“Do jeito que o mercado editorial jurídico está, prefiro ir a um sebo e procurar autores da velha guarda. São infinitamente melhores.” Veja nossa entrevista com Guilherme Magaldi.

Guilherme Magaldi está prestes a se aposentar no cargo de subprocurador-geral da República. É o nosso primeiro entrevistado que nos deixa. Nascido em Juiz de Fora, ele foi para Brasília, DF, aos quatro anos de idade, em 1960, ano em que a nova capital da República foi inaugurada.

Magaldi é, junto com sua mulher, colecionador de artes plásticas, com algo em torno de quinhentas peças entre pinturas, gravuras, esculturas, objetos e instalações de artistas brasileiros importantes e alguns estrangeiros. Segundo diz, “se fosse obrigado a morar numa casa sem quadros nas paredes acho que não aguentaria. Talvez ficasse sufocado pelo vazio.”

Bem disposto a compartilhar as experiências que teve na sua recente viagem à Índia, a passeio, Guilherme já esteve em missão oficial na Ásia, no começo da década de 90, quando conseguiu a efetiva prisão de Paulo César Farias, o ‘PC Farias’, então foragido da justiça brasileira.

Aluno e amigo de Roberto Lyra Filho, admirador de Evandro Lins e Silva, Guilherme ainda planeja ler O Capital, Os Donos do Poder, o Tratado de Direito Privado de Pontes de Miranda e a obra de Michelet sobre a Revolução Francesa. Certamente terá muito trabalho pela frente, mesclado ao ócio criativo de que também planeja desfrutar.

Esse é o nosso 35º entrevistado, que está com um pé dentro e outro já quase fora do Ministério Público Federal. Acompanhe nosso encontro.

Bruno: Você foi leitor entusiasmado de Evgeni Pachukanis, teórico do Direito do partido bolchevique. Diz, porém, que os tempos mudaram e que foi preciso mudar também. Pergunto a você: foram os tempos que mudaram ou, diferentemente, foi o ‘sonho’ marxista que se revelou um enorme pesadelo que jamais, em tempo algum, poderia vingar?

Guilherme: Leitor de Pachukanis, certamente fui; o “entusiasmado”, porém, é por sua conta e risco! A leitura de Pachukanis na verdade era obrigatória para os alunos da disciplina História das Ideias Jurídicas, ministrada à época na nossa UNB pelo grande mestre Roberto Lyra Filho. Ali comecei lendo e estudando muito a Teoria Geral do Direito e o Marxismo, a obra que consagrou o jurista soviético. Lembro-me de um trabalho e um artigo sobre esse livro que fiz no Mestrado em conjunto com o Carlos Eduardo Vasconcelos, hoje meu colega e subprocurador-geral. A tentativa de Pachukanis de estabelecer um nexo entre a crítica de Marx à economia política e a crítica ao Direito é fundamental para a filosofia jurídica, como reconhecido até por um positivista como Kelsen. O que mais me atraía nele, todavia, era, por incrível que pareça, sua crença absolutamente contraditória na impossibilidade teórica de construção de um conceito marxista do Direito. Poulantzas e a esquerda jurídica em geral sofre até hoje com esse, digamos, vaticínio do Pachukanis. Isso está no segundo livro dele, que li também, A Teoria Marxista do Direito e a Construção do Socialismo.

Bom, para quem não sabe o final dessa história, deu no que deu: por causa desse livro e porque não se ‘redimiu’ dessas ideias, Pachukanis acabou sendo executado, em 1937, pelo camarada Stálin.

Com isso, eu já respondo à sua questão. Sim, os tempos mudaram, graças a Deus, aliás, mas não acho que o ‘sonho’ marxista tenho sido um ‘enorme pesadelo’, como você sugere. Pachukanis, o executado, não era um ‘pesadelo’. Stálin, seu carrasco, sim, era um ‘pesadelo’. O que se chama hoje de ‘Sorex’, socialismo realmente existente, este de fato foi um ‘pesadelo’. Já o pensamento marxista enquanto um conjunto de ideias, não como ideologia, mas como pensamento crítico, seja na economia, na cultura, no Direito, este a meu ver permanece válido. Enfim, eu, nem nos arroubos juvenis fui marxista — era e sempre fui bem burguês; mas “marxólogo” eu gostaria de ter sido.

Guilherme: E você, Bruno? Já flertou alguma vez com Marx?

Bruno: Sim, já flertei. Toda a minha geração inalou altas doses de marxismo no colégio, através dos professores de história, e também na faculdade. Isso não é pouca coisa. E nunca nos apresentaram um contraponto. Mas acho que a maioria dos professores, coitados, estava de boa fé. Porque as editoras brasileiras só passaram a publicar autores conservadores há cerca de dez anos. Nossa formação política foi escandalosamente falha nesse ponto. Na adolescência a gente não costuma ter muito discernimento. Aí vêm um professor, do alto de sua cátedra, falando dos ‘horrores’ do capitalismo e do ‘maravilhoso mundo socialista’ onde a igualdade e o mínimo necessário eram as metas essenciais. Não tem jeito. Todo mundo caía nessa estorinha. Com o passar do tempo, a gente vai assimilando a regra de ouro: pelos frutos se conhece a qualidade da árvore.

Bruno: Você trabalhou no inquérito policial do caso da Ferrovia Norte-Sul, iniciado por uma informação do jornalista Jânio de Freitas, da Folha de São Paulo. Conte-nos essa história e o modo como terminou…

Guilherme: Sim, esse é um trabalho que considero muito relevante na minha carreira. Eu instaurei e conduzi esse inquérito. Um jornalista da Folha, o Jânio de Freitas, antecipou o resultado da licitação, mediante a publicação, nos classificados do jornal, dos nomes das construtoras que ganhariam o certame, indicando inclusive, com absoluta precisão, em que trecho da ferrovia cada uma delas sairia vencedora. Foi um escândalo.Era o governo Sarney.

Cuidei desse inquérito durante um ano, sozinho. Não estávamos ainda na era das tasks forces, como hoje em dia. Fiz uma boa parceria com o delegado federal que cuidava do caso. Andamos o Brasil inteiro ouvindo os mais altos dirigentes e donos das empresas. O sucesso dessa investigação se deveu a essa integração, a essa conjugação de esforços entre Polícia e MP. Sem isso não dá pra trabalhar bem em qualquer hipótese. Não entendo como hoje alguns dos colegas insistem em alimentar uma certa competição com a PF. No meu ponto de vista, existe atualmente um briga pela, digamos, “paternidade” do IPL, o que não é bom. Ninguém, nem PF nem MP, quer dividir o sucesso das boas investigações. Querem exclusividade na glória

Bem, você pode me perguntar se desse inquérito bem feito resultou uma denúncia. A meu ver deveria, tanto que submeti ao PGR da época, Pertence, a minuta de denúncia. Veja que os tempos eram outros. Mas ele preferiu me tirar do processo e entregá-lo a outro colega que pediu o arquivamento do caso. Mas essa é uma outra estória.

De qualquer forma, não me rebelei pelo fato de o Pertence me tirar do caso Eu entendia, e ainda entendo assim, que o princípio da unidade deveria prevalecer, em certas circunstâncias, sobre o princípio da independência funcional. Sei que é difícil encontrar um ponto de equilíbrio entre os dois princípios, mas acho que atualmente o pêndulo está voltado demais pro lado da independência funcional, desequilíbrio este que a meu ver pode ser perigoso para a Instituição.

Guilherme: E você, Bruno? Acha possível a convivência harmônica dos dois princípios?

Bruno: Não sei se é possível uma convivência harmônica da independência funcional com a unidade. É uma tensão insolúvel. Mas é uma tensão importante até porque inevitável. Assim como você, vejo que hoje há uma nítida prevalência da independência funcional. Mas ao contrário de você, não acho que isso seja perigoso. Penso justamente o contrário: a prevalência da unidade em prejuízo da independência funcional pode engessar a atuação dos colegas. Em troca de quê? De diretrizes traçadas por quem? A maioria dos coordenadores de câmara, de ontem e de hoje, é muito preparada e muito bem intencionada. Mas as diretrizes que vêm das câmaras nem sempre espelham esse brilhantismo dos colegas. Não sei o que acontece.

Bruno: Mudando de assunto: eu não sabia que você tinha ido, em missão, a Londres e a Bangkok atrás do lendário Paulo César Farias. Eis aí outra história que eu gostaria de ouvir, detalhadamente.

Guilherme: Sim. Esse foi outro caso relevante em que atuei. Que foi a fuga e depois a prisão no exterior de PC Farias, de que você já deve ter ouvido falar. Fui primeiro a Londres pedir sua extradição a um magistrate court — ele já tinha fugido da Inglaterra. Posteriormente, veio a ser encontrado na Tailândia. Integrei, juntamente com um Embaixador brasileiro e um DPF, o que hoje chamariam de ‘força-tarefa’ que foi a Bangkok negociar a entrega de PC ao Governo brasileiro. Conseguimos enfim prendê-lo numa missão cheia de pequenos detalhes interessantes, alguns até engraçados. Você me pede que relate alguns. Vou tentar.

Eu cheguei em Londres e fui direto para a audiência com o juiz que se encarregaria do pedido brasileiro de extradição. Aberta a audiência, o magistrado me perguntou : Diz o Embaixador do Brasil aqui em Londres que um grande ladrão e corrupto de nacionalidade brasileira teria sido encontrado em solo britânico. O Sr. Pode me dizer qual é a acusação contra ele ? Me deu um frio na barriga. A denúncia oferecida pelo Aristides no Supremo, e o mandado de prisão contra o PC, cuja original devidamente traduzido eu trazia para instruir o pedido extradicional, imputava-lhe tão só o crime de evasão de divisas no valor de mais ou menos 100 mil dólares, referentes a um leasing feito em Miami daquele jato do PC que chamavam do sugestivo nome ‘morcego negro’.

O juiz, quando eu terminei de sintetizar a acusação, deu uma boa risada: ‘Meu caro advogado, disse ele, eu tenho aqui para decidir alguns pedidos de extradição de gente que roubou milhões de dólares e o senhor me pede que eu dê urgência para a prisão de um ladrão de galinhas?’ Bom, àquela altura PC já tinha fugido para a Tailândia e o pedido de extradição, graças a Deus, ficara prejudicado.

Em Bangkok, PC deu muito azar. Hospedou-se num hotel aonde estava também hospedada uma delegação de empresários brasileiros que comparecia a uma reunião comercial com empresários tailandeses. Era o dia do Rèveillon deles, tailandeses, e numa daquelas festas fantásticas no último andar do hotel, um desses empresários brasileiros reconheceu o PC, que tentava conseguir, aos gritos, um lugar numa das mesas da festa. Esse brasileiro ligou pra Bárbara Musi, Conselheira na Embaixada do Brasil. Ele tinha o cartão de visitas da diplomata pois teriam viajado juntos de São Paulo para Bangkok. Vejam quanta coincidência!

O empresário brasileiro acorda Bárbara Musi, já era tarde da noite, e lhe diz: tenho certeza que acabei de ver o PC Farias no hotel em que estou hospedado. Você precisa chamar o Embaixador e vir com ele pra cá. Bárbara, em princípio, achou que era um trote mas resolveu ligar pro embaixador. O embaixador, Paulo Lima, que estava meio encostado na Tailândia, próximo da aposentadoria, decide conferir se era verdade. Antes, liga para um amigo seu que era representante da Interpol em Bangkok. Todos seguem então pro hotel.

