“A vida já valeu e valerá a pena até o último suspiro”. Vejam a segunda parte da entrevista com Osório Barbosa.

Para Osório, a fala gostosa do português do Brasil não está morta e enterrada. Crê, pelo contrário, que ela está cada vez mais viva: “Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm”.

Osório passou sua infância nas casas flutuantes dos rios de Maraã, AM. Lembrando Fernando Pessoa, diz que “tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos eles através dos estudos”. Além de evocar o poeta português, o olhar ao retrovisor trouxe também à luz as travessuras precoces da criança lá de trás…

Discípulo dos Sofistas gregos e de Marcos Bagno, Osório é por isso crítico de Platão e dos puristas da língua, porque, segundo compreende, eles não souberam e não sabem valorizar a liberdade e as incertezas da vida.

Esta é a segunda e última parte de nossa entrevista — que faz parte de nosso 4º encontro. Imperdível…

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

Bruno: Marcos Bagno ganhou sua simpatia por denunciar o que chama de ‘preconceito linguístico’. Você se sente alvo de ‘preconceito linguístico’, Osório?

Osório: Pois é. O doutrinador Marcos Bagno, no seu livro ‘Preconceito Linguístico’, demole – ele é o ‘demolidor’ – todas as pessoas, inclusive gramáticos, que dizem que escrevem certo. Ele arrasa com o Pasquale Cipro Neto, que escreve em jornais, e também com outros que escrevem em jornais, como Napoleão Mendes de Almeida. Ele mostra nesse livro que eles escrevem equivocadamente, que eles escrevem teoricamente errado. Para mim não é errado; eles simplesmente se tornam errado quando condenam quem escreve errado, porque eles escrevem também. Então esse é um dos problemas que eu sempre tenho com o preconceito que se tem em relação às pessoas que escrevem teoricamente errado. O Marcos Bagno traz um exemplo interessante. O nome ‘Geraldo’ geralmente se escreve com ‘l’. Mas principalmente aqui em São Paulo, aqueles a quem as pessoas preconceituosamente chamam de ‘caipira’ quando falam dizem ‘Gerardo’. E aí vem o preconceito: ‘Ah, ele fala Gerardo em vez de Geraldo’, dizem os preconceituosos para desqualificar e galhofar do falante. E o Marcos Bagno diz que quem está errado é quem diz ‘Geraldo’, porque o certo de se pronunciar e de se escrever no Brasil seria ‘Gerardo’, já que, ele diz, o nome vem do alemão ‘Gerard’. E assim o Marcos Bagno dá uma aula…

É muito engraçado quando uma pessoa como o Adoniran Barbosa fez os seus sambas – e outros ainda fazem hoje – falando da forma que o Adoniran fala maravilhosamente, ninguém o condena. Vocês já viram o Adoniran ser condenado pela forma como ele falava: ‘talba de tiro ao álvaro’? Então é maravilhoso o que ele deixou! E ninguém condena…

Bruno: Mas é claro que ninguém condena, Osório. Isso é arte em estado puro… O Adoniran era uma pessoa instruída. Quem foi capaz de criar esse verso tão cheio de imagens — ‘de tanto levar flechada de seu olhar meu peito parece tábua de tiro ao alvo’ — está evidentemente brincando gostosamente com a linguagem, com a liberdade do artista. Certamente não há mesmo nenhuma censura a fazer a ele por isso…

Osório: Sim! Mas foram os poetas que nos ensinaram e nos ensinam! Por que, então, estamos proibidos de imitá-los?

Você só condena quem fala e escreve errado quando você quer menosprezar, você quer desqualificar a pessoa. Quando é o seu patrão a falar errado ou a escrever errado, você vai obedecer, não o critica, e até acha bonito. Se o critica é por trás, covardemente. Se você tem interesse em comprar, verá uma placa lá escrito ‘Vende-se casas’, quando o correto seria ‘Vendem-se casas’. Mas você quer comprar e não vai dizer para o seu vendedor que ele escreveu errado. Porque talvez ele aumente o preço e você não terá condições de comprar. Então você não vai questionar. Quando lhe interessa você nunca questiona. Você só questiona quando quer desqualificar. Isso acontece muito… uma vez em um show vi o Caetano Veloso, um show pós-abertura política, dizer a uma repórter que perguntou a ele: ‘Caetano, como foi sair sobre vaias?’. O Caetano parou e disse: ‘Não é sobre vaias, mas sob vaias’. Quer dizer: ele humilhou de certo modo a repórter e não respondeu ao mote da pergunta, que era ‘como ele se sentia de estar sendo vaiado pelas pessoas naquela sua apresentação’. E ficou por isso mesmo. Ficou mal para ele. Ele ficou mal na fita. Mas quis também queimar o filme da repórter.

É por nos mostrar esse aspecto da comunicação que o livro do Marcos Bagno me encanta, livro que todas as pessoas de boa-fé, de boa índole, deveriam ler para compreender o que ele coloca lá. E eu sou apenas um discípulo desse grande mestre.

Bruno: Eu não conhecia esse incidente com o Caetano. Mas, veja, acho que se a gente se coloca no lugar dele, entendemos em que nível ele recebeu a pergunta. O camarada provavelmente estava envergonhado depois de receber vaias do público, e aí vem a repórter ‘pisar em cima dele mais um pouquinho’… Talvez tenha sido uma forma de dizer ‘desça daí, minha filha, que você não está acima de mim, sobre mim, mas sob mim‘. Eu até acho que a repórter tenha sido sincera na pergunta, mas o contexto em que ela foi feita evidentemente prolongou a situação vexatória pela qual ele havia passado. E pior: provavelmente ele ainda estava sob o efeito emocional das vaias…

Osório: Concordo contigo nesse caso específico, mas o que quis dizer é que ele esse tipo de comportamento é o padrão, infelizmente!

Bruno: Mudando de assunto, mas nem tanto. Os brasileiros têm alcançado, em testes internacionais, os piores índices de qualidade de educação entre os diversos países participantes. Você acredita que a nossa democracia convive bem com a má-qualidade do ensino?

Osório: No Brasil — eu posso falar apenas do Brasil, mas parece que isso acontece em outros lugares no mundo –, preocupa-se pouco com a educação. A gente pode até voltar para a Grécia do Séc. V a.C. Os sofistas foram os primeiros professores de que se tem notícia. E o grande século do conhecimento humano foi esse século. E quem foi o grande governante grego da época? Péricles, que era amigo e protetor dos sofistas. Inclusive há testemunhos de que ele passou um dia inteiro discutindo com Protágoras um determinado assunto sobre um lançamento de um dardo em uma competição que chegou a matar uma pessoa.

A Grécia investiu muito em educação, educação proporcionada principalmente pelos sofistas. Porque, se a gente analisar, Platão e Aristóteles praticamente não fazem parte do Século V a.C. Eles já são do Século IV a.C. E a idade de ouro grega foi dominada pelos sofistas. Então a democracia grega ‘aplicou’ muito em educação, contribuiu muito para a educação. Esse ensinamento grego é praticamente repetido pelos americanos do norte, que investiram muito em educação e ainda investem. Onde há uma grande ideia, uma pessoa inteligente, o que eles fazem? Eles arregimentam e levam para trabalhar para eles nos Estados Unidos, dando condições, dando laboratório, pagando um bom salário etc. Então eles aprenderam isso principalmente com os gregos do Século V a.C. Praticamente todos os sofistas vieram de outras cidades-estado gregas, para se estabelecer em Atenas, que era a capital do império e a cidade mais rica, onde a riqueza abundava. A mesma coisa acontece ainda com os Estados Unidos.

Se você olhar para os países periféricos, principalmente esses países ricos em petróleo, que desde 1973 têm muito dinheiro, que grande universidade árabe foi construída nesse período com todo esse dinheiro dos petrodólares. Na Venezuela, que nada em petróleo, o que foi feito em prol do ensino? Nada. A grande desconfiança que vem dos ensinamentos — e em compartilho com isso – é que ninguém quer que as pessoas se instruam. Os governantes não querem que as pessoas se instruam, porque têm medo de perder poder…

Bruno: Ah, pára, Osório! Essa teoria não está meio ultrapassada? O Lula e a Dilma estão aí para provar que ninguém precisa de conhecimento, no sentido escolar do termo, para chegar ao poder… Não compreendi bem do quê você está falando. Gostaria que você me explicasse melhor essa estória de ‘medo de perder o poder’. O que tenho visto é que em geral os iletrados não querem estudar a não ser o mínimo possível para conseguirem um emprego – e não vejo como é que um poder, aliás, qual poder?, possa impedi-los de sentar em uma biblioteca pública ou acessar vastas informações pela internet e se tornarem sábios e eruditos à maneira clássica ou à maneira contemporânea, à sua escolha…

Osório: Além de bom perguntador você é também gracejador, meu caro! A história seria longa, mas pode ser resumida no seguinte: você prefere que seu filho seja letrado, iletrado ou letrado apenas o suficiente para para conseguir um emprego? Eu, particularmente, desejo para o filho dos outros o mesmo que quero para os meus. Daí…

Bruno: Você deseja isso aos filhos dos outros mesmo contra a vontade expressa deles? Complicado isso, não? No varejo isso pode funcionar, mas no atacado, em nível de civilização, certamente se gastará muita energia nessa fantasia… Mas você estava falando de ‘disputas por poder’; e ia começar a falar da Grécia antiga…

Sim, porque esse tema nos leva de volta à Grécia: por que Platão atacou tanto os sofistas? Os sofistas ensinavam uma coisa básica às pessoas: falar, discursar. E isso era importante por quê? Porque as pessoas na democracia podiam participar com a palavra das assembleia e defender a si e aos outros nos tribunais. E isso não era importante para a oligarquia da qual Platão fazia parte. Ele era um grande oligarca, de uma família rica e tradicional. Quando os pequeno-burgueses puderam pagar por educação e pagaram aos sofistas para que os ensinasse, com isso o poder começou a mudar de mão, ou a ter a possibilidade de mudar de mão, e isso incomodou muito as pessoas, dentre as quais Platão.

