“A perda de nossas legítimas vantagens remuneratórias representou no passado uma perda na qualidade no recrutamento. E qualquer instituição é tão boa quanto as pessoas que a compõem.”. Veja nossa entrevista com Tomaz Leonardos.

Houve um tempo em que, no Rio de Janeiro, os procuradores da República trabalhavam ao lado da fábrica da cervejaria Antártica, “com cheiro forte de cevada fermentando nos tanques”. “Éramos nós, uma máquina de escrever Remington, uma secretaria e uma estagiária para cada procurador”, diz Tomaz Leonardos, testemunha viva da época.

Carioca de ascendência grega, um ‘jurássico assumido’, Tomaz prestou um único concurso em toda a sua vida: o famoso concurso de 1984, que congregou na mesma lista de aprovados o atual PGR Rodrigo Janot e dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa.

Embora sua família não tenha sofrido represálias direta ou indiretas na época do Regime Militar, Tomaz acredita que ter crescido na época da repressão “nos fez meio alienados da política, até porque era muita censura, desinformação e ufanismo”.

A memória de Tomaz é um depósito vivo — de casos novos e de casos ‘nem tão novos assim’. Por essa razão e por outras que logo ficarão claras, é uma satisfação tê-lo como nosso entrevistado neste 29º dedo de prosa.

Como foi sua formação antes de entrar para o Ministério Público?

Eu sou carioca criado em Ipanema na década de 1960, quando as praias eram limpas e, segundo Nelson Motta, ‘Ipanema era a sucursal do Paraíso’€ — frase lapidar que me marcou do seu ótimo best seller ‘Ao som do mar e à luz do céu profundo’. Sou flamenguista de formação católica. Estudei no Colégio Santo Inácio. Depois, fiz Direito na UERJ e Administração de Empresas na Faculdade Cândido Mendes. Na juventude, gostava de ler, de remar de caiaque, de andar a cavalo na Serra dos Órgãos e de nadar. De certa feita, nadei numa final emocionante de Campeonato Carioca de Natação pelo Flamengo com sunga rubro-negra e com a Torcida Jovem, a Charanga do Mengão e a Flamante presentes e umas dez mil pessoas assistindo lá no Vasco. O Djan Garrido Madruga, que representava o Fluminense, ganhou disparado, óbvio. Depois ele foi medalhista de bronze nas Olimpíadas de 1980, em Moscou, em um tempo bom, que não havia nadador bombado. O cara era um fenômeno.

Fiz o curso da Cultura Inglesa completo e o da Aliança Francesa também. Um dia colegas recém-formados da UERJ me falaram no Centro do Rio que estavam abertas as inscrições para o MPF. Fui lá e me inscrevi, achando que não tinha nenhuma chance. Desde novo sonhava em ser advogado, pois muito admirava meu avô Thomas Leonardos, ex-conselheiro federal da OAB, presidente do IAB e cônsul da Grécia. Era jurista e autor de várias obras de Direito da Propriedade Intelectual e atuou como advogado e consultor jurídico de personalidades famosas do passado, como Oswaldo Aranha, Carlos Lacerda e Aristóteles Onassis. Esse último o contratou, já que grego só confia em grego, para defender seus interesses na América Latina. E assim prossegui, com pouco tempo para estudar, uma vez que já trabalhava no escritório de marcas e patentes da família.

Fiz o concurso do MPF de 1984, que começou em 1983, e passei, para minha própria surpresa, com apenas 25 anos e com apenas dois anos e meio de formado. Na realidade foi pura sorte. Caiu na prova exatamente tudo o que estude. Coisa do destino. Era para ser. Foi o único concurso que fiz em toda a minha vida.

Quando você entrou na carreira, vocês eram pouco mais de cem procuradores da República em todo o Brasil. Como era a interlocução com os colegas? Todos se conheciam pelo nome?

