico brasileiro é, em geral, pobre. Esse descompasso entre teoria e vida também é visível na atuação do judiciário em matéria ambiental: “o Judiciário é, ainda, muito acanhado para determinar providências céleres, como demolições rápidas e paralisações de obras que tenham pressão política para sua conclusão”.

Monique, que iniciou sua carreira em Cascavel, PR, é procuradora da República em Angra dos Reis, RJ. Para ela, que além de pianista amadora é fotógrafa nas horas vagas, “uma boa fotografia é um instrumento de revelação de sentimentos; faz surgir na mente de quem observa sentimentos únicos; faz tocar o coração das pessoas”.

Eis a entrevista com a colega que nos concedeu o nosso — curto porém intenso — 24ª dedo de prosa.

A PRM Angra dos Reis é conhecida por seu acervo de procedimentos em matéria ambiental. Você tem acompanhado as discussões sobre a aplicação do Novo Código Florestal (Lei Federal n. 12.651/12)? Na sua opinião, é uma boa lei?

Tenho acompanhado, em especial aguardando o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela PGR. Toda lei que subverte a proteção do meio ambiente, mesmo que parcialmente, caindo em retrocesso ambiental, não pode ser uma boa lei. É o caso do Novo Código Florestal que, em alguns aspectos, legalizou irregularidades flagrantes, danos ao meio ambiente que o próprio Estado não conseguiu coibir por conta de uma fiscalização precária.

Você manifesta sua preferência pela solução extrajudicial dos conflitos. Tem conseguido bons resultados na PRM Angra dos Reis? Minha experiência com o tratamento judicial das ações civis públicas ambientais não é boa. Sinto que os juízes não se sentem à vontade em enfrentar essas questões. Sua experiência é diferente?

Tenho obtido boas posturas dos órgãos de fiscalização ambiental a cada reunião que faço nos meus procedimentos extrajudiciais. O trabalho, contudo, se multiplica, as reuniões são cansativas, as recomendações precisam ser bem redigidas e plenamente factíveis, sob pena de não serem cumpridas e virarem papéis decorativos. Só no ano de 2014 foram expedidas trinta recomendações e mais de 90% foram, no mínimo, parcialmente acatadas.

Normalmente, não consigo esgotar um determinado conflito com medidas extrajudiciais, mas, com o resultado parcial desta atuação, reduzo o que constará numa ação judicial. De qualquer forma, compensa pois o Judiciário é, ainda, muito acanhado para determinar providências céleres, como demolições rápidas e paralisações de obras, que tenham pressão política para sua conclusão. Claro que aqui e acolá encontramos juízes sensíveis e conscientes dos mandamentos constitucionais em relação ao meio ambiente, mas não é a regra. O processo se arrasta, muitas vezes, em prejuízo irreversível. Não se consegue, infelizmente, absorver os princípios de direito ambiental da precaução e prevenção. Tais comandos são mencionados apenas nos livros de direito. Na prática, é tudo o contrário: obras irregulares prosseguem, mesmo com indícios e provas da ilegalidade.

De que compositores de música erudita mais gosta? Você é daquelas que ouve um número variado de obras ou tem consigo uma meia dúzia que ouve centenas de vezes?

Difícil elencar compositores favoritos, mas a genialidade de Bach se destaca e por isso ele é o meu predileto. Ouço um número variado de obras, mas quando gosto de algumas costumo escutar centenas de vezes. Na música clássica, cada vez você nota algo diferente na interpretação do pianista.

Você toca piano desde a infância? Acredita que a disciplina adquirida na prática do piano a ajuda hoje no trabalho?

Toco piano desde criança, mas a falta de tempo, hoje, me remete a sempre tocar as partituras já estudadas. Difícil eu tocar algo novo, que exija horas e horas de treino. Na realidade, gostar de música clássica não me trouxe disciplina mas me trouxe tranquilidade na época de concurso público e me traz até hoje.

A jovem Monique chegou a cogitar outros caminhos distantes da Faculdade de Direito? Como foi sua opção pela Procuradoria da República?

