Entrevista com Daniel Azeredo: “A população produz seus políticos e ao mesmo tempo vive um processo de antagonismo intenso em relação a eles.”

Mineiro radicado no Pará, Daniel Azeredo é o idealizador de dois projetos que em poucos anos conseguiram reduzir o desmatamento na Amazônia brasileira em mais de 50%. Um trabalho assim tão grandioso não se faz sozinho, nem se conclui da noite para o dia; também não se faz sem uma grande capacidade de resistência: diante das pressões e até ameaças, Daniel lembra: “tivemos de administrar todo o conflito através do diálogo, da conquista da opinião pública para o trabalho do MPF, da abertura para a discussão técnica dos modelos que apresentávamos e da certeza de que não poderíamos esmorecer.”

Ao falar da corrupção como hábito nacional, Daniel imagina que haja como que uma relação de competição entre sociedade e governo, “em que o cidadão luta para perder o mínimo possível para o Estado e ganhar o máximo, ainda que através da corrupção.”

Já há nove anos longe de Belo Horizonte, relembra dos bons momentos que passou na cidade — do Parque das Mangabeiras, do Mineirão, do caminho para a escola; e reconhece que depois desse exílio voluntário passou, ‘com um amor de visitante’, a gostar da cidade, “do jeito das pessoas e de tudo que temos”.

Leitor atento de Machado de Assis e de Fernando Sabino, Daniel imagina que a vida presente e o homem presente constituiriam, estivessem eles vivos, matéria suficientemente rica para a sua imaginação e escrita. Estamos inteiramente de acordo sobre esse ponto, aliás. Que apareçam, pois, novos machados nas desoladas terras de nossa atual literatura nacional.

Acompanhe nosso 31º dedo de prosa, em mineirês castiço.

A atuação do Ministério Público Federal que se tornou conhecida como “Carne Legal”, juntamente com o projeto “Municípios Verdes”, conseguiu reduzir o desmatamento na Amazônia em mais de 50%. Você é conhecido como seu idealizador. Como surgiu a concepção desse programa?

Os projetos “Carne Legal” e “Municípios Verdes” surgiram, antes de tudo, pela sensação de que a nossa atuação tradicional possuía pouco ou nenhum efeito na proteção da floresta. Apesar de, diariamente, processarmos e obtermos condenações penais de desmatadores ou mesmo ações civis públicas de reparação ambiental nada era recuperado e a devastação da vegetação se mantinha em níveis alarmantes.

Esse sentimento de que nosso trabalho pouco rendia fez com começássemos a aprofundar o conhecimento da realidade social e econômica da região. Fomos entender melhor os personagens desse jogo complexo e pelo menos iniciar a compreensão sobre perguntas fundamentais, dentre inúmeras outras, como: (a) quem desmata? (b) por que desmata? (c) o que ganha quem desmata? (d) quem mais ganha com o desmatamento? (e) como se desmata? (f) como se escolhe a área a ser desmatada? (g) por que o desmatador não tem medo da punição? (h) para que se desmata? (i) qual a destinação final da área desmatada?

A partir desse estudo inicial conseguimos vislumbrar uma grande organização econômica, formada na Amazônia, de empresas regulares e formais que, ao se abastecerem de matéria-prima da floresta, fomentam e alimentam não somente o desmatamento ilegal, bem como uma série de lesões a direitos fundamentais das populações tradicionais, indígenas e mesmo de trabalhadores comuns que raramente têm os direitos trabalhistas respeitados.

Realizamos uma investigação que durou mais de um ano para documentar, de maneira detalhada, as relações econômicas da região, desde a origem do boi na área desmatada –focamos no gado por ser ele o principal vetor de desmatamento, mas, posteriormente, atuamos com a mesma metodologia nos grãos, instituições financeiras e outros — até um banco de couro de um automóvel, ou um tênis de uma marca líder mundial ou mesmo a carne em um grande centro no país ou no exterior.

A partir daí realizamos um estudo jurídico sobre a responsabilidade solidária civil, em matéria ambiental, de todos esses atores — qual o limite da responsabilidade, por exemplo, de uma montadora de carros em Minas Gerais sobre o desmatamento realizado na Amazônia — e iniciamos os processos de construção da solução. Digo solução porque não foi o nosso foco primeiro a punição dos responsáveis, mas sim a construção de um novo paradigma de produção que tivesse o respeito ao meio ambiente como um de seus valores fundamentais.

Tínhamos no nosso trabalho a identificação de mais de trezentas mil propriedades rurais somente no Estado do Pará que precisariam ser regularizadas e, na outra ponta, mais de noventa mil lojas de supermercados no país que se abasteciam dessa matéria-prima. No meio deles, cerca de cem frigoríficos que intermediavam a produção e, naquele ano, eram desconhecidos do consumidor, embora sempre estivessem entre as maiores empresas do mundo no ramo da alimentação.

Eu lecionava à época Direito Tributário, que é uma de minhas disciplinas favoritas, e acabei focando o controle e as regras no intermediário que, por ser em menor número, facilitaria o controle em uma espécie de “substituição tributária ambiental”.

O desmatamento na Amazônia, antes do trabalho do MPF, era de mais de 12.000 Km2 por ano e conseguimos mantê-lo abaixo dos 5.000 Km2 por ano desde então, o que representa uma queda hoje em torno de 60%.

Estamos em constante aperfeiçoamento do trabalho com o duplo objetivo de estabilizar os ganhos alcançados e superar nossos índices de redução.

Você certamente encontrou resistência durante as diversas fases de implementação desses programas. Que momentos você destacaria dessa atuação em que foi mais necessária a força estatal do MPF?

Sem dúvida destacaria o início do processo. Tudo era muito novo, seja para nós, seja para o setor produtivo. A fronteira agrícola brasileira hoje está na Amazônia. A fertilidade da terra, a luminosidade e a umidade tornam a floresta solo ideal para a criação de gado e plantio de grãos. Acrescente a isso o alto valor de mercado da madeira que cobre a terra e o custo zero da área que é pública e você encontra o novo ‘eldorado’ do setor produtivo brasileiro. Este já conhecia e estava acostumado a driblar facilmente as regras vigentes sobre a proibição de desmatar.

É um setor economicamente muito forte: um dos frigoríficos é hoje a maior empresa de alimentos do mundo e a maior empresa do Brasil seja qual for o ramo analisado, ao passo que soja e gado correspondem a cerca de 1/5 de todo o PIB brasileiro e 1/5 dessa produção já se consolidou na Amazônia com altíssimas taxas de crescimento na região nos últimos quinze anos.

O setor possui uma bancada parlamentar fortíssima de cerda de 1/3 dos membros do Congresso Nacional e reagiu fortemente a nossas ações com todo o tipo de expediente: ameaças pessoais e institucionais, representações e ações judiciais. Tivemos de administrar todo o conflito através do diálogo, da conquista da opinião pública para o trabalho do MPF, da abertura para a discussão técnica dos modelos que apresentávamos e da certeza de que não poderíamos esmorecer na defesa de nossa missão constitucional.

Em que consistem as atividades do Grupo de Trabalho Amazônia Legal, da 4ª CCR, que você coordena? Que trabalhos relevantes estão em andamento?

O Grupo de Trabalho Amazônia Legal surgiu com dois focos principais: (1) expandir os projetos “Carne legal” e “Municípios Verdes” aos outros Estados da Amazônia e (2) fomentar a continuidade de trabalhos relevantes através da atuação coordenada na região que sofre continuamente com a vasta rotatividade de membros do MPF.

Além de estarmos desenvolvendo esses projetos nos demais Estados, desenvolvemos trabalhos conjuntos em relação aos assentamentos do Incra na região, sobre a implantação do cadastro ambiental rural em todo o país, sobre a responsabilidade ambiental das instituições financeiras, sobre a transparência dos órgãos públicos, sobre o programa do governo federal Terra Legal, sobre a produção de grãos e outros temas que aparecem no dia a dia de todos os colegas da região.

Embora eu não tenha opinião formada sobre a questão, sempre acabo ‘apanhando’ quando a levanto. É o seguinte. O tratamento dado aos filmes da trilogia de “O Poderoso Chefão” não ajudaria a glamourizar, aos olhos da população esclarecida, o estilo de vida dos gângsters e a abrir nossa sensibilidade moral à possibilidade de tê-lo como aceitável? Falo isso porque a beleza estética dos filmes chega a nos fascinar…

De fato, não vejo verdades ou certezas nesses pontos de maneira que sua leitura me parece extremamente interessante. Vou apenas aqui sugerir outra possibilidade que caminhe na linha oposta. Seria a de que Coppola mostra a decadência moral de Michael que, de herói de guerra, se transforma em um criminoso impiedoso cuja ambição não tem limites. Parece que Michael representa a sociedade americana, corrupta e hipócrita. Deixa-se clara a institucionalização do crime, onde os mais respeitáveis agem de maneira ardilosa e vil para se manterem no poder. Nessa maneira de análise, não há nada de engraçado ou compensador na violência, mas, pelo contrário, há cada vez mais torpeza, mais conluios, mais traições, levando a uma situação insustentável no qual o protagonista se vê mergulhado, cada vez mais, nas sombras da corrupção, em sentido amplo. Talvez possamos utilizar o jargão de que o crime não compensa se o que se quer é alcançar a felicidade.

Mudando de assunto: que lembranças tem de sua infância em Belo Horizonte?

Tenho várias e ótimas lembranças. Do nosso time de futebol que se doava de maneira extenuante pelos pequenos campeonatos que participava do bairro; do guaraná depois do jogo com vitória ou derrota; das conversas e reuniões com os amigos de escola e de bairro; da alegria da vitória do cruzeiro e do aborrecimento a mim direcionado pela vitória atleticana; do Mineirão cheio de barracas ao redor e entupido de gente em pé dentro; do meu caminho de ida para a escola; dos meus professores; de uma cidade mais suja do que está hoje; da rodoviária lotada; do Parque Municipal, do Parque das Mangabeiras e das praças.

