Entrevista com Wesley Alves: “Uma bela música recompõe nossa ordem interna e nos ajuda a suportar os ‘pesos da vida’.”

Depois de ter trabalhado no gabinete do Min. Dias Toffoli, no Supremo Tribunal Federal, Wesley Alves, procurador da República em Franca, SP, decidiu tentar o concurso do Ministério Público Federal — cuja carreira, uma vez aprovado, iniciou em Rondônia.

Segundo compreende, “ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas otimista com a promessa da redenção divina” o impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sua concepção do papel profissional do cristão pressupõe que não utilizemos nossas posições sociais como meio de transformar nosso Estado em uma teocracia, mas, sim, devemos, como José e Daniel, seguir nossa vocação “com excelência e diligência, obtendo o respeito das pessoas e melhorando a vida daqueles sobre os quais exercemos autoridade”.

Crítico do pensamento progressista de esquerda, diz que ele “conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos”. Segundo Wesley, essa tentativa falhou; como consequência, “a sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado”.

Uma entrevista instrutiva com um colega que está trilhando, consciente das dificuldades que certamente virão e pronto a enfrentá-las, o caminho de sua formação intelectual — dinâmica a ponto de abranger na unidade de sua consciência as lições metodológicas de A.-D. Sertillanges e as modas de viola de Tião Carreiro: eis o nosso 33º encontro, com um bandeirante mineiro em terras paulistas.

 

Como está o trabalho na PRM de Franca, Wesley?

Bem, nos dez meses em que estou na PRM de Franca já pude conhecer bem a ‘casa’ e a cidade, dar continuidade ao trabalho desenvolvido pela colega anterior e promover algumas ações relevantes. Antes de vir para o Estado de São Paulo, estive na Procuradoria da República em Rondônia, minha primeira lotação, onde exerci um ofício com atribuição nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Aqui em Franca, ao lado de nossa colega Daniela Poppi, exerço todas as atribuições inerentes à atividade-fim do MPF. Ampliar o campo de atuação, especialmente neste início de carreira, tem-me sido muito importante, principalmente por colocar em prova minhas virtudes e limitações. Estou bastante entusiasmado e creio que o MPF em Franca tem muito a contribuir para a melhoria das condições de vida da população local.

Você foi analista judiciário do STF por quatro anos antes de ingressar no MPF. O que você fazia lá?

Durante dois anos, permaneci lotado na Central de Atendimento do Cidadão, setor para onde são dirigidas todas as postulações feitas ao STF e em que lhes é conferido o primeiro tratamento. Depois integrei o gabinete do Ministro Dias Toffoli, onde eu e mais quatro colegas éramos responsáveis pelos recursos extraordinários e agravos de instrumento cíveis distribuídos ao gabinete, exceto os que envolviam matéria tributária. Trabalhar na mais alta corte do Brasil, conviver com ministros, lidar com processos de grande relevância para o país foi para mim muito gratificante e contribuiu decisivamente para meu amadurecimento pessoal e profissional. No entanto, chegou um momento no qual concluí que eu não deveria passar o restante de minha vida exercendo esse trabalho e que eu deveria atender ao chamado para me tornar membro do MPF.

E eis aqui você. Mas, mudando de assunto: a música caipira que você escuta — Renato Teixeira, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro — sobrevive apesar de todos os modismos culturais e mercadológicos contemporâneos. O número de brasileiros que não têm acesso à televisão diminui a cada dia. A cultura popular de raiz, porém, não desaparece. Você acha que a música brasileira está em crise? Ou essa impressão vem apenas de uma exagerada exposição que a mídia faz de artistas desqualificados e de pessoas insossas que buscam apenas divertir e entreter o público?

