“A vida já valeu e valerá a pena até o último suspiro”. Vejam a segunda parte da entrevista com Osório Barbosa.

Para Osório, a fala gostosa do português do Brasil não está morta e enterrada. Crê, pelo contrário, que ela está cada vez mais viva: “Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm”.

Osório passou sua infância nas casas flutuantes dos rios de Maraã, AM. Lembrando Fernando Pessoa, diz que “tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos eles através dos estudos”. Além de evocar o poeta português, o olhar ao retrovisor trouxe também à luz as travessuras precoces da criança lá de trás…

Discípulo dos Sofistas gregos e de Marcos Bagno, Osório é por isso crítico de Platão e dos puristas da língua, porque, segundo compreende, eles não souberam e não sabem valorizar a liberdade e as incertezas da vida.

Esta é a segunda e última parte de nossa entrevista — que faz parte de nosso 4º encontro. Imperdível…

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

Bruno: Marcos Bagno ganhou sua simpatia por denunciar o que chama de ‘preconceito linguístico’. Você se sente alvo de ‘preconceito linguístico’, Osório?

Osório: Pois é. O doutrinador Marcos Bagno, no seu livro ‘Preconceito Linguístico’, demole – ele é o ‘demolidor’ – todas as pessoas, inclusive gramáticos, que dizem que escrevem certo. Ele arrasa com o Pasquale Cipro Neto, que escreve em jornais, e também com outros que escrevem em jornais, como Napoleão Mendes de Almeida. Ele mostra nesse livro que eles escrevem equivocadamente, que eles escrevem teoricamente errado. Para mim não é errado; eles simplesmente se tornam errado quando condenam quem escreve errado, porque eles escrevem também. Então esse é um dos problemas que eu sempre tenho com o preconceito que se tem em relação às pessoas que escrevem teoricamente errado. O Marcos Bagno traz um exemplo interessante. O nome ‘Geraldo’ geralmente se escreve com ‘l’. Mas principalmente aqui em São Paulo, aqueles a quem as pessoas preconceituosamente chamam de ‘caipira’ quando falam dizem ‘Gerardo’. E aí vem o preconceito: ‘Ah, ele fala Gerardo em vez de Geraldo’, dizem os preconceituosos para desqualificar e galhofar do falante. E o Marcos Bagno diz que quem está errado é quem diz ‘Geraldo’, porque o certo de se pronunciar e de se escrever no Brasil seria ‘Gerardo’, já que, ele diz, o nome vem do alemão ‘Gerard’. E assim o Marcos Bagno dá uma aula…

É muito engraçado quando uma pessoa como o Adoniran Barbosa fez os seus sambas – e outros ainda fazem hoje – falando da forma que o Adoniran fala maravilhosamente, ninguém o condena. Vocês já viram o Adoniran ser condenado pela forma como ele falava: ‘talba de tiro ao álvaro’? Então é maravilhoso o que ele deixou! E ninguém condena…

Bruno: Mas é claro que ninguém condena, Osório. Isso é arte em estado puro… O Adoniran era uma pessoa instruída. Quem foi capaz de criar esse verso tão cheio de imagens — ‘de tanto levar flechada de seu olhar meu peito parece tábua de tiro ao alvo’ — está evidentemente brincando gostosamente com a linguagem, com a liberdade do artista. Certamente não há mesmo nenhuma censura a fazer a ele por isso…

Osório: Sim! Mas foram os poetas que nos ensinaram e nos ensinam! Por que, então, estamos proibidos de imitá-los?

Você só condena quem fala e escreve errado quando você quer menosprezar, você quer desqualificar a pessoa. Quando é o seu patrão a falar errado ou a escrever errado, você vai obedecer, não o critica, e até acha bonito. Se o critica é por trás, covardemente. Se você tem interesse em comprar, verá uma placa lá escrito ‘Vende-se casas’, quando o correto seria ‘Vendem-se casas’. Mas você quer comprar e não vai dizer para o seu vendedor que ele escreveu errado. Porque talvez ele aumente o preço e você não terá condições de comprar. Então você não vai questionar. Quando lhe interessa você nunca questiona. Você só questiona quando quer desqualificar. Isso acontece muito… uma vez em um show vi o Caetano Veloso, um show pós-abertura política, dizer a uma repórter que perguntou a ele: ‘Caetano, como foi sair sobre vaias?’. O Caetano parou e disse: ‘Não é sobre vaias, mas sob vaias’. Quer dizer: ele humilhou de certo modo a repórter e não respondeu ao mote da pergunta, que era ‘como ele se sentia de estar sendo vaiado pelas pessoas naquela sua apresentação’. E ficou por isso mesmo. Ficou mal para ele. Ele ficou mal na fita. Mas quis também queimar o filme da repórter.

É por nos mostrar esse aspecto da comunicação que o livro do Marcos Bagno me encanta, livro que todas as pessoas de boa-fé, de boa índole, deveriam ler para compreender o que ele coloca lá. E eu sou apenas um discípulo desse grande mestre.

Bruno: Eu não conhecia esse incidente com o Caetano. Mas, veja, acho que se a gente se coloca no lugar dele, entendemos em que nível ele recebeu a pergunta. O camarada provavelmente estava envergonhado depois de receber vaias do público, e aí vem a repórter ‘pisar em cima dele mais um pouquinho’… Talvez tenha sido uma forma de dizer ‘desça daí, minha filha, que você não está acima de mim, sobre mim, mas sob mim‘. Eu até acho que a repórter tenha sido sincera na pergunta, mas o contexto em que ela foi feita evidentemente prolongou a situação vexatória pela qual ele havia passado. E pior: provavelmente ele ainda estava sob o efeito emocional das vaias…

Osório: Concordo contigo nesse caso específico, mas o que quis dizer é que ele esse tipo de comportamento é o padrão, infelizmente!

Bruno: Mudando de assunto, mas nem tanto. Os brasileiros têm alcançado, em testes internacionais, os piores índices de qualidade de educação entre os diversos países participantes. Você acredita que a nossa democracia convive bem com a má-qualidade do ensino?

Osório: No Brasil — eu posso falar apenas do Brasil, mas parece que isso acontece em outros lugares no mundo –, preocupa-se pouco com a educação. A gente pode até voltar para a Grécia do Séc. V a.C. Os sofistas foram os primeiros professores de que se tem notícia. E o grande século do conhecimento humano foi esse século. E quem foi o grande governante grego da época? Péricles, que era amigo e protetor dos sofistas. Inclusive há testemunhos de que ele passou um dia inteiro discutindo com Protágoras um determinado assunto sobre um lançamento de um dardo em uma competição que chegou a matar uma pessoa.

