Houve um tempo em que, no Rio de Janeiro, os procuradores da República trabalhavam ao lado da fábrica da cervejaria Antártica, “com cheiro forte de cevada fermentando nos tanques”. “Éramos nós, uma máquina de escrever Remington, uma secretaria e uma estagiária para cada procurador”, diz Tomaz Leonardos, testemunha viva da época.
Carioca de ascendência grega, um ‘jurássico assumido’, Tomaz prestou um único concurso em toda a sua vida: o famoso concurso de 1984, que congregou na mesma lista de aprovados o atual PGR Rodrigo Janot e dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa.
Embora sua família não tenha sofrido represálias direta ou indiretas na época do Regime Militar, Tomaz acredita que ter crescido na época da repressão “nos fez meio alienados da política, até porque era muita censura, desinformação e ufanismo”.
A memória de Tomaz é um depósito vivo — de casos novos e de casos ‘nem tão novos assim’. Por essa razão e por outras que logo ficarão claras, é uma satisfação tê-lo como nosso entrevistado neste 29º dedo de prosa.
Como foi sua formação antes de entrar para o Ministério Público?
Eu sou carioca criado em Ipanema na década de 1960, quando as praias eram limpas e, segundo Nelson Motta, ‘Ipanema era a sucursal do Paraíso’ — frase lapidar que me marcou do seu ótimo best seller ‘Ao som do mar e à luz do céu profundo’. Sou flamenguista de formação católica. Estudei no Colégio Santo Inácio. Depois, fiz Direito na UERJ e Administração de Empresas na Faculdade Cândido Mendes. Na juventude, gostava de ler, de remar de caiaque, de andar a cavalo na Serra dos Órgãos e de nadar. De certa feita, nadei numa final emocionante de Campeonato Carioca de Natação pelo Flamengo com sunga rubro-negra e com a Torcida Jovem, a Charanga do Mengão e a Flamante presentes e umas dez mil pessoas assistindo lá no Vasco. O Djan Garrido Madruga, que representava o Fluminense, ganhou disparado, óbvio. Depois ele foi medalhista de bronze nas Olimpíadas de 1980, em Moscou, em um tempo bom, que não havia nadador bombado. O cara era um fenômeno.
Fiz o curso da Cultura Inglesa completo e o da Aliança Francesa também. Um dia colegas recém-formados da UERJ me falaram no Centro do Rio que estavam abertas as inscrições para o MPF. Fui lá e me inscrevi, achando que não tinha nenhuma chance. Desde novo sonhava em ser advogado, pois muito admirava meu avô Thomas Leonardos, ex-conselheiro federal da OAB, presidente do IAB e cônsul da Grécia. Era jurista e autor de várias obras de Direito da Propriedade Intelectual e atuou como advogado e consultor jurídico de personalidades famosas do passado, como Oswaldo Aranha, Carlos Lacerda e Aristóteles Onassis. Esse último o contratou, já que grego só confia em grego, para defender seus interesses na América Latina. E assim prossegui, com pouco tempo para estudar, uma vez que já trabalhava no escritório de marcas e patentes da família.
Fiz o concurso do MPF de 1984, que começou em 1983, e passei, para minha própria surpresa, com apenas 25 anos e com apenas dois anos e meio de formado. Na realidade foi pura sorte. Caiu na prova exatamente tudo o que estude. Coisa do destino. Era para ser. Foi o único concurso que fiz em toda a minha vida.
Quando você entrou na carreira, vocês eram pouco mais de cem procuradores da República em todo o Brasil. Como era a interlocução com os colegas? Todos se conheciam pelo nome?
Sim, Bruno, éramos pouca gente nos quadros e muito serviço. As procuradorias da República nos Estados eram como compartimentos estanques e só existiam nas capitais. Não havia ainda a interiorização da Justiça Federal. Na década de 80, nós mal víamos ou conversávamos com colegas de outros Estados e com os da PGR. O nosso Encontro Nacional de Procuradores da República nem existia naquela época. A instituição engatinhava e buscava novos caminhos para atuar e se afirmar. Em 1985 veio a lei da ação civil pública. Mas era confuso. Estávamos atrelados à estrutura do Executivo e estávamos subordinados de certa forma ao Ministro da Justiça. Não havia ainda nem a inamovibilidade nem a independência funcional ampla que veio com a Constituição de 1988. Colegas antigos que em mandado de segurança ousavam dar pareceres contra a União na época do regime militar chegaram a ser ameaçados, por Brasília, de remoção para outros Estados menos palatáveis. Pelo menos foi isso o que ouvi.