Lamentavelmente, não posso dizer que a percepção de que a arte e a cultura brasileiras estão em crise é equivocada. Essa crise se deve, essencialmente, ao processo de deseducação a que somos, todos nós brasileiros, submetidos. Nascemos já com um intuito natural de beleza, simetria, ordem, proporção, harmonia; tudo isso está enraizado em nossa natureza. Um bolo que fica torto, disforme, por exemplo, pouco nos apetece, independentemente de ele ter ficado saboroso. Esse senso pode ser estimulado e desenvolvido ou, então, tolhido. Infelizmente, os educadores de hoje ‘ensinam’ às crianças que tudo é relativo e que elas não podem ter certeza sobre nada; que determinada obra ou música não podem ser consideradas bonitas ou feias, porque esse tipo de julgamento depende da perspectiva pela qual elas são observadas e da particular visão de mundo que o autor quis expressar por meio delas. E sem um mínimo senso de ordem e beleza, temos dificuldade de distinguir Machado de Assis de Paulo Coelho, um funk de uma canção de Bach, um ‘sertanejo universitário’ de uma moda de viola de Tião Carreiro. Aprecio vários estilos musicais e, por influência de meus pais e avós, tenho um gosto especial pela música caipira. Uma bela música recompõe nossa ordem interna e nos ajuda a suportar os ‘pesos da vida’. Sou um homem da cidade, mas tenho o campo como uma espécie de refúgio. A música caipira me proporciona paz, liberdade e me faz experimentar a simplicidade que a vida no campo oferece. Suprir as deficiências que há em minha formação cultural e estética é um dos objetivos que tenho para os próximos anos.

Da última vez que conversamos você disse que se considera ‘pessimista quanto ao futuro da humanidade e por outro lado otimista com a promessa da redenção divina, por meio de Jesus Cristo’. Como essa visão de mundo influencia o seu relacionamento com as pessoas e o seu modo de trabalhar na Procuradoria da República?

Como cristão, creio que somente um homem que tem destruídas suas esperanças a respeito de seus próprios méritos, valores e justiça pessoal pode reconhecer o mérito e a necessidade da morte de Jesus Cristo para nossa salvação. O reconhecimento dessa condição deve nos tornar humildes e pacientes, de modo que tomar conhecimento das falhas das demais pessoas, com quem compartilhamos das mesmas debilidades, deve ser uma oportunidade de confessar nossos próprios pecados e misérias a Deus. É nesse sentido que posso afirmar que aquela convicção — ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas também otimista com a promessa da redenção divina — me impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sei que tropecei em uma contradição. A humildade é um sentimento extremamente perigoso! Ninguém é capaz de vê-la no espelho sem perdê-la imediatamente. No entanto, embora incapaz de ‘ser’ genuinamente humilde, o homem é capacitado por Deus a ‘agir concretamente’ de forma humilde e a ter paciência. Como ensina o professor Olavo de Carvalho, a verdadeira humildade se alimenta da grandeza de Deus, e por isso é a única grandeza do homem capaz de frear seu orgulho, sem sufocar sua grandeza.

Sãos essas mesmas qualidades, a humildade e a paciência, que procuro cultivar no exercício do cargo de procurador da República. Exerço minha profissão para a glória de Deus e tenho certeza que em tudo ele me auxilia. Mas não justifico minha vocação profissional por aquilo que a torna espiritual. Certa vez um sapateiro perguntou a Lutero o que ele deveria fazer agora que conhecia o Evangelho. O clérigo lhe disse para fazer bons sapatos e os vender a preços justos. Como qualquer atividade secular, a atividade pública não é atividade evangelística, mas o desenvolvimento das atividades terrenas também foi uma missão confiada aos homens. É um trabalho secular, porém, ordenado e mandado por Deus. José e Daniel, personagens do velho testamento, são bons exemplos de ‘cristãos’ no exercício de atividade públicas. Eles não procuraram tornar seus cargos em meios de transformar seus reinos em teocracias, como foi Israel. Simplesmente seguiram sua vocação com excelência e diligência, obtendo o respeito dos regentes estrangeiros e melhorando a vida daqueles sobre os quais exerciam autoridade. Quando tomavam decisões no tribunal, José e Daniel tinham de basear seus julgamentos nas leis egípcias e babilônicas, e não na lei hebraica, embora jamais tenham endossado algo que violasse suas próprias relações com Deus. Portanto, o artista cristão não necessita justificar sua vocação por aquilo que a torna evangelística, pois ela deve simplesmente entreter e expressar excelência artística. Do mesmo modo, um juiz cristão não deve proferir sentenças cristãs. As formas especificamente cristãs de culto, de educação e de piedade devem ser ministradas no lar e na igreja.

