“O Ministério Público reflete a educação superior no Brasil, completamente dominada pelo pensamento esquerdista. Defender as próprias opiniões pode nos trazer dificuldades para ocupar determinadas posições na carreira”. Entrevista com Carlos Cabeleira.

Depois de passar alguns anos trabalhando no Timor-Leste como consultor internacional do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o procurador da República Carlos Vinícius Cabeleira voltou com a sensação de que o conhecimento técnico-jurídico não resulta necessariamente em decisões mais justas. A pergunta que ainda imprime efeitos em sua vida profissional é “por que estudamos tanto o Direito se as decisões não ficam mais justas?”.

Sobre a educação dos filhos, Carlos acredita que famílias desestruturadas e pais ausentes são o maior problema para as crianças. “Os pais não podem terceirizar a educação dos filhos, e têm que procurar exercer uma influência pessoal e direta sobre a vida da criança”, diz.

Crítico do que entende como uma indesejável tendência dentro do Ministério Público Federal, assevera que “o ambiente no MPF é o da ideologia dominante, o mainstream esquerdista. Parece que o MPF quer executar todos os itens da cartilha esquerdista, que inclui execrar os religiosos sob a equivocadíssima interpretação do Estado Laico como Estado Ateu”. Vê, porém, que  “para a atuação do dia a dia ainda temos muita liberdade e independência para atuarmos conforme entendemos correto”.

Acompanhe nossa 22ª entrevista, com o colega Carlos Cabeleira. Um ‘dedo de prosa’ repleto de ousadia e bom-senso, como manda o figurino.

Você está atuando como PRE substituto em matéria de propaganda eleitoral. Que desafios o Ministério Público Eleitoral tem enfrentado na questão da propaganda eleitoral?

As dificuldades são de três ordens. Em primeiro lugar, a legislação eleitoral é muito benevolente com os candidatos. Há muitas vedações na propaganda eleitoral para as quais não há previsão de sanção além da proibição da sua prática, como o uso de trios elétricos ou a propaganda noturna. Em outros casos, a lei dá uma tolerância absurda ao dar o direito de quem coloca propaganda indevida em bem público, por exemplo, de ser notificado para, sem sofrer multa, retirar a propaganda em 48h e restaurar o bem. Há ainda casos como a participação na inauguração de obras públicas ou a captação de sufrágio, nos quais a única sanção prevista é a cassação do registro ou diploma. Como essa punição se mostra muitas vezes exagerada, acaba não acontecendo nada com os infratores.

Em segundo lugar, a Justiça Eleitoral é ainda mais benevolente com os candidatos, ao exigir provas diabólicas para condenações que levem à cassação de candidaturas, com isso flexibilizando a Lei da Ficha Limpa e abrandando todas as penalidades nela previstas.

Por fim, a estrutura do Ministério Público para a fiscalização e atuação em matéria eleitoral ainda é muito deficiente, em especial para investigações de condutas vedadas e abuso do poder, em que não temos o apoio da Polícia Federal por não se tratar de crime. Isso também tem ocorrido em casos de propaganda vedada.

O desafio é continuar trabalhando, de forma criativa, usando os recursos que temos para tentar dar o mínimo de eficácia à legislação eleitoral naquilo em que ela ainda tem algum rigor.

A esse respeito, você deve conhecer pessoas que não gostam de ‘perder o voto’. A divulgação de pesquisas eleitorais, nesse contexto, não seria um modo inadequado de influenciar a vontade do eleitor?

As pesquisas eleitorais são um instrumento de orientação dos candidatos e partidos nas suas estratégias de campanha. Para essa finalidade, elas não precisariam ser divulgadas. Mas as pesquisas também permitem que o eleitor se oriente para o chamado “voto útil”, que se baseia mais na rejeição a um candidato do que na aprovação de qualquer um deles. Assim, quando o eleitor quer que o governo mude, por exemplo, é sempre válido votar no candidato de oposição mais bem classificado. Isso também ocorre nos casos em que não há segundo turno nas eleições majoritárias. Também no caso em que a prioridade do eleitor é eleger um candidato de determinada região, não importando o partido, as pesquisas lhe podem ser muito úteis.