A Grécia investiu muito em educação, educação proporcionada principalmente pelos sofistas. Porque, se a gente analisar, Platão e Aristóteles praticamente não fazem parte do Século V a.C. Eles já são do Século IV a.C. E a idade de ouro grega foi dominada pelos sofistas. Então a democracia grega ‘aplicou’ muito em educação, contribuiu muito para a educação. Esse ensinamento grego é praticamente repetido pelos americanos do norte, que investiram muito em educação e ainda investem. Onde há uma grande ideia, uma pessoa inteligente, o que eles fazem? Eles arregimentam e levam para trabalhar para eles nos Estados Unidos, dando condições, dando laboratório, pagando um bom salário etc. Então eles aprenderam isso principalmente com os gregos do Século V a.C. Praticamente todos os sofistas vieram de outras cidades-estado gregas, para se estabelecer em Atenas, que era a capital do império e a cidade mais rica, onde a riqueza abundava. A mesma coisa acontece ainda com os Estados Unidos.

Se você olhar para os países periféricos, principalmente esses países ricos em petróleo, que desde 1973 têm muito dinheiro, que grande universidade árabe foi construída nesse período com todo esse dinheiro dos petrodólares. Na Venezuela, que nada em petróleo, o que foi feito em prol do ensino? Nada. A grande desconfiança que vem dos ensinamentos — e em compartilho com isso – é que ninguém quer que as pessoas se instruam. Os governantes não querem que as pessoas se instruam, porque têm medo de perder poder…

Bruno: Ah, pára, Osório! Essa teoria não está meio ultrapassada? O Lula e a Dilma estão aí para provar que ninguém precisa de conhecimento, no sentido escolar do termo, para chegar ao poder… Não compreendi bem do quê você está falando. Gostaria que você me explicasse melhor essa estória de ‘medo de perder o poder’. O que tenho visto é que em geral os iletrados não querem estudar a não ser o mínimo possível para conseguirem um emprego – e não vejo como é que um poder, aliás, qual poder?, possa impedi-los de sentar em uma biblioteca pública ou acessar vastas informações pela internet e se tornarem sábios e eruditos à maneira clássica ou à maneira contemporânea, à sua escolha…

Osório: Além de bom perguntador você é também gracejador, meu caro! A história seria longa, mas pode ser resumida no seguinte: você prefere que seu filho seja letrado, iletrado ou letrado apenas o suficiente para para conseguir um emprego? Eu, particularmente, desejo para o filho dos outros o mesmo que quero para os meus. Daí…

Bruno: Você deseja isso aos filhos dos outros mesmo contra a vontade expressa deles? Complicado isso, não? No varejo isso pode funcionar, mas no atacado, em nível de civilização, certamente se gastará muita energia nessa fantasia… Mas você estava falando de ‘disputas por poder’; e ia começar a falar da Grécia antiga…

Sim, porque esse tema nos leva de volta à Grécia: por que Platão atacou tanto os sofistas? Os sofistas ensinavam uma coisa básica às pessoas: falar, discursar. E isso era importante por quê? Porque as pessoas na democracia podiam participar com a palavra das assembleia e defender a si e aos outros nos tribunais. E isso não era importante para a oligarquia da qual Platão fazia parte. Ele era um grande oligarca, de uma família rica e tradicional. Quando os pequeno-burgueses puderam pagar por educação e pagaram aos sofistas para que os ensinasse, com isso o poder começou a mudar de mão, ou a ter a possibilidade de mudar de mão, e isso incomodou muito as pessoas, dentre as quais Platão.

Bruno: Você tem certeza que Platão implicava com os sofistas por causa de uma disputa pelo poder político? Não imagina que Platão e Aristóteles tinham consigo uma intenção mais alta e mais duradoura?

Osório: Eu não tenho dúvidas disso! Platão era um oligarca inimigo da democracia, como prova Popper no ‘A sociedade aberta e seus inimigos’. Há outros autores que dizem o mesmo.

Platão foi para Siracusa apoiar um oligarquia! Mas o fundamental a provar isso é o uso que ele, Platão, faz, de tudo que foi inaugurado pelos sofistas. Exemplo: ele condena a retórica dos outros, mas ele é o mestre dela! Ele estipula uma diferença intelectual absurda entre boa e má retórica. ‘A boa’, diz implicitamente, ‘é a minha!’

Para encerrar o tópico, Platão diz nAs Leis” (716c) o seguinte: “Aos nossos olhos a divindade será a medida de todas as coisas’ no mais alto grau”! Ou seja: dirigiu para onde ele quis o frase imortal de Protágoras, que é tido como o maior dos sofistas — “O homem é a medida de todas as coisas”.

Em relação ao Brasil, e resumindo, eu acredito que a democracia brasileira está a dever muito à educação no país. Nós temos de melhorar a educação. Mas a educação faz parte de todo um sistema. E nós fazemos parte de um sistema capitalista que cada vez mais impede praticamente as pessoas de estudarem; ou de terem o apoio da família para estudar. Os pais estão trabalhando. As mães em um lugar e o pai em outro muito distante. Poucos vêem os filhos. Entregam os filhos às escolas e as escolas não dão aquela educação, digamos, completa a bem formar o cidadão.

Hoje a criança vai para uma escola e fica quatro, cinco horas, sentada. Uma criança que está acostumada a mexer no celular, no computador, e que vê televisão, tem de ficar sentada ouvindo o professor fazendo ‘blá, blá, blá’. E isso algo inconcebível mas que ainda acontece. Então, tem de haver uma reforma completa, para ver como é que se pode dar uma melhor educação ao povo brasileiro. Esse déficit não é culpa do cidadão, mas do Estado, que às vezes parece não querer ver seu povo devidamente educado, letrado, porque isso vai incomodar o poder.

Bruno: Mas, Osório, o sujeito ativo no processo de aprendizado é o aluno. Acho muito simplista buscar os culpados pelo fracasso da educação brasileira ou nos alunos, ou na família ou no Estado. Culpar o Estado e isentar os alunos me parece ‘o fim da picada’. Estou errado?

Osório: Aí você já quer quase um milagre! No meu caso particular, foi o que aconteceu, mas não vou falar da minha história de interiorano do Estado do Amazonas, com pai analfabeto e mãe semi!