No hotel acontece a cena mais incrível desse episódio. Paulo Lima se apresenta na recepção e indaga se Paulo César Cavalcante Farias, passaporte número tal era hóspede registrado. As Embaixadas brasileiras haviam recebido do Itamarati a identificação do foragido. O funcionário confirma que sim. Paulo Lima pede que a recepção chame PC ao hall do hotel. PC, que tinha um visto de turista para ficar legalmente na Tailândia por seis meses, desce tranquilamente e quando se apresenta ao Embaixador, vai logo apresentando seu passaporte e, dizendo que era turista regular na Tailândia, o entrega ao Embaixador.

Nesse momento, Paulo Lima, num gesto inusitado mas corajoso, puxa uma tesoura do bolso do paletó e picota as pontas do passaporte do PC. ‘Seu passaporte, diz ele ao PC, agora está cancelado!’ Ato contínuo, o cara da Interpol já entra no hall do hotel com dois agentes da imigração tailandesa e dão voz de prisão ao PC, agora um estrangeiro em situação irregular na Tailândia.

Foi assim, simples assim, que PC foi preso. Não fosse a atitude desse velho embaixador, provavelmente ele teria ficado algum tempo numa daquelas ilhas paradisíacas.

Bom, depois dessa prisão, digamos, rocambolesca, muita coisa aconteceu mas não dá pra contar aqui. Seria muito longo. Termino então contando só mais um fato interessante.

Na hora de voar de volta pro Brasil com o PC, o DPF que nos acompanhava exigiu fosse feita uma varredura na aeronave da Varig, um 747, que à época fazia a rota SP/Joanesburgo/Bangkok/Hong-Kong. Acho que temia algum atentado. Eu achei aquilo um exagero, ridículo até. Mas fiquei quieto. A aeronave, vinda de Hong-Kong, ficou retida no aeroporto por mais de quatro horas, fazendo a tal varredura. O DPF me dizia que estava preocupado com a reação dos passageiros quando soubessem que PC estaria a bordo. Tudo besteira. Não aconteceu nada. Ao contrário, quando PC entrou no avião, dois ou três passageiros vieram lhe pedir autógrafo. Foi hilário!

Bruno: O PC Farias, preso, dando autógrafo dentro do avião? Hilário mesmo…

Guilherme: Não é?

Bruno: Que história! Mas então, Guilherme, você foi o primeiro Procurador dos Direitos do Cidadão em Brasília, foi consultor jurídico do Ministério da Justiça quando da assinatura presidencial de nossa lei complementar e integrou por dois anos a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. O exercício de funções em órgãos do executivo está hoje praticamente vedado aos membros do MPF. O mesmo se diga da disputa de eleições para os poderes Executivo e Legislativo de todos os níveis da federação. Trata-se de duas vedações que tem motivações um pouco distintas. Você acredita que o MPF se fortaleceu com esse novo regime jurídico? Em caso negativo, que balizas poderiam ser estabelecidas em eventual retorno da possibilidade de cessão de membros para ocupar funções em secretarias e ministérios e da nossa capacidade eleitoral passiva?

Guilherme: Não acho, Bruno, que o fato de se proibir um membro de exercer função fora do MP, em um ministério, por exemplo, seja algo assim tão importante para o fortalecimento da Instituição. Acho até irrelevante. O MP não vai ser mais forte ou mais fraco se um membro vier a ser, como eu fui, como Cláudio Fonteles foi, Artur Castilho também, Rodrigo Janot inclusive, Consultor Jurídico ou Diretor de Secretária do Ministério da Justiça. Sabe, Bruno, acho muito bom que integrantes da carreira tenham essa experiência. Para quem pretende fiscalizar atos do Executivo é bom conhecer como funciona a máquina administrativa do Governo. É uma experiência individual que, longe de enfraquecer o MP, só traz benefícios para o aprimoramento técnico de seus membros.

Não sei, porém, se posso dizer a mesma coisa em relação a cargos eletivos pois nunca tive essa experiência. De qualquer forma, para ser coerente, tenderia a dizer que ter ou não membros disputando eleições me parece igualmente irrelevante para o fortalecimento ou enfraquecimento do MP. Mas acho que seria bom para nós ter algum colega lá no Parlamento.

Guilherme: E você, o que acha disso?

Bruno: Ter um representante no Congresso Nacional é sempre bom, não? Eu tenho a impressão de que nos enfraquecemos com essa proibição de disputar eleições. Eventual mal-estar gerado pela candidatura eleitoral de promotores de justiça e de procuradores da República compensa, acredito, os benefícios de ter uma voz ‘nossa’ entre os deputados e senadores. Mas reconheço que a questão não é tão simples assim.

Bruno: Eu queria saber como é em geral o dia a dia de gabinete e de sessões e o volume de trabalho de um subprocurador-geral?

Guilherme: À exceção dos colegas que atuam em Câmaras, um subprocurador-geral é, eu diria, 99% custos legis. Damos pareceres. É isso, grosso modo, o que fazemos. Eu recebo uma média de 100 a 120 processos por semana, entre ciências e casos para pareceres. São poucos os casos em que há necessidade de recursos internos no STJ ou extraordinário pro Supremo. Não tenho estatística, mas não passa de 1% a 2 % do estoque recebido semanalmente. O meu gabinete está sempre em dia e não tem processo acumulado. Vou me aposentar com o gabinete zerado. Tenho uma assessoria sensacional, que, com toda modéstia, acho que treinei bem para a função de custos legis. Sem essa equipe, não teria o gabinete zerado.

Compareço também às sessões de julgamento pelo MPF. Alguns colegas desdenham essa função, mas eu acho importantíssima. Na PPR já vi gente que saiu no meio da sessão e gente que não compareceu, sem justificativa. É uma pena. Ainda que não haja caso em julgamento de interesse do MPF, estar ali ao lado dos juízes, em qualquer grau de jurisdição, nos dá a chance de acompanhar mais diretamente os trabalhos da Corte; ficar atualizado sobre a jurisprudência; entender a lógica dos julgamentos; compreender tendências e inclinações do juízes; afinal são nossos colegas de trabalho e alguns acabam até mesmo ficando nossos amigos. Só vejo aspectos positivos nessa função dos subprocuradores.

Bruno: Eu me lembro da primeira vez que tive acesso ao livro ‘Teoria do Injusto Penal’, do prof. Juarez Tavares, e da profunda impressão que ele me causou. Você, que conviveu com o professor, seria capaz de transmitir àquele que se inicia no estudo do Direito Penal alguma lição que tenha aprendido dessa convivência?

Guilherme: Como na canção do Caetano Veloso, assim como só é possível filosofar em alemão, aprendi com o Juarez que também só é possível falar sobre o Direito Penal em alemão! Eu diria isso pra quem quer ser bom penalista: vá, como Juarez, estudar na Alemanha. Já é um bom começo. Eu infelizmente não estudei na Alemanha e por isso não me considero um penalista.

Sobre o Teoria do Injusto Penal, concordo com você. Mas ainda prefiro o livro mais novo dele, Teoria dos Crimes Omissivos. Dentre os penalistas brasileiros vivos, Juarez pra mim é o melhor.

Bruno: Você lê diariamente quatro jornais: Folha de São Paulo, Estadão, Correio Brasiliense e O Globo; assina duas revistas estrangeiras: The Economist e Nouvelle Observateur; e diz que o volume de leituras vulgares não deixa tempo para leituras mais sofisticadas e sérias. O que chama de ‘leituras mais sofisticadas e sérias’? Elas cansam você hoje?

Guilherme: O Capital, do Marx. Gostaria muito de ter tido tempo para ler essa obra. Os Donos do Poder, do Raimundo Faoro, também. É preciso ter tempo para ler esse livro. Tem parágrafos de mais de três páginas! Na área jurídica, Pontes de Miranda. Quem consegue ler os sessenta volumes do Tratado de Direito Privado deveria ganhar um prêmio! Acho que nem na aposentadoria eu ganharei esse prêmio. Por último, se tiver tempo um dia, gostaria de ler tudo que Michelet escreveu sobre a Revolução francesa. E olha que ele escreveu alguns volumes sobre o tema.

Bruno: Da última vez que conversamos você me fez uma confissão: ‘tento me manter atualizado com relação à literatura jurídica, embora deva confessar que Direito é muito chato’. Há alguns anos eu e um amigo, juiz em São Paulo, fazíamos a mesma constatação: o mundo é muito interessante enquanto a literatura jurídica, tal como escrita e lida no Brasil, é muito pobre. Hoje há muitos colegas novos com essa mesma sensação: temos de nos manter atualizados em relação ao Direito, mas há um mundo de conhecimentos mais interessantes e importantes fora da área jurídica. Com isso a literatura jurídica perde o sabor que a muitos de nós já teve em um passado não muito distante. A que você atribui esse fenômeno?

Guilherme: Massificação, caro Bruno. Outro dia entrei numa livraria jurídica, coisa que não fazia há pelo menos cinco anos. Sinceramente, eu identifiquei poucos autores que eu conhecia. 80% dos livros que vi eram de autores pra mim desconhecidos. Todo mundo hoje escreve sobre Direito. Virou business. Com tanto livro sendo escrito me parece óbvio que a qualidade tenha caído a níveis bem baixos. Do jeito que está, e sem querer ser saudosista, prefiro ir a um sebo e procurar autores da velha guarda. São infinitamente melhores.

Guilherme: Você não acha, Bruno ?

Bruno: Não tenho nenhuma dúvida. Sou rato de sebo. Eu também não tenho acompanhado as novidades do mercado editorial jurídico. Quando os livros jurídicos, alguns até bons e respeitáveis, começaram a vir com questões de concurso ao final dos capítulos, fiquei meio desanimado. E tem mais, né, quem só lê livros de direito é como se andasse em círculos. Círculos cada vez menores e mais limitados. Mas é inevitável: é preciso acompanhar as modificações legislativas e as transformações da jurisprudência, pelo menos.

Bruno: Mudando de assunto: você me disse que costuma assistir a dois filmes por semana. Embora o filme ‘Lawrence da Arábia’ frequente listas dos melhores filmes de todos os tempos, é inusitado, me parece, que ele seja o seu filme predileto. Você provavelmente tem motivos especiais para isso…

Guilherme: Não acho inusitado, não, Bruno. Lawrence, como cunhado pela crítica cinematográfica, é o épico de todos os épicos. Quando vi o filme pela primeira vez, eu tinha, acho, uns quinze anos. Filmes épicos eram os meus favoritos. E também eram os favoritos dos adolescentes da minha época, no final dos anos 60.O épico por excelência, naquela época, eram os filmes da Primeira e principalmente da Segunda Guerra, além é claro dos filmes sobre Roma antiga. Lawrence nos introduziu num tipo de guerra que não conhecíamos, a guerra entre otomanos e árabes. A conquista de Acba ficou na minha memória. O deserto, os beduínos, igualmente.