Sim, Bruno, éramos pouca gente nos quadros e muito serviço. As procuradorias da República nos Estados eram como compartimentos estanques e só existiam nas capitais. Não havia ainda a interiorização da Justiça Federal. Na década de 80, nós mal víamos ou conversávamos com colegas de outros Estados e com os da PGR. O nosso Encontro Nacional de Procuradores da República nem existia naquela época.  A instituição engatinhava e buscava novos caminhos para atuar e se afirmar. Em 1985 veio a lei da ação civil pública. Mas era confuso. Estávamos atrelados à estrutura do Executivo e estávamos subordinados de certa forma ao Ministro da Justiça. Não havia ainda nem a inamovibilidade nem a independência funcional ampla que veio com a Constituição de 1988. Colegas antigos que em mandado de segurança ousavam dar pareceres contra a União na época do regime militar chegaram a ser ameaçados, por Brasília, de remoção para outros Estados menos palatáveis. Pelo menos foi isso o que ouvi.

Com relação à minha pessoa só sofri pressão uma vez. Veio da chefe da Censura Federal, a famosa Dra. Solange Hernandez, que me ligou irada, pois eu me recusava a recorrer, como advogado da União, de liminares de liberação de filmes que haviam sido totalmente censurados. Os pareceres dos censores da Polícia Federal eram tão ridículos que todos nós ríamos muito ao lê-los. O sujeito botava lá “esse filme agradaria muito a uma plateia de degenerados e pervertidos”. Tem que rir. Cinema só entra quem quer e quem compra ingresso. E a censura tem que ser classificatória. Óbvio.

Você entrou na PRRJ com apenas 25 anos e com isso era o procurador mais novo da sua geração. Ao entrar no MPF, você sentiu algum desconforto em razão da idade?

Na verdade, não. Nunca fui discriminado por ser o mais novo. Fomos recebidos aqui de braços abertos pelos colegas antigos, Carlos Roberto Siqueira Castro, Alcir Molina, Alcides Martins e Paulo César Espírito Santo; e também pelos nomeados sem concurso que ainda estavam na ativa à época, José Naufel, €“dicionarista gentil e corcunda, Carlos Geminiano, Vicente Saraiva e Celso Passos. Nessa foto aqui, de 1984, estamos eu e o procurador-chefe da PRRJ na época, Carlos Roberto Siqueira Castro. Isso foi na nossa posse no Rio de Janeiro.

Carlos Roberto Siqueira Castro, então procurador-chefe da PRRJ, e Tomaz Henrique Leonardos, procurador da República recém-empossado (1984)

Aqui nessa outra está o PGR Inocêncio Mártires e o presidente do STF Min. Cordeiro Guerra, que nos prestigiou na cerimônia de posse.

PGR Inocêncio Mártires e o então presidente do STF Min. Cordeiro Guerra, na posse de procuradores da República (1984)

Só posso agradecer a esses gentis colegas que nos estenderam a mão e nos deram dicas valiosas , já que PR rookie não sabe nada mesmo. Até acha que sabe, mas só tem cultura, garra e vontade. E pato novo não deve mergulhar fundo senão se afoga. Entrei sabendo que não sabia quase nada. Por isso me metia em tudo que era curso de extensão.

Quais eram as condições de trabalho do procurador da República na década de 80, quando você assumiu?

As condições de trabalho na PRRJ de 1984 a 1989 eram péssimas. A sede ficava la Lapa, na Rua do Riachuelo, ao lado de sobrados que abrigavam oficinas, vendas, casas de má-reputação e tinha colada a fábrica urbana, pasmemos, da cervejaria Antártica, com cheiro forte de cevada fermentando nos tanques de fermentação, entrando em nossas narinas. Não tinha ar condicionado na maioria das salas. Computador, nem pensar! Éramos nós, uma máquina de escrever Remington, uma secretária e uma estagiária para cada procurador. E todo o serviço que hoje é dividido entre MPF, AGU e PFN. Uma coisa inviável. Era na base de mil processos por semana na mesa. Várias vezes eu e meus colegas tivemos que comprar do nosso bolso resmas de papel e fita pra máquina de escrever para conseguir soltar o serviço. O prédio tosco e velho, que o colega procurador-chefe Carlos Roberto Siqueira Castro conseguira do INSS e adaptou, foi até uma vitória à época, no €“início da década de 80. Serviu para tirar o MPF do Rio de Janeiro do vergonhoso humilhante poleiro no último andar da Justiça Federal, pois a PRRJ funcionava no prédio do antigo Supremo Tribunal Federal, que era a Justiça Federal – e que hoje é um museu.

