Entrevista com Elizeta Ramos: “Quando cheguei ao final da carreira de Ministério Público Estadual resolvi correr atrás de outra semelhante, onde fosse possível começar de novo. Acho mesmo que gosto de recomeços!”

Um caso raro — e talvez único — no Ministério Público brasileiro, Elizeta chegou ao último grau da carreira do Ministério Público do Estado do Amazonas e, através de novo concurso e disputadas promoções, também ao último grau da carreira do MPF.

Lembrando de um passado nem tão distante, onde cada passo que se dava na vida era muito valorizado, Elizeta dá um testemunho que serve de lição aos mais jovens: “fico perplexa quando vejo acomodação e desanimo por parte da juventude, que hoje pode desfrutar de um mundo sem fronteiras”. Segundo ela, “a facilidade pode atrapalhar o ser humano; com ela parece que as ideias, as expectativas, os valores, as ambições ficam reduzidas a um patamar mínimo”.

Sua alegria e disposição, Elizeta em parte herdou de seus pais, muito alegres, e em parte ouvindo a ‘Irene preta e boa’ de Manuel Bandeira, que entrou no Céu sem precisar pedir licença.

E parece que sempre foi assim… Frequentava bailes de rua na adolescência, tocava pianola em um conjunto, e era a atriz que, nas aulas de teatro, sempre interpretava as personagens mais falantes. Se Elizeta tivesse vivido essa época em Águas Formosas, MG, certamente diriam: essa moça é muito ‘siligristida’…

Divertido e muito tocante, eis o nosso 28º ‘dedo de prosa’.

 

Bruno: De estagiária a subprocuradora-geral da República, como foi a sua trajetória profissional, Elizeta?

Elizeta: Doce e amarga, com altos e baixos, sucessos e perdas, mas rica e cheia de ação, emoção e novidades.

Numa retrospectiva rápida posso dizer que iniciei minha carreira como estagiária da Defensoria Pública no Rio de Janeiro por dois anos, naquele tempo de mil novecentos e se esqueça, Guanabara. E devo a este estágio muito do que consegui fazer como membro do Ministério Público, por mais paradoxal que possa parecer. Ali tive preciosos ensinamentos doutrinários, éticos e práticos que me valem até hoje.

Bruno: É engraçado você dizer isso. Em que sentido você deve ao estágio na Defensoria Pública muito do que conseguiu fazer no MPF? Em que sentido você diz isso?

Elizeta: É que o início da carreira do Ministério Público era a Defensoria Pública. Desse modo os defensores sabiam que depois de determinado tempo seriam promotores e assim os estagiários tinham dupla experiência. Com eles aprendi, por exemplo, que a defesa prévia era o momento de serem arroladas as testemunhas e mais nada. Na minha primeira peça sustentei várias teses e o defensor olhava para mim e dizia que estava ruim, fora de contexto. E eu não entendia. Fiz bem umas quatro até que a última ele rasgou e me deu a lição de que o menos ali era mais, pois qualquer coisa que eu escrevesse serviria de base para as alegações finais do promotor. É claro que chorei muito quando ele desprezou todas as minhas ‘lindas’ manifestações, pois tinha passado horas a fio estudando para elaborá-las. Esse foi um ensinamento que levei e trago comigo para o resto da vida e todas as vezes que leio uma defesa prévia ‘recheada’  de teses jurídicas agradeço ao advogado por tornar mais tranquila a acusação.

Lá também aprendi a ser fiel ao cliente — individual ou sociedade — entregando-me de corpo e alma ao trabalho do momento. E mais, ainda que eu não estivesse muito convencida da tese, mas desde que tivesse que atuar, que eu procurasse ser o mais profissional possível. Essa era uma fórmula que jamais falhava num júri, por exemplo.

Bruno: Sim, depois do estágio na Defensoria Pública, você se formou. Qual foi seu primeiro emprego depois da faculdade?

Elizeta: Pois é. Já formada fiz o primeiro concurso de que tive conhecimento, e que ocorreu no Amazonas, para o Ministério Público. Com 23 anos de idade, assumi o cargo de promotora de justiça na Comarca de Boca do Acre, em 1978, onde passei seis meses. A comarca estava sem juiz e, por isso, acabem me tornando responsável por assuntos que envolviam terras, posses e propriedades, índios, meio ambiente — e ainda isso nem era moda! –, dentre outros, até mesmo como mediadora. Lá,também atuei em matéria eleitoral.

Removida para Parintins, onde fiquei três anos, passei a ter minhas atribuições de MP mais bem traçadas. Funcionava em todos os processos, cíveis e criminais, elaborando pareceres, recursos, contrarrazões, fazia audiências todos os dias, júri, até mesmo em comarcas contíguas, exercia as funções de promotora eleitoral, atendia o público em geral e, como morava ao lado do Fórum, o trabalho era diuturno.

Já com bastante experiência fui promovida e atuei, na Capital, na Vara de Júri e Execuções Penais, quando ainda não havia a Lei n. 7.210/84 e assim as balizas de trabalho externo, regimes, e tudo o mais eram dados pelo promotor de justiça. Atuei também em Família, Criminal, Fazenda Pública, Menores, enfim, em praticamente tudo. Após um tempo fui novamente promovida para ocupar o cargo de procuradora de justiça, com assento no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas e na Chefia da Assessoria do Procurador-Geral de Justiça na parte criminal. Chegando ao fim de uma carreira, tendo sido, inclusive, membro de banca examinadora em dois concursos, e ainda nova, resolvi começar outra…

Bruno: Mas isso é muito inusitado! O que lhe passou pela cabeça, Elizeta?

Elizeta: Sei lá! Acho que o mesmo que passou quando sai do Rio de Janeiro para Boca do Acre no Amazonas. Dessa vez eu fiz o caminho inverso pois já estava na hora de voltar. Quando cheguei ao final da carreira de Ministério Público Estadual resolvi correr atrás de outra semelhante, que eu também respeitava, mas onde fosse possível começar de novo. Acho mesmo que gosto de recomeços!

Léon Tolstoi  disse que “o lugar que ocupamos é menos importante do que aquele para o qual nos dirigimos”. Por acreditar nisso, segui caminhando. Como só sei ser Ministério Público e não tendo qualquer aptidão para a magistratura — e, assim, fugindo de concorrer ao quinto constitucional –, resolvi fazer o concurso para o Ministério Público Federal, onde, após ter passado no concurso público de provas e títulos, fui mandada para o Espírito Santo.

Em Vitória exerci a substituição do Eleitoral e da Chefia da Procuradoria da República, além das atribuições naturais do cargo. Atuei não só no criminal — eu preferia elaborar todas as denúncias, alegações finais, recursos criminais do que contestar uma ação como advogada da União –, mas também em importantes causas previdenciárias, que atingiam os aposentados na época, em ações civis públicas, e especialmente no inquérito civil contra a Aracruz Celulose que foi um marco na minha vida institucional.

Bruno: O que o inquérito civil contra a Aracruz Celulose teve de tão especial? O que ele lhe ensinou?

Elizeta: Eu não tinha a mínima experiência nessa área e me vi deslumbrada com uma matéria completamente nova, ritos novos, trabalhando com peritos capacitados, vendo como as empresas podem influir, e muito, nos depoimentos dos empregados, nas provas; enfim, como elas são ‘poderosas’ E o Ministério Público atuando com responsabilidade e auxiliado por uma equipe de primeira. Acho que me senti importante porque estava fazendo a diferença e numa área na qual eu nunca havia sequer pensando em atuar. Creio que a novidade me moveu!

Aprendi o valor do conjunto, aprendi a ver a beleza e a utilidade no diálogo, na participação e no respeito mútuo. Venci algumas barreiras juntamente colegas que me ajudaram com suas experiências, força, coragem, a exemplo do Wagner Mathias e do Onofre Martins. Até então o meu trabalho sempre tinha sido muito solitário.

Bruno: Depois disso você pediu remoção para Brasília…

Elizeta: Sim. Removida para Brasília, ainda como procuradora da República, atuei na área criminal, onde permaneci depois da promoção para a Procuradoria Regional da República da 1ª Região. Participei de algumas operações, dentre elas a ‘Diamante’, com colegas brilhantes.

Minha promoção ao último grau da carreira ocorreu em 02 de dezembro de 2010, ocasião em que fui designada para funcionar nos feitos cíveis do STJ, inclusive participando das sessões da 2ª Turma daquela Corte — onde, aliás, permaneço até hoje. No ano seguinte fui designada para atuar nos feitos criminais e compor a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão na qualidade de titular, pois dela já havia participado como suplente.

Em tudo isso não me faltam casos interessantes, alguns engraçados e outros estarrecedores, para contar de cada lugar. Quem sabe um dia eu pare para recordar e faça um manuscrito?

Bruno: Por falta de incentivo e de leitores essa ideia não fracassará, Elizeta. Tenha certeza… Outra coisa. Lembro que ao falar da organização de seu gabinete na PGR, você me disse que tem feito pedidos de agilização de julgamentos dos processos que “dormem nos gabinetes dos magistrados como as almas do purgatório”. Ainda não conhecia essa metáfora, que é quase-prefeita. É que as almas do purgatório, como Dante Alighieri as retrata na Divina Comédia, pedem a todo o momento que os vivos rezem por elas, para encurtar seu tempo de sofrimento. Conta para a gente um pouco desse trabalho. E aproveitando essa excelente figura de linguagem, pergunto: há também nos tribunais, na sua opinião, determinados processos que já foram condenados à aflição eterna ou eleitos para os píncaros da glória – como se diz, que ‘vão direto para o céu’?