Depois, mais velho, quando vi a versão restaurada e completa, com quatro horas e meia de duração, não mudei de ideia. É impossível não eleger como um de seus preferidos um filme que tem no elenco nada mais nada menos do que Peter O’Toole, Omar Shariff, Sir Alec Guiness, Antony Quinn. Difícil achar um filme com tantos atores desse nível. Peter O’Toole sobretudo. Ele é um dos motivos, como você diz, especiais para minha escolha. Meu ator preferido. Curioso, não sei se você sabia, mas ele bateu o recorde de indicações para o Oscar: oito vezes. E não ganhou nenhuma. Que ironia. É o maior perdedor da história do Oscar! O filme, ao contrário, está entre os recordistas de prêmios: ganhou melhor filme, diretor, consagrou David Lean, edição, direção e arte, fotografia, som e trilha sonora. Levou sete Oscars.

Eu tenho, é claro, o DVD em casa. Volta e meia revejo o filme. Praticamente obriguei meus filhos a vê-lo duas vezes. Eles não se empolgaram e até dormiram. Depois um deles brincou comigo. Ah!, pai, eu li que esse filme é aquele que você sai do cinema com a roupa cheia de areia. Ri, é claro, mas ainda espero que um dia eles se convençam da beleza e importância do filme.

Guilherme: Aliás, Bruno, e você? Já viu Lawrence? Gostou?

Bruno: Você não vai acreditar! Eu e minha mulher começamos a assistir há mais de um ano e ainda não terminamos. Eu tenho que parar um final de semana para fazer isso. Vou matar todos os filmes não concluídos: Lawrence da Arábia, O Sol é Para Todos, O Sétimo Selo e Metrópolis.

Bruno: E a Índia, Guilherme? Recentemente você passou três semanas no Rajastão, e diz que precisa voltar urgentemente. O que encontrou de especial por lá?

Guilherme: Ir à Índia era um sonho antigo da minha esposa. Eu, cheio de estereótipos e preconceitos sobre o país, sempre dizia que jamais iria lá. Cedi para comemorar nosso aniversário de 29 anos de casamento. Ao contrário de minhas expectativas, voltei bem impressionado. É claro que, sendo uma primeira visita, fui aconselhado por quem conhece a não ir a lugares mais, digamos, ‘difíceis’, como Madras, hoje Chenai, sonho de ‘viagem’ de antigos hippies e mochileiros; nem Calcutá, que eles chamam de Kalkota, aonde a pobreza chega ao extremo. Tampouco fui a Varanasi. Dizem que os indianos sonham em morrer lá e terem suas cinzas jogadas no rio, pois assim escapariam da reencarnação e não voltariam à vida terrena. Eu que, ao contrário, gosto muito da vida na Terra e quero voltar, fiquei com medo de, por azar, morrer em Varanasi e nunca mais voltar.

Enfim, fiz na Índia o que eles no Itamarati chamam de circuito ‘Elizabeth Arden’. Visitei apenas Delhi, o Rajastão e evidentemente o Taj Mahal. O Rajastão foi de fato algo especial que vi por lá. A terra dos marajás. Aprendi algo de especial com a história e a vida deles. Um marajá era, podemos comparar, um senhor feudal. Como todo dono de um feudo, morava num castelo maravilhoso. Esses feudos e castelos estão preservados até hoje em Jaipur, Uidaipur, Johdpur, cidades que visitei. Alguns marajás ainda moram nesses castelos mas quase todos foram transformados em hotéis espetaculares. Com a perda do poder político, quando da independência da Índia nos anos 40, pois eles eram aliados dos ingleses e foram contra a independência, os marajás também perderam suas fortunas. Com a crise, foram obrigados a vender seus castelos. Nos hospedamos, é óbvio, nesses castelos-hotéis. São sensacionais! Aconselho a estadia a todos que quiserem ir à Índia Além dos marajás e de seus castelos, a comida também foi um ponto alto da viagem. É muito spyce, dizem alguns. De fato é; mas dá pra pedir ‘very litle spicy’. E eles fazem.

Por último, uma menção especial ao trânsito e às estradas indianas. Imperdíveis! É o caos que dá certo. Circulei quinze dias com um motorista particular. Não queiram arriscar a dirigir lá, pois é perigoso. Saímos ilesos e então perguntei a ele como conseguia dirigir tão bem naquelas circunstâncias. Ele me respondeu: ‘Sir, to suceed nas estradas indianas é preciso ter os três gês: good driver, good brake and good luck‘. Eu morri de rir!

Bruno: Você e sua esposa têm uma coleção de artes plásticas com algo em torno de quinhentas peças entre pinturas, gravuras, esculturas, objetos e instalações de artistas brasileiros importantes como Vik Muniz, Adriana Varejão, Cildo Meireles etc e até de estrangeiros. Coleção que sua esposa, mecenas e expert em artes, começou há mais de trinta anos, quando, segundo você diz, ainda era barato comprar jovens artistas brasileiros contemporâneos. O que a arte representa para você, Guilherme?

Guilherme: Sou casado há 31 anos e minha esposa já desde os dezesseis anos comprava e estudava arte contemporânea. Vivendo assim tantos anos com ela, eu, como digo, aprendi algo de arte por ‘osmose’. Hoje acho que entendo um pouquinho dessa coisa chamada arte contemporânea. Só não consegui, e nunca vou conseguir, é ter o ‘olhar’, tão especial, para arte que ela tem. Não tenho esse dom. E respondendo então sua questão sobre a importância pra mim da arte, eu diria que se fosse obrigado a morar numa casa sem quadros nas paredes, acho que não aguentaria. Talvez ficasse sufocado pelo vazio.

Bruno: Fico imaginando que a arte contemporânea é feita, produzida, com foco em uma sensibilidade nova, para a qual as pessoas – eu inclusive – ainda não despertaram suficientemente. Alguns chegam a questionar se a arte contemporânea é arte em sentido estrito… Na sua opinião, o que se ganhou e o que se perdeu na arte desde ‘A Fonte’ de Marcel Duchamp?

Guilherme: Essa é uma pergunta boa e complexa, Bruno. Deveria ser endereçada à minha esposa, que é a especialista no assunto. Mas vamos lá. Pra mim nada se perdeu desde Duchamp. A história da arte é feita de rupturas. Duchamp, nesse contexto, produziu mais uma dessas rupturas. Sim uma ruptura radical na medida em que com ele a arte, pela primeira vez, perdeu o seu tradicional suporte, a tela e a tinta, substituídas pelos seus ready made’s, objetos da vida cotidiana nos quais o artista se projeta., ou melhor, nos quais ele projeta sua ‘arte’. Você lembrou do mictório, ‘A Fonte’. Eu lembro também da roda de bicicleta transformada em obra de arte. Vale dizer: Duchamp inaugurou uma nova linguagem estética, mas outros no passado também assim fizeram e a arte nada perdeu com isso. A história da arte é a história das mudanças de sua linguagem. Nada se perde, tudo se transforma, assim como nas ciências naturais.

E o que se ganha na arte a partir de Duchamp? Muita coisa, eu acho. O abandono da tela como suporte viabiliza o início da arte contemporânea. Por outro lado, com Duchamp, o observador se transformou num autor e partícipe da obra de arte. A mera contemplação já não basta mais. É o que hoje em dia se vê nos grandes museus de arte contemporânea, nas galerias e nas feiras de arte: as chamadas ‘instalações’.

E isso é arte? No começo eu também me fazia essa pergunta. Hoje não faço mais. E para quem tem essa dúvida, como você Bruno, aconselho ler o excelente livro do inglês da BBC, Gompertz, intitulado sugestivamente, na tradução para o português, “Isso é Arte?”.

Bruno: Se sua vida fosse uma embarcação em pleno mar, Guilherme, é capaz de dizer, olhando para trás, o que teria deixado de fazer e, principalmente, em que direção seus esforços o estão levando hoje?

Guilherme: O que deixei de fazer? Difícil dizer pois fiz tanta coisa boa — e ruim também, advirto desde logo. Pra ficar no campo da arte, onde estamos, deixei, por exemplo, de comprar alguns artistas por preço vil e que hoje valem uma fortuna. Lembro de um trabalho do Tunga, uma longa trança em metal, que minha esposa pedia pra comprar por pouquíssimos dólares. Naquela época eu ainda era meio neófito em arte contemporânea e não concordei com a compra. Que arrependimento! Hoje essa obra vale muitos mil dólares. Eu, ou melhor, meus herdeiros, ficariam bem de vida.

Deixei também de me dedicar à vida acadêmica. Fiz mestrado na UNB e também no exterior, na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Mas nunca mais voltei à universidade. Isso eu lamento.

O que eu teria deixado de fazer? Tudo bem, eu fiz minha vida profissional no Direito. Mas está aí uma coisa que eu talvez não quisesse repetir. Aliás, tenho aconselhado meus filhos a não fazer Direito. É muito chato, como já disse antes. Se fosse eles, eu faria publicidade e marketing, uma profissão que eu acho mais, digamos, charmosa, mais ligada e presente na vida cotidiana no século XXI. Desde que você seja o dono da agência, bem entendido.

Em que direção vão meus esforços? Provavelmente ao ócio; mas o ócio criativo de que fala Domenico de Masi. Brincadeiras à parte, acho que me aposento logo e vou me dedicar exclusivamente à advocacia. Não me resta outra opção. Não posso ser artista, por exemplo. Como na peça Arlequin, de Goldoni, sempre fui escravo de dois patrões: o Ministério Público e a advocacia, como, diga-se de passagem, me garante a Constituição de 1988. Não fui eu que pedi ao Constituinte para ser assim. Eles decidiram me manter nesse duplo regime. Por isso, às vezes não compreendo a crítica de alguns colegas contra os que advogam. Eu, de minha parte, advogo e tenho meu gabinete zerado. Tenho meu trabalho em dia. Tem vários colegas aqui na PGR que não advogam e tem quinhentos processos. Alguns tem até mais de mil processos no gabinete! Enfim, hoje, os que advogam, somos poucos. Uma minoria. Muitos se aposentaram; outros morreram. Por que persegui-los? É uma categoria em extinção. Não dou mais cinco anos e não teremos mais nenhum colega advogado nos quadros do Ministério Público Federal.

Bruno: Para terminar: quais foram as pessoas mais extraordinárias que você já conheceu e que características as tornaram assim a seus olhos?

Guilherme: Conheci mais de uma, com certeza. Sem ordem hierárquica, lembro da minha esposa. Se não fosse extraordinária, eu não casaria com ela

Depois, Roberto Lyra Filho. Ensinou-me a pensar o direito de forma crítica e sobretudo dialética. Era um gênio. Primeiro reacionário, depois marxista e libertário, como se definia. Dizia que, ao contrário de todo mundo, eu inclusive, tinha sido um bombeiro na juventude e um incendiário na velhice.