Em que sentido você diz que o Estado pós-moderno, que tudo cuida e em tudo está presente, é o maior responsável pelos problemas da humanidade?

A miséria, tal como a gravidade, nos arrasta para a profundeza das águas assim que paramos de nos movimentar, tão logo deixamos de ser empreendedores e de produzir os bens de que necessitamos para sobreviver. Não vivemos em um mundo de abundância natural. Esse fato, apesar de óbvio para quem tem bom senso, foi ignorado pelo pensamento progressista de esquerda, que conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos. Isso seria garantido pela instituição de um Estado socialista ou de bem-estar social, os quais assumiriam a responsabilidade de suprir as necessidades humanas mais básicas e de tornar os homens mais felizes.

Não bastasse o amplo fracasso desses projetos, que em alguns lugares causou a morte de milhões de pessoas e em todos disseminou a corrupção, a consagração de benefícios materiais em direitos que devem ser atendidos a todo custo demandou a formação de Estados gigantescos e poderosos e destituiu das pessoas os valores morais mais básicos de convivência humana, como por exemplo os sentimentos de gratidão e de responsabilidade. A sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado; a família foi suplantada pelo ensino oficial; a necessidade de trabalhar e de empreender foi substituída pela confiança no auxílio estatal; a noção de dever cedeu espaço aos direitos universais; a vida inteira foi politizada e partidarizada. O Estado cresceu e nós diminuímos. E não houve contrapartida, porque aquelas promessas de prosperidade jamais foram cumpridas pelo Estado, digo, pelas ‘pessoas de bem’ responsáveis por guiar a humanidade.

Quando se pensa na estratégia do filósofo e agitador cultural italiano Antonio Gramsci, penso ser possível dividir as pessoas em três grupos: os que seguem à risca a sua cartilha em busca de promover a chamada ‘revolução cultural’, saibam ou não de sua origem e propósitos, aqueles que buscam, mais ou menos perplexos, defender-se de seus efeitos; e, por fim, um terceiro grupo, da imensa maioria das pessoas, que carregam o seu piano diário, trabalham, alheias à agitação que se faz em nome das transformações sociais que o italiano imaginou. Parece-me que é a esse terceiro grupo, majoritariamente, que a pensadora brasileira Marilena Chauí disse odiar com todas as suas forças (“eu odeio a classe média”). Fico pensando que, descontada sua histérica manifestação de ódio, a tese de fundo dela faz sentido: o povo começa a ganhar dinheiro como fruto de seu trabalho e não quer mais saber de fazer a revolução. Até o fim dos tempos, porém, muita gente boa se perde e se perderá na defesa de bandeiras tortas e sem futuro. Já que você gosta de música caipira, lembro-me do verso mais triste da música brasileira: “Meus irmãos perderam-se na vida à custa de aventuras”. Essas aventuras, parece, têm sido a perdição de muitos… Como você vê essa questão?