Eu também morei em Belo Horizonte até o começo da vida adulta. Comigo aconteceu que já estando doze anos morando fora da cidade acabei me ‘apaixonando’ por outras tantas em que morei ou por que passei, que me trouxeram coisas novas e muito boas. Você ainda visita Belo Horizonte? Isso também aconteceu com você?

Visito com frequência e aconteceu comigo o inverso. Após nove anos fora, passei a gostar mais da cidade, do jeito das pessoas e de tudo que temos. Talvez seja apenas amor de visitante.

Entre seus autores preferidos estão Machado de Assis e Fernando Sabino. É opinião corrente entre os críticos que a literatura brasileira atual não tem tratado das grandes e das pequenas questões que atormentam a vida real de todos nós. Alguns chegam a dizer que não temos algo como ‘literatura brasileira atual’. Estivessem vivos e em atividade ambos os escritores, você é capaz de imaginar que roteiro e personagens cada um deles utilizaria em seus romances hoje?

Em relação à temática, acho que Machado de Assis e Fernando Sabino não mudariam muita coisa. Machado, por exemplo, é um autor que se prende no ser humano e nas suas falhas morais, por isto atemporal. Poderia até mudar o cenário, mas as observações perspicazes continuariam centradas em personagens esféricos, revelando a hipocrisia dos homens. Já Fernando Sabino também é um autor voltado para reflexões humanistas. Talvez hoje a sua angústia perpassasse pela vida acelerada que nos impomos e as coisas que perdemos no caminho por causa disso.

Voltemos a nossas atribuições. Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude ou, quando não, originará um contrato administrativo ineficiente com gastos mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina algo que pudesse começar a mudar esse quadro?

Tenho a idêntica impressão. Observo os municípios amazônicos pobres e população miserável. Observo os gestores amazônicos ricos e com padrão de vida elevadíssimo. Tivéssemos um nível cultural e educacional consolidado no país, a simples observação da nossa realidade seria um escândalo no nosso mais famoso jornal.

Somente a transparência e o uso de tecnologias podem mudar esse quadro. Todas as licitações deveriam ser filmadas e gravadas, assim como hoje o são as audiências da justiça, e transmitidas on line na internet, assim como hoje acontece com milhares de salas de diversão erótica no país. E deveríamos ter ferramentas para que o usuário do serviço público denunciasse a ausência de bens comprados. Por exemplo, se daria ampla divulgação na internet sobre as licitações de todas as escolas informando o dinheiro gasto para cada uma e o que foi comprado e, na mesma internet ou em totens de atendimento físico, qualquer aluno, pai ou professor anonimamente poderia informar que apesar de a Prefeitura ter comprado carne somente se come pão há um mês.

Poderiam ser criados sistemas de controles automáticos e informatizados em que essas demandas eram publicizadas e o gestor teria um prazo para se manifestar com documentos e fotografias. E sua resposta também seria divulgada na internet. Os órgãos de controle, dentre eles o MPF, fariam filtros para priorizar ações mais fortes tais como visita in loco e etc.

Tenho pensado que provavelmente ainda vige em nossa alma nacional, no fundo de nosso inconsciente coletivo, a impressão de que ainda somos explorados por uma metrópole desalmada; e de que portanto, tudo o que conseguirmos extrair dos negócios públicos virá em prejuízo da Corte Portuguesa e em benefício de nós outros deste lado de cá. Só que Corte Portuguesa já não há…

Se Corte Portuguesa já não há, talvez a metrópole desalmada seja a ilha política dos governantes que, no imaginário coletivo, tudo querem para si próprios e trabalham apenas em prol da manutenção do próprio poder político ou econômico.

Talvez a sociedade viva um processo autopoiético em que a população produz seus políticos e, ao mesmo tempo, vive um processo de antagonismo intenso em relação a eles, mas não dispõe de meios para interromper essa “equivocada” produção. Até porque parte desses instrumentos dependem de fomento do governante — como é o caso da educação, por exemplo.

A relação entre sociedade e governo estabelecida seria, assim, de competição, em que o cidadão luta para perder o mínimo possível para o Estado e ganhar o máximo, ainda que através da corrupção. Afinal, o Estado brasileiro parece ser inerentemente ilícito no imaginário coletivo. Dentre os diversos males dessa realidade está a incapacidade de olhar e procurar aquilo que existe de bom e adequado no cenário político brasileiro.

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“Estamos em pleno processo de disputa pela Amazônia. Dependendo de quem vença essa batalha, poderemos dizer se a Amazônia continuará existindo”. Entrevista com Felício Pontes Jr.

Nascido na cidade de Abaetetuba, PA, Felício Pontes passou sua infância brincando no rio, nos campos de futebol e nos quintais de seus vizinhos. Impactado pela construção de uma fábrica em um município vizinho, acabou, mais tarde, decidindo tornar-se procurador da República, “local mais eficaz de fazer a defesa da floresta e de seu povo”.

Felício acredita que a relação dos indígenas com os moradores de centros urbanos é uma via de mão dupla: “Temos muito a apreender com os indígenas. E eles têm muito o que aprender conosco”. Porém, segundo diz, “a FUNAI foi amarrada para não agir no caso dos grandes empreendimentos”.

Indígenas, ribeirinhos, quilombolas e demais povos da Floresta Amazônica com frequência lhe dizem — certamente como fruto de sua dedicada atuação na Procuradoria da República — que o Ministério Público Federal está entre os poucos que ainda resistem na luta por dar a cada um o que é seu.

Nos últimos anos, Felício tem se dedicado a investigar o licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a ajuizar as justas ações judiciais contra a construção do empreendimento. Segundo acredita, muitos dos erros só aparecerão com a usina já construída. Ainda assim, prossegue a batalha “porque não cabe ao MPF fingir que o processo de licenciamento ambiental está certo, quando seus atos continuam a demonstrar desrespeito à legislação”.

Veja nosso bate-papo com esse procurador da República imprescindível. Este é o nosso 21º ‘dedo de prosa’, um agradável colóquio à sombra de uma castanheira, testemunha dos desmandos e das maravilhas da Floresta Amazônica.

No seu contato com as etnias indígenas do Pará, sente que os índios têm algo a ensinar aos atuais moradores dos grandes centros urbanos? Por outro lado, a civilização ocidental tem algo a ensinar aos índios?

Há aqui uma via de mão dupla. Temos muito a apreender com os indígenas. E eles têm muito o que aprender conosco. Fico maravilhado quando estou com eles. Por exemplo, a relação deles com a natureza é quase incompreensível para a nossa civilização. Se eu pudesse simplificar ou traduzir, diria que uma das concepções deles é que a natureza tem direitos. A natureza para eles é um ser vivo, no nosso sentido civilista. Aliás, somente agora o Direito em nossa civilização se abriu para isso com a Doutrina dos Direitos da Natureza. Taí um ensinamento deles.

Mas não é só isso, algumas etnias nos chamam de “povo das mercadorias”. Acham que somos movidos pelo acúmulo de coisa inúteis. Criticam nosso apego a coisas materiais. Eles têm toda razão. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, um dos maiores pensadores da atualidade, disse, em entrevista recente algo que vale propagar: “Os índios são especialistas em fim do mundo. O mundo deles acabou em 1492. Eles podem nos ensinar a viver melhor num mundo pior”.

De nossa parte a eles, colocaria em primeiro plano a tecnologia. A tecnologia vem ajudando muito os indígenas, sobretudo nas comunicações.

Eu tenho a impressão de que as batalhas jurídicas em torno da Usina de Belo Monte não serão capazes, como já não foram, de impedir a instalação do empreendimento. Se a usina estiver funcionando a plenas turbinas daqui a trinta anos, você imagina que alguma vitória, a partir da atuação do MPF, poderá ser contabilizada no conjunto?

A Usina de Belo Monte é paradigmática. É uma usina de erros. Infelizmente, muitos deles só aparecerão com a usina já construída. Acho que continuar a luta, mesmo com 50% da usina construída, é necessário. E é necessário por no mínimo três motivos: i) porque não cabe ao MPF fingir que o processo de licenciamento ambiental está certo, quando seus atos continuam a demonstrar desrespeito à legislação; ii) o exemplo que pode orientar a sociedade contra as próximas barragens planejadas para a Amazônia; e iii) nosso comprometimento com os atingidos. Muitos deles dizem que estamos entre os poucos que não se venderam.

Na minha experiência de trabalho com o IBAMA, em licenciamento ambiental de usina hidrelétrica da região da PRM Governador Valadares, fico com a impressão geral de que os técnicos daquela autarquia trabalham de modo muito amador e, a bem da verdade, desconectados dos impactos sociais dos empreendimentos que licenciam. Você tem a mesma impressão a partir da sua atuação no Pará? Os deslocamentos populacionais originados de construções de usinas hidrelétricas são um drama humano notável que, na minha visão, não recebem o devido tratamento da autarquia federal. Você enxerga um panorama menos dramático, Felício?

Vejo a mesma coisa com um detalhe a mais, Bruno. Os atingidos aqui são povos da floresta. E eles são invisíveis aos olhos de quem decide e fiscaliza a construção de uma barragem. E quando são vistos, são encarados como um obstáculo a ser vencido. Hoje, com mais clareza, vejo racismo ambiental nessas decisões, que são tomadas por um grupo muito pequeno de pessoas dentro do Ministério das Minas e Energia, que chamo de a “caixa preta do governo federal”. Não se sabe o porquê dessas escolhas. Sabemos apenas que são as obras mais caras do país, e que os construtores são os maiores doadores de campanhas políticas — tanto da situação, quanto da oposição — segundo dados do TSE. Talvez isso explique algo.

Como avalia a atuação da FUNAI nos últimos anos? Vê a política indigenista brasileira com bons olhos?

A FUNAI foi amarrada para não agir no caso dos grandes empreendimentos e, quanto ao enfrentamento do latifúndio, o governo optou por ficar ao lado deste. Prova disso é brutal queda nas demarcações das terras indígenas nos últimos anos. Os sertanistas, os técnicos… ficaram sem voz.