Foi um cara realmente fora dos padrões normais. Pensador e filósofo do Direito, penalista de grande valor, são facetas que todos conhecem. Eu gostava do Lyra em sua intimidade, que eu e minha esposa tivemos o prazer de frequentar. Explico para que não haja dúvida. Lyra e Paulo Rónai foram, naquela altura, os únicos brasileiros que traduziam poetas húngaros para o português. Vejam que ele era realmente um gênio. Recebeu, por isso, vários prêmios dos húngaros; e todo ano a Embaixada deles aqui em Brasília mandava uma cesta de Natal pra ele. A cesta era sofisticadíssima. Tinha foie gras húngaro, que era um dos melhores do mundo à época. Perdia evidentemente para os franceses; tinha ‘Tokaji 6 puttonyos’ excepcionais, considerados tão bons como um ‘Chateau D’Yquem’; caviar, russo é claro. Os húngaros não tinham e importavam dos amigos comunistas russos. Todas as delícias ditas burguesas que o Lyra gostava, mas que não podia comer por causa de sua saúde e de seu peso excessivo. Alguém precisava degustar aquilo e Lyra convidava sempre os seus alunos que tinham paladar, digamos, mais sofisticados, eu e Karla. Era um deleite. Um dia na casa dele, no meio de um desses ágapes, ele nos convidou para conhecer o seu quarto, local sagrado que não mostrava pra ninguém. Foi uma surpresa pra nós. Um marxista que tinha no seu quarto vários oratórios e imagens cristãos. Bíblias em várias línguas. Era um poliglota. Que personalidade contraditória e, assim, dialética em si mesma! Isso nos fascinava.

Teria mais alguns pra citar mas meu relato ficaria longo. Só gostaria de concluir citando também, como alguém muito especial pra mim, o ministro Evandro Lins e Silva. Eu o conheci na Comissão elaboradora do Projeto de Novo Código Penal instituída no Ministério da Justiça, na gestão do Maurício Corrêa. Todo Ministro da Justiça cria uma comissão para fazer o ‘seu’ Código Penal. Nos tornamos bons amigos. Almocei com ele algumas vezes no seu restaurante preferido no Rio, o restaurante do Hotel Ouro Verde, em Copacabana, ao lado de seu apartamento. Evandro para mim era como o vinho: quanto mais velho melhor. O seu espírito jovem, ainda dinâmico, embora já com mais de oitenta anos, é um exemplo de como pode ser possível resistir à velhice sem perder a juventude, a eloquência, o bom humor.

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Entrevista com Tarcísio Filho: “O mundo é muito grande para direcionar o barco para um só porto. O importante não é o chegar mas o caminhar.”

Um dinossauro assumido, Tarcísio Filho já foi prefeito municipal de Cataguases, MG, e procurador-chefe da PRMG por dois mandatos. Hoje, dedica-se ao trabalho em um dos ofícios criminais da capital mineira e diz contar em seu gabinete com dois dos melhores servidores do MPU.

Segundo ele, “administrar pressupõe gostar de gente. Ninguém pode realizar nada na administração se não consegue ouvir ou conversar com o próximo.” Apesar de sua experiência administrativa, e a despeito de continuar exercendo o magistério universitário, Tarcísio está hoje em sua fase monacal: “procuro fazer bem meu trabalho, mas não participando de nada mais”.

Sua experiência na administração pública, aliás, deu-lhe uma aguçada sensibilidade para os casos de defesa do patrimônio público. Segundo ele, nossa atuação nessa área deve ser cuidadosa, pois “muito do que fazemos aqui tem efeitos políticos evidentes e pode influenciar o próprio processo político, levando a instituição a ter um papel no jogo político que ela em princípio não pode ter.”

Entenda melhor esse corajoso posicionamento — e outros tantos — nessa nossa 34ª entrevista — na verdade um interessante ‘caminhar’ em direção a outras tantas descobertas de ontem, de hoje e de amanhã.

 

Antes de ser procurador da República, você foi prefeito municipal de Cataguases, MG. É uma trajetória inusitada, rara, no MPF. Sua experiência pretérita certamente o habilita a trabalhar com olhar clínico em casos de improbidade administrativa envolvendo prefeituras do interior do Estado. Que experiências traz daquela época? Você chegou a usar seus conhecimentos ‘do outro lado’ da trincheira?

Sim, fui prefeito de Cataguases entre 1993 e 1996, antes de assumir o cargo que por enquanto ainda exerço. Não acho que isso seja uma coisa inusitada e nem mesmo rara. Lembro-me, só para ficar num exemplo, que o douto subprocurador-geral João Batista, que durante muito tempo foi secretário-geral da instituição e um dos mais brilhantes Diretores da nossa ANPR, foi Prefeito de Queluz, no Estado de São Paulo.

Já pensei muito sobre essa experiência e tenho cada vez mais a percepção de que ela me dotou de algumas perspectivas que faltam aos colegas, muitos que só se preocupam em fazer a leitura literal das disposições que envolvem o atuar da Administração Pública. Não quero criar nenhuma polêmica aqui, mas não posso deixar de dizer, nesta perspectiva, que só uma compreensão dos limites da administração permite a construção de uma imputação suficientemente clara de um ato de improbidade ou de um ato ilícito.

Por tudo que experienciei, lá e cá, acho que devemos fazer uma leitura diária do inciso LVII do artigo 5º da Constituição, levando-o para além da esfera criminal. Sinceramente acho que ninguém, agente público algum, poderá ou poderia ser “considerado culpado até o trânsito em julgado” tanto da sentença penal condenatória, como também da própria ação que lhe impute ato de improbidade. Não podemos nos esquecer de que muito do que fazemos do lado de cá tem efeitos políticos evidentes e pode, no limite pior, influenciar o próprio processo político, levando a instituição a ter um papel no jogo político que ela não pode ter, em princípio, evidentemente, já que o correto Papel Político dela está em outra esfera.

É claro que no exercício profissional, qualquer que seja ele, ninguém pode deixar de ser o que foi. Assim, meu caro, já aproveitei muito de minha experiência, tanto de um modo como de outro. Agora, se isto é positivo ou negativo não sou capaz de avaliar.

Acho que vivemos um paradoxo hoje no país. Os prefeitos municipais que porventura busquem cumprir as leis geralmente são preteridos na indicação de convênios federais por meio de emendas parlamentares; e, como consequência disso, porque não levaram obras ou outras benfeitorias para a cidade, perdem o voto de seus eleitores. Acredita que a população em geral está preocupada com a corrupção com dinheiro público – ou o povo ‘quer ver obra’?

Boa pergunta. Há que se ter muito claro que o processo de destinação dos recursos públicos por meio de emendas pode funcionar de forma esperada ou pode dar causa a inúmeros tipos de ilícitos. Só para ficarmos em alguns exemplos, menciono aqui os recursos repassados pelo Ministério da Saúde e que foram objeto da publicamente conhecida “Operação Sanguessuga”. Lembro aqui das investigações que vocês em Governador Valadares fizeram e conduzem sobre a malversação dos recursos do Ministério do Turismo no bojo das “festas culturais” realizadas nos pequenos municípios e que, com certeza, aconteceram e acontecem em todo o país. Poderia citar outros exemplos, mas fiquemos nestes.

Alguém acha, pelo amor de Deus, que o processo de destinação de emendas vai ser alterado? Algum deputado vai propor mudanças num sistema que só existe para assegurar sua própria sobrevivência política. Veja bem: não estou dizendo Política, com ‘p’ maiúsculo. Ao contrário, o que se vê hoje é a implementação do chamado ‘orçamento vinculado’. De certo, aí, é que continuaremos a ter muito trabalho. Meu ponto, nisto, é que ficamos com todo o trabalho. Há ainda muitos colegas que entendem que a CGU deve continuar “sorteando” municípios pelo país e realizando o controle dos programas federais por esta “ponta”. O que não pensam é que o órgão foi estruturado para o desenvolvimento de ações de controle interno, que eram responsabilidade da finada Secretaria Federal de Controle Interno e que passou a atuar, na minha perspectiva, de um modo mais fácil. Afinal, pisar no rabo dos outros é muito mais fácil. Se se tivesse mantido o processo de controle interno eu não faria nenhuma consideração, mas acabaram com ele. E então…

Há uma outra observação necessária: o papel do administrador não se resume no ‘fazer’. Tão importante quanto fazer é impedir que se faça. Vou, neste ponto, lançar mão das observações do editor do jornal Uruguaio La Diaria sobre o período do governo Mujica naquele país: a realização de “balanços”, exige “separar esse balanço de outros cuja importância é inegável. Um seria um balanço global (…), outro seria o balanço do que o próprio Mujica fez ou deixou de fazer. Outro seria o balanço do que ele impediu que fosse feito ou deixou que fosse feito. Outro, ainda, seria o que ele desejou fazer e não pôde e, por último, há também o que ele pôde fazer, mas não quis fazê-lo”. Complicado, não?

Administrar, assim, é muito mais do que fazer e me parece que o próprio titular da soberania, no fundo no fundo, sabe disto muito bem. Voltando ao seu questionamento: a população, meu caro, na verdade quer, sim, “ver obra”, mas obra sem corrupção. Não tenho dúvida de que ela pensa assim. Em razão disso a nossa responsabilidade na condução de nossos procedimentos aumenta. No final de tudo, tenho a percepção de que ela aprende votando, aprende participando do próprio processo democrático, e estaria apta a assumir seu próprio papel político: controlar, através do próprio processo popular, o agir administrativo dos agentes políticos. Afinal, é ou não é ela o destinatário final de tudo o que fazemos e do que os próprios políticos pretendem fazer?

A esse propósito, você tem opinião formada sobre a regra de vedação de doações de pessoas jurídica às campanhas eleitorais? E sobre o financiamento público de campanha?

Não tenho opinião formada sobre a doação de pessoas jurídicas nos processos eleitorais. Aliás, acho que este é um falso problema. Em minha opinião, o que é fundamental, neste processo, é transparência ou, como queiram, a luz do sol incidindo sobre tudo. O eleitor precisa saber quem financia ou destina recursos para quem. Só assim o processo político poderia se desenvolver de modo isento, sem influências negativas; e só assim as escolhas seriam mais adequadamente conduzidas. No final, aqui também, trata-se de aprendizagem. Agora, no outro ponto, sinceramente, sou forçado a ser contra o financiamento público por uma razão muito simples: o financiamento privado vai continuar existindo. Alguém, sinceramente, acha que os interesses privados vão se afastar do processo político? Vão largar o osso? Sinceramente prefiro acreditar no coelhinho da páscoa.

Da última vez que a gente conversou você disse que seu gabinete não necessita de projeto de dinamização, pois já é dinâmico. Isso porque, na sua opinião, você tem dois dos melhores servidores do MPU. É um privilégio poder falar assim da equipe com a qual trabalhamos. Eu também tenho comigo três dos melhores servidores do MPU. No seu caso, eles estão com você hoje por conta do seu ‘olhar clínico’ para selecioná-los, por conta da formação que você deu a eles ou pela sua própria antiguidade?

Tenho tido muita sorte com aqueles que me auxiliam. Não só aqui, mas na política também foi assim. Procuro transformar o ambiente em que desenvolvo minhas atividades em um ambiente tranquilo, adequado para que tudo se dê como se deve. Acho que você também deve ser assim, pois já o ouvi falando de Josémaria Escrivá. Tento, com isto, formar uma relação produtiva com aqueles que me rodeiam, e sei que com isto eu acabo aprendendo e me aperfeiçoando mais do que eles. E é isto o que pretendo fazer sempre: aprender. Sinceramente, Bruno, quem me conhece de fato sabe disto: minha melhor característica pessoal é ter a certeza de que ninguém sabe ou pode saber tudo, dominar tudo em qualquer ramo do conhecimento, muito menos no âmbito da convivência pessoal. Não sei nada e estou sempre disposto a aprender, a conversar e a construir, de modo conjunto, o que for preciso para melhorar nossos ambientes. Talvez nisto esteja a resposta para o que acontece com meu gabinete.