Quando eu cobro a participação maior e efetiva do Estado não quero nem falar de fardamento, comida, livros e cadernos etc, mas, basicamente, de professores competentes e estimulados, além de pais que possam efetivamente ajudar esse ‘sujeito ativo’, pois até que a criança se torne ‘sujeito ativo’, na e para a educação’ ele não passa de um ‘objeto’! O vulgo costuma dizer que é de pequeno que se torce o pepino!

Bruno: Manuel Bandeira, em ‘Evocação do Recife’, diz que “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo \ Língua certa do povo \ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil \ Ao passo que nós \ O que fazemos \ É macaquear \ A sintaxe lusíada”. Você acredita que esse ‘falar gostoso o português do Brasil’, do Recife da infância de Bandeira, está definitivamente morto hoje?

Osório: Veja como esta sua pergunta e a lembrança de Bandeira, o maior entre os gigantes, me dá razão quanto à sua pergunta anterior! A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo. Não é só dos meios — livros, jornais, computadores etc — que a criança precisa no processo de aprendizagem. Ela precisa, mais, é de gente, pois é o povo, logo, a cidade, o principal mestre de todos nós!

Mas, voltando à sua pergunta, digo: Não! Muito pelo contrário! Ele está cada vez mais vivo! Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. Não! A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm. Porque você começa a policiá-las. Se a pessoa fala e você diz: Olha, isso não é assim! Olha, isso é assado!, como é que a pessoa vai se comunicar? A pessoa vai se retrair! Há uma retração das pessoas com esse policiamento idiota. É, na verdade, um policiamento idiota, porque você acaba impedindo o diálogo. E você faz isso para humilhar a pessoa, e não para educá-la, para instruí-la. Mas como é que você vai interromper um verso porque a pessoa falou ‘malmita’ e não ‘marmita’?

Outro dia eu estava em um restaurante pequeno e uma pessoa chegou e disse: ‘Eu quero almoçar, e quero que você prepare uma malmita para eu levar’. Veja se o dono do restaurante vai dizer – só se fosse um idiota – ‘olha, não é malmita, mas sim marmita’… Ele ia espantar o seu cliente! Nessa hora ninguém é preconceituoso, não é? Mas se fosse para humilhar, se fosse um namorado da filha dele, ele teria dito: “Olha, eu não sei o que você está pedindo e então não vou lhe atender”. Então, pelo contrário, o linguajar não está morto, ele está vivíssimo! O que falta é que as pessoas de boa vontade retratem isso em seus escritos. Porque ninguém quer retratar justamente por causa desse policiamento absurdo, que insiste em dizer que tudo está errado. Quando na verdade não está. Se você compreendeu uma mensagem, ela está perfeita, ela está correta. Não importa se você disse ‘malmita’ ou ‘marmita’.

Bruno: O que você tem lido ultimamente?

Osório: Leio vários livros ao mesmo tempo! Estou lendo agora, ou terminei de ler: i) Um Ano na Provence, de Peter Mayle; ii) A História da Escravidão, de Olivier Pétré-Grenouilleau; iii) A História na Escravidão, de Christian Delacampagne; iv) Federico em Sua Sacada, de Carlos Fuentes; v) Nietzsche e o Problema da Civilização, de Patrick Wotling; vi) A Filosofia Antes de Sócrates, de Richard D. McKirahan; vii) História do Riso e do Escárnio, de Georges Minois; viii) Ao Lado de Vera, de Alberto da Costa e Silva, muito chato, por sinal; ix) O Nomos da Terra etc, de Carl Schmitt; x) Introdução ao Estudo do Direito, do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estou relendo, na verdade, lá pela sétima vez; xi) outros, de poesia, ao mesmo tempo. Isso tem me dado sentido na vida e mostrado que vale a pena continuar a estudar, pois amplia nossos horizontes e nos faz até mais tolerantes com os outros e conosco mesmos, pois cada vez percebemos que sabemos menos, embora, muitos vezes tenhamos a percepção de que sabemos mais.

Bruno: Você se identifica com autores como Charles Bukowski e Henry Miller?

Osório: Nunca ouvi falar deles! Acho que já li alguma coisa do Charles Bukowski. Talvez por falta de conhecimento, por falta de apresentação, posso dizer que não os conheço. Leio outros poetas, claro, mas eu desconheço esses dois.

Bruno: Que poema melhor representa seu sentimento em relação à vida?

Osório: Sobre o vidro da mesa onde trabalho, desde que eu pude usar uma mesa em meu trabalho — embora eu já fizesse isso em minha casa, em um muralzinho –, eu coloco o poema que melhor representa meu sentimento em relação à vida. Não é um poema muito grande. Na verdade é uma quadra de Fernando Pessoa, do poema Tabacaria, que diz o seguinte: “Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada / A parte isso, tenho em mim todos os sentimentos do mundo“. Esse é poema que guia a minha vida, o meu dia a dia e o meu atuar no teatro da vida.

Bruno: Você é um amazonense que adotou São Paulo como sua pátria. Você ainda tem parentes em sua terra natal? Retorna com frequência a Maraã?

Osório: É verdade. Tenho parentes ainda no Amazonas, especificamente em Manaus e em Maraã. Sempre que posso volto a Maraã, justamente para ouvir aquelas pessoas que falam “errado”, que contam histórias erradas, mas que encantam e que me rejuvenescem e que apagam, de certo modo, a maldade da minha alma; e que me fazem feliz com suas companhias. Pessoas muitas vezes sem estudo algum, mas de uma sabedoria exemplar.

A Scarlett O’hara diz, no filme ‘E o Vento Levou’, que sempre que está fragilizada ela volta para a fazenda dela, chamada Tara, para buscar forças. Eu sempre que posso vou a Maraã também, com a mesma finalidade, isso desde antes de conhecer o filme.

Bruno: Onde passou a infância, Osório?

Osório: Passei a minha infância no eixo Maraã-Tefé-Manaus. Eu fui fabricado em Maraã, parido em Tefé e minha mãe, após o parto, voltou para Maraã, e aí eu fiquei até os dezesseis anos. A escola não era de todo estruturada em Maraã e então eu tive de estudar em Manaus, para onde fui aos dezesseis anos. Meu pai me levou para morar na casa de um tio, que aliás me deu o nome, o tio Osório.