Os abaixo-assinados como o promovido pelo ‘Movimento Gota d´Água’ recebem milhares e, em alguns casos, milhões de apoiadores virtuais. Independentemente da natureza das causas defendidas, não acha que a utilização de artistas e de abaixo-assinados virtuais nessas contendas desqualifica as discussões que efetivamente deveriam ter lugar no contexto de grandes empreendimentos potencialmente danosos ao meio ambiente e à população diretamente atingida?

Eu acho importante a participação de artistas nessas campanhas. Mas não deve ser um fim em si mesmo. Ao contrário, essas campanhas devem chamar a atenção para o tema. Seu aprofundamento deve ser realizado por outros instrumentos de comunicação. E nesse sentido Belo Monte foi quem chegou mais perto. Depois da companha do Movimento Gota d’Água, vários filmes — curtas e longas –, seminários, documentos dos processos, foram disponibilizados a quem quisesse. É impressionante o número de TCCs, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o tema. O resultado foi que, por exemplo, no site do MPF/PA, o download dos processos de capa a capa bateu recorde de visualização.

Irmã Dorothy, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo – seus sangues e de muitos outros irrigam a terra amazônica. Você vê sementes crescendo em torno dessa luta? Que árvores nascerão daí?

Veja. Anapu era uma cidadezinha esquecida da Transamazônica no fim do Século passado. A população quase duplicou em pouco mais de um ano com o anúncio de Belo Monte. As pessoas que chegavam lá descobriam cedo que naquele tempo não existia obra nenhuma. Homens, mulheres e crianças ficaram acampados na praça à beira do rodovia. Descobriam cedo também que numa casa de madeira, pintada de verde-água, havia uma freira que podia ajudá-los a ter uma chão para plantar.

A Irmã Dorothy mostrava que havia área pública disponível a 50 km dali, em um travessão quase que intransitável da Transamazônica. Muitos aceitavam essa ideia como tábua de salvação. Ela vinha constantemente a Belém e conversava comigo sobre a situação jurídica da área. Tinha contato com ela quase que semanalmente. Lutamos para que o Incra reconhecesse a terra como um novo projeto de reforma agrária. Ela queria provar o que pra mim estava claro, mas que para o donos do dinheiro na Amazônia era impossível: que as pessoas ocupariam a terra sem devastar, de maneira extremamente lucrativa.

Nos 50 km para se chegar ao PDS só se vê pasto e miséria. Chegando lá a floresta é exuberante. Dorothy com a ajuda de quem conhecia a terra, levou sementes de cacau – que é nativo – e promoveu o consórcio com outras espécies: açaí, castanha, banana…

Pra resumir, o PDS ajudou a região a se tornar em 2009 a segunda maior produtora de cacau do Brasil. Era muito mais do que Dorothy sonhava. Hoje, quem menos conseguiu prosperar já possui moto. Quem prosperou mais, possui carro. Ela queria uma vida digna para aquelas pessoas que eu vi chegar sem nada. Nem calça comprida tinham. Ocuparam a terra em harmonia com a natureza.

O sonho de colocar as pessoas na floresta e não desmatá-la é o contrário de qualquer projeto de desenvolvimento da região. Qualquer um deles via a floresta como obstáculo, não como aliado. Ela via diferente, e nos levou a todos a acreditar nisso.

Não muito longe dali em Nova Ipixuna, um casal de trabalhadores rurais lutava dentro da assentamento para que ninguém vendesse as castanheiras centenárias que lá existiam. Eram pessoas muito carismáticas – o Zé Cláudio e a Dona Maria. Ninguém ficava indiferente diante deles.

Uma vez o Zé me mostrou uns produtos como óleos e cremes que fazia a partir da castanha-do-pará.  “Felício, eu levei isso aqui pra um assentado que vendeu uma árvore de castanha pra um madeireiro. Mostrei pra ele que preço pago é o lucro que eu vou ter com a venda desses produtos de poucos oiriços de uma árvore apenas. Só que eu vou ter o mesmo dinheiro ou mais no ano que vem. Ele não vai mais ter”. Que ideia perigosa! Os madeireiros não podiam permitir que isso pegasse. E o Zé e a Maria foram mortos em emboscada covarde em junho de 2011.

Acho que a Amazônia vive hoje o choque entre dois modelos diferentes de desenvolvimento. O primeiro pode ser chamado de modelo de desenvolvimento predatório. O segundo de socioambientalismo. O primeiro modelo começou a ser implantado na época da ditadura militar – nos anos 70. Estava baseado em duas atividades básicas: madeira e pecuária. Num primeiro momento o ataque aos recursos florestais era realizado pelos madeireiros. Ou a atividade se desenvolvia de forma clandestina, ou não possuía fiscalização efetiva do órgão ambiental. O resultado foi – e continua sendo – trágico: o esgotamento dos recursos naturais. A terra, sem mais utilização para madeireiros, era vendida aos fazendeiros que terminavam de colocar embaixo o restante da floresta, considerado, literalmente, um obstáculo a ser derrubado. Em seu lugar plantavam capim. Os madeireiros, por seu turno, migravam para outra área ainda não desmatada e reiniciavam seu projeto. Esse modelo de “desenvolvimento” jamais acreditou no uso sustentado dos recursos florestais.

Hoje, as atividades econômicas que compõem esse modelo são, além da madeira e da pecuária, a monocultura de soja, a mineração — que bate recorde de exploração a cada ano –, e a exploração hídrica. Em oposição a esse modelo está o socioambientalismo. Ele parte de um princípio básico: articulação entre a biodiversidade e a sociodiversidade. Dito de outro modo, ele concilia desenvolvimento econômico com conservação ambiental. É concebido e voltado para os povos da floresta que possuem centenas de anos em conhecimento na forma de lidar com os recursos florestais sem o impacto suicida.

O socioambientalismo possui um campo fértil no Brasil – o líder mundial em biodiversidade. Em que pese tenha sido estudado apenas 5% do potencial farmacológico da flora mundial, ¼ dos medicamentos usados em todo o mundo está baseado em produtos vegetais. Imagine se o Brasil tivesse estudado 15, 30 ou 50% de sua biodiversidade. Talvez ali estivesse a cura para doenças que hoje são incuráveis.

Além disso, produtos florestais como açaí, castanha-do-pará, e os óleos vegetais possuem valor comercial cada vez maior para a indústria de alimentos, cosméticos e de fármacos. Portanto, estamos em pleno processo de disputa pela Amazônia. Porém, dependendo de quem vença essa batalha, poderemos dizer se a Amazônia continuará existindo.

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“O conselho que dou aos colegas mais novos é que se dediquem ao máximo, de corpo e alma. É preciso dar o melhor de si”. Entrevista com Brasilino Santos.

Brasilino Santos começou sua carreira no MPF em 1984 atuando perante o STF, depois, desceu para o TRF e, com muito custo, conseguiu sua desejada lotação na PRDF, onde atuou como Procurador da República. Após essa inusitada trajetória institucional, ele foi finalmente promovido a Subprocurador-Geral e atua, desde 2004, por direito próprio, perante o STJ.

Brasiliense por adoção e por nome, Brasilino defende a Capital da República com as unhas e os dentes de um cidadão orgulhoso. Para ele, o modo como muitos se referem à cidade “desagrada ao brasiliense comum, muitas vezes confundido pelo país afora com certos políticos de qualidades morais duvidosas que, eleitos nas suas bases, habitam nossa Capital durante seus mandatos e retornam às suas bases sem nada haver construído para a sociedade”.

Sua infância foi banhada pelas águas do Rio Carinhanha, afluente do São Francisco que divide Bahia e Minas Gerais, no município de Cocos, BA. Foi uma infância muito sofrida, devido às dificuldades financeiras do meio rural, mas, ainda assim, uma infância feliz devido à liberdade que usufruía com seus irmãos e poucos amigos.

Antes de entrar para o MPF, Brasilino formou-se em Técnico em Contabilidade e, durante sua formação jurídica, aprendeu e cresceu sob a atenta tutoria do então ministro do TFR Carlos Madeira e do Advogado e Promotor de Justiça Pedro Sobreira Pirajá, até que, depois de Promotor de Justiça no DF, a vida o levou a ingressar no MPF em 1984.

Um colega experiente e, ao mesmo tempo, um aprendiz em formação, já foi membro de praticamente todas as CCRs e atuou como auxiliar das corregedorias do MPF e do CNMP. Alegra-se quando lhe chegam notícias do sucesso profissional de seus ex-estagiários. Feliz com as sementes que lança e com a colheita que os mais jovens naturalmente fazem de seus frutos.

Com esta 17ª entrevista, ‘Um dedo de prosa’ sobe um patamar e finalmente alcança o edifício-sede da PGR em Brasília, de onde o Brasilino nos brindou com esse interessante colóquio, um misto de memória e de testemunho.

 

Há um sentimento entre alguns colegas de que Brasília é uma ilha isolada do resto do País. Você, que é brasiliense até no nome, concorda com essa percepção? Brasília é uma síntese perfeita de que Brasil?

Sim, de fato existe essa percepção. Alguns até se referem a Brasília como ‘a ilha da fantasia’. Já ouvi diversas vezes estas expressões com referência a Brasília. Certa vez, uma senhora que me atendia numa loja no Shopping Paulista se referiu de modo descortês à nossa Capital. A ela respondi que não seria uma exclusividade nossa, pois, por exemplo, São Paulo produziu Paulo Maluf e tantos outros corruptos de triste memória. E os corruptos que trabalham em Brasília quase sempre são oriundos de outros Estados. Aí ela se calou… e mudamos de assunto.

A expressão ‘ilha da fantasia’ indica uma ilha paradisíaca onde qualquer desejo pode ser realizado, objeto de conhecido seriado que tem sido passado na televisão ao longo dos tempos. Trata-se, no entanto, em se referindo a Brasília, de uma ironia que muito desagrada ao brasiliense comum, muitas vezes confundido pelo país afora com certos políticos de qualidades morais duvidosas que, eleitos nas suas bases, habitam nossa Capital durante seus mandatos e retornam às suas bases sem nada haver construído para a sociedade, mas sim para o próprio patrimônio.

