João Felipe Miu, atualmente lotado na PRM Nova Friburgo, é, como muitos de nós, um incansável estudioso. Reconhecendo que sua ‘juventude’ profissional naturalmente limita, ainda hoje, sua perspectiva, João Felipe falou nesta entrevista sobre as recentes mudanças na nossa estrutura administrativa: a criação da assessoria do PGR e a nomeação de procuradores para funções administrativas, apesar de indispensáveis à melhoria de nossa atuação, trazem um risco de ‘aristocratização’ da carreira e da perda de objetividade em decisões funcionais que envolvam os procuradores.
Leitor do filósofo Olavo de Carvalho, a quem conheceu pessoalmente, imagina que ainda não haja ninguém capaz de fazer um juízo qualificado sobre a sua vasta obra. Segundo acredita, isso acontece porque Olavo dialoga com autores sobre os quais, aqui, ninguém leu e, principalmente, sobre os quais ninguém refletiu. A admiração de João Felipe pelo filósofo se evidencia na resposta à nossa última pergunta: eis um interessante exemplo do chamado ‘conhecimento por presença’, como concebido pelo professor.
Refletindo sobre uma passagem das Confissões de Santo Agostinho, João Felipe diz que só ‘descansa’ realmente quando percebe que está agindo como Jesus agiria: “É quando percebo que estou, ainda que um mero milímetro, mais parecido com Jesus. Nesse instante o descanso é total e a existência é plena”.
Chegamos, enfim, à nossa 30ª entrevista, permeada de reflexões agudas e de um bocado de sinceridade.
Na apresentação que fiz a este site de entrevistas, disse que percebia em nossos colegas uma sensação geral de pessimismo com a carreira. “Já foram maiores no passado, as suas esperanças…”, disse então. Eis que em pouco mais oito meses muita coisa mudou no MPF: temos hoje reconhecidas, por lei ou por decisão judicial, diversas reivindicações administrativas e remuneratórias muito antigas, o PGR criou a tão-esperada assessoria de procuradores em seu gabinete, a Operação Lavajato tem dado uma visibilidade muito positiva à nossa instituição. Já não temos hoje tantos motivos para o pessimismo. Acredita que poderíamos aproveitar esse bom momento para pautar ou resolver alguma grande questão que possivelmente esteja adormecida em nossos escaninhos institucionais?
Tenho grande amor pela nossa instituição. Aqui fui estagiário por dois anos, analista processual por oito meses e completei em 2014 seis anos como PR. É ainda uma condição de ‘jovem’, que coloca limitações naturais à minha perspectiva. Mas enxergo duas questões importantes e atuais, que precisam ser enfrentadas para o amadurecimento da instituição. Primeiro, seria um risco do que chamo de ‘processo de AGUzição’ da carreira. Algumas estruturas novas, que são indispensáveis à melhoria da atuação do MPF, como a assessoria do PGR e designações de mais membros para funções administrativas, trazem consigo o risco de ‘aristocratização’ da carreira e a perda de certa objetividade em decisões funcionais que envolvem membros. É uma degeneração que acomete instituições como a AGU e alguns MPs estaduais, onde os laços pessoais, o ‘carreirismo’ e o marketing pessoal adquirem um peso muito maior do que o natural e passam a corromper valores institucionais estruturantes, como a democracia interna. No plano da atividade-fim, a consequência geral será grave: os procuradores da República serão estimulados a buscar uma atuação funcional cada vez mais voltada ao interesse próprio, pequeno, e não ao interesse maior da sociedade, republicano, que dá nome ao nosso cargo. É um risco que enxergo.