Posso dizer que minha infância foi toda bem vivida em Maraã. Eu saía de lá por períodos curtos, mas sempre voltava para lá.

Bruno: Qual é a lembrança mais antiga que você tem?

Osório: A lembrança mais antiga que eu tenho? Engraçado! A gente não consegue esquecer certas coisas; e certas coisas que a gente não queria lembrar sempre vêm à mente. Essa lembrança que eu tenho é uma lembrança sexual. É a lembrança mais primitiva que eu tenho. Eu não sei como isso não sumiu da minha mente. Eu era ainda muito pequeno e a minha avó morava sobre um flutuante no Paraná de Tefé – flutuantes são aquelas casas sobre as águas que existem na Amazônia e em outros locais. Tanto é que eu nasci em um desses flutuantes e o meu nome era para ser Moisés, pois eu nasci sobre as águas. Mas depois mudaram meu nome para Osório na hora de me registrar.

Pois bem. Eu estava nesse flutuante de minha avó, D. Pretinha, e junto desse flutuante ficava um campo/pasto de gado. E eu me lembro que dois primos meus, dois irmãos, me chamaram, me pegaram pelas mãos e me levaram para o campo. Eu era muito pequeno, tinha uns quatro ou cinco anos, não me lembro bem. Por isso é que eu digo que é uma lembrança engraçada. Freud certamente explica. Nesse campo tinha uma casinha que eles tinham feito de mato, de árvore, folhas. Sei que a irmã deles deitou e ele me deitou sobre a irmã dele. A partir daí apaga tudo [na minha memória]. Eu não sei nem o que me aconteceu. Eu não sei sequer se aconteceu alguma coisa. Mas essa é a minha lembrança mais primitiva.
Em nossa carreira, você é da geração dos anos 90. A nova geração de procuradores, recém-empossados, tem algo a aprender com os colegas mais antigos? E tem algo a ensinar?

Sim, nós temos muito a aprender com eles e temos também muito o que ensinar. Muitos colegas que assumem hoje o Ministério Público Federal têm mais idade que os colegas tinham quando eu assumi. A idade na carreira pode ser maior que a idade cronológica. Eu estou com 52 anos. Por exemplo, o Rafael Siqueira de Pretto, que também é da geração dos anos 90, quando ele assumiu como procurador da República tinha 21 anos, apenas. Dez anos depois estavam tomando posse colegas de cinquenta anos. Então a idade biológica dos que estão entrando pode ser bem superior à idade daqueles que já estão aqui. Mais novos são mais antigos, na carreira!

E essas pessoas, todos nós, trazemos da vida os aprendizados. Não especificamente sobre o MPF. Mas esse aprendizado que vem da vida lá de fora é muito útil aqui dentro. E nós podemos obviamente compartilhar com os colegas que estão chegando agora aquilo que nós aprendemos aqui.

É claro que eu já fiz isso, todos nós fazemos: quando chegamos, achávamos que quem está aqui dentro não sabia de nada, estava ultrapassado e que quem estava chegando é que era o dono da verdade, era quem iria revolucionar. Esse pensamento é bom, é positivo, mas saibam que nós já passamos por praticamente tudo o que vocês ainda vão passar. Coisas que para os senhores, para os recém-chegados, é novidade, nós já vimos há uns vinte ou quinze anos. Isso não quer dizer que os senhores não devam levantar o problema, até para que a gente divida a resposta que na época nós encontramos. As respostas, como eu tenho dito nesta entrevista, são sempre respostas inconclusas. Não somos, eu pelo menos eu não sou, donos da verdade. Então estamos aqui sempre para aprender, e também para ensinar um pouquinho, diria que a palavra melhor seria compartilhar — não é nem ensinar, portanto, mas compartilhar – como determinadas questões receberam determinadas respostas, nas épocas em que formuladas. Podiam estar certas como podiam não estar. Não há nada definitivo, como eu disse, e as questões poderão ser aperfeiçoadas.

Hoje nossa rede de computadores nos ajuda muito quanto a isso. Logo que entrei no MPF eu fui jogado em Roraima e lá fiquei sozinho durante algum tempo. E a nossa rede ainda não funcionava. Então eu não tinha com quem compartilhar minhas angústias, minhas preocupações, minhas dúvidas. E isso não acontece hoje. Hoje se você, colega que está lá em Pau dos Ferros, RJ, ou em Tefé, AM, tiver uma dúvida, coloca em nossa rede a sua pergunta sobre como é que foi solucionado determinado problema, se alguém já o enfrentou anteriormente, e em poucos minutos você tem pelo menos um caminho a trilhar, uma ideia. Porque um colega que já passou por aquilo compartilha um ensinamento sobre o trabalho dele. Você terá um guia tanto para seguir naquele caminho como para mudar de direção. Porque às vezes é bom a gente saber determinadas coisas para a gente não seguir aquela trilha. Por exemplo, eu assino determinado jornal aqui de São Paulo, considerado um jornal de direita. Alguém me questionou por que eu faço isso. Eu disse ‘para fazer justamente o contrário do que ele manda fazer, o que ele determina, o que ele sugere’.
Então nós temos muito ainda para compartilhar, e os colegas que estão chegando agora, que sejam bem-vindos, e que nos ensinem, que não tenham temor de compartilhar, porque todos nós estamos na terra para errar, e para acertar muito pouco — a gente dificilmente acerta. Mas o importante é ter boa vontade e estar preparado para mudar de curso quando isso for necessário e quando alguém nos mostrar que há uma saída melhor do que aquela que nós imaginávamos que seria.

Bruno: Isso que você disse tem um fundo de verdade. É evidente que do nascimento à morte estamos sempre aprendendo – pelo menos sempre podemos aprender algo novo. Mas você não acha estranho receber os colegas que, em sua maioria, nunca trabalharam como membros do Ministério Público, e lhes dizer: “Estamos aqui para aprender com vocês”? Não acha que existe aí um elemento de renúncia à responsabilidade que os veteranos têm em benefício dos recém-ingressos? Se no meu primeiro dia de estágio acadêmico meu chefe me viesse com essa de ‘estou aqui para aprender com você’ eu não o levaria muito a sério e provavelmente iria atrás de outro lugar onde pudesse aprender alguma coisa…

Osório: Eu, particularmente, prefiro errar pela humildade, sincera! Dizer a um estagiário que eu sei tudo e que ele não sabe nada pode inibi-lo definitivamente! Quando digo isso aos estagiários com quem trabalho, quero incentivá-los a externarem pensamentos seus, que às vezes já me levaram a mudar de rumo.