Elizeta: É um trabalho difícil, mas temos conseguido algumas vitórias. No ano passado mesmo, fiz muitos pedidos de preferência e os Ministros atenderam e julgaram todos os feitos. Mas é claro que eu sei — e não tenho a ilusão de pensar o contrário — que vários, e os mais importantes, ficam na ‘aflição eterna’ justamente para que aqueles que têm os nomes ali escritos desfrutem de uma vida terrena mais suave…

Ainda sobre esse assunto, no início da minha carreira dizia o defensor público — olha aí mais um ensinamento dentre tantos que recebi na época — que o processo penal se ganhava na Delegacia de Polícia. E realmente eu vi isso em toda a minha carreira. Pobres coitados ficavam a vida toda para serem julgados, empunhados, enquanto os mais poderosos resolviam com seus advogados no inquérito policial como deveria ser feita a prova, ou aguardando a prescrição. No início os promotores eram bastante passivos, frequentando apenas os seus gabinetes e recebendo os autos da maneira que as demais autoridades queriam. Felizmente isso se foi modificando, o MP começou a atuar em várias frentes e de forma independente. Deixamos de ser meros burocratas e nos transformamos em parte ativa e fiscais da lei, tanto em matéria criminal, como na cível.

Bruno: Qual é o seu segredo para manter a disposição e a alegria, Elizeta?

Elizeta: Acho que fiquei impressionada com Manuel Bandeira quando escreveu Irene preta / Irene Boa / Irene sempre de bom humor / Imagino Irene entrando no céu: / — Licença, meu branco! / E São Pedro bonachão: / — Entra Irene, você não precisa pedir licença. Ou seja, os bem humorados sempre são acarinhados, tanto no Céu como na Terra.

Mas, na verdade mesmo, tirando a brincadeira, devo isso ao DNA. Meus pais são muito alegres e dispostos. E eu sempre fui assim, desde criancinha. No colégio das Irmãs de Caridade, onde estudei no primário, ganhava notas ótimas em todas as matérias, mas em comportamento…  só o suficiente para não reprovar mesmo.

De qualquer forma, fazia teatro, e sempre me colocavam para fazer o papel de quem mais falava. Não sei por quê. Fazia balé, tocava piano, coquinho, sininho, muitas atividades. Na adolescência frequentava os bailes da rua, e todos queriam dançar comigo, pois eu arrasava! Tocava pianola em um conjunto, lia o que podia, embora o acesso aos livros naquela época fosse mais difícil; frequentava bibliotecas e estudava muito.

Bruno: A propósito, você iniciou um curso de psicologia que não chegou a terminar. E disse que com as aulas que teve aprendeu a valorizar ‘o antigo e o novo, a liberdade de ação e de expressão, os contrastes’. Que coisas antigas você valoriza e que contrastes a deixam perplexa hoje em dia?

Elizeta: Valorizo pessoas como os meus pais, que eram de classe média pobre e me deram toda a educação possível sem me deixar faltar nada. Valorizo as amizades que se faziam antigamente, época em que não havia computador e muito menos celular. Eu nem tinha telefone fixo na infância. O amor dos professores, que eram verdadeiros educadores, por seus alunos. Quantas vezes ganhei coleções de livros deles, que viam que eu gostava de estudar e era interessada por vários assuntos!

Mas valorizo também tudo o que é novo em termos tecnológicos e o que facilita a nossa vida. Acho que trazem a alegria do começo, a iniciativa, as ideias sem preconceitos. Você já viu como uma criança sabe tudo? Pergunte a ela algumas coisas e ficará até bobo com as respostas…

Os antigos já trazem algumas decepções e tristezas, certos limites, mas trazem também uma visão geral que sempre ajuda na hora de uma ‘composição’. Um não existe sem o outro. O só novo seria um mudar diário sem consequências e sem estabilidade. O só antigo seria a mesmice, sem evolução.

Acho que como subprocuradora-distribuidora de processos, logo que cheguei na PGR, e também no CSMPF, pude mostrar um pouco como valorizo as diferenças e os contrastes.

Fico perplexa quando vejo acomodação e desanimo por parte da juventude, que hoje pode desfrutar de um mundo sem fronteiras. Tudo antigamente, cada passo que se dava, era muito valorizado. Também fico perplexa em ver como a facilidade pode atrapalhar o ser humano. Com a facilidade parece que as ideias, as expectativas, os valores, as ambições, tudo fica reduzido a um patamar mínimo.

Bruno: No seu ‘tesouro da juventude’, guardado consigo, há muito da boa literatura brasileira, grandes romancistas e muita poesia. Ainda há traços dessa época na Elizeta de hoje?

Elizeta: Claro. Adoro poesias, só não tenho mais cabeça para decorá-las, como fazia na infância.

Mas nas horas de chateação eu abro um livro de poesias — e temos alguns colegas que são inspirados… –, leio e me delicio com a imaginação do poeta e com a sapiência das obras. Gosto também de fazer palavras cruzadas mais difíceis e de uma boa literatura brasileira, que sempre abre fronteiras em nossa mente e em nosso coração. Ninguém continua o mesmo depois de ler um bom livro. Em qualquer de suas manifestações, aí está a beleza da arte. A arte transforma!

Bruno: Você chegou a participar de concertos de piano na adolescência. Além dessa semente plantada na juventude, há alguma outra que você teve de deixar pelos caminhos da vida?

Elizeta: Nenhuma que pudesse dar frutos. O piano foi importante porque colocou música clássica e popular, de uma forma emocionante, nos meus ouvidos. Eu aproveitei para evoluir e senti que tinha até talento, mas não era virtuose e nem tinha vocação para dedicar horas a fio à música, especialmente à música clássica. Usei muito desse instrumento para dar vazão às raivas e às iras que tinha de vez em quando, ou seja, sentava e tocava Bach, Beethoven, e outros compositores fortes em suas obras. Mas o ser humano tem cada coisa, não é?

Bruno: E como tem…

Elizeta: Imagina que eu, menina ainda, queria ser aeromoça, mas não tinha altura, não era loura, não tinha olhos azuis… Fico olhando as aeromoças de hoje, revoltada, e pensando que eu poderia ter inovado! Depois eu queria fazer Direito e seguir carreira jurídica. E essa semente germinou… Sou realizada, pois estou além do que imaginei estar algum dia, na área em que sempre quis e lutei para estar.

Elizeta: Aliás, eu bem que gostaria de saber como você se distraía e fazia suas raivas passarem na infância e mocidade e também se deixou sementes plantadas pelo caminho…

Bruno: Eu ainda não pensei na minha história sob esse ponto de vista… Bom, na minha infância eu me distraía, por exemplo, desenhando as coisas e rabiscando letras, palavras e pequenas frases nos cadernos. Gostava de organizar o material da escola, apontar os lápis, colocar tudo no estojo e na mochila. E também gostava muito de ouvir os discos de vinil do meu pai — Sá & Guarabira, Novos Baianos, Beatles, John Lennon, George Harrison, o Michael Jackson do The Jackson 5 e outros. Era o momento de nossa parcial comunhão. O detalhe é que eu também tinha o costume de jogar os discos dele nas paredes da sala. Como se fossem ‘discos voadores’. Ocorre-me agora que isso podia ser a semente de uma vocação, a vocação de crítico musical. Algo como: não gostou do disco?, parede nele… Mas, para ser mais ‘ortodoxo’, prefiro catalogar esse hábito, que, garanto, abandonei aos seis anos de idade, entre as atividades que me aliviavam a raiva, uma raiva que a maioria das crianças desenvolve desde muito novinhas, talvez por funcionarem meio que como antena dos adultos.

Na adolescência continuei me distraindo com a música e cheguei a fazer parte de um conjunto cover dos Beatles, onde tocava guitarra e simulava, com muito esforço e pouco resultado, os solos do George Harrison e a voz do John Lennon. Talvez isso contribuísse também para dissipar um pouco da raiva. Eu particularmente acho que depois de uma certa fase, que talvez tenha começado no disco Beatles For Sale, o John Lennon passou a viver, e a cantar, com raiva. Raiva e melancolia. Imitá-lo, pelo menos através da voz, talvez permitisse que eu desse vazão aos meus sentimentos afins. Certamente devia haver outras formas mais interessantes de lidar com isso, mas foi o que deu para fazer…

Você quer saber se eu deixei sementes plantadas ao longo do caminho. A guitarra, o rock em geral, foi uma dessas sementes. Não que eu pensasse em me profissionalizar. Não é isso. Mas acredito que cheguei a investir um bom tempo e uma parcela da minha vida afetiva nesse gênero musical que hoje não me diz nada. Ficou lá atrás.

Algumas ‘sementes’ a gente deixa porque renuncia aos seus frutos possíveis. A renúncia a uma especialização temática dentro do Direito, por exemplo, é uma dessas. Há alguns anos eu planejava iniciar um mestrado em Direito Penal. Hoje, não mais. Abrir mão de ser promotor de justiça também doeu um pouco durante um tempo. São possibilidades que foram ficando para trás.

Mas está lá nos Evangelhos. Se a semente não é jogada em solo fértil e bem cuidado ela não dará frutos. Saber que sementes devemos semear na nossa vida, e saber como e quando devemos fazê-lo, é uma arte. Saber as que devemos abandonar, também.

Elizeta: Eu lhe agradeço, Bruno, pela ideia dessa audição, que mostra toda a diversidade que há entre nós, colegas e amigos do MPF. E deixo aqui a mensagem de George Bernard Shaw, que disse que “precisamos de algumas pessoas malucas; vejam só para onde as pessoas normais nos levaram” .

 

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“O que mais dificulta a apuração dos atos de corrupção no Brasil é o fato de que se trata de uma forma institucionalizada de se fazer política”. Veja nossa entrevista com Raquel Branquinho.

Raquel passou parte de sua infância em uma fazenda no interior de Goiás, onde entre entristecida e confusa assistiu ao desaparecimento de seu cachorrinho ‘Vinagre’. Histórias que não são esquecidas… De Goiás para Brasília, a trajetória de uma vida. Hoje, procuradora regional, ela encontra satisfação fora do trabalho no convívio com seus filhos, nas leituras e nas viagens que faz.

Com uma vasta experiência na área do patrimônio público dentro do Ministério Público Federal, ela acredita que a dificuldade em investigar e obter a condenação de agentes públicos corruptos está em que geralmente os maiores prejuízos ao erário decorrem de “uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas”.

A morosidade da justiça brasileira é, para Raquel, um dos maiores fatores de impunidade. Além disso, os órgãos de fiscalização e controle trabalham muitas vezes com a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, com pouca efetividade. Seu testemunho é firme e direto: “Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais”.