O outro ponto não seria um risco, mas um aprimoramento, e também se relaciona com a democracia interna. O MPF precisa debater melhor como faz a formação das suas ‘vontades’ institucionais nos assuntos que envolvem acirrada polêmica na sociedade. Não digo em relação ao exercício das competências do PGR, por óbvio, que segue, digamos, um regime presidencial e que tem na eleição via lista tríplice sua fonte de legitimação e momento de debate. Falo da posição das câmaras de coordenação e, especialmente, dos grupos de trabalho e participação em conselhos, em temas como aborto, redução da idade penal, desarmamento, ensino religioso, ação afirmativa, política LGBT, criminalização de discurso, entre muitos outros. A meu ver não é possível fingir que esses assuntos não permitem diferentes e até opostas leituras do ordenamento jurídico, a depender da cosmovisão de cada um. As visões são às vezes tão opostas que aquilo que para um discurso pode ser um direito fundamental ‘novo’, para outro discurso pode ser uma violação constitucional. Como formar a vontade da instituição nesses casos? Como ela vai se portar nos debates públicos? Vou dar um exemplo. A PFDC teve até 2012 um GT de ‘direitos sexuais e reprodutivos’, que tratava de alguns assuntos polêmicos como aborto e prostituição. Como esse GT foi formado? Como foi a seleção de seus membros? Havia pluralidade de visões na composição do GT? Foi buscada a participação de diferentes visões com representatividade social? São questões que precisam ser pensadas. E acho que nessas questões precisamos criar soluções similares às do parlamento. Ali, é assegurada a participação de todos os partidos, na medida de sua representatividade. Essa seria uma forma de evitar a alienação da instituição em relação à sociedade civil, que não pensa univocamente sobre essas questões. E inibe-se também a instrumentalização pura e simples de nosso órgão por grupos de pressão e de militância política.
Na última vez que conversamos você estava lendo ‘The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution’, de Shulamith Firestone, que você considera uma obra central para compreender a ideologia de gênero defendida por movimentos radicais de hoje. Qual é a tese defendida pela autora e como, na sua visão, ela criou raízes nos grupos de feministas atuais? Acredita que a leitura desse livro faria bem aos colegas do Ministério Público?
Shulamith Firestone pertence à segunda fase do movimento de liberação feminista, com viés radical, que, a partir da década de 80, passou a dominar o feminismo como movimento político. A terceira fase é liderada no plano intelectual por Judith Butler. Estudar tudo isso é muito interessante para quem gosta de política e se preocupa com o futuro de nossa sociedade.
Note: hoje já é difícil encontrar representantes do feminismo clássico, que se propunha, muito justamente, a buscar isonomia no tratamento legal e econômico entre a mulher e o homem. Em boa parte essas conquistas já vieram e causaram profundas mudanças sociais. Mas o movimento feminista de hoje, radicalizado, tem propostas muito diferentes.
Em ‘The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution’, Firestone faz uma releitura da luta de classes marxista para opor homens e mulheres e ensina que a ‘revolução feminista’ passa necessariamente pelo controle dos meios reprodutivos. A família biológica e a maternidade são vistos negativamente, porque fontes de dependência da mulher em relação a seu opressor, o homem. Daí a centralidade do aborto. O aborto e o avanço da tecnologia seriam meios eficazes de neutralizar as condições biológicas da mulher que produzem dependência em relação ao homem. É uma tese meio grosseira, eu diria, mas que moldou e molda a mente das feministas de hoje.
Numa leitura pessoal, é também exemplo evidente de crença gnóstica, de que fala Hans Jonas e Eric Voegelin. A mulher viveria ‘aprisionada’ na sua condição biológica e o conhecimento iniciático revolucionário promoverá sua libertação. A leitura desse ‘manifesto’ ajuda a desmistificar os motivos por que o feminismo de hoje tem no aborto e no ataque à família biológica sua luta primordial. A ‘saúde pública’, por exemplo, não está entre as preocupações desse movimento, embora a propaganda diga que está por motivos táticos bem conhecidos para quem estuda ação política e marxismo.
Por trás de muitas das bandeiras defendidas por uma minoria hoje, bastante diferentes entre si, como o feminismo, gayzismo, liberação de drogas, política de cotas raciais, defesa da pedofilia, está geralmente a tentativa de criar tensões entre grupos de interesse, em prejuízo de uma relativa coesão social e frequentemente com prejuízo a grupos tradicionais. E nesse barco têm ingressado muitas pessoas desavisadas. Acredito que você consiga enxergar essas contendas pelo ponto de vista espiritual. Nesse sentido, o que está em jogo nesses embates?