Desde a faculdade, eu queria fazer concurso público para a magistratura estadual. Eu achava que o juiz era o melhor agente público que poderia servir à sociedade e como a magistratura estadual está mais próxima dela, fui levada a pensar mais fortemente nisso. Nem passava pela minha mente, à época, fazer concurso para o MPF e quando fiz a inscrição no certame, até a prova oral, não conhecia sequer o nome dos examinadores. Nunca estudei especificamente para o MPF. Hoje, vejo que fui “resgatada” para a melhor carreira do mundo; vejo que o MP é o melhor agente de transformação social; pode atuar ao lado do Judiciário, com efetivas ações de mudança. Sou apaixonada pela carreira.

Você já fez cursos de fotografia. Como reconhecer uma boa fotografia? Imagino que você concorde que a fotografia é um terreno fértil para a representação de nossos estados interiores. Você é capaz de indicar uma fotografia que espelha aproximadamente os elementos que se passam hoje na sua vida interior?

Uma boa fotografia é aquela que faz surgir na mente de quem observa sentimentos únicos; é aquela que faz tocar o coração das pessoas. A imagem não precisa ser captada com um equipamento caro, não precisa haver uma paisagem sofisticada, basta que seja instrumento de revelação de sentimentos. Uma flor no meio do nada já pode significar muita coisa. As fotografias que me trazem mais tranquilidade e espelham o meu estilo de vida são imagens da natureza e de animais silvestres, em especial pássaros.

Suas leituras mais recentes indicam um interesse por temas da atualidade político-social. Em meio aos avanços da informática, da modificação das formas de relacionamento entre as pessoas, das formas de comunicação, como imagina que a atividade jurídica nacional estará daqui a trinta anos? É capaz de imaginar como será o cotidiano de um procurador da República?

Acho o meio jurídico brasileiro, em geral, pobre. As faculdades não se adequam para formar “mentes pensantes”, mas, sim, “mentes copiadoras”. Isso cria um encurtamento do raciocínio jurídico. Qualquer um, no Brasil de hoje, pode ser considerado “jurista”, desde que consiga emplacar “ideias da moda”, mesmo que as mais absurdas possíveis. Notei muito isso na época da Proposta de Emenda Constitucional n. 37, conhecida por “PEC da Impunidade”, que visou a afastar o MP e outros importantes órgãos da investigação penal. Os nossos “juristas” davam suas opiniões sobre a relevância da referida proposta. Em qualquer país sério, um parlamentar teria vergonha de apresentar e a Câmara Legislativa seguir com uma proposta dessas por ir de encontro à efetividade e à probidade da investigação criminal. Sei que o Congresso é um local de pluralidade de ideias e deve ser assim, mas os idealizadores e apoiadores da PEC 37 não possuíam boas intenções, não apostavam na honestidade do discurso, queriam “reserva de mercado” para si para depois monopolizar resultados de investigações e isto é gravíssimo; deveria ter sido, desde logo, rechaçada. Democracia e pluralidade não autorizam bizarrices, em especial num país que se diz civilizado. Quem se interessaria em afastar órgãos fiscalizadores e garantidores de interesses sociais de um campo essencial para o combate à corrupção? No Brasil, se o povo não tivesse acordado e andado de mãos dadas com o MP e demais órgãos envolvidos, não sei como a situação estaria hoje. Por tudo isso, acho que daqui a trinta anos, se não houver mudanças na educação, continuaremos a andar em círculos, sem exportação de ideias, apenas com cópias atrasadas e, pior, distorcidas do que é dito lá fora, como ocorreu com o garantismo de Luigi Ferrajoli. Quanto ao cotidiano de um procurador da República, continuaremos na nossa luta constitucional diária, dever assumido na posse.

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Entrevista com André Dias: “O julgamento da Ação Penal n. 470 deixou uma grande lição ao Ministério Público: jamais devemos nos omitir em adotar todas as medidas processuais que estejam ao nosso ao alcance”.