Bruno: Você tem certeza que Platão implicava com os sofistas por causa de uma disputa pelo poder político? Não imagina que Platão e Aristóteles tinham consigo uma intenção mais alta e mais duradoura?

Osório: Eu não tenho dúvidas disso! Platão era um oligarca inimigo da democracia, como prova Popper no ‘A sociedade aberta e seus inimigos’. Há outros autores que dizem o mesmo.

Platão foi para Siracusa apoiar um oligarquia! Mas o fundamental a provar isso é o uso que ele, Platão, faz, de tudo que foi inaugurado pelos sofistas. Exemplo: ele condena a retórica dos outros, mas ele é o mestre dela! Ele estipula uma diferença intelectual absurda entre boa e má retórica. ‘A boa’, diz implicitamente, ‘é a minha!’

Para encerrar o tópico, Platão diz nAs Leis” (716c) o seguinte: “Aos nossos olhos a divindade será a medida de todas as coisas’ no mais alto grau”! Ou seja: dirigiu para onde ele quis o frase imortal de Protágoras, que é tido como o maior dos sofistas — “O homem é a medida de todas as coisas”.

Em relação ao Brasil, e resumindo, eu acredito que a democracia brasileira está a dever muito à educação no país. Nós temos de melhorar a educação. Mas a educação faz parte de todo um sistema. E nós fazemos parte de um sistema capitalista que cada vez mais impede praticamente as pessoas de estudarem; ou de terem o apoio da família para estudar. Os pais estão trabalhando. As mães em um lugar e o pai em outro muito distante. Poucos vêem os filhos. Entregam os filhos às escolas e as escolas não dão aquela educação, digamos, completa a bem formar o cidadão.

Hoje a criança vai para uma escola e fica quatro, cinco horas, sentada. Uma criança que está acostumada a mexer no celular, no computador, e que vê televisão, tem de ficar sentada ouvindo o professor fazendo ‘blá, blá, blá’. E isso algo inconcebível mas que ainda acontece. Então, tem de haver uma reforma completa, para ver como é que se pode dar uma melhor educação ao povo brasileiro. Esse déficit não é culpa do cidadão, mas do Estado, que às vezes parece não querer ver seu povo devidamente educado, letrado, porque isso vai incomodar o poder.

Bruno: Mas, Osório, o sujeito ativo no processo de aprendizado é o aluno. Acho muito simplista buscar os culpados pelo fracasso da educação brasileira ou nos alunos, ou na família ou no Estado. Culpar o Estado e isentar os alunos me parece ‘o fim da picada’. Estou errado?

Osório: Aí você já quer quase um milagre! No meu caso particular, foi o que aconteceu, mas não vou falar da minha história de interiorano do Estado do Amazonas, com pai analfabeto e mãe semi!

Quando eu cobro a participação maior e efetiva do Estado não quero nem falar de fardamento, comida, livros e cadernos etc, mas, basicamente, de professores competentes e estimulados, além de pais que possam efetivamente ajudar esse ‘sujeito ativo’, pois até que a criança se torne ‘sujeito ativo’, na e para a educação’ ele não passa de um ‘objeto’! O vulgo costuma dizer que é de pequeno que se torce o pepino!

Bruno: Manuel Bandeira, em ‘Evocação do Recife’, diz que “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo \ Língua certa do povo \ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil \ Ao passo que nós \ O que fazemos \ É macaquear \ A sintaxe lusíada”. Você acredita que esse ‘falar gostoso o português do Brasil’, do Recife da infância de Bandeira, está definitivamente morto hoje?

Osório: Veja como esta sua pergunta e a lembrança de Bandeira, o maior entre os gigantes, me dá razão quanto à sua pergunta anterior! A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo. Não é só dos meios — livros, jornais, computadores etc — que a criança precisa no processo de aprendizagem. Ela precisa, mais, é de gente, pois é o povo, logo, a cidade, o principal mestre de todos nós!

Mas, voltando à sua pergunta, digo: Não! Muito pelo contrário! Ele está cada vez mais vivo! Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. Não! A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm. Porque você começa a policiá-las. Se a pessoa fala e você diz: Olha, isso não é assim! Olha, isso é assado!, como é que a pessoa vai se comunicar? A pessoa vai se retrair! Há uma retração das pessoas com esse policiamento idiota. É, na verdade, um policiamento idiota, porque você acaba impedindo o diálogo. E você faz isso para humilhar a pessoa, e não para educá-la, para instruí-la. Mas como é que você vai interromper um verso porque a pessoa falou ‘malmita’ e não ‘marmita’?

Outro dia eu estava em um restaurante pequeno e uma pessoa chegou e disse: ‘Eu quero almoçar, e quero que você prepare uma malmita para eu levar’. Veja se o dono do restaurante vai dizer – só se fosse um idiota – ‘olha, não é malmita, mas sim marmita’… Ele ia espantar o seu cliente! Nessa hora ninguém é preconceituoso, não é? Mas se fosse para humilhar, se fosse um namorado da filha dele, ele teria dito: “Olha, eu não sei o que você está pedindo e então não vou lhe atender”. Então, pelo contrário, o linguajar não está morto, ele está vivíssimo! O que falta é que as pessoas de boa vontade retratem isso em seus escritos. Porque ninguém quer retratar justamente por causa desse policiamento absurdo, que insiste em dizer que tudo está errado. Quando na verdade não está. Se você compreendeu uma mensagem, ela está perfeita, ela está correta. Não importa se você disse ‘malmita’ ou ‘marmita’.

Bruno: O que você tem lido ultimamente?

Osório: Leio vários livros ao mesmo tempo! Estou lendo agora, ou terminei de ler: i) Um Ano na Provence, de Peter Mayle; ii) A História da Escravidão, de Olivier Pétré-Grenouilleau; iii) A História na Escravidão, de Christian Delacampagne; iv) Federico em Sua Sacada, de Carlos Fuentes; v) Nietzsche e o Problema da Civilização, de Patrick Wotling; vi) A Filosofia Antes de Sócrates, de Richard D. McKirahan; vii) História do Riso e do Escárnio, de Georges Minois; viii) Ao Lado de Vera, de Alberto da Costa e Silva, muito chato, por sinal; ix) O Nomos da Terra etc, de Carl Schmitt; x) Introdução ao Estudo do Direito, do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estou relendo, na verdade, lá pela sétima vez; xi) outros, de poesia, ao mesmo tempo. Isso tem me dado sentido na vida e mostrado que vale a pena continuar a estudar, pois amplia nossos horizontes e nos faz até mais tolerantes com os outros e conosco mesmos, pois cada vez percebemos que sabemos menos, embora, muitos vezes tenhamos a percepção de que sabemos mais.

Bruno: Você se identifica com autores como Charles Bukowski e Henry Miller?

Osório: Nunca ouvi falar deles! Acho que já li alguma coisa do Charles Bukowski. Talvez por falta de conhecimento, por falta de apresentação, posso dizer que não os conheço. Leio outros poetas, claro, mas eu desconheço esses dois.

Bruno: Que poema melhor representa seu sentimento em relação à vida?

Osório: Sobre o vidro da mesa onde trabalho, desde que eu pude usar uma mesa em meu trabalho — embora eu já fizesse isso em minha casa, em um muralzinho –, eu coloco o poema que melhor representa meu sentimento em relação à vida. Não é um poema muito grande. Na verdade é uma quadra de Fernando Pessoa, do poema Tabacaria, que diz o seguinte: “Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada / A parte isso, tenho em mim todos os sentimentos do mundo“. Esse é poema que guia a minha vida, o meu dia a dia e o meu atuar no teatro da vida.

Bruno: Você é um amazonense que adotou São Paulo como sua pátria. Você ainda tem parentes em sua terra natal? Retorna com frequência a Maraã?

Osório: É verdade. Tenho parentes ainda no Amazonas, especificamente em Manaus e em Maraã. Sempre que posso volto a Maraã, justamente para ouvir aquelas pessoas que falam “errado”, que contam histórias erradas, mas que encantam e que me rejuvenescem e que apagam, de certo modo, a maldade da minha alma; e que me fazem feliz com suas companhias. Pessoas muitas vezes sem estudo algum, mas de uma sabedoria exemplar.