Podemos até aceitar que se trata de uma ‘ilha isolada’ do restante do país, pois deve ter sido idealizada por motivos de segurança do território nacional, ainda nos tempos das invasões estrangeiras — caso, por exemplo, das invasões holandesas e francesas. Foi nos tempos em que o perigo maior – para a integridade nacional – vinha do mar. Por isso os portugueses já planejavam levar a sede do poder para o centro do país, equidistante das fronteiras, para assim se protegerem dos piratas e dos demais ataques que vinham do mar, além de situar-se num ponto equidistante das demais Províncias.

Esse antigo sonho veio a ser positivado na Constituição de 1891, que dispôs que cada uma das antigas Províncias formaria um Estado e que o antigo Município Neutro — denominação que tevez a Capital do Império entre 1834 e 1890 — constituiria o Distrito Federal. Este continuaria a ser a Capital da União, enquanto não se estabelecesse no Planalto Central. Conforme art. 3º da Constituição Republicana, ficou “pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados”, que seria “oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital federal”.

Por iniciativa de Floriano, foi demarcada a área, entre 1892 a 1894, pela denominada Comissão Cruls, chefiada pelo astrólogo Luiz Cruls. A pedra fundamental da Comissão está na região administrativa de Planaltina-DF.

Talvez o fato de tratar-se de uma jovem Capital, distante da maioria das demais, haja levado a alguém a pensar em uma ilha, o que atualmente já não corresponde à realidade, pois a vinda da Capital para o Centro deu causa à formação de numerosos núcleos populacionais em suas proximidades, assim como ensejou um deslocamento populacional cada vez mais expressivo rumo às regiões Centro-oeste e Norte.

Apesar de todo esse deslocamento populacional, que vai se multiplicando e avançando rumo às áreas ainda inexploradas da região norte, Brasília ainda é uma sociedade em formação. Agora é que estão surgindo os verdadeiros filhos de Brasília ou os netos dos filhos dos Candangos. Ainda são frágeis as tradições e os traços culturais próprios. Antes um verdadeiro faroeste, o tempo vai se encarregando de construir esse núcleo de formação populacional cuja semente foi o Candango. Candango, no sentido mais apropriado, é quem veio para construir Brasília ou, mais genericamente, quem nasceu no Distrito Federal. Na realidade, quem nasce no Distrito Federal não tem ainda uma denominação mais adequada, tal qual, por exemplo, têm o goiano, o baiano e o mineiro.

Enfim, primeiro por sua composição recente na história, já que foi construída a partir de 1956 e inaugurada em 1960; depois, por suas peculiaridades como unidade da federação sui generis, Brasília parece um corpo estranho que surgiu, apesar das adversidades. É certo que até hoje o pessoal do Rio de Janeiro lamenta a mudança da Capital para o Centro do Brasil. O Rio ficou pobre. Para a Capital Federal são canalizados recursos financeiros de todas as Unidades da Federação, o que deixou de existir lá na antiga sede do poder. O Estado, com a mudança da Capital, perdeu expressiva fonte de rendas e teve que criar mecanismos próprios de arrecadação para suprir as dificuldades orçamentárias que surgiram e a cada vez mais se tornam mais sensíveis.

No atual momento, tenho a impressão que Brasília já não pode mais ser considerada como uma ilha. É que estão presentes aqui representantes de todos os Estados brasileiros, havendo a maior diversidade possível, a maior mistura de diferentes origens de pessoas, vindas de todos os recantos do território nacional. A isto se pode chamar de ‘integração nacional’. E se todos os Estados integram a Capital da República, aqui não é mais uma ilha isolada do restante do Brasil. Todo o Brasil está aqui. As distâncias foram reduzidas, desde o tempo em que predominava o transporte por animais, quando seria normal uma carta demorar vários meses para chegar do Rio de Janeiro a Brasília. Basta lembrar que a Comissão Cruls veio a cavalo. Mais ou menos trinta anos depois é que começaram a surgir os primeiros ancestrais dos nossos automóveis.

Por outro lado, quanto à alta Administração Federal, cada senador, cada deputado, ministro de estado, ministros de tribunais superiores que se deslocam dos estados para cá, por força de sua escolha, sua eleição, sua nomeação, transferência ou remoção, trazem consigo pessoas de suas relações familiares e sociais, assim como de suas relações profissionais. E muitos vão ficando depois, por aqui, e outros retornam e voltam, sendo marcante a característica da representatividade dos interesses das Unidades Federativas de origem no setor central do Brasil.

Outro exemplo é a Universidade de Brasília, que é vocacionada a ter as melhores referências no corpo docente, porque formado por numerosos professores que vêm cedidos pelas universidades dos Estados de origem. É o caso, por exemplo, de ministros de tribunais, de membros do Ministério Público, de assessores de ministros de Estado, de assessores de parlamentares, e assim por diante, que saem de altos postos acadêmicos nas universidades de origem para cá.

Esse termo ‘ilha isolada’ ou ‘ilha da fantasia’ também costuma ser relacionado a atos de improbidade e imoralidade administrativa, que realmente costumam ser negociados em Brasília, por ser aqui a sede do poder federal. Mas essas negociações têm, porém, como beneficiários, em sua maior parte, de regra, os interesses provincianos. Basta tomar para exemplo o caso das obras públicas, que, de regra, não estão em Brasília, mas nos Estados representados pelos parlamentares que, como de costume, têm a missão de carrear recursos e melhorias para seus Estados. Basta lembrar as denominadas emendas orçamentárias.

Você, Brasilino, está às voltas com as anistias a ex-cabos da Aeronáutica… Em que sentido isso é um problema para o Ministério Público? Há alguma solução em vista?

Trata-se de caso que venho acompanhando desde o ano de 2003, quando ainda oficiava na PRDF, e por isso tenho conhecimento de causa para tratar da verdadeira ‘fábrica de anistias’ que surgiu na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, contemplando pessoas que, comprovadamente, não foram vítimas de perseguição política.

Conforme Portarias Interministeriais n° 134 e n° 430, ambas de 2011, baixadas, conjuntamente, pelo Ministro de Estado da Justiça e pelo Advogado-Geral da União, foi determinada a revisão de 2.530 anistias — número elevado depois para 2.558 — suspeitas de falsidade no que respeita aos motivos de sua concessão a ex-cabos da Aeronáutica.

Os atos de anistia tiveram fundamento único na Portaria n° 1.104-GM3/64, do Ministro da Aeronáutica, que foi interpretada, por equívoco, pela Comissão de Anistia, como se se tratasse de ato de exceção, e a partir de então seguiram-se às centenas e depois aos milhares as concessões de anistias em bloco, sem que os destinatários houvessem sido vítimas de perseguição ou de punição por motivos políticos, como previsto no art. 8º do ADCT e na legislação ordinária que rege o assunto, tudo em prejuízo de quantos sejam realmente merecedores da anistia, os destinatários das normas que a instituiu, por haverem sofrido, realmente, perseguições e punições por motivos políticos durante o estado de exceção.

Certo é que quando o Ministro da Justiça, com base nas conclusões do Grupo de Trabalho Interministerial, composto por nove membros — quatro representantes da Advocacia-Geral da União e cinco representantes do próprio Ministério da Justiça –, havia decretado a nulidade de 428 casos de anistias comprovadamente falsas, pois não se tratava de perseguidos por motivos políticos, conforme se comprovou durante exaustivas investigações, sobreveio a concessão de mandados de seguranças, pelo Superior Tribunal de Justiça, ao fundamento de que, ultrapassado o prazo de cinco anos desde o ato concessivo de anistia, teria havido decadência, e por isso não se poderia decretar a nulidade.

Houve diversos recursos extraordinários para o Supremo Tribunal Federal, já admitidos e em trâmite, alguns já inadmitidos perante o Supremo Tribunal Federal, e enquanto isso os falsos anistiados, ex-cabos, prosseguem recebendo como suboficiais, ou como oficiais, da Aeronáutica, como se houvessem sido vítimas de perseguição ou punição, durante os Governos Militares, fato que comprovadamente não ocorreu.

Aliás, sobre o mesmo assunto, já no ano de 2004, conforme Portaria n° 594, de 12.2.2004, do Ministro de Estado da Justiça, foi decretada a nulidade de 495 atos concessivos de anistia a estes mesmos integrantes da categoria dos ex-cabos da Aeronáutica, igualmente por não haverem sofrido qualquer espécie de punição ou perseguição, durante o regime militar, menos ainda por motivos políticos ou ideológicos.

Somados os 495 com os 2.558 somam-se mais de 3 mil anistias concedidas a quem jamais fez jus.

Também em 2004, no âmbito do Ministério Público Federal, foi instaurado o Inquérito Civil Público n° 1.16.000.001386/2004-93, que, infelizmente, foi arquivado na origem e ora se encontra em trâmite perante a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, que cuida do Patrimônio Público e Social e Combate à Corrupção, destinado a apurar a notícia, à época, da concessão de centenas de anistias a ex-cabos da Aeronáutica, com fundamento único na Portaria n° 1.104-GM3/64, portanto, em contrariedade ao art. 8° do ADCT da Constituição de 1988 e ao art. 2° da Lei de Anistia — Lei 10.559/2002.

Além disso, depois, naquele mencionado ICP, foi instituído Grupo de Trabalho denominado ‘Anistias concedidas com base na Portaria n° 1.104-GM3/64’, na 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal – Patrimônio Público e Social e Combate à Corrupção, destinado a “apurar as circunstâncias em que foram concedidas anistias por motivo de conclusão do tempo de serviço militar na Força Aérea Brasileira”.

Esse Grupo de Trabalho, apesar de publicado o convite para sua composição, em nossa rede corporativa, ainda não se completou e, portanto, não está ainda em funcionamento. Por enquanto, estou solitário nessa árdua e invencível missão.

