Entrevista com Aureo Lopes: “As respostas que buscava na Filosofia eu as encontrei na evolução e na ressignificação de minha história pessoal”.

Aureo Lopes é um procurador que não acredita em respostas prontas e nem em ganhos de curto prazo. À frente da ‘Teia Social’, busca através dela “sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho”, pelo “tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais”.

Mestre em Filosofia pela PUC-SP, Aureo diz que não encontrou em seus estudos filosóficos o que ali buscava. Onde encontrou? “Na evolução e ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos”.

Em sua curta experiência na chefia da Procuradoria da República no Estado de São Paulo, aprendeu a ser mais prático, pois “o trabalho na Administração é mais dinâmico que o do gabinete. Lá “você lida com pessoas, mais do que com processos”.

Por falar em dinamismo, Aureo é provavelmente o dono do currículo mais eclético do Ministério Público Federal: antes de ser aprovado no 20º concurso de ingresso vendeu revistas e cursos de inglês porta-a-porta, teve o bar de praia em Tramandaí, RS, vendeu têxteis no varejo, tentou montar uma ONG de suporte a outras ONGs, foi corretor de imóveis, ministrou um culto como pastor protestante, teve um cursinho preparatório para carreiras públicas, onde chegou a lecionar, e, finalmente, foi oficial de promotoria do MPSP.

Admirador de Raul Seixas e estudante primeiranista de piano, reconhece que sua relação com a música é unilateral: “Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim”.

Sobre sua realização no trabalho, sente-se “dividido, como acho que estão muitos colegas”. Segundo acredita, assistimos à “manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros”.

Um colega que resiste, bravamente, diante dos inúmeros problemas que o cotidiano profissional nos oferece; sempre em busca de soluções, de alternativas, de saídas dos labirintos em que, surpresos, com muita frequência nos encontramos.

Eis o Aureo — provavelmente o colega com quem eu particularmente tenho mais ‘horas de papo’ já saldadas (há certamente algumas ainda por saldar — este colóquio é apenas um adiantamento dos juros). Acompanhe nosso 14ª dedo de prosa. Assentados, por favor, que a prosa é boa.

 

Você está à frente da Teia Social, um projeto no âmbito do MPF que “não busca a discussão abstrata de qual é o conhecimento público ‘verdadeiro’, (mas que) em vez disso prefere cuidar da disponibilidade das informações públicas, integração dos conteúdos técnicos, leigos e científicos (transdisciplinaridade) e utilidade do conhecimento para fomentar e auxiliar na solução sustentável e efetiva de problemas públicos”. Como tem sido o seu trabalho na Teia Social? Onde ela poderá levar o MPF?

A ‘Teia Social’ surgiu como uma iniciativa para tentar sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho. Seu desenvolvimento contém tarefas diversas tais como: a) desenvolvimento de uma ontologia/linguagem geral para um tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais incluídos no trabalho. b) quanto ao trabalho como procurador, ela apenas atribui uma “identidade” a práticas e valores que venho acumulando na tutela coletiva, como a mediação entre os diversos viéses, a estimativa dos impactos sociais da atuação, atenção à prevenção e ao longo prazo, etc. c) acho que diversos valores e percepções são compartilhados entre a teia social e o planejamento estratégico, e nesse aspecto estamos indo na mesma direção. De diferença geral acho que poderia citar que na teia as energias são concentradas em diálogo para o consenso visando a obtenção de resultados sustentáveis, bem mais que para a punição. Acho que a proposta da teia poderia ser muito útil ao MPF ou aos colegas que pretendessem adotá-la, ainda que parcialmente.

Imagino que a Teia Social venha colocando você em contato com pessoas muito diferentes e com outras instituições públicas e privadas. O que isso lhe tem ensinado sobre a resolução dos conflitos que chegam ao MPF?