Criado em Pirapora, MG, André tem uma relação de amor profundo com o Rio São Francisco e uma infância repleta de boas lembranças: “é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio. Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais”.

Leitor voraz de clássicos da literatura universal, a começar pelos pré-socráticos, reconhece como suas principais influências a Bíblia Sagrada, Nietzsche, Dostoiévski e Philip Pettit.

Antes de ingressar no MPF — onde iniciou a carreira na PRM Angra dos Reis –, André foi promotor de justiça em Minas Gerais, o que lhe dá um excelente trânsito entre os colegas do MPMG, com quem mantém uma cooperação, profícua, que merece ser adotada como referência entre as montanhas de Minas.

Porque vê o STF, hoje, como “um tribunal político, no pior sentido do termo”, acredita que “o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível do poder político”.

Um duro crítico da atuação de nossos tribunais superiores, um trabalhador incansável contra a corrupção que assola os municípios do Norte de Minas Gerais, um leitor de Dante, Stendhal, Goethe, Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa; enfim, um procurador combativo e um devorador de livros. É com ele, de Montes Claros, MG, que trocamos o nosso 11º dedo de prosa — entre a luz e a sombra. Uma prosa mineira, naturalmente.

 

Você acredita no combate à corrupção no Brasil o trabalho da justiça tem ocupado posição importante? Às vezes sinto que o trabalho punitivo, embora necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Penso que, infelizmente, nossa Justiça é um espelho das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, o que se reflete substancialmente na prestação jurisdicional em face da corrupção, seja em matéria penal (em que a seletividade secundária beira as raias do absurdo), seja em matéria cível lato sensu, inclusive a nível preventivo, em que nosso Poder Judiciário, mediante uma pletora de subterfúgios e interpretações surreais, promove a blindagem dos nichos de poder político e econômico, pouco importando as facções ou as ideologias subjacentes. Nesse contexto, o combate à corrupção torna-se absolutamente inócuo, porque a resposta da Justiça é pífia e risível, sob qualquer parâmetro de comparação (seja externo, no cotejo a praxe judiciária de países minimamente desenvolvidos, seja interno, no confronto com a rigidez com que a Justiça brasileira reprime os “ilícitos” das classes menos favorecidas e dos movimentos sociais). A resposta jurisdicional é monstruosamente desproporcional, quase fictícia, sem o mínimo de eficácia para inibir e reprimir a criminalidade do poder, e talvez seja este o principal fator, em nosso país, por que o combate à corrupção não tem tido o condão de concorrer decisivamente às necessárias mudanças macroestruturais do grupamento social (tal qual, por exemplo, a bem sucedida experiência italiana).

Egresso do Ministério Público de Minas Gerais, como você vê, na sua região, a diferença entre as estruturas de um e de outro órgão nas lides diárias? Acredita que o MPF pode aprender algo com o trabalho do MPE-MG?

Meu amigo, assim como você e outros valorosos colegas de MPF (como Helder Magno e Edmundo Dias), tive a honra de integrar os quadros do MPMG nos idos de 2003/2005. Penso que o Parquet mineiro evoluiu muito nestes últimos anos, e, a nível estrutural, o principal avanço foi a implantação de coordenadorias regionais (patrimônio público, meio ambiente e outras) e temáticas (bacias hidrográficas e outras), a ensejar a solução de conflitos num contexto alargado, com a sistematização da colheita e processamento de informações e a promoção articulada de trabalhos em rede, estrategicamente deliberados.

Você acompanhou de perto o processo do Mensalão. O que, na sua visão, todo colega deveria saber e absorver em seu trabalho após a experiência por que passou o STF?