Esse é um tema sobre o qual já vi você esboçar algo na nossa rede de procuradores. Suspeito que você possa falar sobre ele bem melhor do que eu. Posso lhe devolver a pergunta?
Prometo que ainda escreverei algo sobre isso…
Bem. O que você chama de pessoas ‘desavisadas’, acredito, tem um nome mais ‘técnico’ em ação política, digamos assim. É o chamado ‘useful idiot‘ ou idiota útil. É a pessoa que acaba por promover determinada agenda política contrária a seu modo de vida e valores, por ignorância, capturado que foi pela propaganda e estratégia do grupo de pressão. Esse termo não tem uma conotação de menosprezo, não. Foi cunhado no período de Stálin para designar intelectuais e artistas ocidentais que serviam inconscientemente à política soviética. Ernest Hemingway é um grande exemplo. O termo é técnico no sentido de que exprime fielmente uma realidade, que, no Brasil, passou a ser a regra dos últimos trinta anos ou mais. Afinal, como pode uma sociedade em que prevalecem valores tradicionais, como família, vida, liberdade de expressão, economia de mercado, ver avançar em tempo recorde a agenda de grupos que são contrários a esses valores ou que se omitem nas políticas públicas que os defenderiam?
Os exemplos são muitos. Boa parte de meus amigos, pessoas que vivem para suas famílias e filhos, que compartilham valores tradicionais, acreditam na economia de mercado, muitos cristãos sérios também, até pouco tempo atrás votavam em candidatos do PT, PSOL e PCdoB. É só você estudar minimamente o programa desses partidos e verá que a agenda deles é incompatível com esses valores. O programa do PSOL, por exemplo, segue uma cartilha pré-queda da União Soviética, para quem sequer a social-democracia serve. Mas por que o PSOL ainda ganhava votos de pessoas conservadoras? Porque, assim como o PT e outros partidos de esquerda, soube usar a propaganda do ‘monopólio moral’ a seu favor. Então o cara é contra o aborto, defende a família e a liberdade de expressão, investe na bolsa de valores, e vota no Chico Alencar, que é um político que sabe usar bem a imagem da ‘moralidade’ em prol de uma plataforma revolucionária e de engenharia social. Esse eleitor conservador não percebia que, com esse voto, fortalecia políticas radicalmente contrárias a seu modo de vida e valores. Minha cunhada, por exemplo, votou no Chico Alencar em 2010, e elegeu quem na rebarba? O Jean Wyllys. Nada contra o Jean Wyllys. Ele tem seu lugar na democracia, muito importante até. Tem que defender os interesses da minoria que representa, com toda a legitimidade. O que ele não pode é ser eleito com voto conservador, porque aí é disfunção político-eleitoral.
Mas essa disfunção está acabando. As eleições de 2014 provaram isso e o novo voto da minha cunhada também… E posso dizer que isso só foi possível a partir da ‘ressurreição’, digamos assim, do pensamento conservador no Brasil. Do pensamento conservador verdadeiro, tenho que dizer, não aquele que a esquerda gostaria que fosse. Estou falando de autores como Edmund Burke, Eric Voegelin, Russell Kirk, Roger Scruton, Rosenstock-Huessy, Michael Oakeshott, Raymond Aron, entre muitos outros. E o intelectual por trás dessa ressurreição no Brasil se chama Olavo de Carvalho.
Por falar nisso, como você entrou em contato com a obra do prof. Olavo de Carvalho? Além de ser o veículo dessa ‘ressurreição’, o que a obra dele representa para você hoje?