É verdade. Esse contato tem-me ensinado que embora nossa carga de trabalho seja grande, e nosso senso de responsabilidade também, estamos, como órgão de controle (que diz como deveria ter sido feito) numa posição mais confortável do que os responsáveis pela execução direta das políticas públicas. Acho que devemos aproveitar essa vantagem de forma produtiva. Aprendi também que, salvo raras exceções, pelo senso comum cada um acha que seu trabalho é mais complexo e importante e que a culpa é dos outros órgãos e que eles só não fazem o que têm que fazer porque não querem. Quando se reúnem todos esses, essas percepções autocentradas têm um potencial explosivo de conflito. Para evitá-lo, temos que nos guiar por princípios (a teia propõe oito) como a inclusão de todos atores sociais, partir do amor aos fatos e não da briga com a realidade, pelo seu contraste com as coisas como deveriam ser, guardar proporcionalidade entre meios e fins, colaborar, adotar a transparência para si e cobrá-la para os demais (a transparência é para o órgão o que a franqueza é para a pessoa), agir de forma a poder continuar agindo do mesmo modo no futuro – sustentabilidade, e assim por diante.

Como foi sua experiência na administração da maior Procuradoria da República do país? Temos bons administradores entre os colegas?

Atuei como procurador chefe em exercício no Ministério Público Federal em primeiro grau em São Paulo de março a outubro de 2012. Aprendi a ser mais prático, que o trabalho na Administração muitas vezes é mais dinâmico que o do gabinete e que você lida com pessoas, mais do que com processos: É uma ótima experiência profissional que contribui para nossa maturidade quanto aos limites da realidade que transcende os autos, e penso que todos os colegas deveriam passar um tempo, ainda que curto, no cargo.

Acho que temos colegas muito talentosos para lidar com os outros e para executar, e implantar as coisas na prática, e essa experiência rápida na chefia iria revelar outros talentos, desmistificar alguns mitos da função e nos dar parâmetros mais completos para os juízos que exercemos sobre os administradores públicos que processamos.

Você é mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. De que tratou em sua dissertação de mestrado? Suas pesquisas o ajudaram a encontrar respostas para as questões que o atormentavam?

O título da minha dissertação de mestrado é “A teia humana: Metateoria do comum, próprio e alheio da pessoa concreta, como possibilidade orgânico-opositiva, entre as verdades do sujeito e do objeto”. Tive que consultá-lo porque, como diz um amigo e colega nosso, é impossível decorá-lo. O trabalho pode ser classificado como de antropologia filosófica e buscou centrar-se nas pessoas concretas como fonte de significado e fundamento central das ideias e valores. Pode ser considerada uma teoria eclética, sem se incomodar com as críticas que buscam caracterizar essa postura como um demérito: há espaço no mundo para todos, todas as ideias, todos os sonhos… Mas se buscamos a exclusão do Outro, não há espaço, porque somos multifacetados e diversos. Para os outros, nós somos os outros. As pesquisas serviram para que eu pudesse deixar partir minha “fé” no conhecimento, que sempre me acompanhou. Ainda gosto, tenho convivência e intimidade com o conhecimento, mas hoje vejo que o homem, as pessoas, são muito mais que isso, que o conhecimento é apenas uma parte, tão importante como outras.

A esse propósito, você tem dito que não encontrou no estudo da Filosofia as respostas para suas inquietações profissionais. Onde você tem encontrado aquilo que não encontrou na Filosofia?

Tenho encontrado essas respostas na evolução e na ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos (a primeira terapeuta foi indicada por um bom amigo). Olho para as minhas origens, para meus desafios pessoais, infantis, como adolescente e como adulto, vejo quantas vezes a vida desfez minhas fantasias e ao mesmo tempo em que me abriu novas oportunidades. Vejo como nossa existência é efêmera, como somos pretensiosos (mostremos ou não), cada um a seu modo e na área escolhida para sê-lo. Isso não nos faz menos humanos, por não atingirmos ideais de perfeição, isso nos faz humanos. Gosto daquela frase: “Somos o que somos, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos”.

Falar em ‘ser’ e em ‘mudança’ nos remete à ideia inicial deste projeto: as luzes. Se você sobrevoasse a história da humanidade e vislumbrasse, como Antoine de Saint-Exupéry, algumas luzes na planície, quem seriam na sua visão as mais interessantes? Por quê?