Com relação à minha pessoa só sofri pressão uma vez. Veio da chefe da Censura Federal, a famosa Dra. Solange Hernandez, que me ligou irada, pois eu me recusava a recorrer, como advogado da União, de liminares de liberação de filmes que haviam sido totalmente censurados. Os pareceres dos censores da Polícia Federal eram tão ridículos que todos nós ríamos muito ao lê-los. O sujeito botava lá “esse filme agradaria muito a uma plateia de degenerados e pervertidos”. Tem que rir. Cinema só entra quem quer e quem compra ingresso. E a censura tem que ser classificatória. Óbvio.
Você entrou na PRRJ com apenas 25 anos e com isso era o procurador mais novo da sua geração. Ao entrar no MPF, você sentiu algum desconforto em razão da idade?
Na verdade, não. Nunca fui discriminado por ser o mais novo. Fomos recebidos aqui de braços abertos pelos colegas antigos, Carlos Roberto Siqueira Castro, Alcir Molina, Alcides Martins e Paulo César Espírito Santo; e também pelos nomeados sem concurso que ainda estavam na ativa à época, José Naufel, dicionarista gentil e corcunda, Carlos Geminiano, Vicente Saraiva e Celso Passos. Nessa foto aqui, de 1984, estamos eu e o procurador-chefe da PRRJ na época, Carlos Roberto Siqueira Castro. Isso foi na nossa posse no Rio de Janeiro.

Carlos Roberto Siqueira Castro, então procurador-chefe da PRRJ, e Tomaz Henrique Leonardos, procurador da República recém-empossado (1984)
Aqui nessa outra está o PGR Inocêncio Mártires e o presidente do STF Min. Cordeiro Guerra, que nos prestigiou na cerimônia de posse.

PGR Inocêncio Mártires e o então presidente do STF Min. Cordeiro Guerra, na posse de procuradores da República (1984)
Só posso agradecer a esses gentis colegas que nos estenderam a mão e nos deram dicas valiosas , já que PR rookie não sabe nada mesmo. Até acha que sabe, mas só tem cultura, garra e vontade. E pato novo não deve mergulhar fundo senão se afoga. Entrei sabendo que não sabia quase nada. Por isso me metia em tudo que era curso de extensão.
Quais eram as condições de trabalho do procurador da República na década de 80, quando você assumiu?
As condições de trabalho na PRRJ de 1984 a 1989 eram péssimas. A sede ficava la Lapa, na Rua do Riachuelo, ao lado de sobrados que abrigavam oficinas, vendas, casas de má-reputação e tinha colada a fábrica urbana, pasmemos, da cervejaria Antártica, com cheiro forte de cevada fermentando nos tanques de fermentação, entrando em nossas narinas. Não tinha ar condicionado na maioria das salas. Computador, nem pensar! Éramos nós, uma máquina de escrever Remington, uma secretária e uma estagiária para cada procurador. E todo o serviço que hoje é dividido entre MPF, AGU e PFN. Uma coisa inviável. Era na base de mil processos por semana na mesa. Várias vezes eu e meus colegas tivemos que comprar do nosso bolso resmas de papel e fita pra máquina de escrever para conseguir soltar o serviço. O prédio tosco e velho, que o colega procurador-chefe Carlos Roberto Siqueira Castro conseguira do INSS e adaptou, foi até uma vitória à época, no início da década de 80. Serviu para tirar o MPF do Rio de Janeiro do vergonhoso humilhante poleiro no último andar da Justiça Federal, pois a PRRJ funcionava no prédio do antigo Supremo Tribunal Federal, que era a Justiça Federal – e que hoje é um museu.
Você já pode ser considerado um colega ‘da velha guarda’. Ingressou no MPF no concurso de 1984, o mesmo do PGR Rodrigo Janot, dos ilustres Min. Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa e do subprocurador-geral José Bonifácio Andrada, entre outros. Lá se vão 31 anos de Ministério Público. Você se arrepende-se de algo que fez ou que não fez no Ministério Público?