Tem colega que expõe seus títulos, e até sua genética, para mostrar ao estagiário quem é que manda e quem é que sabe ali! Eu optei por outro caminho! E o melhor, para mim: salvo engano, estagiário meu nunca pediu para mudar de gabinete.

Isso fica mais claro, para mim, quando trato com um procurador da República igual a mim.

Bruno: Daqui a trinta anos você estará aposentado. Se lhe perguntarem por que terá valido a pena viver a sua vida, o que provavelmente você dirá?

Osório: Eu não sei se daqui a trinta anos eu estarei aposentado. Não sei nem se eu chego até lá. As circunstâncias da vida às vezes nos fazem prever uma data longínqua quando na verdade o fim está muito próximo. A única certeza — apesar de tudo o que a gente vem falando aqui dos sofistas, que eram contra esse problema da certeza e da verdade –, a única certeza que ainda permanece como tal é a morte. A gente poderia falar longamente sobre isso, porque tem os espíritas que não acreditam na morte, mas apenas no fim da matéria etc – mas não é o caso. Então não sei se estarei aqui daqui a trinta anos. Pode ser que minha família receba o pecúlio da Associação dos Procuradores antes disso.

Mas supondo que daqui a trinta anos eu esteja aposentado. Eu estou com 52 – então nem são trinta, mas dezoito, quando virá a ‘expulsória’ com setenta anos. Você me pergunta se terá valido a pena. É claro que todos esses anos terão valido a pena. A vida vale sempre à pena. A vida é uma alegria, é uma fortuna, é tudo de bom. A gente vai aprendendo isso infelizmente quando a vida se aproxima do fim. Só aí que a gente vai vendo essa beleza da vida. quando a gente é jovem a vida não tem muito significado. A gente vive tão intensamente que não tem tempo de pensar na vida. A gente pensa muito pouco na vida. Como é bom ser jovem, como é legal ser jovem! – e a gente vê isso quando vai ficando velho. Apesar de eu ainda jogar futebol, ainda fazer um monte de astúcias que eu fazia enquanto menino, sinto que já não tenho a mesma agilidade, a despeito da habilidade em marcar gols e armar jogadas (risos). Mas terá valido a pena porque eu tenho quatro filhos. Daqui a uns dias talvez meus filhos me deem netos. Eu fiz amigos, eu questionei, eu li, eu bebi cachaça – eu não fumo, nunca fumei, mas eu bebi – cachaça (toda a espécie de bebida alcoólica está incluída no gênero cachaça), eu chorei, eu sorri, eu amei (fui amado!), eu li poesia, eu li filosofia, eu fiz tudo isso.

Mas o fundamental, que me fez inclusive aceitar esta entrevista, é aquilo que eu tenho tentado fazer na minha página na internet, no meu blog, que é o seguinte: eu não sou exemplo para nada, talvez seja uma das piores pessoas do mundo, mas eu queria que meus filhos seguissem o caminho que eu trilhei, que é o caminho dos estudos; queria que eles estudassem. Eu já lhe disse que não vou deixar herança nenhuma para eles a não ser o estudo. E gostaria que eles aproveitassem isso. Então, o que eu espero deles é o estudo.

Mas eu não espero isso apenas dos meus filhos, porque eu não quero ver um mundo feito apenas por meus filhos. Eu quero que os filhos dos outros tenham as mesmas oportunidades que os meus filhos tiveram. Eu estudei com muita dificuldade. E comparando a realidade deles hoje com a que eu tive, meus filhos estão em ‘berço esplêndido’.

Mas quando eu falo tudo isso, as pessoas para as quais eu mais me volto são as de Maraã, lá da minha terra. Para mostrar a elas que embora eu não seja nada, como disse lá no poema do Fernando Pessoa, e não queira ser nada e que jamais serei nada, eu tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos os meus sonhos através dos estudos: já estive em hotéis cinco estrelas, já fui para a Europa, já comprei carro novo, eu tenho casa, eu como bem etc. Então para quem quase passou fome até na época da universidade, para quem ia às aulas com a mesma camisa por dois dias seguidos, isso é muito, é muito mesmo. Se você olhar para o meu passado, eu sou um homem feliz, um homem rico e realizado.
Então, como eu disse, eu queria que todo menino de Maraã acreditasse nisso. ‘Se você acha que isso é alguma coisa e tem significado para você, estude que você também consegue. E é alguma coisa, sim, porque lhe ajudará a sair da situação de quase-fome que você vive aí’. Lá em Maraã ninguém passa fome, porque você joga o anzol no rio e logo vem o peixe – e você tem a farinha. E com tudo isso você consegue sobreviver. Mas não é só disso que a vida é feita. Você pode estudar e viver no Maraã, claro. Mas você pode estudar e ajudar a vida dos outros também.

Então, se eu puder ser exemplo de alguma coisa, se a minha história puder ser exemplo, gostaria de ficar como exemplo de perseverança para conseguir estudar. Eu queria deixar isso para o povo de Maraã. Eu tenho um filho que se chama Osório di Maraã Barbosa, que até está aqui agora comigo. Eu coloquei esse nome nesse camarada justamente para que eu não me esqueça um só dia de minha terra, essa terra que eu amo tanto. E eu queria que todos os filhos de lá estudassem…
Então a vida terá valido a pena se pelo menos um daqueles meninos — vários já fizeram isso ao longo desses últimos anos, eles têm feito isso — saísse de lá para estudar como eu fiz; e que depois voltasse ou ficasse onde quer que seja. Mas que todos saibam que por intermédio do estudo eles podem realizar seus sonhos, sonhos que às vezes são pequenos como eram os meus, mas que eram tão grandes quando eu não tinha nada, que hoje eu me surpreendo.

Então é isso: a vida já valeu a pena e vai valer a pena até o último suspiro. Eu não sei quando será. Espero que demore muito! Mas ela será e vem sendo construída, como eu procuro fazer, com muita alegria. Eu não tenho muitos amigos, mas os que tenho, que são poucos, sabem e me aceitam do jeito que eu sou: questionador, mas sempre leal. Eu procuro ser leal a meus amigos. Se não gosto da coisa, digo a eles que não gosto, que acho que não é aquilo e aí muitas vezes a gente constrói em cima disso melhores relações: eu sabendo do que eles não gostam e eles sabendo do que eu não gosto. E a gente vai vivendo assim.