Você traçou com precisão o atual quadro social brasileiro. Foram as ideias desse ideólogo comunista que promoveram o adestramento mental das pessoas que hoje, envelhecidas mas imaturas, comandam o Brasil e despejam sobre ele todo o azedume de seu ressentimento, inoculando nos jovens a mentira de que nascemos todos bons e lindos, mas ‘o sistema’ nos tornou feios e está usurpando nosso direito político à felicidade. Desorientados, ressentidos e livres de qualquer responsabilidade por suas escolhas individuais, os ‘teleguiados’ despejam sobre tudo e todos a culpa de suas frustrações e se lançam na aventura de mudar o mundo, de acabar com os conflitos no Oriente Médio e com a fome na África. Mas nem sempre seus objetivos são tão grandiosos: eles também vão aos shoppings fazer ‘rolezinhos’ e exigir o direito constitucional de comprar um iPhone. Por trás dessas causas e discursos que negam a realidade estão a incompetência para a vida e a recusa de aceitar a si mesmo. E os agentes da revolução cultural, fiéis à cartilha gramsciana, souberam muito bem explorar essa ‘oportunidade histórica’. Tédio, sensação de vazio, vaidade, ressentimento e tutti quanti são sentimentos humanos aos quais todos estamos sujeitos. Não ceder a eles exige maturidade. Para sermos homens, no sentido mais profundo da palavra, devemos aprender a não dar espaço a esses vícios, não no sentido de ignorá-los ou negar sua influência, mas sim reconhecer que estamos sujeitos a eles, compreendê-los e fazer com que nossos bons impulsos se sobressaiam.

Ao abordar seu plano de estudos, você diz tê-lo iniciado a partir da perplexidade que lhe tomou diante da complexidade da realidade. O que você quer dizer quando fala que ‘a realidade é muito mais complexa do que parece’?

Quando eu lhe disse isso, e não faz muito tempo, falei sobre o que não sabia e apenas expressei minha ignorância. Não sei se a realidade é mais complexa do que parece ou se nós é que somos incapazes de apreender seus aspectos mais essenciais. Não tenho ainda competência para fazer esse julgamento e não posso transferir minha inaptidão de conhecer as coisas a elas próprias. Mas há algo sobre o qual nosso ‘bom senso’ não se engana: o fato de que as pessoas nascem, crescem, comem, se reproduzem, se amam ou se odeiam e depois morrem. Em torno disso orbitam nossas preocupações e perplexidades. E isso foi observado por um sábio há mais de três mil anos, conforme está em Eclesiastes 1:4-9.

→ Você reconhece que há em sua formação uma grande lacuna no campo cultural e moral. Em que consiste essa lacuna e o que tem feito para tentar saná-la?

Embora nunca as tenha ignorado completamente, cultura, arte e espiritualidade sempre foram por mim colocadas em segundo plano, como questões às quais eu deveria dedicar atenção somente quando houvesse tempo sobrando ou depois que eu houvesse alcançado meu objetivo profissional. Logo que fui aprovado no concurso de procurador da República e antes de assumir o cargo, senti-me então autorizado a compatibilizar o estudo do direito com o de filosofia, ciência política, religião e arte. Comecei então a assistir a aulas do Seminário de Filosofia do professor Olavo de Carvalho, adquiri dezenas de livros sobre esses assuntos, mergulhei-me de corpo inteiro nesse empreendimento. Durante aproximadamente dez meses li mais sobre ciência política e filosofia do que o havia feito em dez anos. Até então, e a aprovação no difícil concurso para o cargo de procurador da República reforçou isto, sentia-me satisfeito comigo mesmo e o impulso inicial para ampliar meus conhecimentos estava voltado a confirmar ou reafirmar minhas ‘opiniões’. Não demorou e muito perdi o senso de orientação diante do turbilhão de novidades com que eu me deparava e por perceber como eram superficiais muitas de minhas convicções. Essa chacoalhada aumentou minha curiosidade e me ensinou que é preciso ter paciência e disciplina para prosseguir com um projeto de (re)educação, que deverá durar a vida inteira.

Se eu entendi bem você começou um plano de estudos há cerca de um ou dois anos. Tem tido dificuldade em começar, em assimilar os autores desconhecidos? Que livros, orientações ou mesmo inquietações, você pode repassar a quem queira começar uma vida de estudos séria?