Você já pode ser considerado um colega ‘da velha guarda’. Ingressou no MPF no concurso de 1984, o mesmo do PGR Rodrigo Janot, dos ilustres Min. Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa e do subprocurador-geral José Bonifácio Andrada, entre outros. Lá se vão 31 anos de Ministério Público. Você se arrepende-se de algo que fez ou que não fez no Ministério Público?

Sim, Bruno, sou um jurássico assumido. Meu concurso acabou sendo especial, pois foi o único que deu um ótimo PGR, o Rodrigo Janot, e dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, que antes atuou aqui conosco na Procuradoria Regional da 2ª Região. Joaquim era nosso laterial direito no time aqui da PRR2. Eu era o goleiro, o colega Celmo, o volante, e o colega Queiroz, o centro-avante enfiado. Entramos nós na década de 80 em uma época romântica, em que o serviço era artesanal. Agora mudou tudo. Tudo é feito pelo computador. E esse processo judicial eletrônico que nos enfiaram goela abaixo, uma coisa que ninguém merece e nem economiza árvore nenhuma; sim, porque todo mundo acaba imprimindo muita coisa, já que olhar tela o dia inteiro acaba com a vista.

Só me arrependo um pouco de não ter feito mestrado lá fora, quando ainda tinha disposição para tanto e quando a liberação pela PGR em relação ao serviço era total. Agora ficou difícil fazer. Parei mesmo na pós-graduação lato senso. Fiz uma de Direito Tributário e outra de Direito da Propriedade Intelectual.

Coisas do arco da velha aconteciam naquela década de 80. Certa vez, o colega faixa preta Alcir Molina começou a bater boca com o juiz federal Ariosto em um depoimento lá na Vara Criminal Federal; visto que o juiz indeferia quase todas as suas perguntas. Um se irritou com o outro, se xingaram e se deram, um ao outro, ordem de prisão simultânea por desacato. Foi uma confusão danada lá no prédio do antigo STF, com Polícia Federal, imprensa e o escambau. Corria o ano de 1987.

Você advoga na área de propriedade intelectual em um escritório fundado em 1919, com unidades no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre. Qual é a origem e a história desse escritório quase centenário?

Sim, eu e vários colegas que entramos antes da Constituição de 1988 ficamos o direito adquirido de exercer advocacia com impedimento parcial, pois na época da posse podíamos advogar nessas condições restritas, e diga-se que muitos sequer teriam feito inscrição no concurso da época não houvesse essa ressalva, pois o vencimento era irrisório. Minha atividade privada part time não me impediu de liderar a estatística de produção de processos despachados em 2003 na PRR2. E isso foi motivo de orgulho para mim, pois temos colegas que são verdadeiras máquinas de trabalhar.

Descendente de imigrantes gregos, você conhece a história de seus antepassados que vieram para o Brasil? Qual é?

A família Leonardos veio de Atenas em meados do século XIX para o Rio de Janeiro. Meu trisavô Othon Leonardos, neto de Athanasio Leonardos, que foi oficial do Exército grego na guerra com a Turquia, foi também cônsul da Grécia no Império. Assim como seu neto, Thomas Leonardos, meu avô, depois viria a ser também nos anos 40 e 50. Meus ancestrais que vieram da Grécia eram comerciantes de móveis e antiguidades. Até consegui, com meus irmãos, obter cidadania grega. Mas como a Grécia quebrou há uns cinco anos, nem mandei fazer o passaporte grego. Me disseram que nos aeroportos europeus os gregos estavam sendo mais maltratados que os cidadãos terceiro-mundistas da América Latina.