Para conhecer a obra do Olavo de Carvalho é preciso lê-lo. Eu comecei casualmente a ler os artigos dele aos sábados no ‘oglobo’, por volta de 2001. Nessa fase eu estagiava no BNDES, que volta e meia trazia para palestras internas economistas liberais como Armindo Fraga, Gustavo Franco, entre outros. Era a época em que os estudantes bradavam o slogan ‘Fora FHC, fora FMI’. Eu nasci em berço pedetista de Brizola. Meus pais eram filiados e me levavam a comícios vestido com lenço vermelho de gaúcho. Não é piada não! Na escola, como foi a regra para minha geração, ouvia dos professores o discurso corrente de esquerda. Meu professor de história falava russo e o de geografia, lembro-me bem, fez-nos ler um livro sobre a queda iminente do império americano. Imagina! Então é claro que cheguei à faculdade nutrindo previsível carinho pelo socialismo e as ideias de esquerda.
Mas no BNDES e a partir de bibliografias tiradas dos artigos do Olavo de Carvalho comecei a ler mais autores liberais e conservadores. Antes disso já tinha lido alguns padres da Igreja e, sobre todos eles, Santo Agostinho. Então a associação foi meio bombástica mesmo. Você lê Confissões de Agostinho, percebe o valor de ser honesto consigo mesmo e perante Deus, e depois você lê Olavo de Carvalho, Eric Voegelin, Raymond Aron. Pronto. É inescapável. O Olavo de Carvalho é o maior educador do Brasil há pelo menos vinte anos. Para mim ele foi a interlocução necessária para compreender e superar anos de doutrinação progressista que recebi em casa e na escola. Simples assim.
Mas, então. O prof. Olavo é muitas vezes ridicularizado por suas posições políticas e pelo modo como as expõe (e principalmente expunha no extinto programa semanal de rádio TrueOutspeak). Chamam-no de autoproclamado filósofo, ex-astrólogo. Consideram-no mal-educado e desinformado. Apesar disso, sua atividade como filósofo e professor já cativou pelo menos duas gerações de pessoas e é, individualmente, como você mesmo acabou de falar, responsável por uma renovação intelectual, e também editorial, provavelmente sem precedentes no Brasil. Até aqui estamos de acordo?
Plenamente de acordo. Eu tive o privilégio de acompanhar esse processo que chamei de ‘ressurreição’ conservadora desde 2001. E a renovação é assustadora. Ainda mais assustador é que o Olavo de Carvalho fez isso praticamente sozinho, como verdadeiro franco atirador, sem nenhum posto universitário, sem partido político por trás, nada. Impressionante. Como foi possível? A resposta é: foi possível porque ele é um intelectual de envergadura, escritor de alto nível e que sabe quem é, de onde está falando e em que momento vive. Pude conhecê-lo pessoalmente e você vê um sujeito completamente à vontade, sem afetações, que não deve nada a ninguém e não precisa agradar a ninguém, a nenhum grupo. Isso dá uma liberdade incalculável para refletir sobre qualquer assunto, sem preconceitos e compromissos, o que é quase impossível de se fazer na condição de professor universitário no Brasil, por exemplo.
Sim, porque desse modo o pensamento não encontra fronteiras de investigação. Quem é livre vai investigar seriamente qualquer e todas as coisas, sem reservas, de filosofia à religião, de teoria quântica a astrologia, de teoria literária à sociologia ou a algum campo inominado do saber. Não vai se deter por prestígio intelectual nem se deixará iludir pelos limites evidentes dos métodos matematizantes. Agora, o trabalho do Olavo de Carvalho só foi possível porque existia um vácuo na circulação de ideias no Brasil, que deixou de publicar autores conservadores após a redemocratização, quando a esquerda já tinha monopolizado o debate universitário e as redações de jornais. Eu sou testemunha disso. Em 2001 ou 2002, fui à Bienal do Livro no Rio de Janeiro. No estande da UNB havia uma estante meio escondida e, na prateleira mais baixa, livros em saldão com preço a dois reais. Lá estavam diversas obras da coleção ‘amarela’ de pensamento político da UNB, publicada na década de 80, entre elas ‘Nova Ciência da Política’, de Voegelin. Foi sintomático. Hoje você não compra esse livro, usado, por menos de cem reais. A minha modesta biblioteca deve ter quintuplicado de valor nesse período!
A minha impressão é a de que daqui a cinquenta anos o prof. Olavo continuará a ser lido, como filósofo e como analista político. Você imagina algum brasileiro atualmente vivo que terá esse mesmo tratamento?