O professor Olavo de Carvalho diz que somente aprendemos determinada coisa quando esquecemos que a aprendemos, ou seja, quando esse conhecimento nos altera e passa a fazer parte do nosso próprio ser. Somente me lembro daquilo que eu sou, disse o francês Jean Filloux. Por isso, transmito a essencial recomendação do professor Olavo de que devemos iniciar nossos estudos a partir daquilo que consideramos realmente importante em nossas vidas e que de alguma forma nos modificará, pois somente assim trataremos o problema com seriedade e responsabilidade. Depois de compreender e aceitar essa orientação, convencido de que não conseguiria ‘abraçar o mundo’ de uma só vez, dediquei-me a estudar a cosmovisão cristã e o pensamento conservador. A quem ainda, como eu, pouco sabe a respeito do conservadorismo, sugiro a leitura de ‘A Política da Prudência’, do norte-americano Russell Kirk, ‘A Vida Na Sarjeta’, de Theodore Dalrymple, e o livro que estou terminando de ler ‘Nossa Cultura…ou o que Restou Dela’, deste mesmo autor. No que diz respeito à cosmovisão cristã, recomendo ‘O cristianismo puro e simples’, de C. S. Lewis, ‘Cristo e Cultura: Uma Releitura’, de D. A. Carson, ‘Dando nome ao elefante’, de James W. Sire, e o livro mais atual de todos, a Bíblia, porque trata do Deus eterno e quando fala do homem se reporta ao que ele tem de permanente. E aconselho aos que me leem a não demorar o quanto demorei: leiam logo ‘A vida intelectual’, de Antonin Sertillanges.

 

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Entrevista com Renata Baptista: “Um dos maiores erros de abordagem dos órgãos do Estado é não ver que o criminoso, o corrupto, é um ser racional que vai ponderar os ônus e os bônus de sua atividade na busca pela própria felicidade”.

Renata Baptista busca trabalhar as questões jurídicas com os olhos abertos para o mundo. Os estudos de análise econômica do Direito — aos quais se tem voltado atualmente — vêm-na auxiliando nesse caminho. Para ela, muito além de operacionalizar o Direito em si, importa sermos “capazes de compreender problemas e de oferecer respostas que levem em conta também outros aspectos do mesmo problema”.

Por que ela escolheu o MPF? “É a única carreira que eu poderia acessar por concurso e na qual poderia trabalhar com combate à corrupção e política pública, partindo de múltiplas perspectivas”.

Raciocinando a partir de premissas lançadas por Gary Becker, diz que o criminoso (aí incluído o agente público corrupto) levará em conta as vantagens e as desvantagens de sua conduta; e que “a efetividade das punições é um fator que aumenta o ônus para o criminoso”. Segundo entende, com um Poder Judiciário que não consegue aplicar as devidas punições, os bônus da atividade criminosa superarão os seus naturais ônus.

Para ela, a convivência de várias gerações dentro do MPF é semelhante ao que vem ocorrendo no seio da própria sociedade e de suas agências — fenômeno que ela, porém, vê com certa naturalidade. Comparando nossa instituição com uma orquestra sinfônica, diz que “cada um tem a crença pessoal de que todos saberão desempenhar bem seus papéis. É um reconhecimento que nasce apesar do desconhecimento mútuo sobre a pessoa de cada um”.

Renata é entusiasta do treinamento de sua equipe na PRTO. Periodicamente, reúne-se com eles para assistir a vídeos do TED Talks sobre Economia, Psicologia e Neurociência e para falar sobre temas jurídicos específicos.

Aprovada no 25º Concurso de Procurador da República, Renata Baptista, carioca, assumiu suas funções em 2012 na Procuradoria da República no Estado de Rondônia, onde foi Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão. Atualmente cuida de um dos ofícios do Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República no Estado do Tocantins. Veja o interessante dedo de prosa que trocamos com ela, em nossa 13ª entrevista.

 

Economia comportamental, neurociência, sociologia e psicologia social: esses são os temas com que, além do trabalho, você tem se ocupado hoje. Acredita que a nossa atividade na Procuradoria da República é um campo fértil para essas pesquisas? Se sim, em que sentido?