A vida, que é a vida, não julga. Mas nós julgamos. Somos profissionais e somos pagos para “apontar o dedo” ao que está certo ou errado (e pedir a punição dos injustos). Esse é um peso muito grande, o peso de sermos julgados com o mesmo peso daqueles a que julgamos. Por nós mesmos ou por outros, hoje ou amanhã. Mas muito disso escapa ao nosso controle (afinal, somos filhos do nosso tempo), exceto o autojulgamento. Desse podemos, progressivamente, nos libertar. E merecemos essa liberdade.

Você falou em liberdade e eu lembrei de uma coisa que você comentou: as aulas de piano que você começou a tomar há pouco tempo. Como surgiu esse interesse? Considerando que a linguagem musical tem uma carga simbólica muito rica, que música representaria hoje de modo mais ou menos adequado os conteúdos da sua vida interior, Aureo?

Tenho uma relação unilateral com o tocar música: Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim. Tenho tentado e fracassado recorrentemente em aprender um instrumento musical e o piano é mais uma chance (um outro amigo, também colega, diz que o que ele é de fato é “o porta-copos mais caro da América Latina”). Eu gosto de várias músicas, mas as letras sempre foram muito importantes. Se tiver que eleger um músico, é Raul Seixas. Acho um gênio.

Antes de ser procurador da República você já arrendou e explorou um bar de praia e vendeu livros de porta a porta. Como foi que o MPF lhe apareceu como uma perspectiva de trabalho interessante?

Antes de ser procurador eu vendi (tentei) revistas, cursos de inglês, tive o bar na praia (chamava “Twister” e ficava em Tramandaí, RS), vendi têxteis no varejo, tentei montar uma ong de suporte a outras ongs, tirei o Creci e fui corretor de imóveis, ministrei um culto como pastor, tive um cursinho preparatório para carreiras públicas e dei algumas aulas e fui oficial de promotoria do MPSP. Meu querido pai, evidentemente preocupado com onde eu iria parar desse jeito variante, pôs pilha para as carreiras públicas e, dentre elas, o MPF mostrou-se simultaneamente como um desafio e como um ideal profissional fantástico.

E continua tudo tão fantástico como naquela época? Quer dizer: sente-se realizado hoje no trabalho?

Hoje eu me sinto dividido, como acho que estão muitos colegas. De um lado investimento de tempo extra para desenvolver novas formas de trabalho e obter resultados estimulantes. De outro a manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros. Apesar de tudo isso, me sinto bastante realizado, pois existem novos modos de trabalho que são auspiciosos, e as boas notícias de bons trabalhos de colegas que ouvimos constantemente confirmam isso.

Você se volta hoje contra o que chama de uma tradição e uma prática jurídicas que na sua visão não chegam a solucionar os problemas reais da vida em sociedade. Provavelmente esse sentimento é compartilhado por inúmeros promotores e juízes em todo o país. Há um caminho alternativo viável?

Algumas pessoas me falaram que eu era muito crítico com o Direito. Refleti sobre isso e cheguei a conclusão que se desacredito tanto nele é porque o conheço muito, de perto, e nele – durante minha graduação – depositei esperanças demais. Posso olhar para o Direito como uma ciência, uma linguagem, uma estrutura etc, mas, ao final, ele é apenas uma das incontáveis facetas sociais e dimensões humanas, e não podemos esquecer que ele “é feito por pessoas”, “aplicado por pessoas” e feito “para pessoas”, e não há teoria, racionalidade, fechamento de sistema capaz de “exorcizar” esse limite à objetividade que é a beleza da subjetividade, da humanidade.

Acredito, sim, em caminhos alternativos viáveis, e desenvolvo hoje um deles com minha pesquisa da ‘Teia Social – Sistema para a compreensão e solução de problemas públicos’. Mas não acredito em respostas prontas ou fáceis. Não acredito nos ganhos de curto prazo. Não acredito na (mono)disciplinariedade, seja do Direito, seja qualquer outra. Não acredito na desproporcionalidade entre fins e meios. E não acredito em fórmulas que se propõem melhores por meio da exclusão e da negação da existência válida das outras, o conhecido “caminho único”.

 

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