Como expus alhures, penso que o julgamento da Ação Penal 470, pelo STF, foi permeado de avanços (especialmente em teoria das provas) e retrocessos (notadamente em sede de aplicação e dosimetria das penas), e estes predominaram ao cabo, no julgamento dos embargos infringentes (blindagem teórica do colarinho branco ao crime de quadrilha, derrogação judicial do crime de lavagem de dinheiro quando o delito antecedente for corrupção, etc). Todavia, as evoluções ou involuções daquele julgamento, no mais das vezes, não se relacionam diretamente ao trabalho do Ministério Público. A ausência de arguição da suspeição de um Ministro que, supostamente, teria relações próximas com alguns dos réus, talvez seja a maior lição ao MP: jamais se omitir em adotar todas as medidas processuais ao alcance, na tutela dos interesses da coletividade, ainda que isso possa significar desgastes com quem quer que seja, inclusive membros da mais alta corte do país.

Como vê a atuação do STF hoje? Se pudesse fazer duas alterações estruturais (relativas à competência, ao rito etc), visando à melhoria dos serviços, quais seriam?

Vejo o STF de hoje como um tribunal político, no pior sentido do termo. O problema estrutural por excelência reside no processo de escolha dos Ministros, que, de um lado, favorece escolhas estratégicas em prol exclusivo de facções políticas e de grupos econômicos, e, de outro, estimula a subserviência e o clientelismo dos candidatos ao mais alto cargo do Poder Judiciário perante aqueles interesses. Creio que o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível dos detentores do poder político.

O MPF começou, há alguns anos, uma rotina de correições ordinárias em suas unidades em todo o país. A atividade se debruça sobre a fiscalização do cumprimento dos prazos nos procedimentos e processos judiciais e na verificação da estrutura das procuradorias. Essa atividade fiscalizatória, extremamente necessária, fornece-nos um atestado de regularidade do exercício de nosso ministério público. Como lançar nossas redes em águas mais profundas, André?

A atuação correicional é imprescindível para assegurar a transparência, a regularidade e a operosidade do exercício da função ministerial. Acontece que, hoje, esta atividade ainda se dá a nível superficial, pelo critério quantitativo-estatístico, que se revela absolutamente insuficiente, porque números podem ser artificialmente fabricados e inflados, sem qualquer relevo social. Penso que se devem pensar standards objetivos de aferição qualitativa, vinculados menos à frieza dos números e mais em termos de verificação do efetivo desempenho de trabalhos prospectivos, de larga monta e impacto social.

De suas leituras na área da literatura, da história, da filosofia e da psicologia, que livros — e por que — mais influenciaram sua vida e sua forma de pensar hoje?

Na literatura, Dante, Stendhal, Goethe, Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa deixaram fortes marcas em meu espírito, mas, sem dúvida, o maior impacto adveio do contato com a obra de Dostoiévski, aos dezesseis anos, especialmente “Crime e Castigo” e “Memórias do Subsolo”, que revolvem os arcanos da experiência humana. Na filosofia, os pré-socráticos, Bacon, Spinoza, Kant, Sartre, Foucault, dentre tantos outros, mas sem dúvidas foi a leitura de todo o Nietzsche, aos vinte anos, a responsável pela grande guinada de meu pensamento – embora eu tenha sérias reservas quanto a alguma de suas idéias, e, a nível dos conceitos estereótipos, praticamente em nada seja “nietzschiano”. Na filosofia política, que muito prezo, minha predileção é por uma linha de pensamento hoje denominada “republicanismo neo-romano”, que remonta a Cícero, Tito Lívio, Tácito e outros na Roma antiga, Maquiavel na Renascença Italiana, Milton e Harrington no período das revoluções inglesas, Rousseau em França pré-revolução, e, na atualidade Quentin Skinner, Maurizio Viroli, Jean-Fabien Spitz, tendo sua versão mais perfeita na obra de Philip Pettit. Em psicologia, sempre tive sérias discordâncias com a linha freudiana, tive meus tempos de abertura ao pensamento de Jung, mas confesso que nada teve muita influência. Por fim, foi a leitura integral e atenta de todos os livros da Bíblia, em 1999, a experiência de maior impacto em minha vida. Quanto à história, sou entusiasta da metodologia da “Escola de Cambridge” (Pocock, Skinner e outros), mas nenhum livro me marcou tanto quanto a “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides.

Onde passou sua infância? Qual é a melhor lembrança que você tem de sua meninice?

