“Estamos em pleno processo de disputa pela Amazônia. Dependendo de quem vença essa batalha, poderemos dizer se a Amazônia continuará existindo”. Entrevista com Felício Pontes Jr.

Nascido na cidade de Abaetetuba, PA, Felício Pontes passou sua infância brincando no rio, nos campos de futebol e nos quintais de seus vizinhos. Impactado pela construção de uma fábrica em um município vizinho, acabou, mais tarde, decidindo tornar-se procurador da República, “local mais eficaz de fazer a defesa da floresta e de seu povo”.

Felício acredita que a relação dos indígenas com os moradores de centros urbanos é uma via de mão dupla: “Temos muito a apreender com os indígenas. E eles têm muito o que aprender conosco”. Porém, segundo diz, “a FUNAI foi amarrada para não agir no caso dos grandes empreendimentos”.

Indígenas, ribeirinhos, quilombolas e demais povos da Floresta Amazônica com frequência lhe dizem — certamente como fruto de sua dedicada atuação na Procuradoria da República — que o Ministério Público Federal está entre os poucos que ainda resistem na luta por dar a cada um o que é seu.

Nos últimos anos, Felício tem se dedicado a investigar o licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a ajuizar as justas ações judiciais contra a construção do empreendimento. Segundo acredita, muitos dos erros só aparecerão com a usina já construída. Ainda assim, prossegue a batalha “porque não cabe ao MPF fingir que o processo de licenciamento ambiental está certo, quando seus atos continuam a demonstrar desrespeito à legislação”.

Veja nosso bate-papo com esse procurador da República imprescindível. Este é o nosso 21º ‘dedo de prosa’, um agradável colóquio à sombra de uma castanheira, testemunha dos desmandos e das maravilhas da Floresta Amazônica.

No seu contato com as etnias indígenas do Pará, sente que os índios têm algo a ensinar aos atuais moradores dos grandes centros urbanos? Por outro lado, a civilização ocidental tem algo a ensinar aos índios?

Há aqui uma via de mão dupla. Temos muito a apreender com os indígenas. E eles têm muito o que aprender conosco. Fico maravilhado quando estou com eles. Por exemplo, a relação deles com a natureza é quase incompreensível para a nossa civilização. Se eu pudesse simplificar ou traduzir, diria que uma das concepções deles é que a natureza tem direitos. A natureza para eles é um ser vivo, no nosso sentido civilista. Aliás, somente agora o Direito em nossa civilização se abriu para isso com a Doutrina dos Direitos da Natureza. Taí um ensinamento deles.

Mas não é só isso, algumas etnias nos chamam de “povo das mercadorias”. Acham que somos movidos pelo acúmulo de coisa inúteis. Criticam nosso apego a coisas materiais. Eles têm toda razão. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, um dos maiores pensadores da atualidade, disse, em entrevista recente algo que vale propagar: “Os índios são especialistas em fim do mundo. O mundo deles acabou em 1492. Eles podem nos ensinar a viver melhor num mundo pior”.

De nossa parte a eles, colocaria em primeiro plano a tecnologia. A tecnologia vem ajudando muito os indígenas, sobretudo nas comunicações.

Eu tenho a impressão de que as batalhas jurídicas em torno da Usina de Belo Monte não serão capazes, como já não foram, de impedir a instalação do empreendimento. Se a usina estiver funcionando a plenas turbinas daqui a trinta anos, você imagina que alguma vitória, a partir da atuação do MPF, poderá ser contabilizada no conjunto?

A Usina de Belo Monte é paradigmática. É uma usina de erros. Infelizmente, muitos deles só aparecerão com a usina já construída. Acho que continuar a luta, mesmo com 50% da usina construída, é necessário. E é necessário por no mínimo três motivos: i) porque não cabe ao MPF fingir que o processo de licenciamento ambiental está certo, quando seus atos continuam a demonstrar desrespeito à legislação; ii) o exemplo que pode orientar a sociedade contra as próximas barragens planejadas para a Amazônia; e iii) nosso comprometimento com os atingidos. Muitos deles dizem que estamos entre os poucos que não se venderam.