Na verdade, seria conveniente que existissem mais pesquisas, principalmente para as eleições proporcionais, em que o voto é aproveitado para eleger qualquer candidato da coligação — quando o que recebe o voto não é eleito. Nesses casos há um verdadeiro “tiro no escuro”, que poderia ser melhor orientado se existissem pesquisas.

Assim, acho legítimo que o eleitor não queira “perder seu voto” e adote o chamado voto útil. A legislação atual já é bem rigorosa com as pesquisas, que devem ser registradas e devem cumprir vários requisitos. Além disso são vedadas as enquetes eleitorais e a divulgação de resultados das pesquisas no dia das eleições. A influência inadequada na vontade do eleitor ocorre nos casos de pesquisas fraudulentas ou feitas sem método adequado, porque faz com que o eleitor tome sua decisão com base em dados falsos. Mas acredito que a legislação atual já reprime bem essa situação.

O que você foi fazer no Timor-Leste, Carlos? Se pudesse transmitir aos colegas de sua geração duas lições que aprendeu lá, quais seriam?

Fui para o Timor-Leste trabalhar como consultor internacional do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), no âmbito de um acordo de cooperação trilateral Brasil-PNUD-Timor, para exercer a função de Procurador da República Internacional, ajudando a formação inicial e continuada dos membros do Ministério Público naquele país.

Uma coisa que pude vivenciar é como o direito está em dependência total da cultura em que vai ser aplicado. No Timor, a maioria das leis editadas no país independente eram cópias de leis portuguesas, ou de leis australianas, mas a aplicação, a interpretação, na prática, era muito diferente da do país de origem. Elaborar a aplicar a lei no Timor tinha esse desafio extra de conhecer e respeitar o país e sua cultura para chegar à interpretação adequada àquela realidade.

Pude ver também, com certa decepção, que o conhecimento técnico-jurídico não resulta necessariamente em decisões mais justas. Os juízes, procuradores e advogados timorenses têm muito menos conhecimento técnico-jurídico que seus correspondentes de outras partes do mundo, mas isso não significa que as decisões deles sejam piores no conjunto, sob a ótica da sociedade. Isso me faz pensar, até hoje, por que estudamos tanto o Direito se as decisões não ficam mais justas?

E ainda aprendi que certos valores consolidados entre nós são completamente relativos. Por exemplo: lá no Timor-Leste havia uma estrutura hierárquica dentro do Ministério Público e não havia delegados de polícia nem cargos equivalentes. E pude perceber que em um Ministério Público em que falta iniciativa e capacidade de trabalho aos procuradores, nada melhor que uma chefia para obrigá-los a trabalhar. Em um ambiente como aquele, a independência funcional geraria a mais completa ineficiência. Quanto aos delegados de polícia: se os agentes de investigação são do Ministério Público, estando administrativamente subordinados aos procuradores, os delegados são figuras dispensáveis. Por outro lado, se a estrutura policial for utilizada para investigação, a existência de um corpo mais qualificado de “chefes de investigação” favorece a efetividade do trabalho.

Tenho a impressão de que o mundo está muito mudado, Carlos. Hoje convivemos com a Lei da Palmada, com a má-qualidade do ensino nas escolas, com a erotização da infância: o Brasil é um bom lugar para educar os nossos filhos?

Sim, eu acho. O Brasil é um bom lugar para educar nossos filhos. Uso “bom”, aqui, como intermediário de uma escala entre ‘péssimo’ e ‘ótimo’. Sinto que a criação dos filhos é menos uma escolha da pessoa do que uma vocação, um chamado a que temos que corresponder como uma missão divina. Assim, temos o dever de criar os filhos da melhor maneira possível em qualquer conjuntura. Sabendo, como São Paulo, viver na escassez e na abundância. Há lugares melhores do que o Brasil, em especial no quesito qualidade da educação, mas também tem muito lugar pior.