Passei toda a minha infância em Pirapora, MG (com viagens constantes a Montes Claros, Bocaiúva e Olhos D’Água, família paterna). Não existe “a” melhor lembrança, porque é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio (dali vem minha relação de amor profundo com o Rio São Francisco). Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais. Enfim, só boas lembranças.

Em seu livro ‘O Nobre Deputado’, o juiz de direito Márlon Reis transcreveu o testemunho de um senador da República para quem “o resultado de qualquer eleição brasileira já está[va] definido muito antes do encerramento da votação. Muito antes da abertura das urnas. A vontade do eleitor individual não vale nada no processo. O que conta é a quantidade de dinheiro arrecadado para a campanha vencedora, que usa a verba num infalível esquema de compra de votos. Arrecadou mais, pagou mais. Pagou mais, levou”. Não há grandes surpresas nesse depoimento, a não ser naquilo em que ele busca afirmar a universalidade da prática. Imagino que você não veja as coisas de modo muito diverso. Você trabalha em uma PRM que tem atribuição sobre dezenas de pequenos municípios do Norte de Minas Gerais e também por isso conhece um pouco o imaginário geral dos moradores dessa região. Acredita que esse problema essencial para a vitalidade da democracia faça parte das preocupações (ou mesmo do entendimento) da maioria da população? Não haveria aí nessa falta de educação uma quebra do princípio democrático?

Sem dúvida, essas questões essenciais passam ao largo das preocupações das massas, porém muito dessa letargia decorre da descrença nas instituições constituídas e da desinformação, daí que a quebra da circularidade deste processo passa, necessariamente, pela efetividade do controle social e da ação dos órgãos de fiscalização, atacando e rompendo os elos desta cadeia perversa de captura do poder; pela ampla e massiva divulgação, publicidade e conscientização por meio da imprensa e das redes sociais; e pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento das vias formais de ensino e educação, ministrando bases seguras para a autodeterminação da vontade popular democrática.

 

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“Eu me considero um monarquista e sou contra a tortura e qualquer forma de covardia contra o indivíduo”. Veja o nosso segundo ‘dedo de prosa’, com Luiz Lessa.

Bem humorado com os amigos e mau humorado com a vida“: assim se define Luiz Lessa. Homem de poucas palavras, seus usuais comentários ao noticiário institucional, partilhado com os colegas na nossa lista eletrônica, desafiam nossa capacidade de interpretação, a explorar por baixo de sua pura literalidade algumas camadas plenas de significado.

Para ele, na investigação de alguns crimes específicos, “um Doutorado na Harvard Law School vale tanto quanto um certificado de conclusão de um curso de tricô e crochê“.

Embora reconheça que o MPF é a melhor carreira jurídica do Brasil, diz-se frustrado com o sistema jurídico nacional, que reputa “caro, demorado, ineficaz“. “Estamos sempre correndo atrás e enxugando gelo“.

Na sua opinião, a atuação do MPF na persecução dos crimes praticados por agentes públicos durante o Regime Militar de 1964-1985, não é “coisa de comunista” ou de quem está “a serviço dos terroristas“. Trata-se, sim, de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos; “de aplicar o Direito Penal de acordo com os ditames do Direito Internacional dos Direitos Humanos“.

Sobre o seu trabalho, diz que “mais do que um trabalhador irrecuperável, sou um curioso incurável. Se não precisasse trabalhar passaria a vida apreendendo coisas novas“.

Nesta segunda entrevista de nossa série, seu humor fino e cortante deu espaço ao dedicado profissional, ao leitor de romances policiais e ao amante de quadrinhos antigos. Eis o Lessa, por ele mesmo…

 

Você lançou recentemente a obra ‘Persecução Penal e Cooperação Internacional Direta pelo Ministério Público’ (Lumen Juris, 2013), muito festejada pelos colegas. Que obstáculos o Ministério Público Federal tem encontrado hoje em matéria de cooperação jurídica internacional?