De sua participação na investigação e na formulação da acusação que originou a Ação Penal 470 (Mensalão), ela extraiu a lição de que “quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz”.

Acompanhe o nosso 27ª ‘dedo de prosa’, um rico testemunho de uma procuradora que vive, de forma dinâmica e reflexiva, as vitórias e as amarguras da defesa do patrimônio público brasileiro neste começo de século.

 

Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude e que, quando menos, os gastos realizados nos contratos administrativos são mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina alguma modificação legislativa que pudesse começar a alterar esse quadro?

De fato nós, cidadãos brasileiros, diante de tantas notícias que acompanhamos na mídia dos mais diversos tipos de fraudes em licitações, não podemos dissociar do nosso imaginário que as contratações que envolvem dinheiro público são decorrentes de negociações espúrias.

Na condição de procuradora da República, atuei, durante anos, na área de defesa do patrimônio público e da probidade administrativa em Brasília, especificamente na área de licitação pública. Em razão do contato diário com a matéria, posso afirmar que, infelizmente, não obstante a existência de uma legislação para coibir abusos e estabelecer transparência, eficácia, impessoalidade e limite de preços às aquisições e serviços, é muito alto o índice de fraudes em licitações públicas que resultam em sobrepreço e superfaturamento, decorrentes de prévios ajustes entre representantes do setor público e privado — ajustes quase sempre de difícil ou quase impossível caracterização probatória.

O que mais dificulta a apuração é o fato de que não se trata de crimes praticados por servidores públicos de forma isolada, ou seja, sem grandes conexões, no exercício de sua função. Trata-se, ao meu sentir, de uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas. Assim, o que comanda o gasto público são os interesses dos partidos políticos. E isso não apenas favorece empresas privadas, que ganham muito por diversos tipos de fraudes, mas também partidos políticos e pessoas físicas, que se beneficiam do retorno de parte desse dinheiro indevidamente pago nessas contratações.

Há necessidade, sim, de mudança da legislação. Principalmente, dos regimes especiais que foram criados nos últimos anos para flexibilizar as contratações públicas. Uma importante alteração, principalmente na área de obras públicas, é a exigência de projeto prévio bem detalhado no aspecto quantitativo e de preços. Outra modificação importante é a da legislação sobre preços referenciais, muito ampla e que, de forma ‘legítima’, em obras de maior vulto, já permite uma margem oculta de lucro em torno de 25% às empreiteiras, consórcios etc.

A morosidade da justiça é geralmente apontada como uma das causas da impunidade em nosso país, principalmente em casos de corrupção com verbas públicas. Que fazer?

Infelizmente, não para desconsiderar o fato de que a morosidade da Justiça é, efetivamente, um dos maiores fatores da impunidade no Brasil, sobretudo nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Deveríamos simplificar alguns ritos, sem qualquer alteração no devido processo legal. Por exemplo, as duas fases de defesa antes do recebimento da inicial da ação de improbidade ou da denúncia em algumas espécies de processo criminal.

Poderiam ser criadas varas especializadas para a matéria de improbidade administrativa e as ações de improbidade deveriam ter prioridade na tramitação judicial. Também há algumas alterações possíveis na legislação penal para se permitir a execução provisória da pena em processos julgados em segundo grau de jurisdição; a diminuição das hipóteses de recursos excepcionais, ou seja, que não se atenham à matéria fática; e o desenvolvimento de uma doutrina jurídica que não aplique o garantismo de forma irracional como ocorre no Brasil. Essa última questão nos colocaria na linha dos países mais avançados que conseguem, com muita tranquilidade, equilibrar a garantia do devido processo legal e a efetividade da Justiça.

Como vê a atuação da Controladoria-Geral da União e da Polícia Federal em casos de corrupção nos últimos anos?

Infelizmente, no Brasil, há vários órgãos com atribuição de apuração de fatos irregulares, inclusive com sobreposição de atribuições em alguns aspectos, mas o que vemos é a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, acumulam uma quantidade imensa de papel, mas que não trazem nenhuma efetividade ao seu termo.

A CGU, nos últimos doze anos, não obstante tratar-se de órgão vinculado ao Poder Executivo, conseguiu, de certa forma, romper com essa lógica, inovando e estabelecendo dinâmicas de auditoria e corregedoria mais efetivas. A atuação conjunta entre CGU e MPF e por vezes Polícia Federal, nos casos em que atuei, sempre deram bons resultados. Criou-se um arcabouço jurídico que permitiu à CGU trabalhar de forma muito mais efetiva e durante todos esses anos é o único órgão federal que conseguiu chegar aos mais diversos locais do país para apurar a aplicação das verbas públicas federais nos municípios.

Infelizmente, a CGU, como diversos outros órgãos, não obstante a excelência do trabalho do seu corpo técnico, depende de uma diretriz firme, o mais independente possível e com a estrutura material e de pessoal adequadas.

Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais. A sistemática de fiscalização por sorteio em municípios incomodou muito os gestores municipais e, de certa forma, também foi esvaziada. Agora, houve mudança da sua direção máxima, que sempre esteve nas mãos do então Ministro Jorge Hage que, sem sombra de dúvidas, foi um excelente Controlador, e a minha posição é de espectadora sem grandes expectativas.

O aparelhamento da CGU é algo possível e muito perigoso para o país. O saldo do trabalho da CGU nesses anos, a meu ver, é muito positivo e, ao contrário do TCU, que é um Tribunal cujos julgamentos são naturalmente imbuídos de força política, os relatórios de auditoria da CGU são perenes, ou seja, uma vez aprovados, não são alterados a cada nova revisão, como ocorre no TCU, cujos processos demoram anos para serem concluídos.

Quanto à Polícia Federal, apesar de vários problemas internos, como disputas políticas, a sua também vinculação ao Poder Executivo, tem feito um trabalho razoável no combate à corrupção na parte, ao meu ver, das operações policiais. Ainda falta uma maior especialização dos delegados, agentes e escrivães na investigação de crimes de colarinho branco, inclusive de corrupção. Paralelamente às operações de busca e apreensão e escuta telefônica, é necessário que sejam feitas análises e outros tipos de investigação para robustecer a materialidade e autoria de forma rápida — o que não tem acontecido. São deflagradas grandes operações, que acumulam uma grande quantidade de material e que, depois, carece de análise e uma investigação mais concatenada for falta de pessoal, recursos financeiros ou mesmo interesse.

Que aprendizado você extraiu de sua atuação na investigação que fundamentou a acusação formulada pelo Ministério Público Federal na AP 470 (Mensalão)? Que balanço faz do julgamento já concluído?

Bem, o principal aprendizado é de que quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz.

A minha atuação no caso permitiu uma consolidação de experiência na investigação de crimes de grande porte, do colarinho branco, que demandam uma investigação muito mais estruturada e organizada entre Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário. O caso Mensalão alcançou esse estado da arte e, ao meu ver, por esse motivo, foi muito bem sucedido na sua primeira etapa, ou seja, até o julgamento da ação pela Suprema Corte.

Não obstante discordar da forma como foram aplicadas as penas e também da interferência política do Planalto no julgamento, com a nomeação de Ministros que se mostraram totalmente favoráveis às teses absurdas de defesas de alguns réus, faço um balanço positivo pois foi um leading case no próprio STF e a única ação penal que processou e efetivamente julgou e condenou a cúpula de partidos políticos, do Governo e de banqueiros envolvidos em crimes contra a administração.

Em sua atuação na PRR da 1ª Região certamente você, aliada à sua experiência, tem uma visão privilegiada do trabalho dos colegas da base e de sua perspectiva de frutos uma vez superada a fase de tramitação do processo no primeiro grau de jurisdição. Que sugestões daria aos colegas para ajudar a melhorar a instrução das ações penais contra servidores públicos e das ações por ato de improbidade e aumentar assim suas chances de sucesso?

Bem, se eu pudesse dar uma sugestão aos meus colegas seria para que passem a atuar sempre de forma mais dinâmica, saindo do gabinete para ir ao encontro dos fatos, reunindo-se com a Polícia, com as representações da CGU, do TCU etc. Que, de fato, acompanhem as investigações e não as transformem apenas em meros expedientes burocráticos de entrada e saída do gabinete. As ações de improbidade, assim como as ações criminais, demandam uma prévia fase investigativa para se estabelecer autoria e materialidade, bem consolidadas. Assim, temos que pensar antes de agir para estruturar, na melhor forma possível, as investigações, não dependendo apenas da atuação de outros órgãos, como Polícia Federal, CGU etc.

Ocasionalmente, analiso inquéritos que tramitam durante anos, com simples carimbos de concessão de prazo por parte do Ministério Público, sem qualquer análise mais acurada, que poderia determinar, logo no início das investigações, diligências bastante simples mas que conduziriam ao seu êxito ao invés do insucesso, como sempre ocorre. Muitas vezes medidas simples são suficientes para se concluir uma investigação, desde que a investigação seja efetivamente acompanhada pelo titular da ação penal.

Como você encontra satisfação pessoal fora do trabalho?

Fora do trabalho, encontro satisfação pessoal no convívio com meus filhos, na leitura e em viagens. Gosto muito de viajar. Também gosto de ler e fazer alguns cursos, principalmente de inglês, pela internet.

Qual é a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?

Eu venho de uma família que sempre teve muita dificuldade financeira, mas sempre fui muito incentivada a estudar para ‘mudar de vida’. Uma das lembranças mais antigas que tenho é da época em que morávamos em uma fazenda do meu avô, no interior de Goiás. Eu tinha uns quatro ou cinco anos e sofri muito com a morte de um cachorro chamado ‘Vinagre’, que brincava muito comigo. Disseram, na época, que alguém tinha dado veneno para o Vinagre e eu lembro que sofri muito sem entender o motivo de uma ação dessa natureza.

 

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“A vida já valeu e valerá a pena até o último suspiro”. Vejam a segunda parte da entrevista com Osório Barbosa.

Para Osório, a fala gostosa do português do Brasil não está morta e enterrada. Crê, pelo contrário, que ela está cada vez mais viva: “Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm”.