Nunca lhe passou pela cabeça aceitar promoção para a Subprocuradoria-Geral? Você confirma a regra de que o carioca não consegue viver longe da praia e do sol…

Realmente, Bruno. Nunca me passou pela cabeça mesmo. Sou carioca da gema criado em Ipanema, como disse. Nunca me imaginei morando em outra cidade, apesar de me incomodar com o calor úmido do verão. O Rio, mesmo violento, poluído e engarrafado, é um lugar lindo pela natureza ímpar. Amigos europeus que visitam o Rio sempre comentam que nunca viram algo tão lindo com matas quase virgens dentro da cidade. Sempre me recuso a concorrer a promoção a subprocurador, assim como tem feito os colegas Carlos Xavier, José Homero e Leivas, também do concurso de 1984. Na realidade, além de achar difícil me adaptar em outra cidade, há que dizer que o acréscimo nos vencimentos é bem baixo e as despesas com passagens de avião e mudança de base seriam enormes. Tanto é assim que duas colegas regionais foram promovidas a subprocuradoras recentemente, se arrependeram e pediram ao PGR para anular a promoção e retornar a PRR de origem. Os ministros do STJ, parece, recebem verba extra referente a quatro passagens semestrais para visitar os Estados de origem. Nosso Conselho Superior já tentou debater a questão de certa feita, mas o assunto não avançou. Não vejo imoralidade nisso, mas em nossa categoria multifacetada decerto alguém verá.

Quando o Regime Militar instaurou-se você tinha cinco anos de idade. Em sua época mais complicada, nove. Completou 25 anos na época da Redemocratização, quando também ingressou no MPF. Você tem alguma lembrança de sua infância relacionada ao Governo Militar? Sua família, ou você, na adolescência, sofreram direta ou indiretamente com os militares?

Crescer na época de ditadura nos fez meio alienados da política, até porque era muita censura, desinformação e ufanismo. Não sofremos represálias diretas nem indiretas, mas poderíamos ter sofrido. Meu avô Thomas Leonardos denunciou na Tribuna da OAB, na década de 70, quando era presidente e conselheiro federal da OAB, que havia muita tortura de presos políticos nos cárceres do Doi-Codi, o que não se sabia na época. Saiu na primeira página do Globo. Meu tio Maurício, engenheiro químico que lecionava Termodinâmica na UFRJ, de certa feita deu fuga a dois diretores do Diretório Acadêmico que estavam sendo caçados pelo Doi-Codi; e os escondeu na própria casa durante uns três dias. Podia ter sido preso e morto por isso. A resistência ao regime militar tem vários heróis anônimos e outros que ganharam notoriedade, como o deputado Rubens Paiva, em cujo processo cível indenizatório contra a União, por seu sequestro e morte, movido por sua viúva Eunice Paiva cheguei a atuar como procurador da República fiscal da lei. Emiti parecer favorável à autora e a seguir a ação foi julgada procedente na Justiça Federal, com a transcrição quase integral do meu parecer na sentença. Uma aventura puxa a outra. Royalties para Monteiro Lobato, que foi promotor como nós.

Que leitura você faz desse período de nossa história nacional?

Acho que o golpe dentro do golpe foi terrível. Foi um período negro. Os militares se apegaram ao poder e o povo foi banido do processo eleitoral. Lembro-me de uma crônica espetacular do Carlos Drummond espinafrando os militares no Jornal do Brasil, na semana da escolha do General João Figueredo para suceder o General Ernesto Geisel.

Já caminhando para o final, falemos da relativa mudança de rumos a que temos assistido no último ano. Na apresentação que fiz a este site de entrevistas, disse que percebia nos colegas uma sensação geral de pessimismo com a carreira. “Já foram maiores no passado, as suas esperanças…”, disse então. Eis que em pouco mais oito meses muita coisa mudou no MPF: temos hoje reconhecidas, por lei ou por decisão judicial, diversas reivindicações administrativas e remuneratórias muito antigas, o PGR criou a tão-esperada assessoria de procuradores em seu gabinete, a Operação Lavajato tem dado uma visibilidade muito positiva à nossa instituição. Já não temos hoje tantos motivos para o pessimismo, penso. Você acredita que poderíamos aproveitar esse bom momento para pautar alguma grande questão que porventura esteja adormecida em nossos escaninhos institucionais?