A vida para mim sempre valeu a pena, valeu a pena desde que eu decidi que ia estudar, e tem valido a pena ao longo da minha vida profissional, que tem sido voltada, e foi voltada sempre, para o mais humilde, para a população que paga meu salário, meus subsídios, e que eu procuro corresponder trabalhando em prol dos mais miseráveis, porque o forte não precisa, ele já tem quem o defenda. Ao pobre, ao miserável, é difícil encontrar uma palavra em seu favor; encontrar alguém que veja que ele é um injustiçado. Para o rico isso é muito fácil. Então, para mim, por tudo isso, a vida tem valido a pena.

Bruno: Agradeço sua participação, Osório! Vá pela sombra!

Osório: A distinção do convite, as recordações e os sonhos que expus, Bruno, valeram a pena e aumentaram minha alegria por ter vivido até aqui. Obrigado!

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

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Entrevista com João Brandão: “Como forma de prestar contas a Deus (ou à Pátria) o trabalho é muito mais eficiente e realizador; e obtém mais resultados do que a execução de obrigações decorrentes de um castigo imposto pelo pecado”.

João Brandão é conhecido por todos por seu interesse na História das Civilizações e, em especial, na História da Península Ibérica, de sua legislação antiga e de suas repercussões e aplicações no Brasil. “Acredito que agimos conforme a cultura jurídica ibérica, seja nas expressões corriqueiras, nas fórmulas documentais, seja nas práticas processuais que jamais conseguimos retirar do ordenamento jurídico”.

Denunciando o que chama de ‘cortesismo’ dentro do MPF, deplora a alocação de maior quantidade de recursos e mais aparato nas capitais (a corte) do que no interior (a província). Segundo compreende, também legamos esse costume excessivamente centralizador da Colônia e do Império, por exemplo, nas homologações das promoções de arquivamentos e nos declínios de atribuição dentro do MPF, que obrigatoriamente devem ser analisados pelas câmaras de coordenação e revisão em Brasília.

Para ele, surgidas as inovações que o Ministério Público patrocinou nas décadas de 80 e 90, “logo se criaram mecanismos que frearam os ímpetos inovadores, regraram as atividades e aumentaram a centralização, além de punirem a publicidade dos trabalhos e seus resultados, retomando assim a velha cultura que sempre vicejou entre nós, desde 1500”.

Essa entrevista foi concedida a partir de Florianópolis, SC, onde João atualmente trabalha. A satisfação em manter esse diálogo foi mútua. Saí dele com algumas perspectivas interessantes de pesquisa. É isso o que frequentemente nos deixam as ‘luzes na planície’ que passam por nossa vida.

Um ‘dedo de prosa’ dos mais agradáveis — é o que você terá a chance de conferir nesta entrevista com João Brandão.

Você deixou a PRM Blumenau após dezesseis anos de trabalho. Cansou-se de trabalhar em PRM? O que mudou no trabalho com sua ida para a PRSC?

Para se entender a diferença entre uma PRM e uma PR, em SC, é fundamental conhecer as características do Estado. Em Santa Catarina não há cidades com mais de 500 mil habitantes e a capital (Florianópolis) não é a maior cidade do Estado (posto ocupado por Joinville). Há um triângulo formado pelas cidades de Blumenau, Joinville e Florianópolis, com Itajaí e Balneário Camboriú no meio, que constitui o núcleo da vida econômica, cultural e de lazer no Estado de Santa Catarina. Não há diferença entre viver numa ou noutra destas cinco cidades, nas quais há os mesmos serviços, as mesmas comodidades e os mesmos confortos. Assim, o que muda é o tratamento dado pela administração dos diversos órgãos públicos às repartições que ficam na capital ou no interior. Neste tratamento, ocorre o que eu chamo de “cortesismo”, que é o oposto de “provincianismo”, mas que pertence ao mesmo tipo de vício: mais atenção, mais recursos e mais aparato ao que fica nas capitais (a corte) do que ao que está no interior (a província). Isto é também uma vertente da centralização excessiva que há no Brasil, resquício do Império e da Colônia (exemplo deste centralismo são as homologações de arquivamentos e dos declínios de atribuição no MPF). O que cansa, então, na PRM, é a insolubilidade de certos problemas, como o acúmulo de trabalho, a carência constante de pessoal, a dificuldade para equipar a repartição etc. Então vai se chegando a um ponto que não se suporta mais a dificuldade para obter tudo e se é tomado pela desesperança de alcançar uma solução ideal. No meu caso, porém, havia uma particularidade: a aproximação do tempo da aposentadoria, somada com a residência dos familiares de minha esposa e meus em Florianópolis ou Itajaí. Assim, à desesperança de melhoria das condições de trabalho na PRM (onde trabalhava) e na subseção da Justiça Federal (onde minha esposa trabalhava) se somou a proximidade da aposentadoria e o plano de morar (quando aposentado) perto dos familiares. O que mudou no meu trabalho na PRSC em relação à PRM Blumenau: exatamente o dispor de mais gente com quem dividir o trabalho (a desproporção na quantidade de procuradores da República lotados em Florianópolis e os lotados em Blumenau não encontra qualquer paradigma lógico: doze procuradores em Florianópolis para uma população de cerca de 500 mil habitantes e quatro Procuradores em Blumenau, para 350 mil habitantes); mais equipamento, mais serviços (por exemplo: biblioteca com duas bibliotecárias e nenhuma em Blumenau, duas máquinas fotocopiadoras no gabinete contra uma em Blumenau, especialização nas atribuições, permitida pela quantidade de Procuradores, o que era inviável em Blumenau e assim por diante).

A história do Ministério Público nas décadas de 80 e 90 é a história da conquista de garantias institucionais e de instrumentos processuais que constituíram com uma das forças públicas na história recente do Brasil. Alguns ícones dessa geração convivem hoje com colegas recém-empossados, separados por até duas gerações. Acredita a geração que construiu o MPF da primeira década pós-Constituição constituiu uma certa tradição? Se sim, essa tradição foi ou vem sendo transmitida às novas gerações?