Osório passou sua infância nas casas flutuantes dos rios de Maraã, AM. Lembrando Fernando Pessoa, diz que “tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos eles através dos estudos”. Além de evocar o poeta português, o olhar ao retrovisor trouxe também à luz as travessuras precoces da criança lá de trás…

Discípulo dos Sofistas gregos e de Marcos Bagno, Osório é por isso crítico de Platão e dos puristas da língua, porque, segundo compreende, eles não souberam e não sabem valorizar a liberdade e as incertezas da vida.

Esta é a segunda e última parte de nossa entrevista — que faz parte de nosso 4º encontro. Imperdível…

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

Bruno: Marcos Bagno ganhou sua simpatia por denunciar o que chama de ‘preconceito linguístico’. Você se sente alvo de ‘preconceito linguístico’, Osório?

Osório: Pois é. O doutrinador Marcos Bagno, no seu livro ‘Preconceito Linguístico’, demole – ele é o ‘demolidor’ – todas as pessoas, inclusive gramáticos, que dizem que escrevem certo. Ele arrasa com o Pasquale Cipro Neto, que escreve em jornais, e também com outros que escrevem em jornais, como Napoleão Mendes de Almeida. Ele mostra nesse livro que eles escrevem equivocadamente, que eles escrevem teoricamente errado. Para mim não é errado; eles simplesmente se tornam errado quando condenam quem escreve errado, porque eles escrevem também. Então esse é um dos problemas que eu sempre tenho com o preconceito que se tem em relação às pessoas que escrevem teoricamente errado. O Marcos Bagno traz um exemplo interessante. O nome ‘Geraldo’ geralmente se escreve com ‘l’. Mas principalmente aqui em São Paulo, aqueles a quem as pessoas preconceituosamente chamam de ‘caipira’ quando falam dizem ‘Gerardo’. E aí vem o preconceito: ‘Ah, ele fala Gerardo em vez de Geraldo’, dizem os preconceituosos para desqualificar e galhofar do falante. E o Marcos Bagno diz que quem está errado é quem diz ‘Geraldo’, porque o certo de se pronunciar e de se escrever no Brasil seria ‘Gerardo’, já que, ele diz, o nome vem do alemão ‘Gerard’. E assim o Marcos Bagno dá uma aula…

É muito engraçado quando uma pessoa como o Adoniran Barbosa fez os seus sambas – e outros ainda fazem hoje – falando da forma que o Adoniran fala maravilhosamente, ninguém o condena. Vocês já viram o Adoniran ser condenado pela forma como ele falava: ‘talba de tiro ao álvaro’? Então é maravilhoso o que ele deixou! E ninguém condena…

Bruno: Mas é claro que ninguém condena, Osório. Isso é arte em estado puro… O Adoniran era uma pessoa instruída. Quem foi capaz de criar esse verso tão cheio de imagens — ‘de tanto levar flechada de seu olhar meu peito parece tábua de tiro ao alvo’ — está evidentemente brincando gostosamente com a linguagem, com a liberdade do artista. Certamente não há mesmo nenhuma censura a fazer a ele por isso…

Osório: Sim! Mas foram os poetas que nos ensinaram e nos ensinam! Por que, então, estamos proibidos de imitá-los?

Você só condena quem fala e escreve errado quando você quer menosprezar, você quer desqualificar a pessoa. Quando é o seu patrão a falar errado ou a escrever errado, você vai obedecer, não o critica, e até acha bonito. Se o critica é por trás, covardemente. Se você tem interesse em comprar, verá uma placa lá escrito ‘Vende-se casas’, quando o correto seria ‘Vendem-se casas’. Mas você quer comprar e não vai dizer para o seu vendedor que ele escreveu errado. Porque talvez ele aumente o preço e você não terá condições de comprar. Então você não vai questionar. Quando lhe interessa você nunca questiona. Você só questiona quando quer desqualificar. Isso acontece muito… uma vez em um show vi o Caetano Veloso, um show pós-abertura política, dizer a uma repórter que perguntou a ele: ‘Caetano, como foi sair sobre vaias?’. O Caetano parou e disse: ‘Não é sobre vaias, mas sob vaias’. Quer dizer: ele humilhou de certo modo a repórter e não respondeu ao mote da pergunta, que era ‘como ele se sentia de estar sendo vaiado pelas pessoas naquela sua apresentação’. E ficou por isso mesmo. Ficou mal para ele. Ele ficou mal na fita. Mas quis também queimar o filme da repórter.

É por nos mostrar esse aspecto da comunicação que o livro do Marcos Bagno me encanta, livro que todas as pessoas de boa-fé, de boa índole, deveriam ler para compreender o que ele coloca lá. E eu sou apenas um discípulo desse grande mestre.

Bruno: Eu não conhecia esse incidente com o Caetano. Mas, veja, acho que se a gente se coloca no lugar dele, entendemos em que nível ele recebeu a pergunta. O camarada provavelmente estava envergonhado depois de receber vaias do público, e aí vem a repórter ‘pisar em cima dele mais um pouquinho’… Talvez tenha sido uma forma de dizer ‘desça daí, minha filha, que você não está acima de mim, sobre mim, mas sob mim‘. Eu até acho que a repórter tenha sido sincera na pergunta, mas o contexto em que ela foi feita evidentemente prolongou a situação vexatória pela qual ele havia passado. E pior: provavelmente ele ainda estava sob o efeito emocional das vaias…

Osório: Concordo contigo nesse caso específico, mas o que quis dizer é que ele esse tipo de comportamento é o padrão, infelizmente!

Bruno: Mudando de assunto, mas nem tanto. Os brasileiros têm alcançado, em testes internacionais, os piores índices de qualidade de educação entre os diversos países participantes. Você acredita que a nossa democracia convive bem com a má-qualidade do ensino?

Osório: No Brasil — eu posso falar apenas do Brasil, mas parece que isso acontece em outros lugares no mundo –, preocupa-se pouco com a educação. A gente pode até voltar para a Grécia do Séc. V a.C. Os sofistas foram os primeiros professores de que se tem notícia. E o grande século do conhecimento humano foi esse século. E quem foi o grande governante grego da época? Péricles, que era amigo e protetor dos sofistas. Inclusive há testemunhos de que ele passou um dia inteiro discutindo com Protágoras um determinado assunto sobre um lançamento de um dardo em uma competição que chegou a matar uma pessoa.

A Grécia investiu muito em educação, educação proporcionada principalmente pelos sofistas. Porque, se a gente analisar, Platão e Aristóteles praticamente não fazem parte do Século V a.C. Eles já são do Século IV a.C. E a idade de ouro grega foi dominada pelos sofistas. Então a democracia grega ‘aplicou’ muito em educação, contribuiu muito para a educação. Esse ensinamento grego é praticamente repetido pelos americanos do norte, que investiram muito em educação e ainda investem. Onde há uma grande ideia, uma pessoa inteligente, o que eles fazem? Eles arregimentam e levam para trabalhar para eles nos Estados Unidos, dando condições, dando laboratório, pagando um bom salário etc. Então eles aprenderam isso principalmente com os gregos do Século V a.C. Praticamente todos os sofistas vieram de outras cidades-estado gregas, para se estabelecer em Atenas, que era a capital do império e a cidade mais rica, onde a riqueza abundava. A mesma coisa acontece ainda com os Estados Unidos.

Se você olhar para os países periféricos, principalmente esses países ricos em petróleo, que desde 1973 têm muito dinheiro, que grande universidade árabe foi construída nesse período com todo esse dinheiro dos petrodólares. Na Venezuela, que nada em petróleo, o que foi feito em prol do ensino? Nada. A grande desconfiança que vem dos ensinamentos — e em compartilho com isso – é que ninguém quer que as pessoas se instruam. Os governantes não querem que as pessoas se instruam, porque têm medo de perder poder…

Bruno: Ah, pára, Osório! Essa teoria não está meio ultrapassada? O Lula e a Dilma estão aí para provar que ninguém precisa de conhecimento, no sentido escolar do termo, para chegar ao poder… Não compreendi bem do quê você está falando. Gostaria que você me explicasse melhor essa estória de ‘medo de perder o poder’. O que tenho visto é que em geral os iletrados não querem estudar a não ser o mínimo possível para conseguirem um emprego – e não vejo como é que um poder, aliás, qual poder?, possa impedi-los de sentar em uma biblioteca pública ou acessar vastas informações pela internet e se tornarem sábios e eruditos à maneira clássica ou à maneira contemporânea, à sua escolha…

Osório: Além de bom perguntador você é também gracejador, meu caro! A história seria longa, mas pode ser resumida no seguinte: você prefere que seu filho seja letrado, iletrado ou letrado apenas o suficiente para para conseguir um emprego? Eu, particularmente, desejo para o filho dos outros o mesmo que quero para os meus. Daí…

Bruno: Você deseja isso aos filhos dos outros mesmo contra a vontade expressa deles? Complicado isso, não? No varejo isso pode funcionar, mas no atacado, em nível de civilização, certamente se gastará muita energia nessa fantasia… Mas você estava falando de ‘disputas por poder’; e ia começar a falar da Grécia antiga…

Sim, porque esse tema nos leva de volta à Grécia: por que Platão atacou tanto os sofistas? Os sofistas ensinavam uma coisa básica às pessoas: falar, discursar. E isso era importante por quê? Porque as pessoas na democracia podiam participar com a palavra das assembleia e defender a si e aos outros nos tribunais. E isso não era importante para a oligarquia da qual Platão fazia parte. Ele era um grande oligarca, de uma família rica e tradicional. Quando os pequeno-burgueses puderam pagar por educação e pagaram aos sofistas para que os ensinasse, com isso o poder começou a mudar de mão, ou a ter a possibilidade de mudar de mão, e isso incomodou muito as pessoas, dentre as quais Platão.

Bruno: Você tem certeza que Platão implicava com os sofistas por causa de uma disputa pelo poder político? Não imagina que Platão e Aristóteles tinham consigo uma intenção mais alta e mais duradoura?

Osório: Eu não tenho dúvidas disso! Platão era um oligarca inimigo da democracia, como prova Popper no ‘A sociedade aberta e seus inimigos’. Há outros autores que dizem o mesmo.