Bom, em primeiro lugar, em atividades de alta performance, que requerem domínio bastante específico de normas, técnicas, linguagem e rotinas, vejo que grande parte das pessoas diretamente envolvidas (senão todas elas) estão niveladas em alto grau de excelência no campo principal de atuação.

No Ministério Público, por exemplo, ninguém duvida que os colegas são muito capacitados para oferecer respostas jurídicas (no plural, mesmo) aos problemas que lhes são apresentados. Nesse cenário, em que os integrantes estão nivelados por cima, o Direito é o que menos importa. O que importa é se somos realmente capazes de compreender problemas e de oferecer respostas que levem em conta também outros aspectos do mesmo problema. É lógico que, antes de tudo, precisamos transitar dentro do campo jurídico. Mas entre os caminhos possíveis – e, muitas vezes, até para definir o que é o jurídico ou não –, é essencial levar em consideração outros campos do saber.

O que percebo é um movimento de cada vez maior especialização jurídica: já vi uma disciplina eletiva de um curso de graduação chamada “Direito dos Contratos Internacionais do Petróleo”. É evidente que a complexidade da vida requer algum tipo de mergulho estritamente jurídico, mas talvez possa ser igualmente producente resgatar aquela formação humanística que marcou os cursos de Direito lá atrás, e sair um pouco dessa abordagem estritamente jurídica das controvérsias.

Há questões concretas que você busca responder através de suas leituras? Se sim, quais são?

Prometi a mim mesma uma espécie de período sabático depois de ingressar no MPF. Meu maior interesse passou a ser mesmo só aquele que parece mover todo ser humano, ainda que de modo geral: entender um pouco mais sobre si mesmo, conhecer um pouco mais dos outros, compreender o mundo que nos cerca… Enfim, era um projeto que parecia nada ou menos cansativo do que buscar respostas concretas, mas acho que, quando abrimos a mente, descobrimos mais perguntas e pouca coisa pode ser mais desafiadora do que descobrir mais perguntas.

Para Schopenhauer, “nossas ações e nossa biografia não são obras nossas, mas sim daquilo que ninguém considera como tal, ou seja, da nossa essência e existência… Portanto, a vida do homem já está irrevogavelmente traçada, em todos os seus pormenores, no momento do nascimento”. O estudante de neurociência hoje tende a confirmar essa visão? Acredita que a ciência chegará um dia a provar que a liberdade humana é uma ilusão, Renata?

Felizmente, acho difícil que um estudante de Neurociência chegasse a tanto. Estudos sérios de Neurociência jamais chegariam a uma afirmação tão ampla como essa. Bem, de fato, não só estudos sérios de Neurociência, como também estudos sérios de Genética e Psicologia Evolutiva, poderiam lhe dizer que há, sim, traços inatos do ser humano que influenciam decisivamente o processo de tomadas de decisão, mas não a ponto de, a partir disto, concluir que a liberdade humana é uma ilusão. Sua referência reflete bem o modo como rotineiramente se costuma atrelar genética a determinismo – e, de determinismo a soluções extremas, também se costuma das um pulo argumentativo rápido e pretensamente racional.

A lógica binária é “se há livre arbítrio, então não há traços inatos; se há traços inatos, então não há livre arbítrio”. As ciências humanas têm uma pretensão que pode ser essencialmente resumida em oferecer soluções para compreender e pensar modos de adequar o comportamento humano. Para tanto, há a premissa de que o comportamento humano é moldável. O problema é o salto argumentativo: dizer que há alguns traços inatos, imutáveis, não significa dizer que todo o comportamento está indelevelmente traçado pelos genes desde a origem e que, portanto, não é possível fornecer os estímulos certos para formar e adequar o comportamento humano de modo a viabilizar plenitude pessoal e convívio social harmônico.

Onde você passou sua infância? Que lembranças traz daquela época? Acredita que alguma circunstância daquela época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Passei toda minha infância na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Depois, mudamos para Copacabana e, entre os 15 e 17 anos, morei em Corona, na Califórnia, Estados Unidos, por conta de um intercâmbio. Quando voltei do intercâmbio, estava em dúvida entre fazer Engenharia, Direito ou Medicina.