Além do mais, a partir de janeiro de 2014, desde quando designado para o exercício das atribuições junto à 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que trata de Direito Público, temos oficiado em numerosos mandados de segurança impetrados por ex-cabos da Aeronáutica, os beneficiários daquelas mais de 3 mil anistias falsas, contra atos do Ministro de Estado da Justiça e ou do Ministro de Estado da Defesa, ora buscando o pagamento de débitos retroativos, ora impugnando a declaração de nulidade dos atos concessivos de anistia. A tese dos ex-Cabos, que foi exposta em todos os mandados de segurança, é que a intenção da Portaria nº 1.104-GM3/64, do Ministério da Aeronáutica teria sido apenas a de perseguir e expulsar os Cabos que completassem oito anos de tempo de serviço na Força Aérea. Isso não é verdade, pois mesmo quem tivesse seis anos foi beneficiado com a prorrogação do período de permanência em dois anos. Em suma, mesmo aqueles que contavam entre seis e oito anos poderiam completar até dez anos no serviço militar, e tiveram o direito de prosseguir, desde que, antes do final dos dois anos de prorrogação automática, fossem aprovados para ingresso na Escola de Sargentos, caso em que continuariam regidos pelas normas anteriores à Portaria nº 1.104-GM3, de 1964. Nesse caso teriam assegurada a permanência na FAB, da mesma forma que aqueles que contavam mais de oito anos de tempo de serviço militar, na data da Portaria nº 1.104-GM3, de 1964. Os Cabos que houvessem completado 8 anos de serviço militar tiveram assegurada a permanência na Força Aérea, tendo permanecido regidos pelas regras anteriores, o que autorizava os reengajamentos até quando completassem 45 anos de idade, conforme a legislação que vinha da década de 40, quando foi criada a Força Aérea.

Nossa preocupação, no caso dos ex-Cabos falsários, decorre da alta relevância da causa, envolvendo excessiva quantidade de anistias, que chegou a mais de 3 mil, concedidas a ex-cabos da Aeronáutica com fundamento em fato inexistente, casos em que comprovadamente não houve punição ou perseguição política, mas, isto sim, apenas o licenciamento por causa unicamente da conclusão do tempo de serviço militar previsto na Portaria nº 1.104-GM3, de 1964, da mesma forma, para todos, sem ostentar qualquer norma com tratamento discriminatório ou de exceção.

Essas anistias falsas dos ex-cabos da Aeronáutica, no momento, acarretam prejuízos ao Tesouro Nacional de mais de dezesseis milhões de reais mensais, há débitos retroativos de cerca de quinhentos e trinta e um milhões de reais e já foram desembolsados quase um bilhão e meio de reais referente a pagamentos retroativos — na verdade R$ 1.493.242.053,38, compreendidos como tais os relativos ao período que vai da concessão da anistia até a data da Constituição de 1988.

E, além de a folha de pagamentos mensais desde a concessão de cada ato de anistia, implicar numa despesa de perto de R$ 2 bilhões em cada dez anos, tudo pago indevidamente, conforme se constata dos dados noticiados num ofício do Comandante-Geral do Pessoal da Aeronáutica, que tenho em minhas mãos.

E, para concluir, o que mais tristeza nos causa, é que se pode estimar que até o momento, compreendendo a soma dos pagamentos feitos aos ex-Cabos da Força Aérea, tanto pela manutenção da folha de pagamentos mensais como dos pagamentos retroativos, já houve um desembolso que supera a cifra de R$ 4 bilhões. Todavia, qualquer tentativa de barrar este assalto de quantias bilionárias, segundo o STJ, seria ilegal! Pasmem!

O entendimento atualmente adotado pela 1ª Seção do STJ, em inúmeros mandados de segurança, causa até enjoo e incurável depressão. Ali foi adotada a tese dos ex-Cabos falsários, no sentido de que a revisão administrativa objeto das Portarias Interministeriais nº 134, de 15.02.2011, e 430, de 07.04.2011, baixadas pelo Ministro da Justiça e pelo Advogado-Geral da União, não poderia ocorrer, sob o fundamento de que teria havido a decadência do direito de decretar a nulidade, na via administrativa, nos termos do art. 54 da Lei nº 9.784/1999, porque não estaria provada a má-fé dos beneficiários da anistia concedida.

Já houve diversos recursos extraordinários admitidos no Superior Tribunal de Justiça, que estão aguardando julgamento no Supremo Tribunal Federal, onde, lamentavelmente, já foram alguns deles inadmitidos por decisões monocráticas de Ministros da Suprema Corte, algumas confirmadas via agravo regimental, como no caso dos RREE 806056, 806100, 784731, 784736 e 781961/DF. A quem se interessar pelo assunto, pode-se começar pela leitura do acórdão proferido no MS n° 18.606/DF, publicado no DJe 28.6.2013, precedente pioneiro sobre a pérola da decadência.

Penso que o raciocínio deveria ser outro. Como poderiam os ex-cabos da Aeronáutica ser considerados de boa-fé, se obtiveram o direito a anistia sem jamais terem sido vítimas de qualquer espécie de perseguição ou punição e menos ainda por motivos políticos? Dizer que não está demonstrada a má-fé nestes casos é o mesmo que reconhecer a boa fé de alguém que consegue um benefício de aposentadoria mediante falsificação de anotações na carteira do trabalho em que conste, por exemplo, haver trabalhado como funcionário público ou no setor privado, sem que, na vida real, jamais tenha sido servidor público ou empregado, nem de qualquer forma contribuído para a previdência social.

Mudando de assunto, Brasilino, onde você passou sua infância? Que lembranças tem da sua meninice?

Toda a minha infância e adolescência – até completar dezoito anos, quando saí para prestar o serviço militar – foi vivida predominantemente no meio rural, no interior da Bahia, no interior de Goiás e em Brasília. Aqui cheguei aos onze anos de idade, com meus pais, trabalhadores rurais. Fiz o curso primário, do primeiro ao quinto ano, em escola evangélica. Depois fiz o curso ginasial, em quatro anos, e o curso colegial, em mais quatro anos, como Técnico em Contabilidade, concluído em 1975.

Tive uma infância muito sofrida, devido à pobreza do meio rural. Por outro lado, foi uma infância muito feliz, haja vista os espaços de liberdade que eram praticamente ilimitados. Tudo era permitido. Minha vida, nos primeiros tempos, foi algo que em muito se assemelha aos acontecimentos narrados em ‘Três Garotos em Férias no Rio Tietê’, de Francisco de Barros Júnior, que conta a aventura de um tio que desce o Rio Tietê num bote, acampando e ensinando os sobrinhos a respeitar e proteger a natureza. Não se trata do Rio Tietê imundo, sujo, malcheiroso e agredido, que atravessa a Capital dos Bandeirantes. A Capital trata mal o seu rio mais importante. Trata-se daquele outro, de águas limpas, que corria entre florestas densas, até que por ali chegou a civilização e o destruiu.

Sempre gostei muito da água dos rios, córregos e riachos, nas quais passava os dias a banhar com os irmãos e alguns amigos. Até porque, nascido nas margens do Rio Carinhanha, afluente do São Francisco, que faz divisa da Bahia com Minas Gerais, no Município de Cocos, antes distrito do Município de Carinhanha, e naquele Rio, até hoje, há muitos peixes [ainda mansos, porque pouco perseguidos pelos pescadores] e as águas ainda são limpas, bastante apropriadas para os passeios de canoa e uma excelente pescaria, além do banho em suas águas limpas e cheirosas. Cheiro de matas, cheiro de florestas. Cheiro de água pura.

Aqui mesmo, em Sobradinho, DF, onde cheguei aos onze anos de idade, desfrutei das delícias das águas de um regato que por ali se escorre, até quando, depois de 1970, suas águas se transformaram em escoadouro de esgotos e de lá para cá tudo se perdeu. Deixou de existir aquilo que, no início, era uma espécie de clube de uso coletivo, para onde a meninada se deslocava nas horas de sol ardente, principalmente nas tardes.

E ainda havia dois clubes, com piscinas, na beira do regato de Sobradinho, o SODESO e o BANCREVEA, que ainda sobrevivem, em Sobradinho-DF, onde ainda se pode encontrar algum amigo daqueles tempos de escola primária, dos tempos de ginásio e de colégio.

E como você chegou ao Ministério Público Federal?

Meus estudos foram me levando naturalmente ao Ministério Público. Veja. Eu cursei o pré-primário na Escola Evangélica Erasmo Braga, em São Gabriel, Goiás, em 1963, de onde nos mudamos para Sobradinho, DF, quando reiniciei os estudos na Escola Classe do Nazareno, outra escola evangélica, onde de 1964 a 1967 eu fiz o curso primário.

Eu agradeço muito pela formação evangélica que me foi proporcionada, pela educação religiosa, pelo civismo e pelo rigor disciplinar, base da formação moral que me conduz pelo restante da vida. Quem é levado para escolas religiosas, desde os primeiros momentos da existência, não necessitará de correção no futuro. Ali o caráter é moldado, estimulam-se os bons costumes, a educação é baseada em princípios cristãos, que são sempre muito sólidos e eternos.

E na Escola Classe do Nazareno, cujas atividades foram encerradas em 1967, a educação cívica era reforçada, pois todos os dias eram hasteadas a Bandeira Brasileira e a Bandeira do Distrito Federal, e todos, em harmonia, cantávamos o Hino a Brasília, o Hino à Bandeira e o Hino Nacional, antes do começo das aulas.

O ginasial e o colegial foram cursados, respectivamente, de 1968 a 1971 e de 1972 a 1975, no antigo Colégio de Sobradinho. E dali, saí com o diploma de Técnico em Contabilidade, tendo sido vitorioso, no mesmo ano de 1975, num concurso público para o Fisco de Goiás, aplicado pela Fundação Carlos Chagas, onde atuei numa das mais prestigiosas carreiras do Estado.

Volvendo no tempo, prestei o serviço militar, no 8º Grupo de Artilharia Antiaérea, em Brasília, atual 32º Grupo de Artilharia de Canhões, em 1971, de onde saí com o Certificado de Reservista de 1ª Categoria. Aquele ano foi um dos mais marcantes na minha vida, pois, na Caserna, aprendi o sentido do respeito à Pátria e do fiel cumprimento dos deveres de cidadão. São aprendizados que jamais serão esquecidos, pois ficam interiorizados no pensamento do jovem e o acompanham pela eternidade.