Platão foi para Siracusa apoiar um oligarquia! Mas o fundamental a provar isso é o uso que ele, Platão, faz, de tudo que foi inaugurado pelos sofistas. Exemplo: ele condena a retórica dos outros, mas ele é o mestre dela! Ele estipula uma diferença intelectual absurda entre boa e má retórica. ‘A boa’, diz implicitamente, ‘é a minha!’

Para encerrar o tópico, Platão diz nAs Leis” (716c) o seguinte: “Aos nossos olhos a divindade será a medida de todas as coisas’ no mais alto grau”! Ou seja: dirigiu para onde ele quis o frase imortal de Protágoras, que é tido como o maior dos sofistas — “O homem é a medida de todas as coisas”.

Em relação ao Brasil, e resumindo, eu acredito que a democracia brasileira está a dever muito à educação no país. Nós temos de melhorar a educação. Mas a educação faz parte de todo um sistema. E nós fazemos parte de um sistema capitalista que cada vez mais impede praticamente as pessoas de estudarem; ou de terem o apoio da família para estudar. Os pais estão trabalhando. As mães em um lugar e o pai em outro muito distante. Poucos vêem os filhos. Entregam os filhos às escolas e as escolas não dão aquela educação, digamos, completa a bem formar o cidadão.

Hoje a criança vai para uma escola e fica quatro, cinco horas, sentada. Uma criança que está acostumada a mexer no celular, no computador, e que vê televisão, tem de ficar sentada ouvindo o professor fazendo ‘blá, blá, blá’. E isso algo inconcebível mas que ainda acontece. Então, tem de haver uma reforma completa, para ver como é que se pode dar uma melhor educação ao povo brasileiro. Esse déficit não é culpa do cidadão, mas do Estado, que às vezes parece não querer ver seu povo devidamente educado, letrado, porque isso vai incomodar o poder.

Bruno: Mas, Osório, o sujeito ativo no processo de aprendizado é o aluno. Acho muito simplista buscar os culpados pelo fracasso da educação brasileira ou nos alunos, ou na família ou no Estado. Culpar o Estado e isentar os alunos me parece ‘o fim da picada’. Estou errado?

Osório: Aí você já quer quase um milagre! No meu caso particular, foi o que aconteceu, mas não vou falar da minha história de interiorano do Estado do Amazonas, com pai analfabeto e mãe semi!

Quando eu cobro a participação maior e efetiva do Estado não quero nem falar de fardamento, comida, livros e cadernos etc, mas, basicamente, de professores competentes e estimulados, além de pais que possam efetivamente ajudar esse ‘sujeito ativo’, pois até que a criança se torne ‘sujeito ativo’, na e para a educação’ ele não passa de um ‘objeto’! O vulgo costuma dizer que é de pequeno que se torce o pepino!

Bruno: Manuel Bandeira, em ‘Evocação do Recife’, diz que “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo \ Língua certa do povo \ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil \ Ao passo que nós \ O que fazemos \ É macaquear \ A sintaxe lusíada”. Você acredita que esse ‘falar gostoso o português do Brasil’, do Recife da infância de Bandeira, está definitivamente morto hoje?

Osório: Veja como esta sua pergunta e a lembrança de Bandeira, o maior entre os gigantes, me dá razão quanto à sua pergunta anterior! A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo. Não é só dos meios — livros, jornais, computadores etc — que a criança precisa no processo de aprendizagem. Ela precisa, mais, é de gente, pois é o povo, logo, a cidade, o principal mestre de todos nós!

Mas, voltando à sua pergunta, digo: Não! Muito pelo contrário! Ele está cada vez mais vivo! Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. Não! A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm. Porque você começa a policiá-las. Se a pessoa fala e você diz: Olha, isso não é assim! Olha, isso é assado!, como é que a pessoa vai se comunicar? A pessoa vai se retrair! Há uma retração das pessoas com esse policiamento idiota. É, na verdade, um policiamento idiota, porque você acaba impedindo o diálogo. E você faz isso para humilhar a pessoa, e não para educá-la, para instruí-la. Mas como é que você vai interromper um verso porque a pessoa falou ‘malmita’ e não ‘marmita’?

Outro dia eu estava em um restaurante pequeno e uma pessoa chegou e disse: ‘Eu quero almoçar, e quero que você prepare uma malmita para eu levar’. Veja se o dono do restaurante vai dizer – só se fosse um idiota – ‘olha, não é malmita, mas sim marmita’… Ele ia espantar o seu cliente! Nessa hora ninguém é preconceituoso, não é? Mas se fosse para humilhar, se fosse um namorado da filha dele, ele teria dito: “Olha, eu não sei o que você está pedindo e então não vou lhe atender”. Então, pelo contrário, o linguajar não está morto, ele está vivíssimo! O que falta é que as pessoas de boa vontade retratem isso em seus escritos. Porque ninguém quer retratar justamente por causa desse policiamento absurdo, que insiste em dizer que tudo está errado. Quando na verdade não está. Se você compreendeu uma mensagem, ela está perfeita, ela está correta. Não importa se você disse ‘malmita’ ou ‘marmita’.

Bruno: O que você tem lido ultimamente?

Osório: Leio vários livros ao mesmo tempo! Estou lendo agora, ou terminei de ler: i) Um Ano na Provence, de Peter Mayle; ii) A História da Escravidão, de Olivier Pétré-Grenouilleau; iii) A História na Escravidão, de Christian Delacampagne; iv) Federico em Sua Sacada, de Carlos Fuentes; v) Nietzsche e o Problema da Civilização, de Patrick Wotling; vi) A Filosofia Antes de Sócrates, de Richard D. McKirahan; vii) História do Riso e do Escárnio, de Georges Minois; viii) Ao Lado de Vera, de Alberto da Costa e Silva, muito chato, por sinal; ix) O Nomos da Terra etc, de Carl Schmitt; x) Introdução ao Estudo do Direito, do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estou relendo, na verdade, lá pela sétima vez; xi) outros, de poesia, ao mesmo tempo. Isso tem me dado sentido na vida e mostrado que vale a pena continuar a estudar, pois amplia nossos horizontes e nos faz até mais tolerantes com os outros e conosco mesmos, pois cada vez percebemos que sabemos menos, embora, muitos vezes tenhamos a percepção de que sabemos mais.

Bruno: Você se identifica com autores como Charles Bukowski e Henry Miller?

Osório: Nunca ouvi falar deles! Acho que já li alguma coisa do Charles Bukowski. Talvez por falta de conhecimento, por falta de apresentação, posso dizer que não os conheço. Leio outros poetas, claro, mas eu desconheço esses dois.

Bruno: Que poema melhor representa seu sentimento em relação à vida?

Osório: Sobre o vidro da mesa onde trabalho, desde que eu pude usar uma mesa em meu trabalho — embora eu já fizesse isso em minha casa, em um muralzinho –, eu coloco o poema que melhor representa meu sentimento em relação à vida. Não é um poema muito grande. Na verdade é uma quadra de Fernando Pessoa, do poema Tabacaria, que diz o seguinte: “Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada / A parte isso, tenho em mim todos os sentimentos do mundo“. Esse é poema que guia a minha vida, o meu dia a dia e o meu atuar no teatro da vida.

Bruno: Você é um amazonense que adotou São Paulo como sua pátria. Você ainda tem parentes em sua terra natal? Retorna com frequência a Maraã?

Osório: É verdade. Tenho parentes ainda no Amazonas, especificamente em Manaus e em Maraã. Sempre que posso volto a Maraã, justamente para ouvir aquelas pessoas que falam “errado”, que contam histórias erradas, mas que encantam e que me rejuvenescem e que apagam, de certo modo, a maldade da minha alma; e que me fazem feliz com suas companhias. Pessoas muitas vezes sem estudo algum, mas de uma sabedoria exemplar.

A Scarlett O’hara diz, no filme ‘E o Vento Levou’, que sempre que está fragilizada ela volta para a fazenda dela, chamada Tara, para buscar forças. Eu sempre que posso vou a Maraã também, com a mesma finalidade, isso desde antes de conhecer o filme.

Bruno: Onde passou a infância, Osório?

Osório: Passei a minha infância no eixo Maraã-Tefé-Manaus. Eu fui fabricado em Maraã, parido em Tefé e minha mãe, após o parto, voltou para Maraã, e aí eu fiquei até os dezesseis anos. A escola não era de todo estruturada em Maraã e então eu tive de estudar em Manaus, para onde fui aos dezesseis anos. Meu pai me levou para morar na casa de um tio, que aliás me deu o nome, o tio Osório.

Posso dizer que minha infância foi toda bem vivida em Maraã. Eu saía de lá por períodos curtos, mas sempre voltava para lá.

Bruno: Qual é a lembrança mais antiga que você tem?

Osório: A lembrança mais antiga que eu tenho? Engraçado! A gente não consegue esquecer certas coisas; e certas coisas que a gente não queria lembrar sempre vêm à mente. Essa lembrança que eu tenho é uma lembrança sexual. É a lembrança mais primitiva que eu tenho. Eu não sei como isso não sumiu da minha mente. Eu era ainda muito pequeno e a minha avó morava sobre um flutuante no Paraná de Tefé – flutuantes são aquelas casas sobre as águas que existem na Amazônia e em outros locais. Tanto é que eu nasci em um desses flutuantes e o meu nome era para ser Moisés, pois eu nasci sobre as águas. Mas depois mudaram meu nome para Osório na hora de me registrar.

Pois bem. Eu estava nesse flutuante de minha avó, D. Pretinha, e junto desse flutuante ficava um campo/pasto de gado. E eu me lembro que dois primos meus, dois irmãos, me chamaram, me pegaram pelas mãos e me levaram para o campo. Eu era muito pequeno, tinha uns quatro ou cinco anos, não me lembro bem. Por isso é que eu digo que é uma lembrança engraçada. Freud certamente explica. Nesse campo tinha uma casinha que eles tinham feito de mato, de árvore, folhas. Sei que a irmã deles deitou e ele me deitou sobre a irmã dele. A partir daí apaga tudo [na minha memória]. Eu não sei nem o que me aconteceu. Eu não sei sequer se aconteceu alguma coisa. Mas essa é a minha lembrança mais primitiva.
Em nossa carreira, você é da geração dos anos 90. A nova geração de procuradores, recém-empossados, tem algo a aprender com os colegas mais antigos? E tem algo a ensinar?