Agora, não sei dizer se minha equipe atual foi resultado de escolhas pela antiguidade ou pelo meu olhar clínico. Só tenho certeza de que aprendo sempre com os dois, Toninho e o Sérgio, como aprendi com os outros que trabalharam comigo.

A perspectiva de ir para a Procuradoria Regional da República não o atrai?

Sim, atrai muito. Desde que seja para a Segunda Região. O problema que me impede de seguir caminho e abrir espaço para os colegas que ainda pretendem chegar a BH é de natureza familiar. Ninguém lá em casa quer mudar. E sozinho, meu caro, não vou a lugar nenhum. Isto significa que a Flavinha vai continuar ainda por muito tempo no Mato Grosso.

O pouco que convivemos me deu uma sensação de que você não é adepto das etiquetas contemporâneas. Um amigo meu diria que você ‘não usa creme hidratante e não faz questão de ser educado com todos, não fala manso, nem leva desaforo para casa’. Entre os homens, é um perfil em franca extinção, concorda?

Concordo. Me sinto um dinossauro. Fazer o quê? Prefiro não ter nenhum amigo aqui dentro do que deixar de ser franco. A hipocrisia que vejo é algo que não consigo aceitar nem muito menos levar para casa. Até porque, meu caro, ela não leva a lugar nenhum, nem pode fazer do hipócrita o que ele pretende ser. Tenho me afastado muito do dia a dia da Procuradoria, procurando fazer bem meu trabalho, mas não participando de nada mais. Veja que na última vez em que tentei voltar não consegui nem mesmo os votos suficientes para ser Coordenador de Estágio da PRMG. Aliás, você votou em quem?

Rapaz. Não me lembro…

Pois é. Acho que vou continuar enterrado. Minha expectativa, aí, é de que as coisas, mesmo com meu pessimismo, acabem acontecendo e possamos prestar à sociedade o serviço de que ela precisa.

O que o diverte no trabalho e fora dele?

No trabalho gosto dos desafios. Fora do trabalho, de tudo o que me permita aprender.

Você foi procurador-chefe da PRMG por dois mandatos. Quais são as maiores dificuldades do exercício dessa função administrativa e quais as maiores delícias?

As delícias estão nos contatos pessoais com todo mundo. Sempre entendi que administrar pressupõe gostar de gente. Ninguém pode realizar nada na administração se não consegue ouvir ou conversar com o próximo. Muita gente acha que pode administrar numa torre de marfim; e o resultado, neste caso, como temos visto, é o desgaste das relações pessoais, sejam elas profissionais — o que atinge até o andamento do serviço –, seja as de amizade, que deixam de existir.

As dificuldades, meu caro, já mencionei: estão nas hipocrisias dos que pensam poder ser o que não são, vendendo uma imagem pessoal longe daquilo que na verdade são.

Você é professor universitário. Que disciplinas você leciona e o que tem tratado de modo especial com seus alunos?

Tenho lecionado Introdução à Economia, Direito Administrativo e Direito Ambiental. Me sinto confortável em qualquer disciplina do direito público mas não costumo negar desafios. Acho, sinceramente, que nestas ocasiões temos uma grande oportunidade de aprender. Em sala de aula — comigo pelo menos é assim –, eu nunca ensinei mais do que aprendi. E é exatamente por isto que continuo lecionando.

Como assim, Tarcísio? Eu sempre escuto isso de ‘aprendo muito com meus alunos’. Mas não deveria ser, essencialmente, o contrário? Eu sei que nunca deixamos de aprender com tudo e com todos. Mas um aluno que aprendeu menos com o professor do que o professor aprendeu com ele não ‘ficou no prejuízo’?

Claro que não! Os professores, todos, aprendemos sempre com os alunos! Até porque a docência tem uma inevitável relação dialógica com a discência. Veja que um questionamento qualquer de um aluno pode levar a novas perspectivas teóricas. Pelo menos tem sido esta minha experiência. E é por isto que gosto cada vez mais de lecionar. Permita-me lembrar um epigrama da Cecília Meireles — é o de n. 10 do livro ‘Viagem’ –, que termina com estes três belíssimos versos: “sem levar dessa trajetória / nem esse prêmio de perfume / que as flores concedem ao vento”. É assim na vida que temos. É assim na relação com os alunos.

Uma última pergunta: se sua vida fosse uma embarcação em pleno mar, em que direção você considera estar indo hoje?

Muitos colegas gostariam de me ver respondendo a esta questão dizendo que a embarcação está indo para o fundo do mar. Mas a verdade é que este mundo é muito grande para direcionar o barco para um só porto. Acho que o importante não é o chegar mas o caminhar.

 

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Entrevista com Wesley Alves: “Uma bela música recompõe nossa ordem interna e nos ajuda a suportar os ‘pesos da vida’.”

Depois de ter trabalhado no gabinete do Min. Dias Toffoli, no Supremo Tribunal Federal, Wesley Alves, procurador da República em Franca, SP, decidiu tentar o concurso do Ministério Público Federal — cuja carreira, uma vez aprovado, iniciou em Rondônia.

Segundo compreende, “ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas otimista com a promessa da redenção divina” o impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sua concepção do papel profissional do cristão pressupõe que não utilizemos nossas posições sociais como meio de transformar nosso Estado em uma teocracia, mas, sim, devemos, como José e Daniel, seguir nossa vocação “com excelência e diligência, obtendo o respeito das pessoas e melhorando a vida daqueles sobre os quais exercemos autoridade”.

Crítico do pensamento progressista de esquerda, diz que ele “conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos”. Segundo Wesley, essa tentativa falhou; como consequência, “a sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado”.

Uma entrevista instrutiva com um colega que está trilhando, consciente das dificuldades que certamente virão e pronto a enfrentá-las, o caminho de sua formação intelectual — dinâmica a ponto de abranger na unidade de sua consciência as lições metodológicas de A.-D. Sertillanges e as modas de viola de Tião Carreiro: eis o nosso 33º encontro, com um bandeirante mineiro em terras paulistas.

 

Como está o trabalho na PRM de Franca, Wesley?

Bem, nos dez meses em que estou na PRM de Franca já pude conhecer bem a ‘casa’ e a cidade, dar continuidade ao trabalho desenvolvido pela colega anterior e promover algumas ações relevantes. Antes de vir para o Estado de São Paulo, estive na Procuradoria da República em Rondônia, minha primeira lotação, onde exerci um ofício com atribuição nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Aqui em Franca, ao lado de nossa colega Daniela Poppi, exerço todas as atribuições inerentes à atividade-fim do MPF. Ampliar o campo de atuação, especialmente neste início de carreira, tem-me sido muito importante, principalmente por colocar em prova minhas virtudes e limitações. Estou bastante entusiasmado e creio que o MPF em Franca tem muito a contribuir para a melhoria das condições de vida da população local.

Você foi analista judiciário do STF por quatro anos antes de ingressar no MPF. O que você fazia lá?

Durante dois anos, permaneci lotado na Central de Atendimento do Cidadão, setor para onde são dirigidas todas as postulações feitas ao STF e em que lhes é conferido o primeiro tratamento. Depois integrei o gabinete do Ministro Dias Toffoli, onde eu e mais quatro colegas éramos responsáveis pelos recursos extraordinários e agravos de instrumento cíveis distribuídos ao gabinete, exceto os que envolviam matéria tributária. Trabalhar na mais alta corte do Brasil, conviver com ministros, lidar com processos de grande relevância para o país foi para mim muito gratificante e contribuiu decisivamente para meu amadurecimento pessoal e profissional. No entanto, chegou um momento no qual concluí que eu não deveria passar o restante de minha vida exercendo esse trabalho e que eu deveria atender ao chamado para me tornar membro do MPF.

E eis aqui você. Mas, mudando de assunto: a música caipira que você escuta — Renato Teixeira, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro — sobrevive apesar de todos os modismos culturais e mercadológicos contemporâneos. O número de brasileiros que não têm acesso à televisão diminui a cada dia. A cultura popular de raiz, porém, não desaparece. Você acha que a música brasileira está em crise? Ou essa impressão vem apenas de uma exagerada exposição que a mídia faz de artistas desqualificados e de pessoas insossas que buscam apenas divertir e entreter o público?

Lamentavelmente, não posso dizer que a percepção de que a arte e a cultura brasileiras estão em crise é equivocada. Essa crise se deve, essencialmente, ao processo de deseducação a que somos, todos nós brasileiros, submetidos. Nascemos já com um intuito natural de beleza, simetria, ordem, proporção, harmonia; tudo isso está enraizado em nossa natureza. Um bolo que fica torto, disforme, por exemplo, pouco nos apetece, independentemente de ele ter ficado saboroso. Esse senso pode ser estimulado e desenvolvido ou, então, tolhido. Infelizmente, os educadores de hoje ‘ensinam’ às crianças que tudo é relativo e que elas não podem ter certeza sobre nada; que determinada obra ou música não podem ser consideradas bonitas ou feias, porque esse tipo de julgamento depende da perspectiva pela qual elas são observadas e da particular visão de mundo que o autor quis expressar por meio delas. E sem um mínimo senso de ordem e beleza, temos dificuldade de distinguir Machado de Assis de Paulo Coelho, um funk de uma canção de Bach, um ‘sertanejo universitário’ de uma moda de viola de Tião Carreiro. Aprecio vários estilos musicais e, por influência de meus pais e avós, tenho um gosto especial pela música caipira. Uma bela música recompõe nossa ordem interna e nos ajuda a suportar os ‘pesos da vida’. Sou um homem da cidade, mas tenho o campo como uma espécie de refúgio. A música caipira me proporciona paz, liberdade e me faz experimentar a simplicidade que a vida no campo oferece. Suprir as deficiências que há em minha formação cultural e estética é um dos objetivos que tenho para os próximos anos.

Da última vez que conversamos você disse que se considera ‘pessimista quanto ao futuro da humanidade e por outro lado otimista com a promessa da redenção divina, por meio de Jesus Cristo’. Como essa visão de mundo influencia o seu relacionamento com as pessoas e o seu modo de trabalhar na Procuradoria da República?

Como cristão, creio que somente um homem que tem destruídas suas esperanças a respeito de seus próprios méritos, valores e justiça pessoal pode reconhecer o mérito e a necessidade da morte de Jesus Cristo para nossa salvação. O reconhecimento dessa condição deve nos tornar humildes e pacientes, de modo que tomar conhecimento das falhas das demais pessoas, com quem compartilhamos das mesmas debilidades, deve ser uma oportunidade de confessar nossos próprios pecados e misérias a Deus. É nesse sentido que posso afirmar que aquela convicção — ser pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas também otimista com a promessa da redenção divina — me impele a ser mais humilde e paciente com as pessoas. Sei que tropecei em uma contradição. A humildade é um sentimento extremamente perigoso! Ninguém é capaz de vê-la no espelho sem perdê-la imediatamente. No entanto, embora incapaz de ‘ser’ genuinamente humilde, o homem é capacitado por Deus a ‘agir concretamente’ de forma humilde e a ter paciência. Como ensina o professor Olavo de Carvalho, a verdadeira humildade se alimenta da grandeza de Deus, e por isso é a única grandeza do homem capaz de frear seu orgulho, sem sufocar sua grandeza.