Sim, Bruno, sou um jurássico assumido. Meu concurso acabou sendo especial, pois foi o único que deu um ótimo PGR, o Rodrigo Janot, e dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, que antes atuou aqui conosco na Procuradoria Regional da 2ª Região. Joaquim era nosso laterial direito no time aqui da PRR2. Eu era o goleiro, o colega Celmo, o volante, e o colega Queiroz, o centro-avante enfiado. Entramos nós na década de 80 em uma época romântica, em que o serviço era artesanal. Agora mudou tudo. Tudo é feito pelo computador. E esse processo judicial eletrônico que nos enfiaram goela abaixo, uma coisa que ninguém merece e nem economiza árvore nenhuma; sim, porque todo mundo acaba imprimindo muita coisa, já que olhar tela o dia inteiro acaba com a vista.
Só me arrependo um pouco de não ter feito mestrado lá fora, quando ainda tinha disposição para tanto e quando a liberação pela PGR em relação ao serviço era total. Agora ficou difícil fazer. Parei mesmo na pós-graduação lato senso. Fiz uma de Direito Tributário e outra de Direito da Propriedade Intelectual.
Coisas do arco da velha aconteciam naquela década de 80. Certa vez, o colega faixa preta Alcir Molina começou a bater boca com o juiz federal Ariosto em um depoimento lá na Vara Criminal Federal; visto que o juiz indeferia quase todas as suas perguntas. Um se irritou com o outro, se xingaram e se deram, um ao outro, ordem de prisão simultânea por desacato. Foi uma confusão danada lá no prédio do antigo STF, com Polícia Federal, imprensa e o escambau. Corria o ano de 1987.
Você advoga na área de propriedade intelectual em um escritório fundado em 1919, com unidades no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre. Qual é a origem e a história desse escritório quase centenário?
Sim, eu e vários colegas que entramos antes da Constituição de 1988 ficamos o direito adquirido de exercer advocacia com impedimento parcial, pois na época da posse podíamos advogar nessas condições restritas, e diga-se que muitos sequer teriam feito inscrição no concurso da época não houvesse essa ressalva, pois o vencimento era irrisório. Minha atividade privada part time não me impediu de liderar a estatística de produção de processos despachados em 2003 na PRR2. E isso foi motivo de orgulho para mim, pois temos colegas que são verdadeiras máquinas de trabalhar.
Descendente de imigrantes gregos, você conhece a história de seus antepassados que vieram para o Brasil? Qual é?
A família Leonardos veio de Atenas em meados do século XIX para o Rio de Janeiro. Meu trisavô Othon Leonardos, neto de Athanasio Leonardos, que foi oficial do Exército grego na guerra com a Turquia, foi também cônsul da Grécia no Império. Assim como seu neto, Thomas Leonardos, meu avô, depois viria a ser também nos anos 40 e 50. Meus ancestrais que vieram da Grécia eram comerciantes de móveis e antiguidades. Até consegui, com meus irmãos, obter cidadania grega. Mas como a Grécia quebrou há uns cinco anos, nem mandei fazer o passaporte grego. Me disseram que nos aeroportos europeus os gregos estavam sendo mais maltratados que os cidadãos terceiro-mundistas da América Latina.
Nunca lhe passou pela cabeça aceitar promoção para a Subprocuradoria-Geral? Você confirma a regra de que o carioca não consegue viver longe da praia e do sol…
Realmente, Bruno. Nunca me passou pela cabeça mesmo. Sou carioca da gema criado em Ipanema, como disse. Nunca me imaginei morando em outra cidade, apesar de me incomodar com o calor úmido do verão. O Rio, mesmo violento, poluído e engarrafado, é um lugar lindo pela natureza ímpar. Amigos europeus que visitam o Rio sempre comentam que nunca viram algo tão lindo com matas quase virgens dentro da cidade. Sempre me recuso a concorrer a promoção a subprocurador, assim como tem feito os colegas Carlos Xavier, José Homero e Leivas, também do concurso de 1984. Na realidade, além de achar difícil me adaptar em outra cidade, há que dizer que o acréscimo nos vencimentos é bem baixo e as despesas com passagens de avião e mudança de base seriam enormes. Tanto é assim que duas colegas regionais foram promovidas a subprocuradoras recentemente, se arrependeram e pediram ao PGR para anular a promoção e retornar a PRR de origem. Os ministros do STJ, parece, recebem verba extra referente a quatro passagens semestrais para visitar os Estados de origem. Nosso Conselho Superior já tentou debater a questão de certa feita, mas o assunto não avançou. Não vejo imoralidade nisso, mas em nossa categoria multifacetada decerto alguém verá.