Sim, nós temos muito a aprender com eles e temos também muito o que ensinar. Muitos colegas que assumem hoje o Ministério Público Federal têm mais idade que os colegas tinham quando eu assumi. A idade na carreira pode ser maior que a idade cronológica. Eu estou com 52 anos. Por exemplo, o Rafael Siqueira de Pretto, que também é da geração dos anos 90, quando ele assumiu como procurador da República tinha 21 anos, apenas. Dez anos depois estavam tomando posse colegas de cinquenta anos. Então a idade biológica dos que estão entrando pode ser bem superior à idade daqueles que já estão aqui. Mais novos são mais antigos, na carreira!

E essas pessoas, todos nós, trazemos da vida os aprendizados. Não especificamente sobre o MPF. Mas esse aprendizado que vem da vida lá de fora é muito útil aqui dentro. E nós podemos obviamente compartilhar com os colegas que estão chegando agora aquilo que nós aprendemos aqui.

É claro que eu já fiz isso, todos nós fazemos: quando chegamos, achávamos que quem está aqui dentro não sabia de nada, estava ultrapassado e que quem estava chegando é que era o dono da verdade, era quem iria revolucionar. Esse pensamento é bom, é positivo, mas saibam que nós já passamos por praticamente tudo o que vocês ainda vão passar. Coisas que para os senhores, para os recém-chegados, é novidade, nós já vimos há uns vinte ou quinze anos. Isso não quer dizer que os senhores não devam levantar o problema, até para que a gente divida a resposta que na época nós encontramos. As respostas, como eu tenho dito nesta entrevista, são sempre respostas inconclusas. Não somos, eu pelo menos eu não sou, donos da verdade. Então estamos aqui sempre para aprender, e também para ensinar um pouquinho, diria que a palavra melhor seria compartilhar — não é nem ensinar, portanto, mas compartilhar – como determinadas questões receberam determinadas respostas, nas épocas em que formuladas. Podiam estar certas como podiam não estar. Não há nada definitivo, como eu disse, e as questões poderão ser aperfeiçoadas.

Hoje nossa rede de computadores nos ajuda muito quanto a isso. Logo que entrei no MPF eu fui jogado em Roraima e lá fiquei sozinho durante algum tempo. E a nossa rede ainda não funcionava. Então eu não tinha com quem compartilhar minhas angústias, minhas preocupações, minhas dúvidas. E isso não acontece hoje. Hoje se você, colega que está lá em Pau dos Ferros, RJ, ou em Tefé, AM, tiver uma dúvida, coloca em nossa rede a sua pergunta sobre como é que foi solucionado determinado problema, se alguém já o enfrentou anteriormente, e em poucos minutos você tem pelo menos um caminho a trilhar, uma ideia. Porque um colega que já passou por aquilo compartilha um ensinamento sobre o trabalho dele. Você terá um guia tanto para seguir naquele caminho como para mudar de direção. Porque às vezes é bom a gente saber determinadas coisas para a gente não seguir aquela trilha. Por exemplo, eu assino determinado jornal aqui de São Paulo, considerado um jornal de direita. Alguém me questionou por que eu faço isso. Eu disse ‘para fazer justamente o contrário do que ele manda fazer, o que ele determina, o que ele sugere’.
Então nós temos muito ainda para compartilhar, e os colegas que estão chegando agora, que sejam bem-vindos, e que nos ensinem, que não tenham temor de compartilhar, porque todos nós estamos na terra para errar, e para acertar muito pouco — a gente dificilmente acerta. Mas o importante é ter boa vontade e estar preparado para mudar de curso quando isso for necessário e quando alguém nos mostrar que há uma saída melhor do que aquela que nós imaginávamos que seria.

Bruno: Isso que você disse tem um fundo de verdade. É evidente que do nascimento à morte estamos sempre aprendendo – pelo menos sempre podemos aprender algo novo. Mas você não acha estranho receber os colegas que, em sua maioria, nunca trabalharam como membros do Ministério Público, e lhes dizer: “Estamos aqui para aprender com vocês”? Não acha que existe aí um elemento de renúncia à responsabilidade que os veteranos têm em benefício dos recém-ingressos? Se no meu primeiro dia de estágio acadêmico meu chefe me viesse com essa de ‘estou aqui para aprender com você’ eu não o levaria muito a sério e provavelmente iria atrás de outro lugar onde pudesse aprender alguma coisa…

Osório: Eu, particularmente, prefiro errar pela humildade, sincera! Dizer a um estagiário que eu sei tudo e que ele não sabe nada pode inibi-lo definitivamente! Quando digo isso aos estagiários com quem trabalho, quero incentivá-los a externarem pensamentos seus, que às vezes já me levaram a mudar de rumo.

Tem colega que expõe seus títulos, e até sua genética, para mostrar ao estagiário quem é que manda e quem é que sabe ali! Eu optei por outro caminho! E o melhor, para mim: salvo engano, estagiário meu nunca pediu para mudar de gabinete.

Isso fica mais claro, para mim, quando trato com um procurador da República igual a mim.

Bruno: Daqui a trinta anos você estará aposentado. Se lhe perguntarem por que terá valido a pena viver a sua vida, o que provavelmente você dirá?

Osório: Eu não sei se daqui a trinta anos eu estarei aposentado. Não sei nem se eu chego até lá. As circunstâncias da vida às vezes nos fazem prever uma data longínqua quando na verdade o fim está muito próximo. A única certeza — apesar de tudo o que a gente vem falando aqui dos sofistas, que eram contra esse problema da certeza e da verdade –, a única certeza que ainda permanece como tal é a morte. A gente poderia falar longamente sobre isso, porque tem os espíritas que não acreditam na morte, mas apenas no fim da matéria etc – mas não é o caso. Então não sei se estarei aqui daqui a trinta anos. Pode ser que minha família receba o pecúlio da Associação dos Procuradores antes disso.

Mas supondo que daqui a trinta anos eu esteja aposentado. Eu estou com 52 – então nem são trinta, mas dezoito, quando virá a ‘expulsória’ com setenta anos. Você me pergunta se terá valido a pena. É claro que todos esses anos terão valido a pena. A vida vale sempre à pena. A vida é uma alegria, é uma fortuna, é tudo de bom. A gente vai aprendendo isso infelizmente quando a vida se aproxima do fim. Só aí que a gente vai vendo essa beleza da vida. quando a gente é jovem a vida não tem muito significado. A gente vive tão intensamente que não tem tempo de pensar na vida. A gente pensa muito pouco na vida. Como é bom ser jovem, como é legal ser jovem! – e a gente vê isso quando vai ficando velho. Apesar de eu ainda jogar futebol, ainda fazer um monte de astúcias que eu fazia enquanto menino, sinto que já não tenho a mesma agilidade, a despeito da habilidade em marcar gols e armar jogadas (risos). Mas terá valido a pena porque eu tenho quatro filhos. Daqui a uns dias talvez meus filhos me deem netos. Eu fiz amigos, eu questionei, eu li, eu bebi cachaça – eu não fumo, nunca fumei, mas eu bebi – cachaça (toda a espécie de bebida alcoólica está incluída no gênero cachaça), eu chorei, eu sorri, eu amei (fui amado!), eu li poesia, eu li filosofia, eu fiz tudo isso.

Mas o fundamental, que me fez inclusive aceitar esta entrevista, é aquilo que eu tenho tentado fazer na minha página na internet, no meu blog, que é o seguinte: eu não sou exemplo para nada, talvez seja uma das piores pessoas do mundo, mas eu queria que meus filhos seguissem o caminho que eu trilhei, que é o caminho dos estudos; queria que eles estudassem. Eu já lhe disse que não vou deixar herança nenhuma para eles a não ser o estudo. E gostaria que eles aproveitassem isso. Então, o que eu espero deles é o estudo.

Mas eu não espero isso apenas dos meus filhos, porque eu não quero ver um mundo feito apenas por meus filhos. Eu quero que os filhos dos outros tenham as mesmas oportunidades que os meus filhos tiveram. Eu estudei com muita dificuldade. E comparando a realidade deles hoje com a que eu tive, meus filhos estão em ‘berço esplêndido’.

Mas quando eu falo tudo isso, as pessoas para as quais eu mais me volto são as de Maraã, lá da minha terra. Para mostrar a elas que embora eu não seja nada, como disse lá no poema do Fernando Pessoa, e não queira ser nada e que jamais serei nada, eu tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos os meus sonhos através dos estudos: já estive em hotéis cinco estrelas, já fui para a Europa, já comprei carro novo, eu tenho casa, eu como bem etc. Então para quem quase passou fome até na época da universidade, para quem ia às aulas com a mesma camisa por dois dias seguidos, isso é muito, é muito mesmo. Se você olhar para o meu passado, eu sou um homem feliz, um homem rico e realizado.
Então, como eu disse, eu queria que todo menino de Maraã acreditasse nisso. ‘Se você acha que isso é alguma coisa e tem significado para você, estude que você também consegue. E é alguma coisa, sim, porque lhe ajudará a sair da situação de quase-fome que você vive aí’. Lá em Maraã ninguém passa fome, porque você joga o anzol no rio e logo vem o peixe – e você tem a farinha. E com tudo isso você consegue sobreviver. Mas não é só disso que a vida é feita. Você pode estudar e viver no Maraã, claro. Mas você pode estudar e ajudar a vida dos outros também.

Então, se eu puder ser exemplo de alguma coisa, se a minha história puder ser exemplo, gostaria de ficar como exemplo de perseverança para conseguir estudar. Eu queria deixar isso para o povo de Maraã. Eu tenho um filho que se chama Osório di Maraã Barbosa, que até está aqui agora comigo. Eu coloquei esse nome nesse camarada justamente para que eu não me esqueça um só dia de minha terra, essa terra que eu amo tanto. E eu queria que todos os filhos de lá estudassem…
Então a vida terá valido a pena se pelo menos um daqueles meninos — vários já fizeram isso ao longo desses últimos anos, eles têm feito isso — saísse de lá para estudar como eu fiz; e que depois voltasse ou ficasse onde quer que seja. Mas que todos saibam que por intermédio do estudo eles podem realizar seus sonhos, sonhos que às vezes são pequenos como eram os meus, mas que eram tão grandes quando eu não tinha nada, que hoje eu me surpreendo.