Sãos essas mesmas qualidades, a humildade e a paciência, que procuro cultivar no exercício do cargo de procurador da República. Exerço minha profissão para a glória de Deus e tenho certeza que em tudo ele me auxilia. Mas não justifico minha vocação profissional por aquilo que a torna espiritual. Certa vez um sapateiro perguntou a Lutero o que ele deveria fazer agora que conhecia o Evangelho. O clérigo lhe disse para fazer bons sapatos e os vender a preços justos. Como qualquer atividade secular, a atividade pública não é atividade evangelística, mas o desenvolvimento das atividades terrenas também foi uma missão confiada aos homens. É um trabalho secular, porém, ordenado e mandado por Deus. José e Daniel, personagens do velho testamento, são bons exemplos de ‘cristãos’ no exercício de atividade públicas. Eles não procuraram tornar seus cargos em meios de transformar seus reinos em teocracias, como foi Israel. Simplesmente seguiram sua vocação com excelência e diligência, obtendo o respeito dos regentes estrangeiros e melhorando a vida daqueles sobre os quais exerciam autoridade. Quando tomavam decisões no tribunal, José e Daniel tinham de basear seus julgamentos nas leis egípcias e babilônicas, e não na lei hebraica, embora jamais tenham endossado algo que violasse suas próprias relações com Deus. Portanto, o artista cristão não necessita justificar sua vocação por aquilo que a torna evangelística, pois ela deve simplesmente entreter e expressar excelência artística. Do mesmo modo, um juiz cristão não deve proferir sentenças cristãs. As formas especificamente cristãs de culto, de educação e de piedade devem ser ministradas no lar e na igreja.

Em que sentido você diz que o Estado pós-moderno, que tudo cuida e em tudo está presente, é o maior responsável pelos problemas da humanidade?

A miséria, tal como a gravidade, nos arrasta para a profundeza das águas assim que paramos de nos movimentar, tão logo deixamos de ser empreendedores e de produzir os bens de que necessitamos para sobreviver. Não vivemos em um mundo de abundância natural. Esse fato, apesar de óbvio para quem tem bom senso, foi ignorado pelo pensamento progressista de esquerda, que conseguiu inculcar nas pessoas uma visão de mundo infantil e fazê-las crer que determinada forma de ação política poderia resolver os problemas da humanidade, proporcionando paz, alegria e prosperidade a todos. Isso seria garantido pela instituição de um Estado socialista ou de bem-estar social, os quais assumiriam a responsabilidade de suprir as necessidades humanas mais básicas e de tornar os homens mais felizes.

Não bastasse o amplo fracasso desses projetos, que em alguns lugares causou a morte de milhões de pessoas e em todos disseminou a corrupção, a consagração de benefícios materiais em direitos que devem ser atendidos a todo custo demandou a formação de Estados gigantescos e poderosos e destituiu das pessoas os valores morais mais básicos de convivência humana, como por exemplo os sentimentos de gratidão e de responsabilidade. A sociedade civil e seus diversos núcleos foram substituídos pelos departamentos de Estado; a família foi suplantada pelo ensino oficial; a necessidade de trabalhar e de empreender foi substituída pela confiança no auxílio estatal; a noção de dever cedeu espaço aos direitos universais; a vida inteira foi politizada e partidarizada. O Estado cresceu e nós diminuímos. E não houve contrapartida, porque aquelas promessas de prosperidade jamais foram cumpridas pelo Estado, digo, pelas ‘pessoas de bem’ responsáveis por guiar a humanidade.

Quando se pensa na estratégia do filósofo e agitador cultural italiano Antonio Gramsci, penso ser possível dividir as pessoas em três grupos: os que seguem à risca a sua cartilha em busca de promover a chamada ‘revolução cultural’, saibam ou não de sua origem e propósitos, aqueles que buscam, mais ou menos perplexos, defender-se de seus efeitos; e, por fim, um terceiro grupo, da imensa maioria das pessoas, que carregam o seu piano diário, trabalham, alheias à agitação que se faz em nome das transformações sociais que o italiano imaginou. Parece-me que é a esse terceiro grupo, majoritariamente, que a pensadora brasileira Marilena Chauí disse odiar com todas as suas forças (“eu odeio a classe média”). Fico pensando que, descontada sua histérica manifestação de ódio, a tese de fundo dela faz sentido: o povo começa a ganhar dinheiro como fruto de seu trabalho e não quer mais saber de fazer a revolução. Até o fim dos tempos, porém, muita gente boa se perde e se perderá na defesa de bandeiras tortas e sem futuro. Já que você gosta de música caipira, lembro-me do verso mais triste da música brasileira: “Meus irmãos perderam-se na vida à custa de aventuras”. Essas aventuras, parece, têm sido a perdição de muitos… Como você vê essa questão?

Você traçou com precisão o atual quadro social brasileiro. Foram as ideias desse ideólogo comunista que promoveram o adestramento mental das pessoas que hoje, envelhecidas mas imaturas, comandam o Brasil e despejam sobre ele todo o azedume de seu ressentimento, inoculando nos jovens a mentira de que nascemos todos bons e lindos, mas ‘o sistema’ nos tornou feios e está usurpando nosso direito político à felicidade. Desorientados, ressentidos e livres de qualquer responsabilidade por suas escolhas individuais, os ‘teleguiados’ despejam sobre tudo e todos a culpa de suas frustrações e se lançam na aventura de mudar o mundo, de acabar com os conflitos no Oriente Médio e com a fome na África. Mas nem sempre seus objetivos são tão grandiosos: eles também vão aos shoppings fazer ‘rolezinhos’ e exigir o direito constitucional de comprar um iPhone. Por trás dessas causas e discursos que negam a realidade estão a incompetência para a vida e a recusa de aceitar a si mesmo. E os agentes da revolução cultural, fiéis à cartilha gramsciana, souberam muito bem explorar essa ‘oportunidade histórica’. Tédio, sensação de vazio, vaidade, ressentimento e tutti quanti são sentimentos humanos aos quais todos estamos sujeitos. Não ceder a eles exige maturidade. Para sermos homens, no sentido mais profundo da palavra, devemos aprender a não dar espaço a esses vícios, não no sentido de ignorá-los ou negar sua influência, mas sim reconhecer que estamos sujeitos a eles, compreendê-los e fazer com que nossos bons impulsos se sobressaiam.

Ao abordar seu plano de estudos, você diz tê-lo iniciado a partir da perplexidade que lhe tomou diante da complexidade da realidade. O que você quer dizer quando fala que ‘a realidade é muito mais complexa do que parece’?

Quando eu lhe disse isso, e não faz muito tempo, falei sobre o que não sabia e apenas expressei minha ignorância. Não sei se a realidade é mais complexa do que parece ou se nós é que somos incapazes de apreender seus aspectos mais essenciais. Não tenho ainda competência para fazer esse julgamento e não posso transferir minha inaptidão de conhecer as coisas a elas próprias. Mas há algo sobre o qual nosso ‘bom senso’ não se engana: o fato de que as pessoas nascem, crescem, comem, se reproduzem, se amam ou se odeiam e depois morrem. Em torno disso orbitam nossas preocupações e perplexidades. E isso foi observado por um sábio há mais de três mil anos, conforme está em Eclesiastes 1:4-9.

→ Você reconhece que há em sua formação uma grande lacuna no campo cultural e moral. Em que consiste essa lacuna e o que tem feito para tentar saná-la?

Embora nunca as tenha ignorado completamente, cultura, arte e espiritualidade sempre foram por mim colocadas em segundo plano, como questões às quais eu deveria dedicar atenção somente quando houvesse tempo sobrando ou depois que eu houvesse alcançado meu objetivo profissional. Logo que fui aprovado no concurso de procurador da República e antes de assumir o cargo, senti-me então autorizado a compatibilizar o estudo do direito com o de filosofia, ciência política, religião e arte. Comecei então a assistir a aulas do Seminário de Filosofia do professor Olavo de Carvalho, adquiri dezenas de livros sobre esses assuntos, mergulhei-me de corpo inteiro nesse empreendimento. Durante aproximadamente dez meses li mais sobre ciência política e filosofia do que o havia feito em dez anos. Até então, e a aprovação no difícil concurso para o cargo de procurador da República reforçou isto, sentia-me satisfeito comigo mesmo e o impulso inicial para ampliar meus conhecimentos estava voltado a confirmar ou reafirmar minhas ‘opiniões’. Não demorou e muito perdi o senso de orientação diante do turbilhão de novidades com que eu me deparava e por perceber como eram superficiais muitas de minhas convicções. Essa chacoalhada aumentou minha curiosidade e me ensinou que é preciso ter paciência e disciplina para prosseguir com um projeto de (re)educação, que deverá durar a vida inteira.

Se eu entendi bem você começou um plano de estudos há cerca de um ou dois anos. Tem tido dificuldade em começar, em assimilar os autores desconhecidos? Que livros, orientações ou mesmo inquietações, você pode repassar a quem queira começar uma vida de estudos séria?

O professor Olavo de Carvalho diz que somente aprendemos determinada coisa quando esquecemos que a aprendemos, ou seja, quando esse conhecimento nos altera e passa a fazer parte do nosso próprio ser. Somente me lembro daquilo que eu sou, disse o francês Jean Filloux. Por isso, transmito a essencial recomendação do professor Olavo de que devemos iniciar nossos estudos a partir daquilo que consideramos realmente importante em nossas vidas e que de alguma forma nos modificará, pois somente assim trataremos o problema com seriedade e responsabilidade. Depois de compreender e aceitar essa orientação, convencido de que não conseguiria ‘abraçar o mundo’ de uma só vez, dediquei-me a estudar a cosmovisão cristã e o pensamento conservador. A quem ainda, como eu, pouco sabe a respeito do conservadorismo, sugiro a leitura de ‘A Política da Prudência’, do norte-americano Russell Kirk, ‘A Vida Na Sarjeta’, de Theodore Dalrymple, e o livro que estou terminando de ler ‘Nossa Cultura…ou o que Restou Dela’, deste mesmo autor. No que diz respeito à cosmovisão cristã, recomendo ‘O cristianismo puro e simples’, de C. S. Lewis, ‘Cristo e Cultura: Uma Releitura’, de D. A. Carson, ‘Dando nome ao elefante’, de James W. Sire, e o livro mais atual de todos, a Bíblia, porque trata do Deus eterno e quando fala do homem se reporta ao que ele tem de permanente. E aconselho aos que me leem a não demorar o quanto demorei: leiam logo ‘A vida intelectual’, de Antonin Sertillanges.

 

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“Precisamos ter a humildade de reconhecer que, nos casos mais complexos, o Direito sozinho não nos dá todas as respostas.” Veja nossa entrevista com Eliana Torelly.

Depois de concluir, nos EUA, o mestrado sobre proteção de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, Eliana já foi coordenadora do GT Comunidades Tradicionais, da 6ª CCR. Lá pôde, juntamente com outros colegas, atuar em diversos casos e refletir sobre a necessidade de criação de um sistema diferenciado de proteção desses conhecimentos. Segundo sua própria experiência, “a atuação na 6ª CCR desperta novos olhares naqueles que são encantados com o tema”.

Vegetariana por opção filosófica, Eliana vez por outra faz incursões no atletismo: ano retrasado participou da meia-maratona de Orlando, na Flórida. Mas, a seus próprios olhos, nada define melhor sua essência do que o “pertencimento à Igreja de Cristo”, onde se sente feliz por se colocar a serviço. Católica, atua como catequista de crianças e trabalha junto com o marido em encontros de casais e de jovens.