A Scarlett O’hara diz, no filme ‘E o Vento Levou’, que sempre que está fragilizada ela volta para a fazenda dela, chamada Tara, para buscar forças. Eu sempre que posso vou a Maraã também, com a mesma finalidade, isso desde antes de conhecer o filme.

Bruno: Onde passou a infância, Osório?

Osório: Passei a minha infância no eixo Maraã-Tefé-Manaus. Eu fui fabricado em Maraã, parido em Tefé e minha mãe, após o parto, voltou para Maraã, e aí eu fiquei até os dezesseis anos. A escola não era de todo estruturada em Maraã e então eu tive de estudar em Manaus, para onde fui aos dezesseis anos. Meu pai me levou para morar na casa de um tio, que aliás me deu o nome, o tio Osório.

Posso dizer que minha infância foi toda bem vivida em Maraã. Eu saía de lá por períodos curtos, mas sempre voltava para lá.

Bruno: Qual é a lembrança mais antiga que você tem?

Osório: A lembrança mais antiga que eu tenho? Engraçado! A gente não consegue esquecer certas coisas; e certas coisas que a gente não queria lembrar sempre vêm à mente. Essa lembrança que eu tenho é uma lembrança sexual. É a lembrança mais primitiva que eu tenho. Eu não sei como isso não sumiu da minha mente. Eu era ainda muito pequeno e a minha avó morava sobre um flutuante no Paraná de Tefé – flutuantes são aquelas casas sobre as águas que existem na Amazônia e em outros locais. Tanto é que eu nasci em um desses flutuantes e o meu nome era para ser Moisés, pois eu nasci sobre as águas. Mas depois mudaram meu nome para Osório na hora de me registrar.

Pois bem. Eu estava nesse flutuante de minha avó, D. Pretinha, e junto desse flutuante ficava um campo/pasto de gado. E eu me lembro que dois primos meus, dois irmãos, me chamaram, me pegaram pelas mãos e me levaram para o campo. Eu era muito pequeno, tinha uns quatro ou cinco anos, não me lembro bem. Por isso é que eu digo que é uma lembrança engraçada. Freud certamente explica. Nesse campo tinha uma casinha que eles tinham feito de mato, de árvore, folhas. Sei que a irmã deles deitou e ele me deitou sobre a irmã dele. A partir daí apaga tudo [na minha memória]. Eu não sei nem o que me aconteceu. Eu não sei sequer se aconteceu alguma coisa. Mas essa é a minha lembrança mais primitiva.
Em nossa carreira, você é da geração dos anos 90. A nova geração de procuradores, recém-empossados, tem algo a aprender com os colegas mais antigos? E tem algo a ensinar?

Sim, nós temos muito a aprender com eles e temos também muito o que ensinar. Muitos colegas que assumem hoje o Ministério Público Federal têm mais idade que os colegas tinham quando eu assumi. A idade na carreira pode ser maior que a idade cronológica. Eu estou com 52 anos. Por exemplo, o Rafael Siqueira de Pretto, que também é da geração dos anos 90, quando ele assumiu como procurador da República tinha 21 anos, apenas. Dez anos depois estavam tomando posse colegas de cinquenta anos. Então a idade biológica dos que estão entrando pode ser bem superior à idade daqueles que já estão aqui. Mais novos são mais antigos, na carreira!

E essas pessoas, todos nós, trazemos da vida os aprendizados. Não especificamente sobre o MPF. Mas esse aprendizado que vem da vida lá de fora é muito útil aqui dentro. E nós podemos obviamente compartilhar com os colegas que estão chegando agora aquilo que nós aprendemos aqui.

É claro que eu já fiz isso, todos nós fazemos: quando chegamos, achávamos que quem está aqui dentro não sabia de nada, estava ultrapassado e que quem estava chegando é que era o dono da verdade, era quem iria revolucionar. Esse pensamento é bom, é positivo, mas saibam que nós já passamos por praticamente tudo o que vocês ainda vão passar. Coisas que para os senhores, para os recém-chegados, é novidade, nós já vimos há uns vinte ou quinze anos. Isso não quer dizer que os senhores não devam levantar o problema, até para que a gente divida a resposta que na época nós encontramos. As respostas, como eu tenho dito nesta entrevista, são sempre respostas inconclusas. Não somos, eu pelo menos eu não sou, donos da verdade. Então estamos aqui sempre para aprender, e também para ensinar um pouquinho, diria que a palavra melhor seria compartilhar — não é nem ensinar, portanto, mas compartilhar – como determinadas questões receberam determinadas respostas, nas épocas em que formuladas. Podiam estar certas como podiam não estar. Não há nada definitivo, como eu disse, e as questões poderão ser aperfeiçoadas.

Hoje nossa rede de computadores nos ajuda muito quanto a isso. Logo que entrei no MPF eu fui jogado em Roraima e lá fiquei sozinho durante algum tempo. E a nossa rede ainda não funcionava. Então eu não tinha com quem compartilhar minhas angústias, minhas preocupações, minhas dúvidas. E isso não acontece hoje. Hoje se você, colega que está lá em Pau dos Ferros, RJ, ou em Tefé, AM, tiver uma dúvida, coloca em nossa rede a sua pergunta sobre como é que foi solucionado determinado problema, se alguém já o enfrentou anteriormente, e em poucos minutos você tem pelo menos um caminho a trilhar, uma ideia. Porque um colega que já passou por aquilo compartilha um ensinamento sobre o trabalho dele. Você terá um guia tanto para seguir naquele caminho como para mudar de direção. Porque às vezes é bom a gente saber determinadas coisas para a gente não seguir aquela trilha. Por exemplo, eu assino determinado jornal aqui de São Paulo, considerado um jornal de direita. Alguém me questionou por que eu faço isso. Eu disse ‘para fazer justamente o contrário do que ele manda fazer, o que ele determina, o que ele sugere’.
Então nós temos muito ainda para compartilhar, e os colegas que estão chegando agora, que sejam bem-vindos, e que nos ensinem, que não tenham temor de compartilhar, porque todos nós estamos na terra para errar, e para acertar muito pouco — a gente dificilmente acerta. Mas o importante é ter boa vontade e estar preparado para mudar de curso quando isso for necessário e quando alguém nos mostrar que há uma saída melhor do que aquela que nós imaginávamos que seria.

Bruno: Isso que você disse tem um fundo de verdade. É evidente que do nascimento à morte estamos sempre aprendendo – pelo menos sempre podemos aprender algo novo. Mas você não acha estranho receber os colegas que, em sua maioria, nunca trabalharam como membros do Ministério Público, e lhes dizer: “Estamos aqui para aprender com vocês”? Não acha que existe aí um elemento de renúncia à responsabilidade que os veteranos têm em benefício dos recém-ingressos? Se no meu primeiro dia de estágio acadêmico meu chefe me viesse com essa de ‘estou aqui para aprender com você’ eu não o levaria muito a sério e provavelmente iria atrás de outro lugar onde pudesse aprender alguma coisa…

Osório: Eu, particularmente, prefiro errar pela humildade, sincera! Dizer a um estagiário que eu sei tudo e que ele não sabe nada pode inibi-lo definitivamente! Quando digo isso aos estagiários com quem trabalho, quero incentivá-los a externarem pensamentos seus, que às vezes já me levaram a mudar de rumo.

Tem colega que expõe seus títulos, e até sua genética, para mostrar ao estagiário quem é que manda e quem é que sabe ali! Eu optei por outro caminho! E o melhor, para mim: salvo engano, estagiário meu nunca pediu para mudar de gabinete.

Isso fica mais claro, para mim, quando trato com um procurador da República igual a mim.

Bruno: Daqui a trinta anos você estará aposentado. Se lhe perguntarem por que terá valido a pena viver a sua vida, o que provavelmente você dirá?

Osório: Eu não sei se daqui a trinta anos eu estarei aposentado. Não sei nem se eu chego até lá. As circunstâncias da vida às vezes nos fazem prever uma data longínqua quando na verdade o fim está muito próximo. A única certeza — apesar de tudo o que a gente vem falando aqui dos sofistas, que eram contra esse problema da certeza e da verdade –, a única certeza que ainda permanece como tal é a morte. A gente poderia falar longamente sobre isso, porque tem os espíritas que não acreditam na morte, mas apenas no fim da matéria etc – mas não é o caso. Então não sei se estarei aqui daqui a trinta anos. Pode ser que minha família receba o pecúlio da Associação dos Procuradores antes disso.