Tive sorte porque minha família nunca me cobrou ou precisou me cobrar uma decisão e sempre me estimularam a tomá-la com elementos concretos em mãos. Eu mesma sempre achei desumano exigir que um jovem com apenas 17, 18 anos decida tão cedo o que, presume-se, vai fazer pelos próximos muitos anos. Então, fiz vestibular para as três. Passei, mas só cursei simultaneamente Engenharia e Direito. Com pouco tempo, vi que seria difícil conciliar e nunca cheguei a cursar o ciclo específico de Engenharia. Percebi que gostava mesmo era de Direito, mas nunca desisti completa e intimamente das Exatas. Sabia que, talvez no futuro, eu pudesse conciliar.

E foi a partir dessa vontade de conciliar Exatas e Humanas que eu conheci o MPF. Quando estava no oitavo período de Direito, li por conta própria um artigo do Richard Posner que citava um artigo do Gary Becker, sobre o criminoso racional, e me interessei sobre política pública de combate à corrupção. A AGU, minha primeira experiência profissional no setor público, também tem propostas interessantes neste campo, mas existem limitadores, como o fato de não poder lidar cotidianamente com a ação penal. Escolher o MPF, então, foi questão simples: é a única carreira que eu poderia acessar por concurso e na qual poderia trabalhar com combate à corrupção e política pública, partindo de múltiplas perspectivas (micro e macro).

Você provavelmente já esteve diante de um inquérito policial e teve dúvidas sobre se era justo denunciar o investigado ou arquivar a investigação. Você acredita que existam, nesse campo, decisões substancialmente técnicas? O que você costuma levar em conta na decisão de denunciar um investigado?

Talvez esse seja mesmo o momento mais difícil das nossa atividade criminal: denunciar ou arquivar. Sem maiores dados, e na seara criminal, chuto que em 90% dos casos 90% dos colegas concordariam com a decisão tomada por um outro membro de arquivar ou denunciar – se não concordassem cabalmente, ao menos reconheceriam que ela é racional. Este alto grau de consenso parece derivar da técnica jurídica que subjaz à formação de todos nós e que permeia a análise dos fatos. E, portanto, esse consenso também parece ser uma prova de que há, sim, decisões substancialmente (e não exclusivamente) técnicas.

Os casos em que há dúvida razoável são poucos. Neles, adoto um procedimento padrão para tentar simplificar o dilema: havendo dúvida razoável, denuncio, porque assim possibilito que um ator sistemicamente idealizado para decidir (o Judiciário) possa exercer seu papel.

Você é apreciadora de heavy metal e rock clássico… A propósito, o rock brasileiro está morto, Renata?

Não tenho orgulho do que vou dizer, mas não conheço nada, nada mesmo, de rock brasileiro. Talvez porque na época em que comecei a me interessar de verdade por música ele já tivesse morrido. Quem sabe?

É uma possibilidade… Bom, concordamos então que a certidão de óbito já foi lavrada, não é? Mas, mudando de assunto, Renata, você acredita que a Justiça tem ocupado posição importante no combate à corrupção no Brasil? Carrego comigo a impressão de que o nosso trabalho de natureza punitiva, extremamente necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Sim, o Judiciário é um ator relevante no combate à corrupção. Mas, atualmente, e de forma geral, ele vem passando estímulos ruins e, por isto, o trabalho de natureza punitiva não vem gerando os resultados esperados. A corrupção é um fenômeno complexo, mas, em essência, lida com o que há de mais intrínseco no ser humano: maximizar a própria felicidade. Um dos maiores erros de abordagem dos órgãos do Estado – o que inclui o Judiciário – é não considerar o criminoso, o ímprobo, como um ser racional que vai ponderar ônus e bônus na busca pela própria felicidade. Jamais conseguiremos anular essa busca. Mas Direito é uma ferramenta disponível para que se passe aos estímulos certos no sentido de que essa busca pela felicidade não seja exercida em detrimento, algumas vezes involuntário, de outros valores caros aos demais indivíduos e à sociedade em geral.