A santidade, para Eliana, é uma via aberta a todos e a cada um dos cristãos. Através da reflexão sobre as leituras que tem feito de vidas dos santos, descobriu que a “espiritualidade cristã assume diferentes formas. Não existe uma receita única para a santidade. É um caminho que trilhamos no curso de nossas vidas.”

Acompanhe nosso descontraído e interessante 32º dedo de prosa, com a procuradora regional Eliana Torelly.

 

A sua origem familiar é um retrato bem rico da formação brasileira. Você é brasiliense e seu pai, carioca, é filho de mãe carioca de origem suíça e pai gaúcho de origem italiana; sua mãe é amazonense, filha de mãe amazonense de origem portuguesa e pai pernambucano, filho de espanhóis. Para coroar, você se casou com um baiano. Fico imaginando que deva ser um alívio ter uma palavra que explique sua condição em meio a tantas origens diversas – e essa palavra é ‘brasileira’. O que é, para você Eliana, ser brasileira apesar de tantas influências?

Lembra da música do Chico: “O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, O meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano”? Então, sou “Antônia Brasileira”! Na verdade tenho orgulho da minha história, tão diversificada e tão única. O fato de ter nascido em Brasília, no centro do país, fortalece esse sentimento de unidade na diversidade. Já houve tempos em que achei que não pertencia a lugar nenhum, mas agora é diferente: sou uma brasiliense que traz em si uma síntese do Brasil.

Você fez mestrado nos Estados Unidos, escreveu sobre a proteção de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e trabalhou como representante do MPF no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, órgão que autoriza o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais. Em que consistia o seu trabalho e o que de mais interessante você vivenciou durante esse período?

O tema que escolhi para pesquisar ainda é pouco conhecido. Tratei da necessidade de adoção de um sistema diferenciado de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que muitas vezes são objeto de apropriação indevida em face da ausência de proteção jurídica em nível internacional. Aqui no MPF temos um grupo pequeno de colegas interessados no assunto, mas que são verdadeiros apaixonados pelo tema: Maria Luiza Grabner, Sandra Kishi, Anselmo Cordeiro, Wilson Rocha e Antônio Dalóia, com apoio da nossa querida Deborah Duprat. Juntos temos tido oportunidade de atuar na defesa de comunidades tradicionais e indígenas contra a exploração indevida de seus conhecimentos tradicionais, o que tem sido uma experiência enriquecedora.

Duas causas em que atuei me marcaram profundamente: um litígio entre quebradeiras de babaçu no Maranhão e uma grande empresa do ramo cosmético e outro entre os índios Ashaninkas do Acre e um pesquisador que se apropriou dos saberes desse povo e repassou para empresas, também do ramo cosmético. Atuar nesses feitos é muito mais do que um trabalho: é uma vivência que muda profundamente sua maneira de enxergar o mundo, pois te desperta para culturas e realidades muito diferentes. Foi uma feliz coincidência fazer mestrado sobre o tema e poder trabalhar diretamente com o assunto, como poucas pessoas no Brasil e no mundo.

Você tem atuação na 6ª CCR há algum tempo. O Direito Penal tem sido invocado para tratar de uma grave questão: o chamado infanticídio indígena, que vitima recém-nascidos que na visão de determinadas comunidades não devem continuar vivendo. De um lado, busca-se a punição ora dos índios que o cometem ou dos agentes públicos que o acobertam; de outro, por vezes, busca-se a persecução penal de agentes públicos ou de voluntários que conseguem poupar a vida de um recém-nascido. Você vê alguma saída para grande problema jurídico e sociológico?

A atuação na 6ª CCR, conforme disse na resposta anterior, desperta novos olhares naqueles que são encantados com o tema. Penso que a questão pode ser tratada de diferentes modos, mas nenhum deles passa pelo direito penal! Estamos falando de culturas e visões de mundo distintas, não há que se falar aqui em punição, certo e errado e outros simplificações. É claro que o direito à vida é o direito humano por excelência, a ser defendido em todas as circunstâncias. Mas acredito que há como chegar a um bom termo sem que se tenha que criminalizar condutas que nada mais são do que respostas culturais a necessidade de sobrevivência. À medida em que essas populações tiverem seus direitos básicos garantidos, especialmente a proteção de seus territórios e atenção à saúde, penso que essas práticas serão abandonadas, como já ocorre atualmente. Esse é um tema sensível, no qual precisamos ter a humildade de reconhecer que só o Direito não nos dá todas as respostas, mas temos que nos socorrer de outras ciências, especialmente a antropologia.

Na última vez que conversamos, você disse que tem um interesse especial pela Segunda Guerra Mundial e que, por exemplo, já leu quase todos os livros do Antony Beevor sobre o assunto. Como começou esse seu interesse? Você, católica, consegue ver algum significado espiritual nesse conflito desde seus preâmbulos até seu efetivo desfecho?

Me impressionou muito a fala do Papa Bento XVI quando visitou Auschwitz: “Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto?”. É muito difícil compreender os horrores da guerra e do sofrimento humano, mas há lições a serem aprendidas. Na mesma oportunidade Bento XVI disse que o passado não é apenas passado, mas ele nos indica os caminhos que devemos ou não percorrer. Certas coisas nunca devem ser esquecidas.

Seus planos de viagem já chegaram à Ásia, continente que costuma ficar de fora do planejamento até mesmo dos turistas mais experientes. Há algum lugar ou cidade em que você sempre volta nas suas viagens?

Amo viajar e isso é algo que passei para os meus filhos. Estamos sempre planejando a próxima viagem. Estive no Japão no começo do ano e fiquei encantada com o povo, a cultura, as paisagens, os templos, cada pedacinho daquele país tão peculiar. Mas, e sendo bem clichê, é sempre bom dar uma passadinha em Paris para treinar o francês, rever algum daqueles museus maravilhosos e ir à missa na Capela da Medalha Milagrosa, que considero um lugar muito especial!

Ser católico hoje é em algum sentido o mesmo que ser católico nos primeiros séculos da Igreja, na Idade Média ou no Renascimento. Mas em outro sentido acredito que há lá suas diferenças. Que desafios o mundo contemporâneo traz para o cristão? Acredita que em geral os cristãos têm conseguido se orientar suficientemente no meio do mundo?

A Igreja Católica, a barca de Pedro, vai navegando através dos séculos enfrentando tempestades e calmarias, mas segue seu itinerário rumo ao Pai. Essa noção de que tantos outros já navegaram os mesmos mares é muito reconfortante para o católico de hoje, pois ao contrário do que pensamos, há pouca novidade debaixo do céu! Os cristãos ainda hoje enfrentam um desafio que se repete através dos séculos: o martírio e a perseguição, que atualmente assolam as comunidades cristãs do oriente médio, especialmente no Iraque com o surgimento do grupo Estado Islâmico. Nós aqui no ocidente, por outro lado, temos que achar sentido para o cristianismo num mundo extremamente secularizado, no qual muitas vezes somos tidos como tolos e ridicularizados por causa da fé. Mas isso não nos desanima, apenas confirma tudo o que Jesus nos disse que aconteceria.

Leitora de hagiografias, há algum santo ou santa que tenha a sua devoção? Vou repetir a você a pergunta que o Rodrigo Prado faz a mim há algumas semanas: quem é o santo, Eliana?

Desde criança tenho uma devoção particular por Santo Antônio de Pádua, sabia de cor as orações para pedir a intercessão desse franciscano tão querido. Rezava para ele quando tinha provas, quando perdia um objeto ou quando alguém da família ficava doente. São lembranças muito doces. Depois que passei a me interessar pela vida de outros santos fui percebendo que a espiritualidade cristã assume diferentes formas e que não existe uma receita única para a santidade. Seja pela pobreza franciscana, o pequeno caminho de Santa Terezinha, o monaquismo de São Bento, a mística de São João da Cruz e outros tantos! A santidade não é algo estanque, é o caminho que trilhamos no curso de nossas vidas.

Que poesia ou música melhor representa um traço que você hoje acredita ser importante na sua personalidade?

Há uma estrofe do poema “Mãos Dadas” do Drummond que foi meu mote por um período da minha vida em que eu precisava aprender a não remoer o passado e não me preocupar com o futuro: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Até hoje essa frase é importante para mim. Fiquei feliz de ver que você, Bruno, cita outra estrofe do mesmo poema na apresentação deste blog de entrevistas. Legal a sintonia!

 

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Entrevista com Daniel Azeredo: “A população produz seus políticos e ao mesmo tempo vive um processo de antagonismo intenso em relação a eles.”

Mineiro radicado no Pará, Daniel Azeredo é o idealizador de dois projetos que em poucos anos conseguiram reduzir o desmatamento na Amazônia brasileira em mais de 50%. Um trabalho assim tão grandioso não se faz sozinho, nem se conclui da noite para o dia; também não se faz sem uma grande capacidade de resistência: diante das pressões e até ameaças, Daniel lembra: “tivemos de administrar todo o conflito através do diálogo, da conquista da opinião pública para o trabalho do MPF, da abertura para a discussão técnica dos modelos que apresentávamos e da certeza de que não poderíamos esmorecer.”

Ao falar da corrupção como hábito nacional, Daniel imagina que haja como que uma relação de competição entre sociedade e governo, “em que o cidadão luta para perder o mínimo possível para o Estado e ganhar o máximo, ainda que através da corrupção.”

Já há nove anos longe de Belo Horizonte, relembra dos bons momentos que passou na cidade — do Parque das Mangabeiras, do Mineirão, do caminho para a escola; e reconhece que depois desse exílio voluntário passou, ‘com um amor de visitante’, a gostar da cidade, “do jeito das pessoas e de tudo que temos”.

Leitor atento de Machado de Assis e de Fernando Sabino, Daniel imagina que a vida presente e o homem presente constituiriam, estivessem eles vivos, matéria suficientemente rica para a sua imaginação e escrita. Estamos inteiramente de acordo sobre esse ponto, aliás. Que apareçam, pois, novos machados nas desoladas terras de nossa atual literatura nacional.

Acompanhe nosso 31º dedo de prosa, em mineirês castiço.

A atuação do Ministério Público Federal que se tornou conhecida como “Carne Legal”, juntamente com o projeto “Municípios Verdes”, conseguiu reduzir o desmatamento na Amazônia em mais de 50%. Você é conhecido como seu idealizador. Como surgiu a concepção desse programa?

Os projetos “Carne Legal” e “Municípios Verdes” surgiram, antes de tudo, pela sensação de que a nossa atuação tradicional possuía pouco ou nenhum efeito na proteção da floresta. Apesar de, diariamente, processarmos e obtermos condenações penais de desmatadores ou mesmo ações civis públicas de reparação ambiental nada era recuperado e a devastação da vegetação se mantinha em níveis alarmantes.

Esse sentimento de que nosso trabalho pouco rendia fez com começássemos a aprofundar o conhecimento da realidade social e econômica da região. Fomos entender melhor os personagens desse jogo complexo e pelo menos iniciar a compreensão sobre perguntas fundamentais, dentre inúmeras outras, como: (a) quem desmata? (b) por que desmata? (c) o que ganha quem desmata? (d) quem mais ganha com o desmatamento? (e) como se desmata? (f) como se escolhe a área a ser desmatada? (g) por que o desmatador não tem medo da punição? (h) para que se desmata? (i) qual a destinação final da área desmatada?