O principal problema do MPF na cooperação penal internacional é o mesmo que atinge as demais áreas de sua atuação. Falta de recursos, sejam financeiros, sejam humanos. Não em qualidade, mas em número. Temos grandes colegas, com extenso e profundo conhecimento no tema; não temos, no entanto, colegas em número suficiente para atuar e desenvolver de forma estruturada essa atividade. É o mesmo problema que temos, penso, em todas as áreas. E, como nas demais áreas, essa falta de pessoal fez com que outros setores da Administração, tenham se apropriado de parcela significativa de nossas funções em todas as áreas. Hoje, graças ao atual PGR, essa área de atuação está sendo reforçada e estamos conseguindo construir sobre as fundações lançadas pelo Dr. Edson, que fazia o que podia praticamente sozinho.

Você está na Procuradoria Regional há cerca de um ano, depois de ter sido procurador da República por dezesseis. Já se acostumou com as novas funções? Como reagiu à mudança? Sente falta da PRRJ, Lessa?

O pique na Regional é bem mais calmo do que na PRRJ. Não que não exista trabalho, mas são pouquíssimos os procedimentos de investigação e o intercâmbio com juízes, partes, testemunhas, advogados, delegados e órgãos públicos é quase inexistente. Não se faz quase instrução e a atuação se limita à aplicação da teoria pura, fica uma coisa mais intelectual, às vezes bem chata. Por outro lado, a nossa atuação na PRR, porque é sempre uma reflexão sobre o trabalho feito em primeiro grau, sempre depende da boa atuação do PR. Se ele for mal, dificilmente dá para o PRR levar a cabo a tese suscitada em primeiro grau. Ainda bem que em um ano, quase nunca tive esse problema.

Há um clima geral de insatisfação com a carreira. Muitos encontram sua parcela de satisfação como a vida ‘fora do trabalho’ ou, em casos mais dramáticos, estão esperando a aposentadoria para finalmente ‘começar a viver’. Você disse que pretende deixar o cargo, ‘vivo e lúcido’, apenas na aposentadoria compulsória. Você gosta do que faz? Considera-se realizado profissionalmente?

O MPF é a melhor carreira jurídica do Brasil. Contamos com autoridades, reconhecidas nacionalmente pelo mercado e pela academia, em todas as áreas do Direito Público, com exceção do Direito do Trabalho, temos uma liberdade de interlocução com todos os graus e integrantes da carreira, salvo um ou outro colega, que não se encontra em nenhum outro órgão de igual importância. Pegamos, tanto no crime, quanto na tutela coletiva, os casos mais interessantes, como, por exemplo, o Mensalão, os Sanguessugas, Banco Nacional, Belo Monte, o vazamento de óleo da Chevron, aquele projeto Carne Legal, dentre outros tantos.

Agora o sistema jurídico nacional é insano, caro, demorado, ineficaz, e isso reflete na nossa atuação. Estamos sempre correndo atrás e enxugando gelo. Isso é frustrante. Veja, por exemplo, o caso recente do banqueiro que foi condenado vinte anos após a prática do delito, não obstante a investigação e o início da persecução, dada a complexidade dos fatos, tenha ocorrido com razoável presteza. A nossa infra-estrutura é insuficiente para permitir que o trabalho seja feito adequadamente e, apesar dos que muito pensam, a insatisfação com a remuneração tem ocasionado perdas significativas, tanto entre procuradores que se aposentam o mais cedo possível, quando não pedem exoneração, quanto entre os servidores que apoiam a atividade principal.

Recentemente, você atuou em processos que buscam a persecução penal dos crimes praticados por agentes públicos durante o Regime Militar de 1964-85. Acredita que a Comissão da Verdade, ao limitar sua investigação aos atos dos militares, entregará bons resultados à sociedade? Tem acompanhado o trabalho da Comissão? Como o avalia?