O tempo me criou a impressão que as conquistas das décadas de 80 e 90 foram uma tentativa de quebra da cultura que nos regula há 500 anos. Então tivemos um período de maior independência, de trabalhos efetivamente inovadores e de uma ousadia maior no desempenho das atividades. Mas esta ousadia, que se traduz em maior eficiência no trabalho, maior busca por resultados, só vai sobreviver se for sustentada por uma cultura individualista, impessoal, igualitária, meritocrática e republicana, exatamente o contrário de nossa cultura de 500 anos, que é relacional, personalista, desigual, apadrinhadora e patrimonialista. E a esta cultura se soma a visão católica do trabalho, que o enxerga como um castigo decorrente do pecado original e não – como os protestantes – uma missão da qual se tem que prestar contas a Deus. Assim, surgidas as inovações (quiçá apenas um furor oposicionista), logo se criaram mecanismos que frearam os ímpetos inovadores, regraram as atividades e aumentaram a centralização, além de punirem a publicidade dos trabalhos e seus resultados, retomando assim a velha cultura que sempre vicejou entre nós, desde 1500. Logo, não há como tentar transmitir às novas gerações uma tradição que não foi trazida, mas que, na realidade, foi uma quebra de tradição. E a quebra de uma tradição só se mantém se pagar constantemente o preço deste rompimento, até que o novo se imponha sobre o antigo. As novas gerações apenas retomaram a antiga tradição na qual foram educadas e treinadas já no âmbito familiar.

É voz corrente que a configuração constitucional do Ministério Público brasileiro de hoje não encontra paralelo em outros países. Você consegue dizer quem teria ocupado no passado e quem ocuparia hoje as correspondentes funções nas diversas sociedades cuja história você já estudou?

Eu nunca fiz um estudo comparado do Ministério Público em outras culturas. Apenas estudei (e não sei o quanto conheci e o quanto faltou conhecer) as culturas que geraram a nossa, quais seja, a cultura romana, visigótica, árabe, centro-africana e ameríndia. E não posso deixar de acreditar que nosso Ministério Público, na sua realização prática, foi gerado pela aglutinação destas culturas. Mesmo que insistamos em algum ingrediente francês, nossa cultura ibérica se afasta do restante da Europa quando recebe a forte influência árabe, que se sobrepõe à cultura dos germânicos visigodos. Note-se, por exemplo, que os francos se misturaram aos latinos, mas não receberam influência árabe. Então já nesta origem ibérica fomos criando instituições peculiares. Daí haver também certa peculiaridade no nosso Ministério Público. Sobre Roma, Montesquieu, no seu Espírito das Leis, diz que um cidadão podia acusar o outro. Mais para frente, no tempo, o primeiro Código Ibérico conhecido é o Fuero Juzgo (o Código dos Visigodos, do ano 500 d.C.); é nele que vejo o germe do nosso Ministério Público: o rei, os bispos e príncipes deveriam ingressar nos pleitos por mandatários [“Isto porque pareceria desonra a tão grandes homens se algum homem que lhes fosse inferior contestasse o que dissessem na demanda. E se o rei quisesse estar em pessoa na demanda, quem ousaria contestá-lo? Assim, para que por medo do poder não desfaleça a verdade, mandamos que não tratem eles (bispos e príncipes) o pleito por si, mas por seus mandatários” Livro II, tít. 3, I]. Esta nomeação de um mandatário para o rei, para o príncipe e para os bispos, me parece ser a primeira concretização do que veio a ser nosso Ministério Público. Após o Fuero Juzgo, veio a dominação muçulmana na Península Ibérica e nunca achei a figura do acusador nas notícias que li sobre a Sharia (a lei muçulmana, resultante da interpretação do Corão). Era o Cádi que aplicava a lei. Interessante que tivemos o Alcaide (termo derivado de Cádi) em Portugal, que era o encarregado do policiamento nos Castelos. E em Portugal, desde 1521, as Ordenações Manuelinas já regulamentavam o ofício de Promotor da Justiça, um Desembargador encarregado de fazer a acusação dos crimes. Nos lugares menores do reino português, quem fazia a acusação eram os tabeliães ou o Alcaide das Sacas (nos casos de contrabando de gado, que se chamava ‘passagem de gado’ – Livro 1, Título LXXVI). Mas desde o advento do nosso Código de Processo Criminal, em 1832, já havia a figura do Promotor Publico (no art. 37 constava que suas atribuições eram denunciar alguns tipos penais, solicitar a prisão e punição dos criminosos, promover a execução das sentenças e mandados judiciais, dar parte às autoridades competentes das negligências, omissões e prevaricações dos servidores da administração da Justiça). Também nunca achei entre os povos centro-africanos cujos descendentes imigraram para o Brasil como escravos, a figura de um acusador, que, igualmente, não parecia existir entre os índios. Nos reinos africanos, o Rei ou o Soba (ou Sova) aplicava a Justiça e, entre os ameríndios, a Taba, reunida, o fazia. Talvez isto explique a dificuldade que as pessoas têm de entender nosso trabalho, independentemente do grau de instrução. Assim, temos o Ministério Público Brasileiro com uma conformação legal bastante interessante, mas uma legitimidade, ou um respaldo social (entendido como o conhecimento que a população tem das nossas atividades, que viabilizaria a aprovação destas atividades) bastante aquém daquilo que seria desejável para nos sentirmos seguros no desempenho das nossas atribuições.

Para você a ‘música é a sonoplastia da vida’. Eu gostaria de ouvir mais sobre essa sua concepção. Como assim, Brandão?

Cada momento tem um som, desde o dos carros que passam na rua quando caminhamos pela calçada, até o barulho do mar, se estamos na praia ou do farfalhar das árvores, se na floresta. Se associamos a um momento uma música, ela pode dar o ritmo e/ou a emoção daquele momento. Ou se nos confrontamos com uma lembrança da nossa vida, a música da moda naquele tempo da lembrança pode avivar a recordação. É este reforço de momentos, sensações e emoções que faz a trilha sonora de um filme, uma peça de teatro, ou uma novela terem mais vida, mais força, mais beleza, mais capacidade de aguçar nossos sentimentos.

Por que você tem tanto interesse na história das civilizações? É capaz de indicar três livros que ajudariam pessoas de cultura mediana a entender o Brasil de hoje?

Meu interesse na história é para entender o presente; como e porque agem as pessoas deste ou daquele modo. Donde também tenho interesse pela Sociologia. Minha dissertação de mestrado (A Intenção de Cumprir a Lei) foi o relatório de uma pesquisa de opinião, feita com 351 pessoas, entre 1986 e 87.