A partir desse estudo inicial conseguimos vislumbrar uma grande organização econômica, formada na Amazônia, de empresas regulares e formais que, ao se abastecerem de matéria-prima da floresta, fomentam e alimentam não somente o desmatamento ilegal, bem como uma série de lesões a direitos fundamentais das populações tradicionais, indígenas e mesmo de trabalhadores comuns que raramente têm os direitos trabalhistas respeitados.

Realizamos uma investigação que durou mais de um ano para documentar, de maneira detalhada, as relações econômicas da região, desde a origem do boi na área desmatada –focamos no gado por ser ele o principal vetor de desmatamento, mas, posteriormente, atuamos com a mesma metodologia nos grãos, instituições financeiras e outros — até um banco de couro de um automóvel, ou um tênis de uma marca líder mundial ou mesmo a carne em um grande centro no país ou no exterior.

A partir daí realizamos um estudo jurídico sobre a responsabilidade solidária civil, em matéria ambiental, de todos esses atores — qual o limite da responsabilidade, por exemplo, de uma montadora de carros em Minas Gerais sobre o desmatamento realizado na Amazônia — e iniciamos os processos de construção da solução. Digo solução porque não foi o nosso foco primeiro a punição dos responsáveis, mas sim a construção de um novo paradigma de produção que tivesse o respeito ao meio ambiente como um de seus valores fundamentais.

Tínhamos no nosso trabalho a identificação de mais de trezentas mil propriedades rurais somente no Estado do Pará que precisariam ser regularizadas e, na outra ponta, mais de noventa mil lojas de supermercados no país que se abasteciam dessa matéria-prima. No meio deles, cerca de cem frigoríficos que intermediavam a produção e, naquele ano, eram desconhecidos do consumidor, embora sempre estivessem entre as maiores empresas do mundo no ramo da alimentação.

Eu lecionava à época Direito Tributário, que é uma de minhas disciplinas favoritas, e acabei focando o controle e as regras no intermediário que, por ser em menor número, facilitaria o controle em uma espécie de “substituição tributária ambiental”.

O desmatamento na Amazônia, antes do trabalho do MPF, era de mais de 12.000 Km2 por ano e conseguimos mantê-lo abaixo dos 5.000 Km2 por ano desde então, o que representa uma queda hoje em torno de 60%.

Estamos em constante aperfeiçoamento do trabalho com o duplo objetivo de estabilizar os ganhos alcançados e superar nossos índices de redução.

Você certamente encontrou resistência durante as diversas fases de implementação desses programas. Que momentos você destacaria dessa atuação em que foi mais necessária a força estatal do MPF?

Sem dúvida destacaria o início do processo. Tudo era muito novo, seja para nós, seja para o setor produtivo. A fronteira agrícola brasileira hoje está na Amazônia. A fertilidade da terra, a luminosidade e a umidade tornam a floresta solo ideal para a criação de gado e plantio de grãos. Acrescente a isso o alto valor de mercado da madeira que cobre a terra e o custo zero da área que é pública e você encontra o novo ‘eldorado’ do setor produtivo brasileiro. Este já conhecia e estava acostumado a driblar facilmente as regras vigentes sobre a proibição de desmatar.

É um setor economicamente muito forte: um dos frigoríficos é hoje a maior empresa de alimentos do mundo e a maior empresa do Brasil seja qual for o ramo analisado, ao passo que soja e gado correspondem a cerca de 1/5 de todo o PIB brasileiro e 1/5 dessa produção já se consolidou na Amazônia com altíssimas taxas de crescimento na região nos últimos quinze anos.

O setor possui uma bancada parlamentar fortíssima de cerda de 1/3 dos membros do Congresso Nacional e reagiu fortemente a nossas ações com todo o tipo de expediente: ameaças pessoais e institucionais, representações e ações judiciais. Tivemos de administrar todo o conflito através do diálogo, da conquista da opinião pública para o trabalho do MPF, da abertura para a discussão técnica dos modelos que apresentávamos e da certeza de que não poderíamos esmorecer na defesa de nossa missão constitucional.

Em que consistem as atividades do Grupo de Trabalho Amazônia Legal, da 4ª CCR, que você coordena? Que trabalhos relevantes estão em andamento?

O Grupo de Trabalho Amazônia Legal surgiu com dois focos principais: (1) expandir os projetos “Carne legal” e “Municípios Verdes” aos outros Estados da Amazônia e (2) fomentar a continuidade de trabalhos relevantes através da atuação coordenada na região que sofre continuamente com a vasta rotatividade de membros do MPF.

Além de estarmos desenvolvendo esses projetos nos demais Estados, desenvolvemos trabalhos conjuntos em relação aos assentamentos do Incra na região, sobre a implantação do cadastro ambiental rural em todo o país, sobre a responsabilidade ambiental das instituições financeiras, sobre a transparência dos órgãos públicos, sobre o programa do governo federal Terra Legal, sobre a produção de grãos e outros temas que aparecem no dia a dia de todos os colegas da região.

Embora eu não tenha opinião formada sobre a questão, sempre acabo ‘apanhando’ quando a levanto. É o seguinte. O tratamento dado aos filmes da trilogia de “O Poderoso Chefão” não ajudaria a glamourizar, aos olhos da população esclarecida, o estilo de vida dos gângsters e a abrir nossa sensibilidade moral à possibilidade de tê-lo como aceitável? Falo isso porque a beleza estética dos filmes chega a nos fascinar…

De fato, não vejo verdades ou certezas nesses pontos de maneira que sua leitura me parece extremamente interessante. Vou apenas aqui sugerir outra possibilidade que caminhe na linha oposta. Seria a de que Coppola mostra a decadência moral de Michael que, de herói de guerra, se transforma em um criminoso impiedoso cuja ambição não tem limites. Parece que Michael representa a sociedade americana, corrupta e hipócrita. Deixa-se clara a institucionalização do crime, onde os mais respeitáveis agem de maneira ardilosa e vil para se manterem no poder. Nessa maneira de análise, não há nada de engraçado ou compensador na violência, mas, pelo contrário, há cada vez mais torpeza, mais conluios, mais traições, levando a uma situação insustentável no qual o protagonista se vê mergulhado, cada vez mais, nas sombras da corrupção, em sentido amplo. Talvez possamos utilizar o jargão de que o crime não compensa se o que se quer é alcançar a felicidade.

Mudando de assunto: que lembranças tem de sua infância em Belo Horizonte?

Tenho várias e ótimas lembranças. Do nosso time de futebol que se doava de maneira extenuante pelos pequenos campeonatos que participava do bairro; do guaraná depois do jogo com vitória ou derrota; das conversas e reuniões com os amigos de escola e de bairro; da alegria da vitória do cruzeiro e do aborrecimento a mim direcionado pela vitória atleticana; do Mineirão cheio de barracas ao redor e entupido de gente em pé dentro; do meu caminho de ida para a escola; dos meus professores; de uma cidade mais suja do que está hoje; da rodoviária lotada; do Parque Municipal, do Parque das Mangabeiras e das praças.

Eu também morei em Belo Horizonte até o começo da vida adulta. Comigo aconteceu que já estando doze anos morando fora da cidade acabei me ‘apaixonando’ por outras tantas em que morei ou por que passei, que me trouxeram coisas novas e muito boas. Você ainda visita Belo Horizonte? Isso também aconteceu com você?

Visito com frequência e aconteceu comigo o inverso. Após nove anos fora, passei a gostar mais da cidade, do jeito das pessoas e de tudo que temos. Talvez seja apenas amor de visitante.

Entre seus autores preferidos estão Machado de Assis e Fernando Sabino. É opinião corrente entre os críticos que a literatura brasileira atual não tem tratado das grandes e das pequenas questões que atormentam a vida real de todos nós. Alguns chegam a dizer que não temos algo como ‘literatura brasileira atual’. Estivessem vivos e em atividade ambos os escritores, você é capaz de imaginar que roteiro e personagens cada um deles utilizaria em seus romances hoje?

Em relação à temática, acho que Machado de Assis e Fernando Sabino não mudariam muita coisa. Machado, por exemplo, é um autor que se prende no ser humano e nas suas falhas morais, por isto atemporal. Poderia até mudar o cenário, mas as observações perspicazes continuariam centradas em personagens esféricos, revelando a hipocrisia dos homens. Já Fernando Sabino também é um autor voltado para reflexões humanistas. Talvez hoje a sua angústia perpassasse pela vida acelerada que nos impomos e as coisas que perdemos no caminho por causa disso.

Voltemos a nossas atribuições. Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude ou, quando não, originará um contrato administrativo ineficiente com gastos mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina algo que pudesse começar a mudar esse quadro?

Tenho a idêntica impressão. Observo os municípios amazônicos pobres e população miserável. Observo os gestores amazônicos ricos e com padrão de vida elevadíssimo. Tivéssemos um nível cultural e educacional consolidado no país, a simples observação da nossa realidade seria um escândalo no nosso mais famoso jornal.

Somente a transparência e o uso de tecnologias podem mudar esse quadro. Todas as licitações deveriam ser filmadas e gravadas, assim como hoje o são as audiências da justiça, e transmitidas on line na internet, assim como hoje acontece com milhares de salas de diversão erótica no país. E deveríamos ter ferramentas para que o usuário do serviço público denunciasse a ausência de bens comprados. Por exemplo, se daria ampla divulgação na internet sobre as licitações de todas as escolas informando o dinheiro gasto para cada uma e o que foi comprado e, na mesma internet ou em totens de atendimento físico, qualquer aluno, pai ou professor anonimamente poderia informar que apesar de a Prefeitura ter comprado carne somente se come pão há um mês.

Poderiam ser criados sistemas de controles automáticos e informatizados em que essas demandas eram publicizadas e o gestor teria um prazo para se manifestar com documentos e fotografias. E sua resposta também seria divulgada na internet. Os órgãos de controle, dentre eles o MPF, fariam filtros para priorizar ações mais fortes tais como visita in loco e etc.

Tenho pensado que provavelmente ainda vige em nossa alma nacional, no fundo de nosso inconsciente coletivo, a impressão de que ainda somos explorados por uma metrópole desalmada; e de que portanto, tudo o que conseguirmos extrair dos negócios públicos virá em prejuízo da Corte Portuguesa e em benefício de nós outros deste lado de cá. Só que Corte Portuguesa já não há…

Se Corte Portuguesa já não há, talvez a metrópole desalmada seja a ilha política dos governantes que, no imaginário coletivo, tudo querem para si próprios e trabalham apenas em prol da manutenção do próprio poder político ou econômico.

Talvez a sociedade viva um processo autopoiético em que a população produz seus políticos e, ao mesmo tempo, vive um processo de antagonismo intenso em relação a eles, mas não dispõe de meios para interromper essa “equivocada” produção. Até porque parte desses instrumentos dependem de fomento do governante — como é o caso da educação, por exemplo.

A relação entre sociedade e governo estabelecida seria, assim, de competição, em que o cidadão luta para perder o mínimo possível para o Estado e ganhar o máximo, ainda que através da corrupção. Afinal, o Estado brasileiro parece ser inerentemente ilícito no imaginário coletivo. Dentre os diversos males dessa realidade está a incapacidade de olhar e procurar aquilo que existe de bom e adequado no cenário político brasileiro.

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