De abril de 1976 a dezembro de 1977, fui Agente Arrecadador de Tributos Estaduais, cargo integrante do Fisco do Estado de Goiás, de onde saí para o cargo de Auxiliar Judiciário, tendo sido, logo no início, designado para uma função de confiança, como Secretário Datilógrafo, no Gabinete do Ministro Carlos Madeira [no extinto Tribunal Federal de Recursos], depois, Ministro do Supremo Tribunal Federal, onde se aposentou. Esse ministro foi, antes, Professor de Direito Público e Juiz Federal, durante dez anos no Maranhão, e foi uma das pessoas que mais inspiração me proporcionou rumo às carreiras jurídicas, pessoa a quem sou muito grato pelo tanto que influenciou positivamente minha vida, e com quem trabalhei desde o início de 1978 até o início de 1983. Trata-se de uma das pessoas mais respeitáveis, justas, dignas e honestas das que tive a oportunidade de conhecer.

Também desde início de 1978 fui Estagiário do Advogado e Promotor de Justiça Pedro Sobreira Pirajá, pessoa que me ensinou a maior parte dos conhecimentos de que faço uso até hoje. Tratava-se de alguém que saiu do Ceará para o Rio de Janeiro, onde foi seminarista, depois Oficial do Exército. Também era formado em Economia e dominava o Latim. Foi quem mais me orientou e mostrou os caminhos da retidão, tão necessários para a carreira do Ministério Público, e com quem permaneci até meados de 1984, quando já havia passado pelo Ministério Público do DF e estava no Ministério Público Federal.

Durantes os anos de 1978 a 1981, formei-me Bacharel em Direito, na Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal, e de 1987 a 1991, obtive o Grau de Mestre em Direito Público, na Universidade de Brasília, com a defesa da dissertação “Medidas Provisórias no Direito Comparado e no Brasil”, publicada em 1994 pela Editora LTr, São Paulo, edição esgotada.

Tomei posse no Ministério Público do Distrito Federal em 23.2.1983, como Defensor Público, que atualmente corresponde ao cargo de Promotor de Justiça Adjunto. Depois de seis meses, aproximadamente, passei a exercer predominantemente o cargo de Promotor Público Substituto, com atribuições em questões de família, órfãos e sucessões, predominantemente, e na área criminal.

Em 1º.10.1984, tomei posse como Procurador da República. Em março de 1993 fui promovido a Procurador Regional da República e, em dezembro de 2003, ao cargo de Subprocurador-Geral da República.

Logo que cheguei no MPF, passei a atuar como uma espécie de auxiliar de Subprocuradores-Gerais da República, que existia à época, atividade consistente em estudar os autos de processos e elaborar pareceres que eram assinados pelo Procurador da República e aprovados pelos Subprocuradores-Gerais da República. Comecei analisando processos criminais e elaborando pareceres perante o Supremo Tribunal Federal. Depois, surgiu um grupo de trabalho perante o Tribunal Federal de Recursos, para desobstruir numerosos recursos ordinários trabalhistas. Os pareceres eram submetidos à aprovação dos Subprocuradores-Gerais da República.

Foi um período muito enriquecedor e de intenso aprendizado e aperfeiçoamento, pois contávamos com a orientação de pessoas que, além de educadíssimas, nos tratavam de igual para igual, não obstante serem portadoras de elevada formação jurídica e larga experiência profissional.

Eram pessoas que se dedicavam, com muita paciência, horas e horas, ao trabalho de ouvir as ponderações e esclarecimentos sobre a defesa de certos pontos de vista, à correção dos nossos pareceres e aos esclarecimentos dos pontos em que deveriam ser aperfeiçoados. Os pareceres eram feitos e assinados por nós e aprovados pelo Subprocurador-Geral com lotação perante o Tribunal Federal de Recursos ou perante o Supremo Tribunal Federal, conforme o caso. Só tenho a agradecer a tantos Subprocuradores-Gerais que tanto tempo se dedicaram a me ensinar e em muito contribuíram para o meu aperfeiçoamento pessoal e profissional. Com eles aprendi a levar cada vez mais a sério o exercício dessas tão relevantes atribuições ministeriais.

Após a Constituição de 1988, entendeu-se como incompatível com o perfil institucional do Ministério Público o trabalho de auxiliar de Subprocurador-Geral. Daí, passei a oficiar perante a PRDF, de onde saí somente para o cargo de Subprocurador-Geral, quando passei a atuar perante o STJ, de onde não mais saí.

Curioso é que, enquanto para todo Procurador da República, ao tomar posse, o natural seria iniciar em 1º grau e somente anos e anos depois galgar para o 2º e o 3º graus, ocorreu o contrário com os que tomaram posse no MPF com lotação em Brasília em 1º.10.1984. Primeiro, o colega Gilmar Mendes foi escolhido pelo PGR, por haver sido o 1º classificado no concurso, para oficiar perante o Supremo Tribunal Federal. No mesmo ato foram escolhidos para atuar na PRDF aqueles que haviam feito opção pelo exercício da advocacia, que foi exigida antes da posse. Tal opção consistiria em que os que renunciassem ao exercício da advocacia receberiam uma gratificação de dedicação exclusiva, prevista em lei. Feitas as designações referidas, os demais foram colocados à disposição dos Subprocuradores-Gerais com assento no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Federal de Recursos, aos quais incumbiria a escolha para de Procuradores da República auxiliá-los no estudo dos processos e elaboração de pareceres, nas respectivas áreas de atuação.

Feito isto, o professor Inocêncio Mártires, então PGR, deu por encerrada a reunião, que não deve ter durado mais que três minutos, alertou que sua decisão era inapelável, e saiu.

Devido àquela decisão, não abririam vaga na 1ª instância, durante anos, e fui obrigado a permanecer no Supremo Tribunal Federal, no estudo e elaboração de pareceres em processos criminais, até quando surgiu um mutirão, no Tribunal Federal de Recursos, destinado a analisar mais ou menos 6.000 processos que ali estavam represados, a depender com vista em aberto para o Ministério Público Federal. No TRF atuei principalmente em recursos ordinários trabalhistas e em matéria administrativa em geral. E só depois de vários meses no TRF é que consegui, afinal, minha “ascensão” ao 1º grau. Como já estava cansado de atuar no 2º e no 3º graus, prometi a mim mesmo, embora sem jamais haver dito a ninguém, que dali não sairia jamais, a não ser direto para o Superior Tribunal de Justiça. E foi o que, de fato, ocorreu.

Uma observação é que antes havia os cargos de procurador da República de 2ª categoria e de 1ª categoria, com atuação em 1º grau, enquanto os Subprocuradores-Gerais tinham atuação no TRF e no STF. Os Subprocuradores não eram cargos de provimento efetivo, mas, sim, por livre escolha do PGR, e permaneciam enquanto bem servissem, podendo, serem dispensados a qualquer momento, caso em que retornavam para o exercício do cargo efetivo em 1º grau.

Quando os Tribunais Regionais Federais foram criados pela Constituição de 1988 foram criados os cargos de Procurador Regional da República. Assim, conforme previsto na legislação própria, eu não seria obrigado a atuar perante o Tribunal Regional Federal, embora tivesse preferência para ocupar qualquer vaga que surgisse. Mas a ascensão dependeria de opção. A opção para permanecer em 1º grau era tácita. A outra deveria ser expressa. Sempre optei por permanecer em 1º grau, até quando saí da PRDF direto para a PGR, onde fui designado para atuar perante o Superior Tribunal de Justiça.

Curioso é que, já promovido, em 02.12.2003, a Subprocurador-Geral da República, ainda permaneci atuando perante a Justiça Federal de 1º grau, durante os meses de dezembro de 2003 e janeiro de 2004, enquanto estava sendo providenciada a aquisição dos móveis para o meu gabinete, a sala 211 do Bloco A do Edifício da PGR. Eu comecei a oficiar perante o Superior Tribunal de Justiça somente em 1º de fevereiro de 2004.

Nos tempos de PRDF, exerci, como Substituto, o cargo de Procurador-Chefe, além de ter sido o Coordenador da Área Criminal, também por certo tempo, e membro suplente da 4ª CCR — Câmara do Meio Ambiente. Também exerci, temporariamente, o cargo de Procurador Regional Eleitoral nos Estados do Tocantins, do Amapá e do Acre, em diversas oportunidades, além de haver atuado também como Procurador da República, naqueles mesmos Estados, durante vários períodos, e noutros momentos também exerci as atribuições de Procurador-Chefe, temporariamente, nos mesmos Estados. Ainda, como Procurador da República e sempre de forma temporária e como voluntário, oficiei em Criciúma, SC, em São Bernardo do Campo, São José do Rio Preto, Sorocaba e Franca e em São Paulo, SP, em Imperatriz, MA, e em Marabá e Santarém, PA.

Ainda durante os tempos de PRDF, aceitei o cargo em comissão, de assessor, junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, exercido de julho de 1989 a novembro de 1991, e depois, durante o Governo Itamar Franco, o cargo de Consultor Jurídico, de julho de 1993 a junho de 1995, então sob a nomenclatura de Assessor-Chefe, na Secretaria da Administração Federal da Presidência da República, hoje integrante da estrutura do Ministério da Administração Federal, período durante o qual houve a designação para assessor jurídico de uma Comissão Especial da Presidência da República, destinada à apuração de casos de corrupção, e depois para assessorar a Secretaria de Reforma do Estado, já durante o Governo Fernando Henrique Cardoso.

Também durante o período de atuação na PRDF, exerci, durante mais ou menos dois mandatos, o cargo de Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, o que ocorreu em parte do ano de 2002, durante o ano de 2003 e parte do ano de 2004, nomeação por decreto do Governo do Distrito Federal, por indicação do Conselho Superior do Ministério Público Federal.