Mas supondo que daqui a trinta anos eu esteja aposentado. Eu estou com 52 – então nem são trinta, mas dezoito, quando virá a ‘expulsória’ com setenta anos. Você me pergunta se terá valido a pena. É claro que todos esses anos terão valido a pena. A vida vale sempre à pena. A vida é uma alegria, é uma fortuna, é tudo de bom. A gente vai aprendendo isso infelizmente quando a vida se aproxima do fim. Só aí que a gente vai vendo essa beleza da vida. quando a gente é jovem a vida não tem muito significado. A gente vive tão intensamente que não tem tempo de pensar na vida. A gente pensa muito pouco na vida. Como é bom ser jovem, como é legal ser jovem! – e a gente vê isso quando vai ficando velho. Apesar de eu ainda jogar futebol, ainda fazer um monte de astúcias que eu fazia enquanto menino, sinto que já não tenho a mesma agilidade, a despeito da habilidade em marcar gols e armar jogadas (risos). Mas terá valido a pena porque eu tenho quatro filhos. Daqui a uns dias talvez meus filhos me deem netos. Eu fiz amigos, eu questionei, eu li, eu bebi cachaça – eu não fumo, nunca fumei, mas eu bebi – cachaça (toda a espécie de bebida alcoólica está incluída no gênero cachaça), eu chorei, eu sorri, eu amei (fui amado!), eu li poesia, eu li filosofia, eu fiz tudo isso.

Mas o fundamental, que me fez inclusive aceitar esta entrevista, é aquilo que eu tenho tentado fazer na minha página na internet, no meu blog, que é o seguinte: eu não sou exemplo para nada, talvez seja uma das piores pessoas do mundo, mas eu queria que meus filhos seguissem o caminho que eu trilhei, que é o caminho dos estudos; queria que eles estudassem. Eu já lhe disse que não vou deixar herança nenhuma para eles a não ser o estudo. E gostaria que eles aproveitassem isso. Então, o que eu espero deles é o estudo.

Mas eu não espero isso apenas dos meus filhos, porque eu não quero ver um mundo feito apenas por meus filhos. Eu quero que os filhos dos outros tenham as mesmas oportunidades que os meus filhos tiveram. Eu estudei com muita dificuldade. E comparando a realidade deles hoje com a que eu tive, meus filhos estão em ‘berço esplêndido’.

Mas quando eu falo tudo isso, as pessoas para as quais eu mais me volto são as de Maraã, lá da minha terra. Para mostrar a elas que embora eu não seja nada, como disse lá no poema do Fernando Pessoa, e não queira ser nada e que jamais serei nada, eu tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos os meus sonhos através dos estudos: já estive em hotéis cinco estrelas, já fui para a Europa, já comprei carro novo, eu tenho casa, eu como bem etc. Então para quem quase passou fome até na época da universidade, para quem ia às aulas com a mesma camisa por dois dias seguidos, isso é muito, é muito mesmo. Se você olhar para o meu passado, eu sou um homem feliz, um homem rico e realizado.
Então, como eu disse, eu queria que todo menino de Maraã acreditasse nisso. ‘Se você acha que isso é alguma coisa e tem significado para você, estude que você também consegue. E é alguma coisa, sim, porque lhe ajudará a sair da situação de quase-fome que você vive aí’. Lá em Maraã ninguém passa fome, porque você joga o anzol no rio e logo vem o peixe – e você tem a farinha. E com tudo isso você consegue sobreviver. Mas não é só disso que a vida é feita. Você pode estudar e viver no Maraã, claro. Mas você pode estudar e ajudar a vida dos outros também.

Então, se eu puder ser exemplo de alguma coisa, se a minha história puder ser exemplo, gostaria de ficar como exemplo de perseverança para conseguir estudar. Eu queria deixar isso para o povo de Maraã. Eu tenho um filho que se chama Osório di Maraã Barbosa, que até está aqui agora comigo. Eu coloquei esse nome nesse camarada justamente para que eu não me esqueça um só dia de minha terra, essa terra que eu amo tanto. E eu queria que todos os filhos de lá estudassem…
Então a vida terá valido a pena se pelo menos um daqueles meninos — vários já fizeram isso ao longo desses últimos anos, eles têm feito isso — saísse de lá para estudar como eu fiz; e que depois voltasse ou ficasse onde quer que seja. Mas que todos saibam que por intermédio do estudo eles podem realizar seus sonhos, sonhos que às vezes são pequenos como eram os meus, mas que eram tão grandes quando eu não tinha nada, que hoje eu me surpreendo.

Então é isso: a vida já valeu a pena e vai valer a pena até o último suspiro. Eu não sei quando será. Espero que demore muito! Mas ela será e vem sendo construída, como eu procuro fazer, com muita alegria. Eu não tenho muitos amigos, mas os que tenho, que são poucos, sabem e me aceitam do jeito que eu sou: questionador, mas sempre leal. Eu procuro ser leal a meus amigos. Se não gosto da coisa, digo a eles que não gosto, que acho que não é aquilo e aí muitas vezes a gente constrói em cima disso melhores relações: eu sabendo do que eles não gostam e eles sabendo do que eu não gosto. E a gente vai vivendo assim.

A vida para mim sempre valeu a pena, valeu a pena desde que eu decidi que ia estudar, e tem valido a pena ao longo da minha vida profissional, que tem sido voltada, e foi voltada sempre, para o mais humilde, para a população que paga meu salário, meus subsídios, e que eu procuro corresponder trabalhando em prol dos mais miseráveis, porque o forte não precisa, ele já tem quem o defenda. Ao pobre, ao miserável, é difícil encontrar uma palavra em seu favor; encontrar alguém que veja que ele é um injustiçado. Para o rico isso é muito fácil. Então, para mim, por tudo isso, a vida tem valido a pena.

Bruno: Agradeço sua participação, Osório! Vá pela sombra!

Osório: A distinção do convite, as recordações e os sonhos que expus, Bruno, valeram a pena e aumentaram minha alegria por ter vivido até aqui. Obrigado!

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

Links de interesse:

Publicidade

“Por ser filho do debate, do conflito e das concessões mútuas, o Direito não pode ser coerente ou sistemático. O respeito a essas contradições é o respeito ao espírito democrático que moldou sua criação”. Entrevista com Anderson Oliveira.

Transitando entre momentos de satisfação e de ocasionais frustrações, Anderson Oliveira, procurador da República em Caçador, SC, reconhece que as reivindicações dos colegas, ocorridas nos últimos anos, gerou mudanças dentro do Ministério Público Federal. Segundo acredita, “a pressão acordou os próprios colegas, que antes eram mais conformados com posturas mais retrógradas da cúpula do MPF em questões corporativas”. Conforme vê hoje, após as recentes mudanças, “a maior parte da indignação acabou”.

Anderson é praticante de tiro amador e está certo de que a proibição do comércio de armas de fogo não é benéfica à sociedade porque favorece a criminalidade. “O criminoso não adquire arma de fogo de forma lícita. Você já processou quantas pessoas por roubo, latrocínio, sequestro, quadrilha armada etc cujos réus tinham armas registradas?”, pergunta. Nenhuma, Anderson! E alguém já?

Desde 2000, o colega é professor universitário, atividade que o realiza pelo incentivo à atualização, ao estudo e ao questionamento de seus próprios fundamentos. Apesar de tudo, sente que a maioria dos alunos hoje não está realmente interessada em aprender e se superar. “Vejo-os preocupados com respostas rápidas para passarem na disciplina e se tornarem bacharéis”, lamenta.

Este é o nosso 23º encontro — o terceiro com colegas catarinenses. Falamos sobre magistério, armas de fogo, café expresso e Budismo. A propósito, a preparação do café ficou por conta do nosso entrevistado, que tem boa experiência no assunto e, além de tudo, é exigente. Veja a entrevista.

Como tem sido o trabalho na PRM Caçador, Anderson? Você tem encontrado satisfação no cotidiano da Procuradoria?

Sabes que ‘satisfação’ na nossa profissão é um sentimento um tanto instável. Às vezes conseguimos fazer uma boa ação penal ou de improbidade, com boas provas e temos uma sentença favorável. Isso gera satisfação. Mas, não raro, os Tribunais acabam revertendo penas e até condenações em acórdãos nos quais é perceptível que não houve uma análise aprofundada como aquela feita pelo magistrado de primeiro grau. E, para piorar, algumas vezes o colega que atua na Procuradoria Regional não recorre e permite que a injustiça se consolide. O sentimento, nesses casos, é de desânimo.

Na atuação extrajudicial a satisfação é mais comum, porque é muito corriqueira a resolução das questões e das pendências através de ofícios e de recomendações. Os órgãos públicos têm uma percepção de irregularidades quando elas são bem apontadas e costumam corrigir suas posturas quando as soluções são simples. Mas quando a questão envolve dispêndio de recursos, ainda que não seja tão volumoso, a atuação extrajudicial em regra não é suficiente — e nesses casos é necessário recorrer ao Judiciário. E em tutela coletiva o Judiciário é sempre imprevisível, talvez porque a questão não seja somente probatória, mas da própria leitura do ordenamento jurídico. Enquanto o Ministério Público enxerga uma violação, muitas vezes o magistrado não vê a mesma coisa.

Eu ainda tenho fôlego para ser ‘clínico geral’ e atuar sozinho em uma PRM. E isso apesar da desvalorização dessas unidades menores, costumeiramente preteridas na carreira. Basta ver a questão dos afastamentos para cursar pós-graduação, as novas regras de acumulação de ofícios etc. São contradições de um MPF que pretende maior proximidade com a comunidade e ao mesmo tempo não valoriza aqueles que se dispõem a ficar em unidades mais longínquas e em cidades menos estruturadas.