O maior problema que vejo para as crianças hoje é a ausência dos pais, seja em razão de famílias desestruturadas ou mesmo inexistentes, ou da mera ausência física devido à jornada de trabalho integral do pai e da mãe, quando elas crescem e se educam sob a responsabilidade de professores, empregados, parentes ou mesmo de ninguém. Os pais não podem terceirizar a educação dos filhos, e têm que procurar exercer uma influência pessoal e direta sobre a vida da criança. O pai presente pode dar a formação ética e religiosa adequada a seus filhos, e exercer a autoridade para limitar a erotização da infância e o desrespeito à autoridade.

A internet hoje, com a quantidade de informação disponível, é uma ferramenta poderosa para corrigir a baixa qualidade do ensino que vemos em quase todas as escolas brasileiras. E é também um lugar onde se podem encontrar boas influências e companhias adequadas para seus filhos. Mas o ideal é que os pais guiem seus filhos pelas mãos também na internet, assim como os levam pelas ruas.

Você acompanha o trabalho do prof. Olavo de Carvalho. Qual é a influência dele em suas reflexões?

No colégio, os professores sempre ensinavam que devíamos ser “críticos”, “questionadores”, duvidar do que nós víamos na mídia e na imprensa. Curiosamente, lendo o jornal O Globo (do Rio de Janeiro, onde fui criado), os articulistas que sempre me pareceram mais críticos, que traziam opiniões diferentes do lugar-comum do que era dito, não apenas no jornal, como na escola mesmo, foram Roberto Campos e Olavo de Carvalho. Infelizmente Roberto Campos morreu em 2001, mas Olavo continua aí até hoje.

Depois que ele saiu do Globo, continuei acompanhando seus artigos na Revista Época e na internet, conheci seus livros, o podcast True Outspeak, seus cursos, que sempre trouxeram uma visão diferente do mainstream esquerdista. Ele certamente tem mais conhecimento do que qualquer pessoa presente na mídia ou nas universidades. Ele tem as opiniões mais fundamentadas e tem os melhores argumentos. Até porque ele leu mais livros do que todas essas pessoas. Está em um outro plano qualitativo. Além disso, o Olavo é uma pessoa de uma retidão moral admirável, e ainda é politicamente incorreto: fuma, caça ursos, fala palavrão etc. Não é uma questão de representar a direita ou os conservadores. A mim ele me convence com seus argumentos, comparados com aos argumentos de outras pessoas.

Acho que o Olavo de Carvalho é uma referência obrigatória em qualquer debate em ciências humanas no Brasil hoje. Se ele tiver dito alguma coisa sobre um determinado assunto, certamente terá trazido uma contribuição relevante para o debate.

Agora, sobre minhas reflexões. A verdade é que eu não tenho muitas reflexões. Procuro seguir o modelo do Olavo na sinceridade, na dedicação ao estudo, na paciência com os ignorantes e com os menos preparados, no reconhecimento das minhas limitações, em suma: no amor à Verdade.

Eu fico imaginando, não sei se você concorda, que daqui a cinquenta anos o prof. Olavo de Carvalho continuará a ser lido, como filósofo e como analista político. Você imagina algum brasileiro atualmente vivo que terá esse mesmo tratamento?

Finalmente uma pergunta fácil: é claro que não!

Qual é a lembrança mais antiga que você tem da sua infância?

A lembrança mais antiga da minha infância é um diálogo com uma prima minha em que ela me dizia para dar um brinquedo para o meu irmão, porque ele tinha acabado de nascer e não tinha brinquedo nenhum. Como meu irmão é dois anos e três meses mais novo, essa lembrança deve ser de quando eu tinha uns dois anos e oito meses, porque os bebês demoram algum tempo para interagirem com brinquedos. É mais ou menos dessa mesma época a lembrança que tenho de estar entrando na minha primeira escolinha.

Hoje é natural que as pessoas planejem uma família com poucos filhos. Geralmente fundamentados na limitação financeira, os casais já se dão por satisfeitos por terem um ou, no máximo, dois filhos. Diferentemente, você acredita que os filhos são um ‘bom investimento’?