A efetividade das punições é um fator que aumenta o ônus para o criminoso e, no nosso sistema, o Judiciário é por excelência o ator responsável pela aplicação legítima das punições. Imagine então se o Judiciário faz isso de forma displicente… É uma cadeia de raciocínio tão óbvia que me faz refletir se, de algum modo, essa leniência judicial já não chega a ser dolosamente querida – é preciso desconfiar dos propósitos de atores racionais quando, conhecedores das circunstâncias essenciais, não adotam comportamentos racionais esperados.

Vamos falar da gente. O Ministério Público conquistou nas décadas de 80 e 90 garantias institucionais e instrumentos processuais que o constituíram com uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns colegas dessa geração convivem hoje com colegas como você, recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. A geração mais nova conhece o trabalho dos colegas da primeira década pós-Constituição? Acredita que esse trabalho consolidou uma certa tradição? Se sim, que tradição é essa?

O choque de gerações é natural dentro e fora das instituições. O que vivemos dentro do MPF é parte representativa de um cenário vivido no país, formada pelo envelhecimento da sociedade – com o consequente aumento do limite etário para o término da vida laborativa – e pelo fator “multi-habilidade” – os jovens estão conseguindo conciliar muito bem estudo e trabalho – e, em consequência, finalizam os estudos com proficiência cada vez mais cedo e, como já estão no mercado de trabalho, a exigência temporal de exercício de atividade jurídica é alcançada com facilidade.

Mas, com o cenário de criação de novas vagas – praticamente dobrando a quantidade de cargos existentes –, a realidade de acréscimo de gerações na carreira e o aumento da diferença entre os extremos etários tende se reforçar muito em breve. E, aí, acho que pode caber uma pergunta, igualmente racional, mas bem menos comum que a sua: será que os colegas da primeira década pós-Constituição conhecem e conhecerão os colegas recém-empossados?

Há algo que esquecemos reiteradamente quando direcionamos esse tipo de questão: em certas conjunturas, o melhor que se pode esperar de alguém a título de respeito é reconhecer sem conhecer. Vou usar de uma analogia aqui: certo tempo depois da fundação de uma orquestra, ocorre o recrutamento de músicos e, não raro, aqueles que já a integravam não conhecem cada aspecto dos músicos recrutados. Este desconhecimento aprofundado é bem comum, inclusive, quanto aos maestros, em especial depois que orquestras ganharam a dimensão que têm hoje. Mas o fato é que cada um – mesmo o selecionado – confia, primeiro, nos critérios de seleção e no julgamento dos selecionadores; e, segundo, confia no selecionado, de modo que cada um tem uma crença pessoal de que todos saberão desempenhar bem seus papéis. É um reconhecimento que nasce apesar do desconhecimento mútuo sobre a pessoa de cada um.

O MPF tem duas práticas muito salutares nesse sentido. A primeira delas é a atribuição, a membros da carreira, da responsabilidade por todas as fases do concurso de seleção. É um bom modo artesanal de fazer o recrutamento, porque permite uma espécie de contato inicial entre a proposta institucional, representada pelos integrantes da banca, e os candidatos, tudo na via de um procedimento objetivo. A segunda é o mecanismo de revisão mínima da atividade-fim por outros membros, que, por sua vez, são previamente conduzidos a esta função por um procedimento transparente de que participam outros tantos membros. Particularmente, acho reconfortante ter meus posicionamentos revisados por colegas mais experientes, ainda que o resultado não seja favorável. Acredito na ideia de que precisamos ser capazes de convencer e ser convencidos por argumentos racionais.

Vejo como os principais traços da “tradição” do Ministério Público a motivação e a compreensão crítica da realidade. O tempo passa, as pessoas mudam, as demandas mudam, os recursos mudam, mas com a dosagem adequada de motivação e análise crítica é possível construir um ótimo resultado.

 

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