Você é conhecido, na rede corporativa do Ministério Público, por suas manifestações de caráter reivindicatório. Atualmente, há muito com que se indignar, Anderson?

É verdade que a situação tem melhorado bastante. Evidentemente a situação somente melhorou a partir da pressão feita por vários colegas, durante os últimos quatro anos, quase cotidianamente no nosso ambiente de comunicação livre e pública: a rede membros. Sem essa pressão, a ANPR não teria o respaldo e a força para conseguir sucesso em seus requerimentos. Essa pressão também resultou em escolhas de colegas para ocupar cargos no CSMPF e a própria lista tríplice para PGR, para os quais foram escolhidos colegas mais comprometidos com questões consideradas urgentes para grande parte da classe. E a pressão acordou os próprios colegas, que antes eram mais conformados com posturas mais retrógradas da cúpula do MPF em questões corporativas. Sinceramente, não era possível aceitar que promotores de justiça ganhassem cinco, sete, dez mil reais a mais que nós, quando os mesmos benefícios pagos a eles poderiam ser pagos a nós, com certa boa vontade hermenêutica. Era de indignar ver a negativa de pagamento do auxílio-moradia àqueles com imóvel próprio, por puro capricho ou teimosia dos PGRs. Isso porque a lei jamais trouxe essa vedação.

Mas a maior parte da indignação acabou. Vejo no atual PGR, o colega Rodrigo Janot, um novo MPF. Não votei nele e nem fiz campanha para ele, mas hoje dou a mão à palmatória porque ele trouxe vários avanços em questões institucionais e corporativas ao Ministério Público Federal. Um PGR que se mostrou sensível aos clamores da classe e à necessidade de valorização da carreira, superando o sentimento de menosvalia que tomava conta de nós em razão do tratamento desigual com os ministérios públicos estaduais, agravado por uma defasagem salarial próxima a 35%.

O que mais o tira do sério hoje no Ministério Público?

O que me tira do sério no MPF hoje é a incapacidade de muitos colegas de enxergarem as relações de poder que entremeiam as relações institucionais e de alto escalão. Ainda há colegas que não conseguem ver além do ‘jurídico’ e compreender que há questões que demandam uma capacidade de articulação e de concessões mútuas de ‘poderes’ para a manutenção do equilíbrio republicano. As forças políticas nunca serão totalmente domadas pelos preceitos jurídicos. Aliás, essa é a dialética insuperável dos Estados de Direito, o embate entre o poder de fato, que são as forças políticas, e o poder do Direito. E, como sempre digo, o procurador-geral da República é um dos maiores ‘poderes de fato’ da nação, porque tem poder para instaurar investigações e ações penais que podem desequilibrar um Governo e até a própria República.

Você iniciou um curso de contabilidade depois que já havia ingressado no Ministério Público. Você buscava incrementar sua atividade na Procuradoria da República ou dava vazão a um hobby?

Eu comecei a fazer Contabilidade porque pretendia me aprimorar para compreender melhor os registros das contas públicas e privadas. Infelizmente somente consegui fazer os dois primeiros semestres, porque minha filhinha nasceu e eu não quis perder as noites estudando e deixando de curti-la e curtir meu outro filho pequeno.

Como surgiu seu interesse por armas de fogo? Pratica com frequência?

Sempre fui curioso por arma de fogo. Mas ano passado fizemos um curso de técnicas de defesa na Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina e tivemos treinamento com várias armas. Gostei definitivamente. Então, associei-me a dois clubes de tiro em Caçador, SC: o tiro ao prato, com espingarda calibre 12, e o tiro prático. O tiro prático é modalidade criada pela International Pratical Shooting Confederation e consiste em campeonatos que associam habilidade, mira e agilidade no manuseio de armas de fogo em situações que simulam alvos reais. É muito interessante para aqueles que se interessam em treinar com armas de fogo para ter mais segurança no manuseio para a autodefesa. Pratico todo fim de semana o tiro ao prato — trap americano –, que é uma modalidade mais clássica e elegante. A fossa olímpica é a modalidade de tiro ao prato que é considerada esporte olímpico. O tiro prático é mais emocionante, tem adrenalina. Hoje tenho uma espingarda 12 de dois tiros, uma ERA 2001, uma espingarda boito pump calibre 12 e uma pistola CZ 75 DUTY P-07, calibre 380. Sou inscrito como atirador no Exército Brasileiro, além de ter o porte de arma que temos em razão da função, que independe de autorização de qualquer autoridade.

Na sua opinião, as armas de fogo que ajudam a proteger domicílios e empresas são essencialmente um bem a serviço do bem ou são um mal necessário?

Armas no domicílio e na empresa são sim um instrumento de proteção. O cidadão que está armado e vê que seu domicílio está sendo invadido tem condições de recuar para um canto da casa protegido, com sua família, e usar a arma para afastar a ameaça à sua integridade física e de sua família. Evidente que o uso da arma depende de treino, porque arma sem treino é um perigo. E no Brasil a legislação é uma piada de mal gosto, por vários motivos. O primeiro foi o maior golpe institucional pós-88 na democracia brasileira. Foi realizado um referendo para saber se a população era a favor da proibição do comércio de armas e munições, e 64%, ou seja, 59 milhões de brasileiros, disseram não. Mesmo assim, não se alterou a Lei Federal n. 10.826/03, que torna inacessível a arma de fogo para a maior parte da população e torna impossível, praticamente, o porte de arma de fogo.

Ademais, a lei deixou vários aspectos para que o Exército regulamentasse. Como o Exército é contra a existência de uma população armada, os regulamentos são extremamente restritivos, além de ser confusos e em vários aspectos ilegais. Mas isso é questão para outro momento. Então hoje o cidadão que tem arma de fogo curta para defesa, revólver ou pistola, somente pode adquirir cinquenta cartuchos de munição por ano. É competência do Exército definir a quantidade de cartuchos. E eu pergunto: como esse cidadão vai treinar? De que adianta permitir a posse de arma sem dar a mínima condição para o cidadão praticar e poder ter segurança no momento de perigo? Esse é o mesmo número para o porte! Imagine você um cidadão que porta arma de fogo sem que tenha a habilidade de manuseio e segurança no uso… Um cidadão desses é um perigo para si e para os que o rodeiam. No mínimo são necessários uns mil tiros por ano para aquisição e manutenção das habilidades necessárias para o uso de armas de fogo.

Além disso, a Lei Federal n. 10.826/03 praticou verdadeiro estelionato contra o povo brasileiro. Conhecido como ‘Estatuto do Desarmamento’, a lei facilitou o registro de armas de fogo, bastando ao cidadão apresentá-la à Polícia Federal e declarar origem lícita. Isso levou milhares de brasileiros a trazerem suas armas à legalidade e ao registro. Ocorre que, e isso não foi informado aos cidadãos, o registro tem validade de três anos. Decorrido esse prazo o cidadão é obrigado a renovar o registro nos moldes da lei, ou seja, tem que apresentar atestado de aptidão de manuseio — feito com técnico credenciado –, atestado psicológico — um teste psicotécnico cansativo, longo e inacessível para pessoas mais simples –, além das certidões negativas de processos criminais. Muitos que regularizaram a arma de fogo são do meio rural, pessoas analfabetas ou semi-analfabetas. Como farão para passar nos testes exigidos? isso sem contar o custo disso tudo. Os dois testes somados custam R$ 600,00. Portanto, o cidadão que trouxe sua arma à legalidade agora está de novo na ilegalidade, porque atualmente há milhares de registros vencidos. Aliás, renovação de registro já é em si um excrecência, somente explicável pela ideologia preconceituosa contra as armas de fogo.

Eis uma grande questão. Você acredita que a proibição do comércio de armas de fogo poderia enfraquecer a criminalidade armada? Como vê essa questão que volta e meia está na ordem do dia?

A proibição do comércio de armas de fogo somente pode favorecer a criminalidade, não enfraquecê-la. O criminoso não adquire arma de fogo de forma lícita. Você já processou quantas pessoas por roubo, latrocínio, sequestro, quadrilha armada etc cujos réus tinham armas registradas? Tenho certeza de que nunca processou nenhuma pessoa assim, porque isso não existe… Quem registra arma de fogo é cidadão de bem, não criminoso de rua, que consegue comprar no mercado negro as armas que usa. E digo mais: hoje é tão difícil e caro ter arma de fogo que ela é praticamente proibida para 90% da população brasileira. Porte, então, é uma raridade, somente concedido àqueles que tem o porte por prerrogativa funcional, que são os policiais, os magistrados do Poder Judiciário e Ministério Público, os auditores da Receita etc. No entanto, a criminalidade armada só aumenta e os homicídios só aumentam no país. Em 2013 foram 53 mil homicídios! É sempre bom lembrar que sem armas de fogo jamais teríamos Canudos, Contestado, Sabinada, Revolução Farroupilha, dentre outras revoltas contra os abusos do poder central. População desarmada é, sim, população indefesa.

Que disciplinas você está lecionando atualmente? Sente-se vocacionado ao magistério?