Quando o Regime Militar instaurou-se você tinha cinco anos de idade. Em sua época mais complicada, nove. Completou 25 anos na época da Redemocratização, quando também ingressou no MPF. Você tem alguma lembrança de sua infância relacionada ao Governo Militar? Sua família, ou você, na adolescência, sofreram direta ou indiretamente com os militares?
Crescer na época de ditadura nos fez meio alienados da política, até porque era muita censura, desinformação e ufanismo. Não sofremos represálias diretas nem indiretas, mas poderíamos ter sofrido. Meu avô Thomas Leonardos denunciou na Tribuna da OAB, na década de 70, quando era presidente e conselheiro federal da OAB, que havia muita tortura de presos políticos nos cárceres do Doi-Codi, o que não se sabia na época. Saiu na primeira página do Globo. Meu tio Maurício, engenheiro químico que lecionava Termodinâmica na UFRJ, de certa feita deu fuga a dois diretores do Diretório Acadêmico que estavam sendo caçados pelo Doi-Codi; e os escondeu na própria casa durante uns três dias. Podia ter sido preso e morto por isso. A resistência ao regime militar tem vários heróis anônimos e outros que ganharam notoriedade, como o deputado Rubens Paiva, em cujo processo cível indenizatório contra a União, por seu sequestro e morte, movido por sua viúva Eunice Paiva cheguei a atuar como procurador da República fiscal da lei. Emiti parecer favorável à autora e a seguir a ação foi julgada procedente na Justiça Federal, com a transcrição quase integral do meu parecer na sentença. Uma aventura puxa a outra. Royalties para Monteiro Lobato, que foi promotor como nós.
Que leitura você faz desse período de nossa história nacional?
Acho que o golpe dentro do golpe foi terrível. Foi um período negro. Os militares se apegaram ao poder e o povo foi banido do processo eleitoral. Lembro-me de uma crônica espetacular do Carlos Drummond espinafrando os militares no Jornal do Brasil, na semana da escolha do General João Figueredo para suceder o General Ernesto Geisel.
Já caminhando para o final, falemos da relativa mudança de rumos a que temos assistido no último ano. Na apresentação que fiz a este site de entrevistas, disse que percebia nos colegas uma sensação geral de pessimismo com a carreira. “Já foram maiores no passado, as suas esperanças…”, disse então. Eis que em pouco mais oito meses muita coisa mudou no MPF: temos hoje reconhecidas, por lei ou por decisão judicial, diversas reivindicações administrativas e remuneratórias muito antigas, o PGR criou a tão-esperada assessoria de procuradores em seu gabinete, a Operação Lavajato tem dado uma visibilidade muito positiva à nossa instituição. Já não temos hoje tantos motivos para o pessimismo, penso. Você acredita que poderíamos aproveitar esse bom momento para pautar alguma grande questão que porventura esteja adormecida em nossos escaninhos institucionais?
Sem sombra de dúvida o PGR Rodrigo Janot virou o jogo! Conseguiu para nós procuradores, em um ano, o auxílio-moradia, a gratificação de acumulação de ofícios, a gratificação de chefia – eu sempre chiei em nossa rede corporativa contra a ausência dessa gratificação, já que o procurador chefe acumula funções administrativas. A gratificação da gratificação de chefia existiu no passado, mas foi lamentavelmente suprimida na gestão do PRG Brindeiro. E, por fim, conseguiu um reajuste no nosso subsídio. Nem em nossos melhores sonhos achávamos que isso fosse possível. Há mesmo que defender nossas legítimas vantagens com unhas e dentes, pois a perda delas representou no passado uma perda na qualidade no recrutamento. E, obviamente, qualquer instituição é tão boa quanto as pessoas que a compõem. Respondendo à tua indagação, acho que com o Petrolão resvalando em cabeças coroadas o momento é de cautela, e que a rapadura é doce mas não é mole. Há que reconhecer, todavia, que a imagem do MPF, na mídia e na sociedade, com a entrada do novo PGR e com a incrível Força Tarefa da Operação Lavajato melhorou enormemente. Quanto ao futuro, particularmente eu acho que temos de caminhar junto com a magistratura federal, o que, aliás, o PGR Rodrigo vem conseguindo fazer com maestria e de forma brilhante, com o apoio do Ministro Ricardo Lewandowski. Pois o terreno é minado.
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