No Superior Tribunal de Justiça, atuei perante a Segunda Turma, de Direito Público, durante mais de ano, logo no início de 2004, tendo ido a seguir para a Quinta e a Sexta Turma, de Direito Penal, de 2005 a 2013, quando retornei para a Primeira Seção, de Direito Público, onde me encontro até o momento.

A movimentação de processos na PGR é grande, Brasilino? Chegam a acumular de modo incômodo nos gabinetes?

Sim, é grande. Durante os anos em que permaneci na área criminal, o volume de distribuição subiu dos aproximadamente cem processos por mês, em média, tendo chegado a atingir até mais de quinhentos, quantitativo que só não subia mais porque havia a regra da isonomia, que implicava a distribuição do excedente de forma igualitária para todos. E assim, os colegas lotados na Primeira Seção, Direito Público, e na Segunda Seção, Direito Privado, contemplados com menor número de processos na distribuição, também recebiam habeas corpus e outros excedentes criminais, até igualar a distribuição.

Com o aumento do quadro de Subprocuradores-Gerais da República, na gestão do atual PGR, surgiram novas regras de distribuição. Aumentou-se o quantitativo de colegas nas áreas de direito penal e direito público, na tentativa de corresponder, de forma isonômica, aos quantitativos, não só quanto à distribuição, como igualmente quanto ao número de sessões a que se deve comparecer no Superior Tribunal de Justiça.

O maior aumento da distribuição de processos veio com a EC 45/2004, que determinou a distribuição do acervo total imediatamente logo após a chegada dos autos com vista ao Ministério Público Federal.

No ano de 2013, chegaram ao gabinete 1.691 processos nos quais deveria ser emitido parecer, o que equivale à média de 140 por mês. Como se trata de um Tribunal de competência universal, caso do Superior Tribunal de Justiça, quase tudo é inédito e demanda estudos às vezes originários. Há momentos em que tudo o que se aprendeu não é suficiente. Todos os conhecimentos acumulados nas mais de três décadas só em atividades ministeriais, há momentos em que de nada servem, pois vão surgindo questões inéditas e que merecem resposta inovadora. As questões jurídicas vão se atualizando constantemente, o que impõe a necessidade de atualização e reciclagem de conhecimentos.

Mesmo assim, foram emitidos, em 2013, 1.370 pareceres, o que equivale à média de 114 por mês. Ficou um saldo remanescente de 674, o que é, sem dúvida, frustrante, dada a invencibilidade do volume de trabalho e a falta de tempo para elaborar pareceres com os requisitos de qualidade desejáveis. Ainda bem que a distribuição tem sido sensivelmente reduzida durante a administração do atual PGR. De janeiro a setembro de 2014, entraram 923 processos judiciais para parecer e recursos, o equivalente a 102 por mês, e restava um saldo de 686, no início de outubro, o que, mesmo com a redução, não deixa de ser frustrante, dada a constatação da incapacidade profissional para dar vazão ao trabalho, sem perder de vista a desejada boa qualidade da prestação jurisdicional.

Erros judiciários são constatados rotineiramente, e não temos instrumentos adequados para corrigi-los, a começar pela carência de recursos humanos. Ainda bem que renovamos a cada dia o pensamento no sentido de que o que não se pode fazer são pareceres com qualidade que não corresponda às expectativas que a sociedade deve ter relativamente ao bom conceito do Ministério Público.

Diante de tanto trabalho, como é a rotina de seu gabinete? Você tem bons assessores?

A rotina do trabalho consiste basicamente em corrigir as minutas de pareceres feitas pelos assessores, que são incumbidos do primeiro exame do processo, que atualmente é eletrônico. Estamos sempre orientando sobre qual o entendimento deverá ser adotado em cada caso, isto após reunião com cada assessor relativamente a cada processo sob análise, depois de lido e resumido em forma de relato dos fatos e fundamentos mais relevantes objeto do recurso especial, do habeas corpus, do mandado de segurança, do recurso ordinário em mandado de segurança, dos agravos em recurso especial. São essas as espécies de processos mais ocorrentes.

O quadro do gabinete compreende seis servidores e nem sempre completo. Todos indistintamente colaboram na análise dos processos e na elaboração de minutas de parecer, trabalho que é executado igualmente por dois estagiários. O quadro de três estagiários dificilmente funciona completo. Por sua vez, os assessores se incumbem de orientar e ensinar os estagiários.

A qualidade do trabalho nunca é satisfatória por causa da quantidade. Todavia, há vários casos em que, dada a maior complexidade e relevância da questão, exige-se maior demora e reflexão no seu aperfeiçoamento, com pesquisas de doutrina e jurisprudência mais aprofundadas.

Um dos assessores é incumbido cumulativamente dos serviços administrativos de secretaria, incluindo a agenda e a requisição de material de consumo, integrantes da parte administrativa do gabinete, enquanto outro é incumbido da revisão final dos pareceres, e de fazer, além dos trabalhos que naturalmente lhe cabem, uma espécie de coordenação dos trabalhos e uma espécie de filtro de controle de qualidade de cada minuta de parecer.

Os trabalhos de elaboração de pareceres podem consumir até três fases, passando por mãos diferentes, a começar, evidentemente, pelo exame dos autos, a cargo de assessores e de estagiários; outra, de elaboração de minutas de pareceres, trabalhos de assessoria com o auxílio de estagiários; e outra de revisão pelo assessor incumbido da revisão final, quase sempre a pedido do Subprocurador, quando nota alguma impropriedade no trabalho. Por último, uma leitura final, novas correções e retorno para complementação, culminando com a assinatura, quando o parecer é assinado eletronicamente e remetido ao Superior Tribunal de Justiça.

Atualmente, tenho três analistas e dois técnicos, que são os assessores do gabinete. Para minha satisfação, é comum chegar a notícia de que alguns de meus estagiários vão alcançando cargos como o de técnico e ou de analista, quer perante o Judiciário, quer perante o Ministério Público Federal. Outros alcançaram os cargos de agente e de delegados de polícia, quer no Distrito Federal, quer na Federal. Outros alcançaram o cargo de juiz de direito e por aí vai. E isto me deixa bastante feliz. Pena que quando, depois de anos preparando um funcionário, quando ele atinge um nível razoável de compreensão, suficiente para a elaboração de boas minutas de parecer, surge uma oportunidade e lá se vai embora do gabinete, e tudo começa outra vez, preparando outros, como ocorreu recentemente, quando uma excelente assessora passou no concurso para a Advocacia da União. Antes, outro havia saído para analista junto ao Superior Tribunal de Justiça, onde foi logo a seguir nomeado assessor de ministro. No momento, outro foi nomeado para analista no Superior Tribunal de Justiça.

E o pior de tudo é que há dificuldades de reposição, pois o deslocamento de um servidor para o gabinete depende da remoção de outro para o seu lugar, se o exigir a chefia do setor onde ele se encontra. E, assim a cada perda de servidor surgem as dificuldades de reposição. E além de tudo, a escolha deve recair em alguém que seja voluntário e que esteja disposto a ter uma carga de serviços bem maior que a naturalmente enfrentada nos demais setores. E há critérios de seleção pelo curriculum, entrevista, análise do temperamento, coleta de informações sobre o comportamento e a vida pregressa, com todos os cuidados possíveis para não entrar alguém que traga a desarmonia ao ambiente de trabalho.

Um detalhe é que, em meu gabinete, somente um dos assessores não é ex-estagiário, sendo esta a forma adotada para selecionar meus auxiliares, sempre os acompanhando para onde forem e, sempre que surja uma vaga, fazendo o convite voltar a integrar o gabinete, o que normalmente tem dado certo, pois já se trata de pessoa cujo perfil foi avaliado tanto por mim como pelos assessores durante um ano ou mais, no período de estágio.

O trabalho é sempre extenuante por causa da competência universal do Superior Tribunal de Justiça, que abrange praticamente todo o universo do conhecimento jurídico, excepcionadas as questões trabalhistas, eleitorais e a matéria constitucional, evidentemente, esta última, privativa do Supremo Tribunal Federal. Sem perder de vista que as questões infraconstitucionais, exceto em matéria penal, quase sempre terminam no Superior Tribunal de Justiça, conforme previsto na Constituição. Disse ‘exceto em matéria penal’ porque, na prática, esta é rotineiramente submetida ao Supremo Tribunal Federal, por causa do habeas corpus, que é sempre cabível, quer originariamente, quer mediante recurso ordinário, para o STF, que reservou, para si, a última palavra nesta área pertinente ao direito à liberdade.

E neste ponto o Ministério Público está quase sempre em desvantagem, pois não pode chegar ao Supremo Tribunal Federal senão através de recurso extraordinário, via estreitíssima, enquanto o réu tem a amplíssima via de recurso ordinário em habeas corpus e mesmo do habeas corpus originário. Também isto ocorre quanto ao mandado de segurança, em que o cidadão tem maiores espaços, enquanto o Ministério Público Federal dificilmente consegue êxito na mesma questão de direito, se houver erro de direito no Superior Tribunal de Justiça ao julgar, o que não é tão incomum como se pode pensar. E isto não por incapacidade profissional, pois para Ministro do Superior Tribunal de Justiça são selecionados os melhores currículos. São realmente pessoas de notável saber jurídico. O problema deve estar mesmo na sobrecarga de processos desproporcional à capacidade de trabalho de qualquer ser humano, por não ser possível, de regra, a compreensão exata do conteúdo do processo antes de julgar, por causa da velocidade que deve ser imposta aos trabalhos.

Além do trabalho estritamente judicial, você também é conhecido por se dedicar intensamente à atividade administrativa…

Sim, sem dúvida. A minha atuação no setor jurisdicional, perante o Superior Tribunal de Justiça, jamais constituiu a parte mais expressiva, a mais exaustiva e a mais relevante das atribuições de um Subprocurador-Geral da República. Muitas vezes, assumi voluntariamente algumas missões, a pedido de Colegas e do PGR, ou seja, as atribuições que poderíamos denominar extrajudiciais, como é caso daquelas correspondentes a Grupos de Trabalho, a atividades perante as Câmaras de Coordenação e Revisão e ao Conselho Institucional, que é órgão recursal das decisões das Câmaras, a atividades perante o Conselho Superior do Ministério Público Federal, a designações para atuar como Corregedor Auxiliar, perante a Corregedoria-Geral do MPF e perante a Corregedoria-Geral do CNMP, atuando como membro de Comissões de Correição e como membro de Comissões de Sindicância, de Inquérito e de Processo Disciplinar, o que consume enormes parcelas de tempo e causa preocupações às vezes indescritíveis.