Estou lecionando Direito Processual Penal III, que aborda os procedimentos, sentença, nulidades e recursos. Sempre gostei do magistério. Inclusive, minha carteira de trabalho foi assinada aos meus dezesseis anos, como professor de inglês do CCAA de Criciúma, SC, que é minha cidade natal e onde vivi até meus dezoito anos. Durante meu mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina consegui aprovação no concurso para professor substituto e lecionei por dois anos Direito Penal e Criminologia. Meu mestrado foi em Criminologia. Minha orientadora foi a nossa querida Ela Wiecko. Vim para Caçador, que fica a 400 quilômetros da capital, em 2003, contratado pela Universidade do Contestado, hoje extinta.

Sou professor universitário desde o ano 2000, com um intervalo entre 2010 e 2013. Gosto muito de ser professor porque gosto muito de me atualizar, de estudar e de questionar meus próprios fundamentos. Já prometi a mim mesmo que quando meus filhos estiverem maiores passarei a escrever obras jurídicas. Será um novo caminho.

Imagino que seus alunos já façam parte de uma cultura universitária um pouco diferente daquela de que você próprio fez parte no início de seus estudos. Essa observação faz sentido?

Faz sim, sem dúvida. Hoje as coisas estão muito diferentes. Não sinto que a maioria dos alunos esteja realmente interessada em aprender e se superar. Vejo-os preocupados com respostas rápidas para passarem na disciplina e se tornarem bacharéis. Lembro-me que quando estudava, salvo raras exceções, nós buscávamos estudar obras completas da maioria das disciplinas e tínhamos uma interação maior com os professores, provavelmente pelo nosso conhecimento decorrente das leituras. Não vejo isso hoje em meus alunos.

Na sua opinião, Anderson, no nosso atual modelo de sociedade, o Direito deve ser enfatizado como ‘tradição’ ou como ‘revolução’?

O Direito, no meu entender, é uma forma de racionalizar e de controlar os poderes de fato que agem em uma sociedade. O Direito serve à regulação das condutas para dar ao ser humano um meio mais digno para se desenvolver livremente. E quando digo que o Direito controla os poderes de fato da sociedade não estou dizendo que o Direito seja estranho a esses poderes políticos, empresariais, de grupos de pressão, sociedades organizadas etc. Só estou dizendo que o Direito é filho da negociação realizada por esses poderes, e que ele determina uma forma de regulação social possível, diante de tantas contradições de interesses e ideologias. O Direito é o resultado de uma debate e confronto de interesses, conjugados no local da democracia, ou seja, no Poder Legislativo, que impõe as normas de conduta social. Somente os seres humanos podem, em um ambiente livre e democrático, dispor sobre seus interesses e negociá-los, e o fazem dentro da perspectiva da melhor solução possível. Por isso ele é o instrumento que permite o desenvolvimento mais digno dentro de uma sociedade plural. E por ser filho do debate, do conflito e das concessões mútuas, o Direito não pode ser coerente ou sistemático, como querem alguns. O intérprete do Direito tem que ter a humildade de aceitar as contradições das normas, porque o respeito a essas contradições é o respeito ao espírito democrático que moldou sua criação.

Tenho a impressão de que o mundo está muito mudado, Anderson. Hoje convivemos com a Lei da Palmada, com a má-qualidade do ensino nas escolas, com a erotização da infância: o Brasil é um bom lugar para educar seus filhos?

Pois é. Primeiro é preciso saber o que é uma boa educação… Quando os pais sabem que estão educando certo? Essas são questões que me atormentam muito no trato com meus filhos. Até onde ir sem ser castrador e invasivo e quando parar sem ser omisso? Eu crio meus filhos tentando lhes ensinar alguns princípios, especialmente o respeito, a honestidade e a responsabilidade. Não consigo dimensionar que efeitos deletérios — ou, quem sabe, benéficos! — terão esses novos valores da adolescência em suas vidas. Mas creio que os pilares do respeito, honestidade e responsabilidade são a base para a formação de bons seres humanos. Se o Brasil é um país bom para criar meus filhos? Sinceramente, não sei, por me faltar paradigma. Conheço outros países somente como turista, não como morador. E isso me retira a possibilidade de comparação.

Mudando de assunto, você cunhou a curiosa expressão ‘ditadura do café expresso’. A que ela se refere? Pensa que a massificação do consumo é inimiga da liberdade nesse particular?

Essa expressão é resultado da constatação dos males que os modismos podem causar, inclusive em culinária e em gastronomia. Hoje virou modinha pedir café expresso, mesmo que a maioria das pessoas não conheçam café e nem o degustem adequadamente. Como se o café expresso fosse um café melhor… Não é um café melhor, porque ‘café expresso’ é uma técnica de extração do café. Há o café passado no pano, no filtro, na cafeteira francesa etc. Essas são outras técnicas de extração do sabor do café para fazer a bebida. A técnica ‘café expresso’ precisa de bons grãos, porque ela é uma técnica que extrai ao máximo as nuances do fruto. Logo, se você usar um grão ruim para tirar um café expresso, principalmente se for esses tipos ‘comerciais’ de supermercado, ele será intragável, será amargo ao extremo, com gosto de queimado, adstringente e desequilibrado. Então, não adianta ir em restaurante chinfrin e pedir um expresso, porque provavelmente o pó e o grão são ruins e a técnica ‘expresso’ o deixará mais intragável ainda. O café passado no coador extrai menos as nuances e é mais aconselhável em locais de que você não conhece a qualidade do pó e do grão. O que tem que ficar claro é que a técnica não faz milagre. Café ruim é sempre café ruim. E café bom é sempre café bom. A técnica apenas contribui com determinados tipos de grão para extrair-lhe o melhor o potencial, mas desde que sejam bons grãos. Se o grão é ruim, não há técnica que faça milagre. E nesse particular, o expresso é a pior delas. Um bom grão moído na hora e passado na cafeteira francesa… para mim é imbatível!

Como é que o Budismo, do qual você se aproximou, vê o sofrimento humano? Aonde nos levam nossos desejos?

No Budismo o sofrimento humano é resultado do carma e do apego. O carma é um aspecto individual e coletivo que influi nossa energia nesta vida em decorrência dos acúmulos de energia de outras vidas. O nascimento no reino humano já é em si meritório. Há outros reinos: dos infernos, dos fantasmas famintos; dos animais; dos deuses invejosos e dos deuses. Porque esse nascimento permite a opção por uma vida voltada à prática do bem; no reino dos animais não há essa opção, porque é um estado de inércia e estupor. Também nos permite a libertação do sofrimento; no reino dos infernos e dos fantasmas famintos o sofrimento é tão intenso que não há um momento de lucidez que permita a opção e a prática do bem.

O sofrimento no reino humano decorre do apego às ilusões causadas pelo Samsara. O Samsara é a aparência de realidade que acreditamos ser a realidade em si. O Samsara somente existe porque deixamos que nossa mente inquieta domine nosso ser e alimente ininterruptamente as fantasias desse estado. A meditação, entendida como a capacidade de romper o ciclo da mente, ou seja, calar a mente, é um dos principais caminhos budistas para a superação do Samsara e o rompimento com o apego — apego a bens materiais, pessoas, auto-imagem, vaidades etc. A meditação seguida da vontade sincera de beneficiar todos os seres é o caminho búdico, que permite atingir a iluminação — superação da falsa separação entre o eu e o todo para a compreensão de que estamos no todo e somos o todo. A meditação permite que você compreenda a verdadeira raiz dos seus desejos, a partir da contemplação de que eles são vazios de sentido. O que dá sentido aos seus desejos é a mente inquieta e iludida, que vive no Samsara. Quando você medita, aquieta a mente e contempla a si mesmo sem uso da linguagem — porque a mente reproduz a linguagem que, no fim das contas, é a forma como conseguimos enxergar o mundo racionalmente –, os desejos passam a se revelar de natureza vazia e você consegue se libertar das compulsões, das ansiedades etc.

O Budismo é uma religião e uma técnica. Você pode praticar o Budismo com conotação teísta ou sem os ritos sacramentais, somente como técnica de libertação da mente. E como disse o Dalai Lama atual, o budismo é uma canoa para chegar ao outro lado do rio. Se você consegue chegar lá nadando ou de outra forma, o budismo não lhe será importante. O importante é que você chegue do outro lado.

Ouvinte de Metallica, Iron Maiden, Black Sabbath e Pink Floyd, você acredita que esses conjuntos musicais conseguiram manter a autenticidade apesar das tentações da indústria cultural? Há um núcleo de valores comuns que os apreciadores do rock compartilham?

Deixa eu te falar uma coisa: eu sou extremamente eclético para música. No rock gosto do metal: Metallica, Iron e Black; e do psicodélico, Pink Floyd. Mas também gosto do punk de Ramones, do rock antigo do Doors e adoro a música brasileira em muitas das suas modalidades — não gosto de axé, funk e sertanejo universitário. Adoro Raul, Chico, Jobim, Luiz Gonzaga, Noel Rosa, Engenheiros, Legião, Paralamas, Zeca Baleiro, Cartola e Cazuza. Depende do humor e do dia. Mas quando ouço rock metal adoro o som do baixo. É fantástico ouvir aqueles graves envolvendo a guitarra!