Então é isso: a vida já valeu a pena e vai valer a pena até o último suspiro. Eu não sei quando será. Espero que demore muito! Mas ela será e vem sendo construída, como eu procuro fazer, com muita alegria. Eu não tenho muitos amigos, mas os que tenho, que são poucos, sabem e me aceitam do jeito que eu sou: questionador, mas sempre leal. Eu procuro ser leal a meus amigos. Se não gosto da coisa, digo a eles que não gosto, que acho que não é aquilo e aí muitas vezes a gente constrói em cima disso melhores relações: eu sabendo do que eles não gostam e eles sabendo do que eu não gosto. E a gente vai vivendo assim.

A vida para mim sempre valeu a pena, valeu a pena desde que eu decidi que ia estudar, e tem valido a pena ao longo da minha vida profissional, que tem sido voltada, e foi voltada sempre, para o mais humilde, para a população que paga meu salário, meus subsídios, e que eu procuro corresponder trabalhando em prol dos mais miseráveis, porque o forte não precisa, ele já tem quem o defenda. Ao pobre, ao miserável, é difícil encontrar uma palavra em seu favor; encontrar alguém que veja que ele é um injustiçado. Para o rico isso é muito fácil. Então, para mim, por tudo isso, a vida tem valido a pena.

Bruno: Agradeço sua participação, Osório! Vá pela sombra!

Osório: A distinção do convite, as recordações e os sonhos que expus, Bruno, valeram a pena e aumentaram minha alegria por ter vivido até aqui. Obrigado!

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

Links de interesse:

Entrevista com Oswaldo Silva: “O nosso emprego é o melhor do mundo. Somos bem pagos para fazer cumprir a Constituição e para promover a justiça, até mesmo contra o governo”.

“O que me levou a abraçar o comunismo na adolescência foi (…) um sentimento humanista que me levava a crer na bondade da natureza humana (…). Infelizmente cresci e amadureci (…). Abandonei o comunismo. Decididamente não foi feito para humanos”. É assim, em linhas gerais, que Oswaldo define, da adolescência à vida adulta, a história de sua desilusão política.

Ele é o criador de um método para aferição objetiva do merecimento dos candidatos à promoção dentro do Ministério Público Federal. Seus esforços têm contado com a participação dos colegas candidatos, e o tem auxiliado na fundamentação de seus votos no Conselho Superior. Apesar disso, reconhece que “não há hoje como medir, objetivamente,  eficiência, presteza e dedicação no desempenho de suas funções (…) e eu mesmo tenho dificuldade em imaginar como fazê-lo”.

Mineiro de Juiz de Fora, Oswaldo fez carreira no Distrito Federal, onde participou dos primeiros anos do Ministério Público pós-redemocratização. Tempos de ouro! De sua infância em Juiz de Fora guarda lembranças como as lembranças da infância de Manuel Bandeira: a inocência perdida, como ‘num desvão da casa de dona Aninha Viegas’. ‘A vida e suas verdades essenciais’…

Uma conversa honesta e ‘sem nove horas’ com o colega que está, para a felicidade de sua Penélope, prestes a retornar de sua Odisséia. Acompanhe-nos em nossa 26ª entrevista, direta e — por isso mesmo — esclarecedora.

 

Você foi filiado ao Partido Comunista por nove anos, quando Cuba já era uma ditadura e Stálin já era o Stálin que conhecemos hoje. O que o animava naquela época?

Na verdade fui filiado dos dezoito anos, em 1977, até 1987, quando ingressei no MPF, no entanto já me considerava comunista desde os quinze anos, quando caiu em minha mão O Manifesto Comunista, de Karl Marx. O que me levou a abraçar o comunismo, na adolescência, foi menos uma opção científica decorrente de todas as obras que li naquela época e mais um sentimento humanista que me levava a crer na bondade da natureza humana e a crer que o comunismo era o único meio pelo qual o ser humano poderia materializar o bem-estar geral. Não tinha noção exata do que havia ocorrido de fato durante o estalinismo e o maoísmo, porque acreditava que todo a material publicado sobre isto naquela época era propaganda anti-comunista patrocinada pela ditadura militar. Ou seja: a própria cena à literatura comunista tinha esse efeito colateral. Por outro lado, mesmo quando a informação era certificada por pessoas confiáveis, acreditava eu que todos os crimes do comunismo eram perpetrados por traidores da ideia e que, apesar de Stálin, Mao e outros, o comunismo venceria como teoria e prática, nas mãos de homens que colocassem o interesse coletivo acima do individual.

Infelizmente cresci e amadureci o suficiente para conhecer a natureza humana que é resumida magnificamente num dito popular nordestino: “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Abandonei o comunismo. Decididamente não foi feito para humanos.

Como comunista ‘de carteirinha’, já desfiliado há vinte e sete anos do Partido Comunista, que leitura você faz hoje do nosso Regime Militar (1964-85)?

Tratou-se de um golpe militar (apoiado e até emulados por civis) contra a ordem constitucional e legal vigente, movida pelo medo das classes civis hegemônicas contra as reformas de base que se desenrolavam mediante processo legislativo constitucional (registre-se no Congresso Nacional) e pelo medo dos militares em relação à indisciplina nas unidades militares. Dado o golpe, os militares gostaram do poder e não cumpriram a promessa de devolver o poder aos civis. Elio Gaspari a definiu magistralmente nos quatro títulos de sua As Ilusões Armadas/O Sacerdote e o Feiticeiro: A Ditadura Envergonhada, a Ditadura Escancarada, A Ditadura Encurralada e Ditadura Derrotada.

Que diferenças salientaria entre ela [a ditadura militar no Brasil] e a ditadura cubana originada da Revolução de 1959?

O que ocorreu em Cuba foi uma revolução, mudou o modo de produção e mudou o proprietário do modo de produção. Isto não ocorreu no Brasil, onde tivemos apenas um um golpe de estado. A proposta da revolução cubana era a ditadura do proletariado, que com o tempo se materializou, infelizmente, com a ditadura dos dirigentes do Partido Comunista.

Mudando de assunto, quando você entrou para o MPF, em 1987, nossa carreira tinha 162 membros. Você conhecia todos os colegas pelo nome? Como era viver o MPF nessa época?

Conhecia quase todos pessoalmente, exceto alguns colegas que, lotados em capitais mais distantes, ou não vinham a Brasília ou não compareciam nos Encontros da ANPR. Eu trabalha euforicamente. O PGR era Pertence, quem eu já tinha apoiado nas campanhas da OAB-DF desde 1981. Quase a metade dos membros do MPF estava lotada em Brasília. Trabalhávamos todos juntos no prédio onde funcionam hoje a PRDF e a ESMPU, lado a lado, explorando todas as possibilidades da recente Lei da Ação Civil Pública,  acompanhando o trabalho da Assembleia Nacional Constituinte. Tudo estava por fazer e tudo estava acontecendo.

Desde então, a leitura que alguns têm feito da Constituição incentiva uma progressiva interferência do Estado (e, notadamente, do Judiciário) em questões que antes estavam restritas à resolução privada ou administrativa. Não corremos o risco de nos tornar excessivamente burocráticos e ‘demandistas’?

Risco de igual magnitude é o de nos tornarmos excessivamente omissos e permitimos que, em vez de resoluções privadas legítimas, tenhamos erro, dolo, simulação ou fraude; e que, em vez de resoluções administrativas legítimas e legais tenhamos abusos, arbitrariedades e ilegalidades. Se a resolução privada ou administrativa está de acordo com a Constituição e com a lei não há que se temer a judicialização.

Você foi CODID-DF — Coordenador de Defesa de Direitos Individuais e Difusos do Distrito Federal. No prefácio que fez ao livro do colega João Batista sobre Ação Civil Pública, o Min. Sepúlveda Pertence, fazendo referência à época da idealização da Lei Federal n. 7.347/85, diz que então começavam a circular nos corredores do Ministério Público ‘certa gente’ estranha em busca da atuação institucional dos promotores e procuradores. Imagino que deva ter sido especialmente interessante viver esse tempo de semeadura. Que lembranças você traz dessa época?

As melhores possíveis. Sentíamo-nos protagonistas de uma nova idade para o MPF, aquela em que nossa função deixou apenas de ser a de dominus litis da ação penal e curador da lei, para sermos os defensores da sociedade e, imagine, contra o Governo! Causávamos, tanto quanto a gente estranha que nos procurava, estranheza em boa parte dos colegas, ao assumirmos esse papel. Registro que esse protagonismo não era apenas dos procuradores mais jovens , do concurso de 1984 ou de 1987, mas ele vicejou na seara lavrada por alguns colegas mais antigos, dos quais posso citar os que participaram da criação da ANPR e os que protagonizaram as ações de repúdio ao ato do então PGR que colaborou para a morte de Pedro Jorge.

No CSMPF, você tem buscado fundamentar seus votos para promoção por merecimento em critérios o mais objetivo possíveis. Por isso tem lançado editais convidando os interessados a que apresentem determinadas informações que você julga relevantes e reveladoras de ‘merecimento’. A experiência, na sua visão, tem dado certo? Há algo ainda possa melhorar?

Tem dado certo para mim. Repito aqui o que já manifestei em meu voto-vista nos autos do Projeto de Resolução que visa regulamentar as promoções por merecimento e que ainda se encontra em tramitação:

“(…) A Resolução que se pretende alterar, tanto quanto as que a antecederam, mercê de não imporem a mensuração da aplicação de seus critérios objetivos, não conseguiu afastar a prevalência de uma abordagem subjetiva de merecimento para a promoção na carreira, fundada, no mais das vezes, no conhecimento pessoal do membro do Conselho Superior das histórias das carreiras de determinados membros, com o quais dividem afinidades (ou divergências) pessoais ou institucionais; ou a confortável opção de prestigiar a antiguidade, como critério de merecimento; ou, ainda, a conjugação dessas duas situações.