Na minha experiência de trabalho com o IBAMA, em licenciamento ambiental de usina hidrelétrica da região da PRM Governador Valadares, fico com a impressão geral de que os técnicos daquela autarquia trabalham de modo muito amador e, a bem da verdade, desconectados dos impactos sociais dos empreendimentos que licenciam. Você tem a mesma impressão a partir da sua atuação no Pará? Os deslocamentos populacionais originados de construções de usinas hidrelétricas são um drama humano notável que, na minha visão, não recebem o devido tratamento da autarquia federal. Você enxerga um panorama menos dramático, Felício?

Vejo a mesma coisa com um detalhe a mais, Bruno. Os atingidos aqui são povos da floresta. E eles são invisíveis aos olhos de quem decide e fiscaliza a construção de uma barragem. E quando são vistos, são encarados como um obstáculo a ser vencido. Hoje, com mais clareza, vejo racismo ambiental nessas decisões, que são tomadas por um grupo muito pequeno de pessoas dentro do Ministério das Minas e Energia, que chamo de a “caixa preta do governo federal”. Não se sabe o porquê dessas escolhas. Sabemos apenas que são as obras mais caras do país, e que os construtores são os maiores doadores de campanhas políticas — tanto da situação, quanto da oposição — segundo dados do TSE. Talvez isso explique algo.

Como avalia a atuação da FUNAI nos últimos anos? Vê a política indigenista brasileira com bons olhos?

A FUNAI foi amarrada para não agir no caso dos grandes empreendimentos e, quanto ao enfrentamento do latifúndio, o governo optou por ficar ao lado deste. Prova disso é brutal queda nas demarcações das terras indígenas nos últimos anos. Os sertanistas, os técnicos… ficaram sem voz.

Os abaixo-assinados como o promovido pelo ‘Movimento Gota d´Água’ recebem milhares e, em alguns casos, milhões de apoiadores virtuais. Independentemente da natureza das causas defendidas, não acha que a utilização de artistas e de abaixo-assinados virtuais nessas contendas desqualifica as discussões que efetivamente deveriam ter lugar no contexto de grandes empreendimentos potencialmente danosos ao meio ambiente e à população diretamente atingida?

Eu acho importante a participação de artistas nessas campanhas. Mas não deve ser um fim em si mesmo. Ao contrário, essas campanhas devem chamar a atenção para o tema. Seu aprofundamento deve ser realizado por outros instrumentos de comunicação. E nesse sentido Belo Monte foi quem chegou mais perto. Depois da companha do Movimento Gota d’Água, vários filmes — curtas e longas –, seminários, documentos dos processos, foram disponibilizados a quem quisesse. É impressionante o número de TCCs, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o tema. O resultado foi que, por exemplo, no site do MPF/PA, o download dos processos de capa a capa bateu recorde de visualização.

Irmã Dorothy, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo – seus sangues e de muitos outros irrigam a terra amazônica. Você vê sementes crescendo em torno dessa luta? Que árvores nascerão daí?

Veja. Anapu era uma cidadezinha esquecida da Transamazônica no fim do Século passado. A população quase duplicou em pouco mais de um ano com o anúncio de Belo Monte. As pessoas que chegavam lá descobriam cedo que naquele tempo não existia obra nenhuma. Homens, mulheres e crianças ficaram acampados na praça à beira do rodovia. Descobriam cedo também que numa casa de madeira, pintada de verde-água, havia uma freira que podia ajudá-los a ter uma chão para plantar.

A Irmã Dorothy mostrava que havia área pública disponível a 50 km dali, em um travessão quase que intransitável da Transamazônica. Muitos aceitavam essa ideia como tábua de salvação. Ela vinha constantemente a Belém e conversava comigo sobre a situação jurídica da área. Tinha contato com ela quase que semanalmente. Lutamos para que o Incra reconhecesse a terra como um novo projeto de reforma agrária. Ela queria provar o que pra mim estava claro, mas que para o donos do dinheiro na Amazônia era impossível: que as pessoas ocupariam a terra sem devastar, de maneira extremamente lucrativa.