Sem sombra de dúvida o PGR Rodrigo Janot virou o jogo! Conseguiu para nós procuradores, em um ano, o auxílio-moradia, a gratificação de acumulação de ofícios, a gratificação de chefia – eu sempre chiei em nossa rede corporativa contra a ausência dessa gratificação, já que o procurador chefe acumula funções administrativas. A gratificação da gratificação de chefia existiu no passado, mas foi lamentavelmente suprimida na gestão do PRG Brindeiro. E, por fim, conseguiu um reajuste no nosso subsídio. Nem em nossos melhores sonhos achávamos que isso fosse possível. Há mesmo que defender nossas legítimas vantagens com unhas e dentes, pois a perda delas representou no passado uma perda na qualidade no recrutamento. E, obviamente, qualquer instituição é tão boa quanto as pessoas que a compõem. Respondendo à tua indagação, acho que com o Petrolão resvalando em cabeças coroadas o momento é de cautela, e que a rapadura é doce mas não é mole. Há que reconhecer, todavia, que a imagem do MPF, na mídia e na sociedade, com a entrada do novo PGR e com a incrível Força Tarefa da Operação Lavajato melhorou enormemente. Quanto ao futuro, particularmente eu acho que temos de caminhar junto com a magistratura federal, o que, aliás, o PGR Rodrigo vem conseguindo fazer com maestria e de forma brilhante, com o apoio do Ministro Ricardo Lewandowski. Pois o terreno é minado.

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“Eu me considero um monarquista e sou contra a tortura e qualquer forma de covardia contra o indivíduo”. Veja o nosso segundo ‘dedo de prosa’, com Luiz Lessa.

Bem humorado com os amigos e mau humorado com a vida“: assim se define Luiz Lessa. Homem de poucas palavras, seus usuais comentários ao noticiário institucional, partilhado com os colegas na nossa lista eletrônica, desafiam nossa capacidade de interpretação, a explorar por baixo de sua pura literalidade algumas camadas plenas de significado.

Para ele, na investigação de alguns crimes específicos, “um Doutorado na Harvard Law School vale tanto quanto um certificado de conclusão de um curso de tricô e crochê“.

Embora reconheça que o MPF é a melhor carreira jurídica do Brasil, diz-se frustrado com o sistema jurídico nacional, que reputa “caro, demorado, ineficaz“. “Estamos sempre correndo atrás e enxugando gelo“.

Na sua opinião, a atuação do MPF na persecução dos crimes praticados por agentes públicos durante o Regime Militar de 1964-1985, não é “coisa de comunista” ou de quem está “a serviço dos terroristas“. Trata-se, sim, de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos; “de aplicar o Direito Penal de acordo com os ditames do Direito Internacional dos Direitos Humanos“.

Sobre o seu trabalho, diz que “mais do que um trabalhador irrecuperável, sou um curioso incurável. Se não precisasse trabalhar passaria a vida apreendendo coisas novas“.

Nesta segunda entrevista de nossa série, seu humor fino e cortante deu espaço ao dedicado profissional, ao leitor de romances policiais e ao amante de quadrinhos antigos. Eis o Lessa, por ele mesmo…

 

Você lançou recentemente a obra ‘Persecução Penal e Cooperação Internacional Direta pelo Ministério Público’ (Lumen Juris, 2013), muito festejada pelos colegas. Que obstáculos o Ministério Público Federal tem encontrado hoje em matéria de cooperação jurídica internacional?