Como eu já disse, os filhos são uma vocação. Atender ao chamado e obedecer à própria vocação é uma condição para a felicidade. Assim, se nós não gastarmos dinheiro com nossos filhos vamos gastar com o quê? Viagens? Vinhos? Carros? Roupas? Acho que os filhos são a melhor forma possível de gastar dinheiro.

Por outro lado, pela lei básica da oferta e da procura, como muita gente não quer mais ter filhos e quem os quer aceita um ou no máximo dois, me ocorre que os “filhos” serão um artigo muito valorizado no futuro, em razão da própria escassez desse “bem”.

Parece-me que existe uma ignorância econômica geral no seguinte sentido. Há uma crença de que na economia rural é bom ter muitos filhos, porque serão mais braços para o trabalho do campo, mas que no mundo moderno e urbano quanto menos filhos melhor porque aí então sobrará mais riqueza. Mas não acho que haja uma diferença ontológica entre a economia urbana e a rural. Além disso, a riqueza pode ser produzida. Quanto mais gente numa família, mais gente para produzir riqueza.

Imagino que reconheça, como cristão, que nossa carreira nos submeta a algumas ‘tentações específicas’. Que dificuldades a busca da santidade submete especificamente o procurador da República?

Eu acho que a nossa maior dificuldade fica em saber se estamos nos envergonhando de Cristo ao não entrarmos em determinados debates ou se, pelo contrário, estaríamos jogando pérolas aos porcos. Confesso que é muito difícil fazer a distinção.

O ambiente no Ministério Público Federal é o da ideologia dominante, do mainstream esquerdista. Parece que o MPF quer executar todos os itens da cartilha esquerdista, que inclui execrar os religiosos sob a equivocadíssima interpretação do Estado Laico como Estado Ateu. Veem a Constituição como um programa ideológico de esquerda a ser implementado. E o pior é que os conservadores, entre eles eu, formam uma massa silenciosa.

Mas acho que o Ministério Público reflete a educação superior no Brasil, completamente dominada pelo pensamento esquerdista. Onde, por exemplo, alguém dizer que não é evolucionista ou que não acredita na reforma agrária soa como a maior ignorância do mundo.

Divulgar e defender as próprias crenças e opiniões pode nos trazer dificuldades para exercer determinados cargos ou ocupar determinadas posições na carreira. Existe aí uma tentação. Mas para a atuação do dia a dia, ainda temos muita liberdade e independência para atuarmos conforme entendemos correto.

E existe uma outra dificuldade relacionada à vaidade. O procurador da República muitas vezes se acha superior a todas as outras pessoas, que julga ladrões ou incompetentes. Essa é mais uma tentação.

Há autores como Hans Joas que chegam a dizer hoje que “Os direitos humanos são fruto, principalmente, de resistência contra a aliança de poder entre Estado e Igreja (Católica) ou contra o cristianismo como um todo”. A noção que está por trás dos direitos humanos hoje o deixa à vontade em sua atuação na PRDC em especial e na Procuradoria da República em geral?

O que acabei de dizer é especialmente verdadeiro com relação à PFDC, que defende, institucionalmente, a facilitação do aborto, o controle da natalidade, a pílula do dia seguinte, o casamento gay, a caça às bruxas da ditadura, a exaltação dos terroristas do passado, a defesa dos “movimentos sociais”, mesmo quando estão violando as leis, a tolerância com invasões de terra e de imóveis urbanos, a desmilitarização da polícia etc. Em resumo, todas as bandeiras esquerdistas, com exceção, talvez, do controle da mídia.

Gostaria, na PRDC, de resgatar a noção de direitos humanos baseada na dignidade do ser humano como imagem e semelhança de Deus, sem compromisso com cumprir a cartilha esquerdista. A verdade é que há uma gama muito grande de direitos humanos para os quais é necessário dar atenção, em especial a universalização da saúde, a qualidade da educação, a segurança pública, a defesa da livre iniciativa e a valorização do trabalho, o direito a ter uma família e a ter filhos, o direito à liberdade religiosa e de culto, entre outros.

 

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