Por outro lado, não é tarefa difícil ao Conselheiro, uma vez escolhido intimamente os candidatos de suas preferências, dar um verniz de objetividade à escolha, lendo seus currículos nas sessões do Conselho Superior do Ministério Público, onde a promoção está pautada, visto que, de uma forma ou de outra, todos os colegas, em um campo ou outro, guardam méritos, maiores ou menores, que podem ser ressaltados em público para justificar o voto.

Embora estejam os Conselheiros imbuídos de boa-fé na explicitação dessas histórias das carreiras dos membros candidatos à promoção, ou na leitura de seus currículos, mesmo esse processo é defeituoso porquanto não possibilita um cotejo entre currículos, à míngua de um referencial objetivo e previamente publicizado, para sua comparação”.

Por fim, a Resolução em vigor, Resolução CSMPF 101/2009, estabelece quatro critérios dos quais dois não estão a desigualar os candidatos — produtividade e permanência na sede do ofício/assiduidade. A produtividade encontra-se, mercê das correições ordinárias, quase empatada; e na permanência na sede do ofício/assiduidade, por serem deveres do cargo, são raríssimas as ocorrências na Corregedoria que resultaram em punição. Nas outras duas encontram-se as diferenças — exercício de cargos funções e atividades consideradas relevantes/frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento. No primeiro caso fiz uma relação de cargos, funções e atividades que com a ajuda de colegas foi aumentando a partir de meu primeiro voto, e é sobre elas que peço informações, visto que muitas desses cargos, funções e atividades não são registradas nos assentamentos funcionais do membro — o que está para ser corrigido pela CGMPF.

No seu entendimento, em resumo, que perfil, ou que perfis, de procurador apresenta(m) maior mérito para as promoções?

Aqueles que se enquadram nos quatro critérios da resolução em vigor. Mas anoto que não há hoje como medir, objetivamente,  eficiência, presteza e dedicação no desempenho de suas funções, três dos quatro componentes do primeiro critério elegido pela Resolução CSMPF 101/2009. Eu mesmo tenho dificuldade em imaginar como fazê-lo.

Ainda sobre a promoção por merecimento. A participação em GTs e a dedicação à vida acadêmica são duas atividades que muitos colegas bravos e trabalhadores – e outros, como eu – não se envolvem, pois preferem dedicar-se ao estudo dos processos e das questões mais tormentosas de sua gabinete ou de sua região. A atribuição de pontos para a participação em Grupos de Trabalho não contribui para tornar ainda mais negativa a imagem de ineficiência que eles têm para boa parte da classe?

Penso que não. Exceto se se considerar que a participação em GTs não é função relevante — art. 2º, inciso III, da Resolução em vigor. Penso que é relevante. E muito. Ademais os que participam de GTs não estão privados da distribuição igualitária e não estão liberados de se dedicarem ao estudo de processos e das questões mais tormentosas de seu gabinete ou de sua região. Ouso divergir de tua opinião de que os GTs têm imagem negativa de ineficiência. Ao contrário, sempre forneceram excelentes subsídios técnico-temáticos para os colegas de todas as instâncias.

Você esteve em Eldorado dos Carajás, PA, com o colega Wagner Gonçalves, por ocasião do massacre ocorrido em 17 de abril de 1996. Que impressões lhe ficaram do evento?

Péssimas e inesquecíveis. Para se ter uma ideia inspecionamos todos os dezessete cadáveres que se encontravam, ainda, expostos em um galpão perto do local dos crimes. Chamou-me a atenção que mais de setenta por cento deles tinha apenas uma marca de tiro na testa, ou na cabeça. Isto convenceu-me de que as mortes não ocorreram no momento do confronto entre a PM e os manifestantes, tal como foi gravado em vídeo, senão me engano, pela TV Manchete, mas depois, quando eles foram caçados no acampamento e fuzilados a sangue frio.

Você diz que sua atuação pela regularidade do financiamento do SUS, com a colega Raquel Dodge, acabou de alguma forma encontrando ressonância na EC 29/2000 e na LC 141/2012. Em que consistiam basicamente suas preocupações de então?

Os inquéritos civis públicos da saúde abertos o primeiro no final de 1993 e o segundo em 1994, pela valorosa colega Raquel Dodge, desnudaram a crise do financiamento da saúde e do SUS; e revelaram um mecanismo contábil-financeiro de desvio do dinheiro do orçamento da saúde, então um dos maiores da União, para outros setores. Para contornar a revelação do MPF e uma possível ação civil pública,  votou-se a Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 01 de março de 1994, criando Fundo Social de Emergência e chancelando o desvio do dinheiro. O FSE é o avô da DRU.

Nosso trabalho continuou e a luta para um adequado financiamento do SUS também, participamos ativamente da redação da Emenda Constitucional 29/2000 e da Lei Complementar nº 141/2012, reconhecidos que fomos pelo Parlamento e pela sociedade civil como protagonistas da defesa dos arts. 196 a 200 da Constituição e da Lei Orgânica da Saúde.

Você conhece suficientemente a geração dos colegas mais novos? Como colega mais experiente, o que gostaria de lhes confidenciar ao pé do ouvido?

Gostaria de conhecer mais. Conheço-os, os colegas mais novos,  dos cursos de ingresso e vitaliciamento, dos cursos da ESMPU e da participação em GTs das Câmaras. Mas hoje somos mais de mil procuradores. Passo vergonha de não saber o nome da maioria dos colegas e, mais ainda, de esquecer seus nomes…

O que eu gostaria de lhes confidenciar ao pé do ouvido deles é que este é o melhor emprego do mundo. Somos bem pagos para fazer cumprir a Constituição e a lei e para promover a justiça,  até mesmo contra o governo, até mesmo contra nossos colegas;  e se esta é a Constituição-cidadã, estamos no melhor dos mundos.

Tanto na PRR da 1ª Região como na PGR você ocupou importantes cargos de coordenação tanto na área criminal como na de tutela coletiva. Isso se deve a uma pura e simples indefinição ou a uma opção pessoal pela ampliação das perspectivas profissionais?

Éramos poucos e havia muito o que fazer. Não havia a possibilidade de uma especialização como há hoje, tínhamos que ser coringas. Portanto não foi indefinição ou opção pessoal, foi necessidade.

Você planeja se aposentar ainda neste ano, após a finalização do seu mandato no CSMPF. Mas você está muito jovem, Oswaldo!

Fiz esta promessa para minha esposa. Trouxe-a de Belo Horizonte há dez anos e ela sempre quis voltar, fez esse sacrifício por mim. Se ela me liberar da promessa fico mais uns quatro anos, pois gostaria muito de, trabalhando, fazer mestrado e doutorado aqui em Brasília, de modo que ao aposentar estaria apto da dar aulas em curso superior. O curso de especialização eu já fiz, na ESMPU.

O GT saúde da PFDC e a Relatoria da 1a. CCR/MPF para a Aplicação das Verbas Públicas Federais em Saúde se posicionaram pela inconstitucionalidade da terceirização da gestão da saúde, tese da qual você é entusiasta. Em primeiro lugar, pergunto: acredita que a máquina administrativa em algum momento conseguirá superar a iniciativa privada em eficiência na gestão da saúde? Em segundo lugar, constato que boa parte dos colegas da base não tem dado ênfase ao princípio da unidade em benefício de decisões colegiadas deliberadas em Brasília porque, segundo dizem, elas geralmente não espelham o consenso da classe ou as peculiaridades regionais e locais. O que pensa a esse respeito?

Acredito. Os números não me contradizem. Veja os números de dezembro de 2012 a dezembro de 2013: 4,05 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 1,5 bilhões de consultas médicas; 12,2 milhões de internações, 44 milhões de procedimentos oncológicos (2010-2013), 9,1 milhões de procedimentos de quimioterapia. Caramba! tudo — universalidade e integralidade — de graça — gratuidade! Mas é o velho ditado “uma maçã podre contamina o cesto”. Ou de outra forma:  “Notícia não é quando um cachorro morde o homem, mas quando o homem morde o cachorro”. Se 0,01% dessas ações e serviços públicos de saúde acima apontados foram realizados ineficientemente, isto já seria um número escandaloso, não? Número que seria apto a justificar toda a gritaria que a imprensa, os meios de comunicação e as redes sociais fazem contra a gestão pública. Mas pense em 99,99% de procedimentos realizados sem reclamações. Alguém se habilita a divulgar esses fatos? Isto é notícia que vende? Diante desses números o que é ser eficiente ou ineficiente?

Respondendo à segunda parte de sua pergunta, com exceção das decisões da 2ª CCR/MPF em decisões de arquivamento e declínio de atribuição, não há uma estatística da aceitação ou não das decisões colegiadas como orientadoras do trabalho dos colegas. Temos uma maioria silenciosa e uma minoria que vai à rede membros. E não sei se esta, quando reclama, é representativa daquela. De forma que não me sentiria seguro de que elas “geralmente não espelham o consenso da classe ou as peculiaridades regionais e locais”.

As CCRs não tem conseguido, segundo a opinião de alguns, emplacar ações eficazes de coordenação da atuação nacional do MPF. Por quê?

Gostaria de saber quem são esses alguns pois vi várias ações de coordenação, especialmente na 5a. CCR/MPF, na 2a. CCR/MPF e na PFDC que foram eficazes. As que não foram encontraram obstáculos dos mais variadas formas, desde a inércia do procurador natural ou vinculado, o que pode ocorrer por várias razões, até a barreira dos órgãos públicos que deveriam cooperar na ação.

Recentemente ocorreu que nova composição da 4ª CCR fixou entendimento que, na prática, vem invalidando enunciado, a respeito da atribuição do MPF para atuar em casos de mineração irregular, publicado sete meses antes pela coordenação anterior. Não seria o caso de prever mecanismos de estabilização dos entendimentos das CCRs?

Eu esperaria o Egrégio STF e o Egrégio STJ encontrarem uma fórmula de resolverem este antigo problema que mutatis mutandis lhes aflige, para apropriar-me da solução.

De que se lembra de sua infância em Juiz de Fora?

Da inocência perdida.

 

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