O principal problema do MPF na cooperação penal internacional é o mesmo que atinge as demais áreas de sua atuação. Falta de recursos, sejam financeiros, sejam humanos. Não em qualidade, mas em número. Temos grandes colegas, com extenso e profundo conhecimento no tema; não temos, no entanto, colegas em número suficiente para atuar e desenvolver de forma estruturada essa atividade. É o mesmo problema que temos, penso, em todas as áreas. E, como nas demais áreas, essa falta de pessoal fez com que outros setores da Administração, tenham se apropriado de parcela significativa de nossas funções em todas as áreas. Hoje, graças ao atual PGR, essa área de atuação está sendo reforçada e estamos conseguindo construir sobre as fundações lançadas pelo Dr. Edson, que fazia o que podia praticamente sozinho.

Você está na Procuradoria Regional há cerca de um ano, depois de ter sido procurador da República por dezesseis. Já se acostumou com as novas funções? Como reagiu à mudança? Sente falta da PRRJ, Lessa?

O pique na Regional é bem mais calmo do que na PRRJ. Não que não exista trabalho, mas são pouquíssimos os procedimentos de investigação e o intercâmbio com juízes, partes, testemunhas, advogados, delegados e órgãos públicos é quase inexistente. Não se faz quase instrução e a atuação se limita à aplicação da teoria pura, fica uma coisa mais intelectual, às vezes bem chata. Por outro lado, a nossa atuação na PRR, porque é sempre uma reflexão sobre o trabalho feito em primeiro grau, sempre depende da boa atuação do PR. Se ele for mal, dificilmente dá para o PRR levar a cabo a tese suscitada em primeiro grau. Ainda bem que em um ano, quase nunca tive esse problema.

Há um clima geral de insatisfação com a carreira. Muitos encontram sua parcela de satisfação como a vida ‘fora do trabalho’ ou, em casos mais dramáticos, estão esperando a aposentadoria para finalmente ‘começar a viver’. Você disse que pretende deixar o cargo, ‘vivo e lúcido’, apenas na aposentadoria compulsória. Você gosta do que faz? Considera-se realizado profissionalmente?

O MPF é a melhor carreira jurídica do Brasil. Contamos com autoridades, reconhecidas nacionalmente pelo mercado e pela academia, em todas as áreas do Direito Público, com exceção do Direito do Trabalho, temos uma liberdade de interlocução com todos os graus e integrantes da carreira, salvo um ou outro colega, que não se encontra em nenhum outro órgão de igual importância. Pegamos, tanto no crime, quanto na tutela coletiva, os casos mais interessantes, como, por exemplo, o Mensalão, os Sanguessugas, Banco Nacional, Belo Monte, o vazamento de óleo da Chevron, aquele projeto Carne Legal, dentre outros tantos.

Agora o sistema jurídico nacional é insano, caro, demorado, ineficaz, e isso reflete na nossa atuação. Estamos sempre correndo atrás e enxugando gelo. Isso é frustrante. Veja, por exemplo, o caso recente do banqueiro que foi condenado vinte anos após a prática do delito, não obstante a investigação e o início da persecução, dada a complexidade dos fatos, tenha ocorrido com razoável presteza. A nossa infra-estrutura é insuficiente para permitir que o trabalho seja feito adequadamente e, apesar dos que muito pensam, a insatisfação com a remuneração tem ocasionado perdas significativas, tanto entre procuradores que se aposentam o mais cedo possível, quando não pedem exoneração, quanto entre os servidores que apoiam a atividade principal.

Recentemente, você atuou em processos que buscam a persecução penal dos crimes praticados por agentes públicos durante o Regime Militar de 1964-85. Acredita que a Comissão da Verdade, ao limitar sua investigação aos atos dos militares, entregará bons resultados à sociedade? Tem acompanhado o trabalho da Comissão? Como o avalia?