No tocante aos três livros, um deles precisaria tratar da cultura ibérica, outro da cultura centro-africana e outro da cultura ameríndia, que são os povos que formaram nossa base cultural. O molho alemão e o italiano só vieram bem mais tarde, com os imigrantes, funcionando mais como tempero do que como ingrediente e ficaram limitados a determinados pontos geográficos do país. Assim, a cultura ibérica poderia ser visitada na ‘História do Direito Português’, de Marcelo Caetano, mas seria importante uma visita à cultura muçulmana que ali vicejou, e um livro interessante é ‘Cristãos e Muçulmanos – A luta pela Península Ibérica’, de Bernard Reilly; para um conhecimento da África, ‘A Manilha e o Libambo’, de Alberto da Costa e Silva é um bom começo; sobre os ameríndios, ‘A Sociedade contra o Estado’, de Pierre Clastres é boa leitura. E a lista já foi e vai um pouco além dos três livros, pois para começar a entender esta complexidade que é a cultura brasileira, ‘Raízes do Brasil’, de Sérgio Buarque de Holanda é um clássico.

Qual é o seu interesse no estudo da legislação ibérica antiga?

Acredito que aparentamos atuar numa cultura jurídica (a dos povos nórdicos, germanodescendentes: anglo-saxões, francos, alemães e outros), mas, na realidade, agimos sinceramente conforme a cultura jurídica ibérica, seja nas expressões corriqueiras (se queixar ao bispo – no Fuero Juzgo era ao bispo que se recorria das sentenças judiciais), nas fórmulas documentais (os termos das audiências começam com a frase ‘aos costumes disse nada’ e a definição destes ‘costumes’ existe somente nas Ordenações Filipinas), seja nas práticas processuais que jamais conseguimos retirar do ordenamento jurídico (o agravo de instrumento, as exceções, os múltiplos recursos, o excesso intimações, a infinidade de respostas de réus e autores no mesmo processo e assim por diante). Por esta razão, conhecendo a legislação ibérica antiga, é possível, por exemplo, predizer que reformas processuais terão chance de vicejar e quais não terão; que costumes forenses são imutáveis e assim por diante.

Onde passou sua infância? Que lembranças tem de sua meninice?

Passei minha infância em Itajaí, SC. Tenho muitas lembranças: as procissões que ia com meu pai, o teatro sacro que ele dirigia, os filmes de faroeste que via nos cinemas da cidade, a convivência na escola, a presença e companhia de meus pais e irmãos, enfim, toda aquela lembrança de um tempo sem responsabilidade, em que a solução de todos os problemas está dependendo – na ideia da gente – somente da boa vontade de nossos pais.

Que lugar as viagens ocupam na sua vida? Para onde tem ido ultimamente?

As viagens disputam meu tempo com o trabalho. Viajaria mais se fôssemos, eu e minha esposa, aposentados. Viajava ao exterior uma vez por ano, mas, por conta da espera do concurso de remoção e, depois, por causa da mudança de cidade, fiquei dois anos sem fazer este tipo de viagem. Mas circulo muito por dentro do triângulo de que falei no começo, mais especificamente por Balneário Camboriú, Itajaí, Brusque e – pelo menos a cada seis meses – volto a Blumenau para matar as saudades. Na última viagem que fiz ao exterior fui a Londres e Paris.

Você diz que tenta hoje mudar a realidade a partir da eficiência do seu próprio trabalho. Eu gosto particularmente dessa ideia. Acho que penso muito como você. Fale mais sobre como chegou a essa concepção…

Há um livro que me fez refletir muito sobre o trabalho: ‘A Ética Protestante e o Espírito Capitalista’, de Max Weber. E eu tive oportunidade de comparar a Ética Protestante e a Ética Católica morando em duas cidades brasileiras, uma com colonização luso-católica (Itajaí) e outra com colonização teuto-protestante (Blumenau). Antes de morar em Blumenau, muito antes, eu já conhecia a cidade e a pesquisa que gerou minha dissertação de mestrado (feita em Itajaí) levou-me a comparar uma cidade com a outra. Com a informação na cabeça, também prestei mais atenção em certos países e percebi que nos EUA, por exemplo, a dedicação ao trabalho é uma forma de patriotismo. Percebi que o trabalho como forma de prestar contas a Deus (ou à Pátria) é muito mais eficiente, mais realizador e obtém mais resultados do que aquela pachorrenta execução de obrigações decorrentes de um castigo imposto pelo pecado. O trabalho realizado como punição é sempre odiado, sempre adiado, sempre visto como uma indignidade e gera comportamentos reativos, como a reivindicação de férias escandalosas de tão longas, a expectativa de remunerações estratosféricas e não condizentes com a baixa qualidade do serviço, o descomprometimento com a prestação do serviço, enfim, a farsa por profissão. A vida em Blumenau me permitiu ver no cotidiano aquela relação positiva com o trabalho de que trata Weber ao estudar os protestantes: comprometimento com qualidade, maior eficiência, melhores resultados.

Usando a metáfora de Antoine de Saint-Exupéry, se você sobrevoasse o Brasil à noite, que ‘pequenas luzes perdidas na planície’ mais chamariam a sua atenção?

Em 2003 visitei uma das feiras de Goiânia, não lembro se era da Lua, do Entardecer ou algum nome parecido. Penso que são pessoas daquele tipo que constroem o Brasil de hoje. Estas feiras, os aeroportos cheios de gente viajando de avião pela primeira vez, os vendedores que gostam de vender suas mercadorias, os empresários que perseguem o lucro decorrentes de inovações que satisfaçam os clientes, os prestadores de serviço que atendem bem os clientes, os servidores públicos que servem ao público e não se servem da coisa pública, os contribuintes que pagam seus impostos em dia, essas são as pequenas luzes que vejo perdidas na planície.

Sente-se realizado com o trabalho, hoje?

Uma vez, acho que foi João Saldanha quem disse, ouvi dizer que “um homem realizado é um homem morto”. Tenho medo de me sentir realizado. Acho meu trabalho muito agradável, lamento ter feito concurso aos 39 anos (poderia ter feito aos 24 ou 25) e acho que, no cargo de Procurador da República, se pode fazer muita coisa boa para o país, ou, pelo menos, para a sociedade à qual a se serve – que, afinal, é uma forma de servir ao país. São coisas que tornam agradáveis meu cotidiano profissional. Acho que sou bem pago pelo trabalho que faço (jamais consegui uma remuneração assim em outros empregos que tive) e que é agradável o serviço de que sou incumbido de fazer. Se isso é realização, posso dizer que sou realizado.

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