Para o filósofo Roger Scruton, “Conservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa é encontrar o que você odeia e tentar destruir”. Você concorda com ele? Considera-se um conservador no sentido político?

Não sou conservador, mas também não sou revolucionário de Facebook ou de universidade. O que não admito são pessoas que escrevem, estudam e defendem pontos de vista mas não vivem o que defendem. Não consigo aturar pseudo-comunistas que não dividem nem o sinal do wi-fi com seus vizinhos. Ora, a palavra sem a vivência é hipocrisia e mera catarse, porque a pessoa não se aceita como é que quer trazer ao mundo o seu não-ser através da palavra para tentar se afirmar nela. Os ‘socialistas’ e ‘comunistas’ que conheço são todos de fachada, intranquilos consigo mesmos e com problemas de consciência que deveriam resolver no divã. Porque nenhum dos que conheço doa sequer 20% do que ganha para seu vizinho. No entanto, vivem falando em solidariedade, em comunismo, criticam a ganância e os empresários! Não sou conservador no sentido de estar apegado a uma forma ou de amar uma forma. Ao contrário, tenho tendências a ser uma metamorfose ambulante. Mas não sou de dar ou defender opiniões das modinhas politicamente corretas, se eu não as considero como guias de minha conduta de vida. Ou se vive o que se defende ou é melhor se calar. Falar contra o que está aí, mas viver o que está aí é vanguarda de Facebook e de universidade, sem nenhuma sinceridade. Pura hipocrisia. Os que sentem necessidade de defender o que não vivenciam devem procurar com urgência um psicólogo.

Para terminar, o que o futuro reserva ao MPF de hoje?

Eu prefiro não responder a esta questão. Acredito que o momento atual é de transição para algo melhor. Não estou mais tão certo de minhas antigas previsões. Aguardemos um tempo para ver para onde a correnteza nos levará.

Links de interesse:

“O papel essencial do Estado é garantir igualdade de condições para que as pessoas possam desempenhar as suas potencialidades. Sempre que o Estado avança além dessa linha tende a distorcer seu papel e a abusar de seu poder”. Veja a nossa entrevista com Aílton Benedito.

A atuação de Aílton Benedito na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em Goiás é um ponto fora da curva. Visto como um ‘conservador’ na PRDC — para alguns, um liberal em sentido estrito –, ele diz não se preocupar com essas definições: “Meu objetivo é fazer o meu trabalho da melhor forma possível, segundo as balizas que me oferecem a Constituição e as leis”. Seja como for, por trabalhar com direitos humanos sem flertar com as teorias político-culturais de Antonio Gramsci e da Escola de Frankfurt, nosso entrevistado comprova que a pluralidade de ideias no Ministério Público Federal não é apenas um item estéril de nosso portfólio institucional.

Tal como Alexis de Tocqueville, Aílton é ‘conservador nos valores e liberal na política’. Para ele, “o papel essencial do Estado é garantir fundamentalmente igualdade de condições, para que os indivíduos livres, por si mesmos, possam desempenhar as suas potencialidades sociais, econômicas, axiológicas, espirituais. Pois sempre que o Estado avança além de proporcionar igualdade de condições tende a distorcer seu papel e abusar do seu poder”.

Aílton é um procurador que rema contra a maré do ‘politicamente correto’ patrocinada por aqueles a quem chama de “herdeiros retardatários do socialismo real, saudosos do marxismo revolucionário e da revolução armada”. Por isso chama-lhe a atenção a defesa que dois ou três procuradores da República fazem do que chamam ‘Estado laico’: “Advoga-se praticamente um radical materialismo contra valores, doutrinas e símbolos do Cristianismo de vertente católica. Essa é uma leitura que não faço da Constituição, que não instituiu um Estado anticristão ou anticatólico”.

Tendo atuado nas PRMs de Jales, SP, e de Rio Verde, GO, Aílton, mineiro de Paracatu, está em Goiânia há cinco anos, de onde nos concedeu esta emblemática entrevista. Sente-se conosco, sirva o seu café e acompanhe o nosso 12ª encontro.

 

Como vai o trabalho aí na PRGO, Aílton?

Estou no MPF há oito anos. Desde os tempos de faculdade, quando o estabeleci como meu objetivo profissional, vejo-o como uma instituição admirável. Nesses oito anos, passei por duas PRMs, em Jales, SP e Rio Verde, GO, onde, a despeito das limitações pessoais e institucionais, funcionei como procurador da República ‘clínico geral’, desenvolvendo todas as atribuições relativas à atividade-fim de primeira instância, inclusive, ressalte-se, as da PDC. É, contudo, na PRGO que, há cinco anos, venho atuando com especial ênfase na tutela dos direitos do cidadão.

A par dos fundamentos normativos da atuação do MPF, tenho como princípio que a tutela dos direitos do cidadão deve ser um dos instrumentos de libertação do cidadão da tutela estatal. A meu juízo, esse tipo de tutela deve ser apenas mais um instrumento apto a promover a concretização dos direitos humanos de primeira (liberdade), segunda (igualdade) e terceira (fraternidade) geração ou dimensão.

No entanto, essa tutela, a meu ver, deve mirar, sobretudo a realização dos direitos que propiciem igualdade de condições para que o cidadão possa, livre e conscientemente, ser humano, conforme seu exclusivo juízo.

Tenho a impressão de que sua atuação PRDC pode positivamente ser descrita, muitas vezes, como ‘um ponto fora da curva’. Você já enfrentou críticas em razão de sua atuação na área dos direitos humanos? Pode nos dar alguns exemplos?

Não se trata apenas de impressão. A realidade é que minha atuação se distingue, às vezes, como “um ponto fora da curva”, comparadamente com o que vem marcando a atuação das PRDCs na tutela dos direitos do cidadão.

Nesse sentido, já fui interpelado por diversos colegas, surpreendidos, indagando-me: “como eu consigo atuar como PRDC?!”, cuja marca histórica no Brasil é de identificação com a defesa de valores alegadamente progressistas, revolucionários, coletivistas, “socialmente justos”, “politicamente corretos”, igualitários, fraternos, laicos etc. enquanto eu cultivaria valores que, na opinião deles, supostamente se caracterizariam ideologicamente conservadores, evolucionários, individualistas, “politicamente incorretos”, tradicionais, religiosos etc.

No entanto, a bem da verdade, não me preocupo com definir minha atuação conforme essas bitolas ideológicas. Meu objetivo sempre é fazer o meu trabalho da melhor forma possível, segundo as balizas que me oferecem a Constituição e as leis, para o cidadão e a sociedade, independentemente da cor, etnia, da condição social, do sexo, do credo, a religião, do gênero.

A título de exemplo, certa feita, numa reunião dos PRDCs e PDCs da 1ª Região, em Belo Horizonte, posta a reforma agrária em debate, um tema bastante caro ao MPF, compreendida como um instrumento acesso à terra e de realização de justiça social, então, um colega defendeu que a reforma dever-se-ia realizar de qualquer forma, se necessário, contra a Constituição. Quando me foi concedida a palavra, rebati aquela afirmação, ao fundamento de que a mesma Constituição que sustenta o MPF estabelece a reforma agrária. Admitir-se que se possa violentar a Carta Magna para realizar essa qualquer outra política pública implica aceitar que se permite rasgá-la para extinguir o Ministério Público, fechar o Congresso Nacional, suprimir direitos fundamentais, se se constituem obstáculo à “justiça social” que só existe na cabeça de algum doidivanas, que, Deus nos proteja!, nunca chegará ao poder central no Brasil.

Há algum tempo, a União entrou com uma ação contra o Twitter na qual buscou impedir o compartilhamento de informações entre os usuários a respeito de radares com sensores de velocidade ativos em diversas cidades do país. O seu parecer pela improcedência da ação utilizou, entre outros argumentos, a garantia da liberdade de ação dos indivíduos. Em um breve resumo, em que concepção de Estado você se espelhou para se manifestar nesse caso? Qual é a sua retaguarda teórica?

Considero que essa foi uma das minhas mais relevantes atuações na tutela dos direitos do cidadão, na PRDC em Goiás. Ali se cuidou do que é o conflito atual mais importante da sociedade da informação. De um lado, o indivíduo exercendo sua liberdade de pensar, se expressar, se comunicar, se informar, usando os meios de comunicação como sua extensão, no caso específico, a internet, que conforma o mundo contemporâneo. De outro lado, o Estado, cuja gênese implica controle, o qual, infelizmente, no Brasil, tem um histórico de crescimento continuado em detrimento da sociedade e o indivíduo. Costumo dizer que, desde a sua independência o Estado brasileiro cresce sem parar. Apenas durante a década de 1990, até a posse do governo Lula, a expansão contínua do Estado sofreu um brevíssimo soluço. Desde então, contudo, ele voltou ao seu leito natural, de crescer e se multiplicar, contra a sociedade e o indivíduo.