A proposta da Comissão da Verdade é outra, acompanho de longe o trabalho deles e não me sinto à vontade avaliando-os. A proposta do MPF, a nossa proposta, é de aplicar o Direito Penal de acordo com os ditames do Direito Internacional dos Direitos Humanos e isso não tem a ver com ideologia, mas sim com regras claras de DIDH. Falam que é coisa de esquerda, coisa de comunista, atacam o trabalho dizendo que, porque não se busca punição contra os terroristas, estamos a serviço dos terroristas. Essas pessoas ignoram o DIDH, não leram a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e desconhecem o que está sendo feito. Bem, eu me considero monarquista e parlamentarista, sendo contra a tortura e qualquer forma de covardia contra o indivíduo. Eu confio é no trabalho dos colegas que iniciaram e continuam nessa luta, colegas excelentes, dedicados, muito bem preparados, que estão fazendo um trabalho histórico e que, quem sabe, como tudo no MPF, conseguirão vencer depois anos de batalha.

A literatura policial está repleta de casos desafiadores, solucionados frequentemente através da inteligência dos detetives, do encontro de pistas, a partir de traições e de testemunhos inusitados. Como leitor de Raymond Chandler, o que pensa sobre o nosso inquérito policial como instrumento de investigação? Consegue imaginar alguma alternativa viável?

O trabalho de investigação é um trabalho que prescinde, em sua maior parte, do conhecimento jurídico. É um trabalho de análise, seja de evidências materiais, seja de dados e informações. É uma tarefa técnica de reprodução científica de algo que já aconteceu. Como tal, o conhecimento jurídico só serve para a qualificação jurídica da verdade revelada pela investigação e para a preservação dessa prova e dos direitos fundamentais do cidadão. Existem crimes, como os financeiros, por exemplo, em que o trabalho de um investigador que domine as ciências contábeis é inestimável, outros em que o exame necrológico é essencial para a apuração dos fatos. Nesses casos, um Doutorado na Harvard Law School vale tanto quanto um certificado de conclusão de um curso de tricô e crochê. O conhecimento jurídico só vai servir para organizar a prova de forma a convencer o juiz sobre a autoria e materialidade delitiva e isso quem faz é o Ministério Público. Por isso é essencial que o Ministério Público participe da investigação, para assegurar que a prova produzida satisfaz aos parâmetros que delimitam a justa causa da ação penal.

Quanto mais estudo, quanto mais converso com policiais estrangeiros, mais reforço a minha convicção de que o sistema policial brasileiro está falido, porque construído sobre bases fundadas no Século XIX, que ignoram a ciência, a velocidade em que os crimes são cometidos, a forma de organização das associações criminosas e a necessidade de uma polícia estruturada de forma flexível, visando ao resultado final; e que limitam a investigação a um simulacro de processo administrativo, burocratizado. Não é o inquérito que prova a existência do ilícito mas sim o que for apurado e confirmado perante a Justiça.

Em cada um dos últimos anos, nós temos convivido no Brasil com cerca de 50.000 homicídios/ano. Em 2013, matamos, proporcionalmente, quatro vezes mais que Estados Unidos e Argentina e vinte vezes mais que Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha e Itália. Recentemente você já foi vítima de um assalto à mão armada. Acha que eventual descriminalização do tráfico de entorpecentes pode diminuir a médio prazo os altos índices de homicídio no país?

O crime não tem uma causa única, direta. A prevenção depende da análise de múltiplos fatores associados à atividade criminosa e que devem ser identificados, estudados e atacados. Por exemplo, uma pessoa pobre não necessariamente se tornará criminosa, como o fato de um cidadão ser rico não o torna livre do cometimento de delitos. Fatores culturais, sociais, individuais e institucionais operam de forma conjunta para incentivar ou facilitar a prática delituosa. Além disso, a mera descriminalização da droga não é suficiente para dirimir a prática criminosa. A descriminalização do uso da substância ilícita não evita que essa cause graves problemas de saúde e riscos a população em geral. O fato de liberar o uso da maconha, não impede que você puna quem dirija sob o efeito da droga, ou quem a comercialize fora dos parâmetros legais. O sujeito viciado em droga lícita, como o álcool, por exemplo, comete  atos violentos como, por exemplo, vias de fato, lesões corporais, homicídios, como o faz quem é viciado em drogas ilícitas.