Certamente será lido. E serão necessárias obras para entender isso que hoje eu chamei de ‘ressurreição’ conservadora. Ele é a peça maior dessa renovação. Vem dele a crítica cultural que tornou possível ver o quanto empobrecidas culturalmente se encontram as gerações nascidas no país a partir da década de 70. Mas o tamanho e a envergadura do Olavo de Carvalho só poderão ser medidos após a sua morte. Atualmente tenho a impressão de que não há no Brasil gente apta a fazer um juízo qualificado da obra dele. Afinal, como julgar um pensador que dialoga com autores sobre os quais ninguém leu e, principalmente, ninguém refletiu nestas terras?
Um professor respeitado que me é próximo, de esquerda, disse que ignora Olavo de Carvalho porque ele não tem interlocutor na academia. O que ele não compreendeu é que para toda a esquerda nacional o Olavo de Carvalho é a interlocução! E, claro, esse professor nunca ouviu falar, por exemplo, do interessante debate que Olavo teve com o sociólogo russo Alexandre Duguin, convertido em livro. É o que eu disse antes: não se pode conhecer o autor sem lê-lo.
Mudando de assunto, imagino que reconheça, como cristão, que nossa carreira nos submete a algumas ‘tentações específicas’. Na sua opinião, a que dificuldades essa condição nos expõe especificamente?
Você faz perguntas agudas, meu camarada! Eu acho essa questão importante, porque não vejo muito na nossa carreira essa reflexão sobre os modos de atuar, riscos, abusos, limites. Quem atuou em PRM sabe muito bem quanto poder temos como procuradores. Às vezes isso não é sentido em algumas capitais. Mas nosso ofício é essencialmente ‘exercício de poder’. A Operação Lavajato é prova disso. Afetou todo o país, da economia à política. E todo exercício de poder deve ser feito, no regime democrático, dentro de padrões democráticos, plurais, com reverência à lei positivada, à ordem jurídica, cuja conservação é nossa função institucional, expressa no art. 127 da Constituição de 1988. Leia lá.
Vejo em alguns colegas a tentação de misturar uma agenda política pessoal, frquentemente de cunho revolucionário ou de direito alternativo, com as funções do cargo. Deixam de ser procuradores para serem militantes políticos investidos em um cargo de Estado. Então a primeira tentação seria essa, da ‘militância’, do abuso político do cargo, de viés autoritário. Essa militância costuma vir associada a um sentimento de tipo messiânico. A pessoa está ali para salvar a República. Isso é muito perigoso, porque o sujeito com inspiração messiânica se acha acima do bem e do mal e enxerga a ética na atuação e a pluralidade na sociedade como empecilhos, entraves, e não como limites saudáveis ao poder. A militância também é o que permite que o poder de Estado exercido pelo MPF seja instrumentalizado para atender a interesses de grupos de pressão, numa espiral autoritária que inibe o debate público mais amplo e o amadurecimento democrático da sociedade.
A propósito, através de um colega que convidei para participar destas entrevistas, conheci parte do pensamento do sociólogo Hans Joas. Esse senhor diz que “Os direitos humanos são fruto, principalmente, de resistência contra a aliança de poder entre Estado e Igreja ou contra o cristianismo como um todo”. A noção que está por trás dos direitos humanos hoje dá margem a esse tipo de pensamento, que tem conquistado muitos colegas. A PFDC, onde até há pouco se concentravam as questões sobre direitos humanos no MPF, é na sua opinião um espaço plural?
Acho que já falei sobre isso aqui anteriormente. O MPF precisa debater como fazer esse ajuste democrático interno, que atenda mais à pluralidade de posições do que a um ‘dirigismo’ constitucional previamente dado, baseado em um ‘projeto de sociedade’ cujo dono não é a sociedade real, viva, que está lá fora, mas grupos e elites organizados. Esse ‘dirigismo’ hoje é sinônimo de autoritarismo e isso vai ficar cada dia mais evidente para a opinião pública. Ou criamos soluções democráticas para lidar com a pluralidade e espelhar melhor a sociedade, ou não vamos estar aptos a cumprir adequadamente nossas funções.