A pedido do PGR é comum aceitar o trabalho de acompanhamento de causas de interesse do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual perante o Superior Tribunal de Justiça, com a missão de interceder perante os ministros, no acompanhamento de causas de maior relevância, formular pedidos de suspensão de segurança perante o presidente daquela Corte e assim por diante.

Das seis Câmaras de Coordenação e Revisão existentes até a administração do atual PGR, somente não tive atuação na 1ª CCR — Direito Constitucional. Atuei em diferentes momentos na 2ª CCR — Criminal, na 3ª CCR — Consumidor e Ordem Econômica, na 4ª CCR — Meio Ambiente, na 5ª CCR — Patrimônio Público Improbidade e na 6ª CCR — Índios e Minorias.

No momento, por questões de saúde precária, renunciei a todos os trabalhos extrajudiciais, declinei de vários convites, enquanto tento contornar os reflexos de uma enfermidade que está me reduzindo a capacidade de trabalho.

Mas ainda resta, de compromissos antigos, o acompanhamento em estágio probatório, o que implica o dever de análise dos trabalhos, para fins de aferição dos requisitos de eficiência e qualidades profissionais, tais como assiduidade, disciplina, capacidade de iniciativa, produtividade, responsabilidade, qualidade do serviço etc, incluído o dever de elaboração de relatórios temporários e final, conclusivos sobre os resultados positivos ou negativos inerentes às atividades institucionais dos colegas estagiários, o que implica dedicação de tempo extraordinário e viagens para outros Estados.

Quanto aos trabalhos de auxílio às Corregedorias, tanto do MPF quanto do CNMP, divide-se em duas espécies, a saber: a) as correições em procuradorias gerais de justiça e em procuradorias regionais da República, além de outros órgãos do Ministério Público Federal e Estadual, tendo por objetivo avaliar a qualidade dos serviços prestados, a fim de oferecer sugestões de melhoria, além de apontar eventuais faltas disciplinares cometidas; b) processos disciplinares, compreendendo sindicâncias, inquéritos e processos administrativos disciplinares, o que compreende a apuração da materialidade e da autoria de faltas de natureza disciplinar e as sugestões de aplicação das penalidades cabíveis, a serem submetidas à apreciação dos corregedores, do MPF e do CNMP, e dos correspondentes conselhos.

Tudo isso implica às vezes pesados ônus não só decorrentes dos afastamentos da sede de trabalho, do acúmulo de atividades judiciais que são adiadas e do trabalho de apuração de fatos e dos estudos de doutrina e jurisprudência, a fim de orientar a aplicação das normas de direito disciplinar as mais adequadas possíveis, com o mínimo de erro de fato ou de direito, a fim de não causar nenhum male injusto a ninguém.

A distribuição de feitos judiciais somente se suspende durante as viagens a serviço das corregedorias, do MPF e do CNMP, e isto ocorreu recentemente, pois não era admissível antes. Mesmo estas interrupções de distribuição ainda é pouco, haja vista que o maior trabalho é a elaboração de relatórios de atividades, que já começa no momento mesmo da designação para integrar a Comissão. E além da apuração rigorosa dos fatos, dentro dos prazos definidos previamente em lei, a pesquisa de doutrina e jurisprudência deve ser a mais exaustiva e cuidadosa possível, a fim de oferecer a proposta de julgamento a mais justa e adequada, de modo a sempre poder merecer a confiança e o respeito por parte das Corregedorias dos membros do Conselho Superior e/ou do Conselho Nacional, no desempenho das missões que nos são confiadas e sempre renovadas.

Você tem tido tempo de ler? O que tem lido ultimamente, Brasilino?

Não. Mas não perco o hábito. Tenho muito interesse na história recente do Brasil, desde Vargas até o atual momento, com destaque para os fatos relacionados à Revolução de 1964 e seus adversários. Pesquiso e medito sobre tudo o que de erros e acertos ocorreu, quais as lições que podem ser extraídas deste recente período histórico e o que fazer para não ocorrerem novamente os mesmos contextos históricos que deram ensejo à Revolução de 1964. Revolução que, a bem da verdade, não foi só dos militares, pois foi, no início, patrocinada pelo poder econômico, pela indústria, no ambiente urbano, e pelos proprietários rurais, no ambiente rural. E o interesse predominante era mesmo evitar o comunismo, conforme tábua de valores que surgem, por exemplo, no discurso de João Goulart, dias antes de seu afastamento do poder.

Certo é que, depois de superado o problema que legitimou sua ascensão ao poder, os militares, que haviam prometido restituir o governo à sociedade civil, faltaram com a palavra e seu governo, daí em diante, tornou-se objeto de resistência, até quando não pôde mais prosseguir diante da conquista de espaços cada vez maiores pela sociedade civil organizada.

Em tempos recentes, cerca de um ano para cá, li, entre outras, as seguintes obras: 1) Operação Araguaia os arquivos secretos da guerrilha, de Taís Morais e Eumano Silva; 2) O coronel rompe o silêncio, de Luiz Maklouf Carvalho; 3) Xambioá: guerrilha no Araguaia, de Pedro Corrêa Cabral; 4) Castello Branco: a marcha para a ditadura, de Lira Neto; 5) Mensalão, de Merval Pereira; 6) 1808, de Laurentino Gomes; 7) 1822, do mesmo Laurentino Gomes; 8) O Cofre do Adhemar, de Alex Solnik; 9) Dirceu: a biografia: do movimento estudantil a Cuba, da guerrilha à clandestinidade, do PT ao poder, do palácio ao Mensalão, de Otávio Cabral; 10) O Cofre do Dr. Rui, de Tom Cardoso; 11) Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armas, de Romualdo Pessoa Campos Filho; 12) Memórias de uma guerra suja, de Cláudio Guerra; 13) Os últimos soldados da guerra fria, de Fernando Morais; 14) As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte no Brasil, de Audálio Dantas.

Você é um colega da chamada ‘velha guarda’, não é? A história do Ministério Público nas décadas de 80 e 90 é a história da conquista de garantias institucionais e de instrumentos processuais que o constituíram como uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns ícones dessa geração convivem hoje com colegas recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. Acredita que a geração que construiu o MPF da primeira década pós-Constituição consolidou uma certa tradição? Se sim, que tradição é essa? Ela foi ou vem sendo transmitida com sucesso às novas gerações?

Como colega que veio da década de 80 posso dizer que, durante o Estado de Exceção, o Ministério Público podia pouco ou quase nada, devido ao predomínio da autoridade das armas sobre a autoridade das ciências. O Ministério Público com a força e o poder que hoje lhe são inerentes, surgiu sob o império da Constituição de 1988, que, por sua vez, teve como inspiração a doutrina que se construiu nas décadas precedentes, que remontam ao início da República, sendo, portanto, a instituição mais republicana de todas as que temos.

Ainda na atualidade, restam espaços de atribuições ainda não cobertos completamente pelo Ministério Público Federal, que tem de enfrentar desafios rotineiramente, tanto no próprio ambiente ministerial, como perante o Judiciário e outros setores do poder público, que ainda lhe são rebeldes.

Certo é que aos poucos os espaços vão sendo conquistados e os meios adequados para vencer os obstáculos vão sendo descobertos e aperfeiçoados. E ainda será possível ocupar muitos espaços vazios, dado o elevado grau de aperfeiçoamento moral e intelectual da nova elite cultural que vem chegando e se formando dentro do Ministério Público.

Como você vê o trabalho dos Procuradores da República recém-empossados? Se pudesse dar a eles três conselhos vindos de sua larga experiência no MPF, quais seriam?

Desde o ingresso na carreira, tenho observado que os quadros do Ministério Público e do Judiciário têm se aperfeiçoado cada vez mais. Certo é que houve um momento inicial em que, na área federal, eram de livre escolha e nomeação, o que ocorreu nos idos de 1966, quando foi criada a Justiça Federal de Primeiro Grau, cujos magistrados eram escolhidos entre advogados e membros do Ministério Público Estadual, tendo sido escolhidos preferencialmente aqueles que tivessem exercido com destaque atividades de combate à corrupção. Aliás, pois esta era a bandeira número um dos Governos Militares e um dos principais motivos do chamado Golpe Militar. E talvez venha daquele momento a inspiração que sempre orientou a conduta dos Membros do MPF até a atualidade.

De uns quinze ou vinte anos para cá, tem sido percebida uma sensível melhoria nas qualidades profissionais dos membros do Judiciário e do Ministério Público, tanto federal como estadual, sem falar nas outras carreiras jurídicas. Parece que estão sendo cada vez melhor selecionados. Há uma tendência à aprovação dos detentores de títulos de mestrado e doutorado. Como o quantitativo de bacharéis que são lançados a cada ano no mercado de trabalho, às centenas e aos milhares, cada vez cresce mais, aumenta o universo de competidores, o que, sem dúvida, contribui para a melhoria da prestação jurisdicional, pois a cada vez mais crescem as possibilidades de melhor seleção dos interessados e os concursos públicos vão se tornando cada vez mais difíceis.

O conselho que daria aos colegas mais novos é que tenham mais prudência, zelo e cuidados especiais no exercício da tão nobre missão que lhes foi confiada. Dediquem-se ao máximo, de corpo e alma. É preciso dar o melhor de si. Busquem incessantemente aperfeiçoar a cada vez mais o conceito de justiça perante a sociedade, na busca incessante da realização do direito material inscrito na Constituição de 1988, cuja pauta de valores ainda está muito longe de se concretizar, em sua maior parte. É preciso enfrentar a cada dia os desafios da carreira no sentido do aperfeiçoamento e realização dos valores humanos, de que tanto carece a nossa sociedade.

 

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