A redução da violência passa portanto, desde você atacar o problema da criminalização das drogas, como limitar e fiscalizar o acesso a armas de fogo, educar e dar oportunidades de crescimento social à população mais pobre, como assegurar a existência de um sistema repressivo firme, presente, mas justo e proporcional, que não alimente a ideia de que uma condenação penal equivale a impunidade.

Na comunicação com os colegas em nossa lista eletrônica de e-mails, você frequentemente deixa escapar um humor irônico muito parecido com o de Millôr Fernandes. Você é bem humorado também pessoalmente? Tem preferência por algum humorista em especial?

Sou bem humorado com os amigos e mau humorado com a vida. Gosto do humor dos comediantes escoceses, que é como o dos ingleses, seguido de um chute nas partes baixas.

Para Millôr, “A maior parte da humanidade tem absoluta necessidade de se punir com o trabalho. E nisso acaba adorando o ato de trabalhar e viciada nele. A totalidade dos trabalhadores é absolutamente irrecuperável” (em ‘O livro vermelho dos pensamentos de Millôr’). Você concorda com ele? Você é um trabalhador irrecuperável, Lessa?

Mais do que um trabalhador irrecuperável, sou um curioso incurável, viciado em notícia, informação, livro, leitura, filme, internet, fofoca, receita de bolo, a busca pelo conhecimento, mesmo o inútil, é o que me mantém vivo.

Trabalho porque tenho que pagar contas e sustentar o sistema bancário brasileiro. Se não precisasse trabalhar passaria a vida apreendendo coisas novas.

Você disse que compra revistas/livros de quadrinhos. Quais são os seus preferidos?

Livros, compro quando viajo e sempre volto com uns cinco ou seis. Dou preferência aos clássicos da literatura inglesa e por clássicos vai tudo, desde Shakespeare a Raymond Chandler. Moby Dick a Le Mort d’Arthur.

Quadrinhos, não compro mais nada, fuço a internet, leio o que consigo de graça. Sou da geração que leu as primeiras edições do Neil Gaiman, Moebius, Alan Moore e Frank Miller, que lia Heavy Metal, Love & Rockets e Metal Hurlant, que viu a Rê Bordosa morrer e renascer, que conhece o segredo do morcego e sabe quem é o León de Tchacara, que pegou o final do Henfil, acompanhou o Calvin & Hobbes, do início ao fim, que leu Garfield quando ele ainda era engraçado, quando os quadrinhos deixaram de ser coisa de criança e passaram a ser as Novelas Gráficas que tanto influenciam a dramaturgia atual.

Qual a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?

Indo com minha mãe de casa para a padaria, em Higienópolis, SP, para trocar as minhas moedinhas por um pão francês e um guaraná caçula.

A história do Ministério Público nas décadas de 80 e 90 é a história da conquista de garantias institucionais e de instrumentos processuais que o constituíram com uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns ícones dessa geração convivem hoje com colegas recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. Acredita que a geração que construiu o MPF da primeira década pós-Constituição consolidou uma certa tradição? Se sim, essa tradição foi ou vem sendo transmitida com sucesso às novas gerações?

O papel desempenhado pelos colegas mais antigos criou a imagem do MPF que sobrevive no imaginário popular como o principal órgão de defesa da sociedade e das minorias no Brasil, sem desmerecer o restante dos órgãos irmãos ou assemelhados. Alguns, como a Justiça Federal, não recebem o crédito que lhe é devido, já que sem a JF a nossa atuação seria inócua.  Acredito que por isso, a cada novo concurso novos talentos, oriundos do poder judiciário, das promotorias e das procuradorias estaduais e municipais, ingressam na carreira com o intuito de espelhar e ampliar a atuação desses colegas antigos na tutela coletiva e penal da sociedade. É bobeira da grande, mas eu sempre digo que nós do MPF podemos repetir o chavão dos Marines dos EUA: The Few The Proud, The MPF.

 

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