Mas sou otimista. Acho que já há iniciativas nesse caminho, como o chamamento para GTs da 2ª CCR, ainda sob a Raquel Dodge, creio, e a possibilidade de votações eletrônicas temáticas. Também tenho extrema admiração pelo Aurélio Rios, nosso atual PFDC, em quem vejo muita sabedoria para lidar com a pluralidade. Há pessoas mais radicais, sim, militantes até. Mas temos pessoas na cúpula com enormes qualidades, pessoais e profissionais, para planejar o futuro da instituição em conformidade com os interesses da sociedade. Não creio que nenhuma forma de autoritarismo, aberto ou velado, irá prevalecer no MPF. Vamos acompanhar.
Há um tempo você estava lendo o filósofo alemão Eric Voegelin. O que a obra dele lhe mostrou ou lhe tem mostrado?
Voegelin é autor de uma obra vasta. Posso falar com pouco mais propriedade sobre a leitura que ele fez da modernidade, como processo de imanentização de inspiração gnóstica e milenarista. Sem compreender o gnosticismo e o milenarismo não se pode compreender adequadamente a modernidade e os movimentos políticos dos últimos três séculos.
Mudando de assunto, onde você passou sua infância? Que semente plantada naquela época gera frutos ainda hoje, e qual, porventura, não chegou a tanto?
Passei minha infância no interior, em Petrópolis. Tive uma infância muito livre. Meu irmão, minha irmã e eu brincávamos na rua, por todo lado. Minha mãe sempre pregou liberdade com responsabilidade, incentivando muito nossa criatividade. Ela foi professora de música por algum tempo, mas depois largou, infelizmente. Cresci valorizando a criatividade e a arte, como expressões nobres do espírito. É onde nossa imagem e semelhança de Deus ficam mais evidentes. Uma semente plantada que espera por gerar frutos é a artística. Ainda não a explorei na medida de que recebi. Com meus filhos agora isso vem mudando. Aqui em casa minha esposa e eu estamos sempre encenando personagens divertidos para interagir com as crianças. Quando eles crescerem mais um pouco vamos montar jogos teatrais. Vai ser divertido.
Santo Agostinho, talvez querendo dar a entender que todos nascemos com determinadas habilidades e que colocá-las em prática é algo inerente ao nosso ser, disse que algo como ‘o nosso lugar é o nosso descanso’ (Confissões, Livro XIII, Capítulo 9). Isso toca de perto o tema de vocação. Nossa vocação é o nosso descanso. Pensando nisso tudo, pergunto: qual é o ‘sofá da sua vida’, João? Onde é que você, dedicando-se a algo, efetivamente encontra descanso?
Não conhecia essa frase de Santo Agostinho. Vou meditar mais sobre ela. Vocação é um tema central na vida. Deus nos chamou, vocacionou, para sermos semelhantes a Cristo. Jesus não era apenas carpinteiro; era filho, irmão, professor, conselheiro, pastor, médico. Acho que só descanso realmente quando percebo que estou agindo como Jesus agiria, independentemente do que esteja fazendo. É algo mais fácil de explicar para quem crê. É quando percebo que estou, ainda que um mero milímetro, mais parecido com Jesus. Nesse instante o descanso é total e a existência plena. Paradoxalmente, é quando nossa personalidade fica mais nítida, um pouco mais livre das sombras que a encobrem. Se pudesse me reportar a um texto para tentar explicar esse ‘lugar’, seria o último capítulo de ‘Cristianismo Puro e Simples’ de C. S. Lewis.
Tenho feito esta pergunta a outros colegas: Se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá?
Além de poder ver o Fluminense tetracampeão mundial e o Brasil devolver o 7×1 sobre a Alemanha?! Eu espero poder convidar o jovem a passar um dia comigo, com minha família e com meus amigos de muitos anos, e a voltar a me perguntar novamente no fim do dia, se ele ainda achar necessário.
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