Nos 50 km para se chegar ao PDS só se vê pasto e miséria. Chegando lá a floresta é exuberante. Dorothy com a ajuda de quem conhecia a terra, levou sementes de cacau – que é nativo – e promoveu o consórcio com outras espécies: açaí, castanha, banana…

Pra resumir, o PDS ajudou a região a se tornar em 2009 a segunda maior produtora de cacau do Brasil. Era muito mais do que Dorothy sonhava. Hoje, quem menos conseguiu prosperar já possui moto. Quem prosperou mais, possui carro. Ela queria uma vida digna para aquelas pessoas que eu vi chegar sem nada. Nem calça comprida tinham. Ocuparam a terra em harmonia com a natureza.

O sonho de colocar as pessoas na floresta e não desmatá-la é o contrário de qualquer projeto de desenvolvimento da região. Qualquer um deles via a floresta como obstáculo, não como aliado. Ela via diferente, e nos levou a todos a acreditar nisso.

Não muito longe dali em Nova Ipixuna, um casal de trabalhadores rurais lutava dentro da assentamento para que ninguém vendesse as castanheiras centenárias que lá existiam. Eram pessoas muito carismáticas – o Zé Cláudio e a Dona Maria. Ninguém ficava indiferente diante deles.

Uma vez o Zé me mostrou uns produtos como óleos e cremes que fazia a partir da castanha-do-pará.  “Felício, eu levei isso aqui pra um assentado que vendeu uma árvore de castanha pra um madeireiro. Mostrei pra ele que preço pago é o lucro que eu vou ter com a venda desses produtos de poucos oiriços de uma árvore apenas. Só que eu vou ter o mesmo dinheiro ou mais no ano que vem. Ele não vai mais ter”. Que ideia perigosa! Os madeireiros não podiam permitir que isso pegasse. E o Zé e a Maria foram mortos em emboscada covarde em junho de 2011.

Acho que a Amazônia vive hoje o choque entre dois modelos diferentes de desenvolvimento. O primeiro pode ser chamado de modelo de desenvolvimento predatório. O segundo de socioambientalismo. O primeiro modelo começou a ser implantado na época da ditadura militar – nos anos 70. Estava baseado em duas atividades básicas: madeira e pecuária. Num primeiro momento o ataque aos recursos florestais era realizado pelos madeireiros. Ou a atividade se desenvolvia de forma clandestina, ou não possuía fiscalização efetiva do órgão ambiental. O resultado foi – e continua sendo – trágico: o esgotamento dos recursos naturais. A terra, sem mais utilização para madeireiros, era vendida aos fazendeiros que terminavam de colocar embaixo o restante da floresta, considerado, literalmente, um obstáculo a ser derrubado. Em seu lugar plantavam capim. Os madeireiros, por seu turno, migravam para outra área ainda não desmatada e reiniciavam seu projeto. Esse modelo de “desenvolvimento” jamais acreditou no uso sustentado dos recursos florestais.

Hoje, as atividades econômicas que compõem esse modelo são, além da madeira e da pecuária, a monocultura de soja, a mineração — que bate recorde de exploração a cada ano –, e a exploração hídrica. Em oposição a esse modelo está o socioambientalismo. Ele parte de um princípio básico: articulação entre a biodiversidade e a sociodiversidade. Dito de outro modo, ele concilia desenvolvimento econômico com conservação ambiental. É concebido e voltado para os povos da floresta que possuem centenas de anos em conhecimento na forma de lidar com os recursos florestais sem o impacto suicida.

O socioambientalismo possui um campo fértil no Brasil – o líder mundial em biodiversidade. Em que pese tenha sido estudado apenas 5% do potencial farmacológico da flora mundial, ¼ dos medicamentos usados em todo o mundo está baseado em produtos vegetais. Imagine se o Brasil tivesse estudado 15, 30 ou 50% de sua biodiversidade. Talvez ali estivesse a cura para doenças que hoje são incuráveis.

Além disso, produtos florestais como açaí, castanha-do-pará, e os óleos vegetais possuem valor comercial cada vez maior para a indústria de alimentos, cosméticos e de fármacos. Portanto, estamos em pleno processo de disputa pela Amazônia. Porém, dependendo de quem vença essa batalha, poderemos dizer se a Amazônia continuará existindo.

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