A proposta da Comissão da Verdade é outra, acompanho de longe o trabalho deles e não me sinto à vontade avaliando-os. A proposta do MPF, a nossa proposta, é de aplicar o Direito Penal de acordo com os ditames do Direito Internacional dos Direitos Humanos e isso não tem a ver com ideologia, mas sim com regras claras de DIDH. Falam que é coisa de esquerda, coisa de comunista, atacam o trabalho dizendo que, porque não se busca punição contra os terroristas, estamos a serviço dos terroristas. Essas pessoas ignoram o DIDH, não leram a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e desconhecem o que está sendo feito. Bem, eu me considero monarquista e parlamentarista, sendo contra a tortura e qualquer forma de covardia contra o indivíduo. Eu confio é no trabalho dos colegas que iniciaram e continuam nessa luta, colegas excelentes, dedicados, muito bem preparados, que estão fazendo um trabalho histórico e que, quem sabe, como tudo no MPF, conseguirão vencer depois anos de batalha.

A literatura policial está repleta de casos desafiadores, solucionados frequentemente através da inteligência dos detetives, do encontro de pistas, a partir de traições e de testemunhos inusitados. Como leitor de Raymond Chandler, o que pensa sobre o nosso inquérito policial como instrumento de investigação? Consegue imaginar alguma alternativa viável?

O trabalho de investigação é um trabalho que prescinde, em sua maior parte, do conhecimento jurídico. É um trabalho de análise, seja de evidências materiais, seja de dados e informações. É uma tarefa técnica de reprodução científica de algo que já aconteceu. Como tal, o conhecimento jurídico só serve para a qualificação jurídica da verdade revelada pela investigação e para a preservação dessa prova e dos direitos fundamentais do cidadão. Existem crimes, como os financeiros, por exemplo, em que o trabalho de um investigador que domine as ciências contábeis é inestimável, outros em que o exame necrológico é essencial para a apuração dos fatos. Nesses casos, um Doutorado na Harvard Law School vale tanto quanto um certificado de conclusão de um curso de tricô e crochê. O conhecimento jurídico só vai servir para organizar a prova de forma a convencer o juiz sobre a autoria e materialidade delitiva e isso quem faz é o Ministério Público. Por isso é essencial que o Ministério Público participe da investigação, para assegurar que a prova produzida satisfaz aos parâmetros que delimitam a justa causa da ação penal.

Quanto mais estudo, quanto mais converso com policiais estrangeiros, mais reforço a minha convicção de que o sistema policial brasileiro está falido, porque construído sobre bases fundadas no Século XIX, que ignoram a ciência, a velocidade em que os crimes são cometidos, a forma de organização das associações criminosas e a necessidade de uma polícia estruturada de forma flexível, visando ao resultado final; e que limitam a investigação a um simulacro de processo administrativo, burocratizado. Não é o inquérito que prova a existência do ilícito mas sim o que for apurado e confirmado perante a Justiça.

Em cada um dos últimos anos, nós temos convivido no Brasil com cerca de 50.000 homicídios/ano. Em 2013, matamos, proporcionalmente, quatro vezes mais que Estados Unidos e Argentina e vinte vezes mais que Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha e Itália. Recentemente você já foi vítima de um assalto à mão armada. Acha que eventual descriminalização do tráfico de entorpecentes pode diminuir a médio prazo os altos índices de homicídio no país?

O crime não tem uma causa única, direta. A prevenção depende da análise de múltiplos fatores associados à atividade criminosa e que devem ser identificados, estudados e atacados. Por exemplo, uma pessoa pobre não necessariamente se tornará criminosa, como o fato de um cidadão ser rico não o torna livre do cometimento de delitos. Fatores culturais, sociais, individuais e institucionais operam de forma conjunta para incentivar ou facilitar a prática delituosa. Além disso, a mera descriminalização da droga não é suficiente para dirimir a prática criminosa. A descriminalização do uso da substância ilícita não evita que essa cause graves problemas de saúde e riscos a população em geral. O fato de liberar o uso da maconha, não impede que você puna quem dirija sob o efeito da droga, ou quem a comercialize fora dos parâmetros legais. O sujeito viciado em droga lícita, como o álcool, por exemplo, comete  atos violentos como, por exemplo, vias de fato, lesões corporais, homicídios, como o faz quem é viciado em drogas ilícitas.

A redução da violência passa portanto, desde você atacar o problema da criminalização das drogas, como limitar e fiscalizar o acesso a armas de fogo, educar e dar oportunidades de crescimento social à população mais pobre, como assegurar a existência de um sistema repressivo firme, presente, mas justo e proporcional, que não alimente a ideia de que uma condenação penal equivale a impunidade.

Na comunicação com os colegas em nossa lista eletrônica de e-mails, você frequentemente deixa escapar um humor irônico muito parecido com o de Millôr Fernandes. Você é bem humorado também pessoalmente? Tem preferência por algum humorista em especial?

Sou bem humorado com os amigos e mau humorado com a vida. Gosto do humor dos comediantes escoceses, que é como o dos ingleses, seguido de um chute nas partes baixas.

Para Millôr, “A maior parte da humanidade tem absoluta necessidade de se punir com o trabalho. E nisso acaba adorando o ato de trabalhar e viciada nele. A totalidade dos trabalhadores é absolutamente irrecuperável” (em ‘O livro vermelho dos pensamentos de Millôr’). Você concorda com ele? Você é um trabalhador irrecuperável, Lessa?

Mais do que um trabalhador irrecuperável, sou um curioso incurável, viciado em notícia, informação, livro, leitura, filme, internet, fofoca, receita de bolo, a busca pelo conhecimento, mesmo o inútil, é o que me mantém vivo.

Trabalho porque tenho que pagar contas e sustentar o sistema bancário brasileiro. Se não precisasse trabalhar passaria a vida apreendendo coisas novas.

Você disse que compra revistas/livros de quadrinhos. Quais são os seus preferidos?

Livros, compro quando viajo e sempre volto com uns cinco ou seis. Dou preferência aos clássicos da literatura inglesa e por clássicos vai tudo, desde Shakespeare a Raymond Chandler. Moby Dick a Le Mort d’Arthur.

Quadrinhos, não compro mais nada, fuço a internet, leio o que consigo de graça. Sou da geração que leu as primeiras edições do Neil Gaiman, Moebius, Alan Moore e Frank Miller, que lia Heavy Metal, Love & Rockets e Metal Hurlant, que viu a Rê Bordosa morrer e renascer, que conhece o segredo do morcego e sabe quem é o León de Tchacara, que pegou o final do Henfil, acompanhou o Calvin & Hobbes, do início ao fim, que leu Garfield quando ele ainda era engraçado, quando os quadrinhos deixaram de ser coisa de criança e passaram a ser as Novelas Gráficas que tanto influenciam a dramaturgia atual.

Qual a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?

Indo com minha mãe de casa para a padaria, em Higienópolis, SP, para trocar as minhas moedinhas por um pão francês e um guaraná caçula.

A história do Ministério Público nas décadas de 80 e 90 é a história da conquista de garantias institucionais e de instrumentos processuais que o constituíram com uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns ícones dessa geração convivem hoje com colegas recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. Acredita que a geração que construiu o MPF da primeira década pós-Constituição consolidou uma certa tradição? Se sim, essa tradição foi ou vem sendo transmitida com sucesso às novas gerações?

O papel desempenhado pelos colegas mais antigos criou a imagem do MPF que sobrevive no imaginário popular como o principal órgão de defesa da sociedade e das minorias no Brasil, sem desmerecer o restante dos órgãos irmãos ou assemelhados. Alguns, como a Justiça Federal, não recebem o crédito que lhe é devido, já que sem a JF a nossa atuação seria inócua.  Acredito que por isso, a cada novo concurso novos talentos, oriundos do poder judiciário, das promotorias e das procuradorias estaduais e municipais, ingressam na carreira com o intuito de espelhar e ampliar a atuação desses colegas antigos na tutela coletiva e penal da sociedade. É bobeira da grande, mas eu sempre digo que nós do MPF podemos repetir o chavão dos Marines dos EUA: The Few The Proud, The MPF.

 

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