Do entrechoque de visões, cada vez mais, a liberdade individual é controlada, constrangida, ameaçada, consumida pela força irrefreável do Estado. Da minha parte, eu não tenho dúvida em escolher trilhar a liberdade individual, em suas diversas dimensões, porquanto, assim, entendo a realização do ser humano. Dessa forma, agi, ao intervir e me manifestar na ação movida pela União contra o Twitter. Não tive dúvidas de que a pretensão estatal violentava desarrazoadamente o exercício daquelas liberdades individuais na internet. Não é incomum que governos, diante da própria incapacidade de exercer devidamente suas competências estatais, busque manobras diversionistas para trespassar a culpa por suas falhas para os indivíduos, a sociedade. Foi o que percebi e contra o que me investi, ao me insurgir contra a mencionada ação.

Nessa perspectiva, a minha concepção de Estado ideal, que tenho como modelo possível à natureza falha do ser humano, é descrita por Alexis de Tocqueville, em ‘Democracia na América‘: conservador nos valores, liberal na política. Com efeito, tenho que o papel essencial do Estado é garantir fundamentalmente igualdade de condições, para que os indivíduos livres, por si mesmos, possam desempenhar as suas potencialidades sociais, econômicas, axiológicas e espirituais. É inexorável: sempre que o Estado avança além de proporcionar igualdade de condições tende a distorcer seu papel e a abusar do seu poder.

Você está atuando como PRE substituto e auxiliar em matéria de propaganda eleitoral. Que desafios o Ministério Público Eleitoral tem enfrentado na questão da propaganda eleitoral?

A meu ver, o maior desafio do Ministério Público Eleitoral, ao enfrentar a propaganda eleitoral ilícita, não exsurge agora, durante o processo eleitoral propriamente dito, que começa três meses antes da realização do pleito. Na verdade, o grande desafio da instituição é coibir a propaganda eleitoral disfarçada de institucional, que ocorre durante o período de governo, antes do processo eleitoral propriamente dito, na União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Essa, sim, é a propaganda que, muito mais gravemente, violenta o Estado de Direito, a democracia, a igualdade entre partidos do governo e da oposição, para qual o Ministério Público Eleitoral precisa despertar-se, sair do berço esplêndido. Nesse sentido, penso que principal papel do MPE é inibir que haja abuso da máquina pública, e quem abusa dessa máquina é obviamente quem a domina, é quem a ocupa. Circunscrever, pois, a atuação do MPE ao estrito período eleitoral, desconsiderando-se toda a propaganda eleitoral disfarçada de institucional, é fechar os olhos para a realidade, é tapar o sol com a peneira, é quedar-se frente ao abuso praticado pelos detentores do poder.

Por outro lado, entendo que o período específico aberto à propaganda eleitoral, apenas três meses, é sobremaneira exíguo, com evidente privilégio dos que ocupam mandatos e cargos eletivos e que, cotidianamente, servem-se das estruturas estatais para divulgar seus trabalhos,  propostas, programas, enfim, fazer o seu marketing eleitoral; enquanto aqueles que não detêm mandatos e cargos eletivos não possuem as mesmas condições, e ainda podem ser acusados de realizar propaganda eleitoral antecipada ilegal, se antes do interstício aberto, apresentam-se como futuros candidatos.

Ora, se o Ministério Público Eleitoral fecha os olhos para essa realidade e, consequentemente, trata partidos e candidatos com a mesma régua, estar-se-á concorrendo, relevantemente,  para a perpetuação do poder político nas mãos dos que já o detêm.

O que pensa sobre a divulgação das pesquisas eleitorais durante e nas vésperas das eleições?

Por princípio, entendo que o eleitor tem direito a receber todo tipo de informação que possa contribuir para formar seu juízo sobre o processo eleitoral, candidatos e partidos. Inclusive as pesquisas eleitorais, em qualquer época. Assim, é evidente que os eleitores são influenciados por resultados de pesquisas eleitorais. Mas, a priori, não enxergo nada de ilícito nesse tipo de influência, já que é da natureza das relações sociais a existência de influências recíprocas entre os diversos atores.

Nesse contexto, chega a ser risível o comportamento de alguns protagonistas de disputas eleitorais, sobretudo os que ocupam os governos, a invocar uma suposta necessidade de que o eleitor exerça o sufrágio absolutamente imune a qualquer tipo de interferência. O que, todavia, é passível de se compreender como pilhéria, troça da inteligência alheia, vez que, não é incomum, governantes mal-avaliados, bastante rejeitados pelos eleitores, tentam, por meios diretos ou indiretos, censurar a difusão de quaisquer tipos de informações que lhes são negativas, desde análises econômicas de instituições financeiras, números de inflação, pesquisas de desemprego, índices de atividade empresarial.

No entanto, considero que o Ministério Público Eleitoral e a Justiça Eleitoral precisam despertar para a necessidade de fiscalizar a lisura das pesquisas eleitorais, a fim de assegurar que não haja a sua manipulação ilícita. É, portanto, imprescindível o desenvolvimento de instrumental teórico e prático para a realização desse mister. Talvez o desenvolvimento de ferramentas de informática e a capilaridade da internet venham proporcionar meios substancialmente relevantes a esse objetivo.

Lembro-me de um colega de faculdade que, inclinado a votar em determinado candidato, mudou seu voto após ter acesso a pesquisas eleitorais que indicavam sua pequena chance de vitória. Você deve conhecer pessoas que não gostam de ‘perder o voto’… A divulgação de pesquisas eleitorais, nesse contexto, não seria um modo inadequado de influenciar a vontade do eleitor?

É o que eu já disse na resposta à pergunta anterior: entendo que é ontologicamente impossível evitar que o eleitor seja influenciado. Na realidade, o eleitor está sujeito a infinitos fatos de influência, pessoais, familiares, sociais, culturais, ambientais etc. Afinal, o eleitor não vive numa bolha inexpugnável. Portanto, não vejo razão aceitável para se proibir divulgação de pesquisas eleitorais. Que o eleitor tenha liberdade de formar seu juízo, inclusive se socorrendo de tais pesquisas.

Na sua apresentação no site do Instituto Millenium, diz-se que você ‘defende a educação, o trabalho e o esforço individual como os principais fatores de construção dos ideais democráticos’. Há democracia sem indivíduo, Aílton?

Impossível! Para mim, a democracia é indissociável do indivíduo. Qualquer regime político que visa a suprimir o indivíduo pode ser qualquer coisa, mas não será democrático. Somente o indivíduo, dotado de consciência e vontade, de liberdade para decidir e agir, responsável por seus atos, é capaz de vislumbrar e buscar realizar a democracia.

De que modo os regimes políticos que enfatizam o aspecto coletivo da sociedade, em detrimento do indivíduo, distanciam-se do ideal democrático?

Sem retroagir demais na história, tem-se que, durante o Século XX, a humanidade viveu — e ainda vive hoje — um conflito interminável entre duas visões de mundo: de um lado o coletivismo, de outro, o individualismo, num típico movimento pendular, ora preponderando um, ora outro. Não tenho dúvida de que em todas as vezes em que predomina o coletivo sobre o indivíduo a sociedade distancia-se da democracia; mas dela se aproxima à medida que se sobreleva o indivíduo. Para ficar ainda no Século XX, é claro que o coletivismo, nas suas vertentes nazifascista e comunista, serviu-se de ditaduras políticas, mais ou menos sanguinárias, para se impor às diversas sociedades, desde a Rússia soviética, a Alemanha nazista, a Itália fascista, a China maoista, Cuba castrista, a Venezuela bolivariana, apenas para citar alguns exemplos, próximos ou distantes no tempo e no espaço. Sob os mais diversos fundamentos filosóficos, esses casos revelam o traço comum básico: mais coletivo, menos indivíduo. Eu, de fato, sou incapaz de apontar uma só ditadura política cuja base tenha sido mais indivíduo e menos coletivo.

Às vezes tenho a impressão de que o regime democrático é mais benéfico para os intelectuais, para os industriários e para os comerciantes que para o restante da população. Ora, se a democracia é ‘coisa de elite’, então, embora os regimes comunistas tenham errado em tudo o mais, parece que acertaram no diagnóstico e na solução política… O que pensa disso?

A meu ver, democracia não é ‘coisa de elite’, é ‘coisa de qualquer um’. Explico: democracia é o sistema social que faculta, mas não obriga, a qualquer indivíduo almejar fazer-se elite, fazer-se intelectual, industrial, comercial, econômica, musical, artística… enfim, fazer-se elite em qualquer campo de ação humana, sem atavismos genéticos, étnicos, religiosos, raciais, sexuais, nobiliárquicos etc.

Se o administração pública brasileira fosse uma empresa, julga que daria lucro a seus acionistas? Penso que a sociedade civil vem investindo, através de impostos, somas consideráveis nesse projeto…

Estaria falida, se fosse gerida da forma atual, ou seria muitíssimo melhor para a sociedade, se fosse tratada, de fato, em moldes empresariais.

Nada mais distante de uma administração empresarial do que a administração pública brasileira. Contudo, nem vejo que seja por aí a forma correta de ser definir como seria melhor a administração pública verde-loura. O fato é que o Estado brasileiro quer-se empresário, atuando em setores para os quais não tem capacidade, além de desperdiçar dinheiro público: energia elétrica, petróleo e derivados, correios, transportes, instituições financeiras etc., porém, ao mesmo tempo, contraditoriamente, esse mesmo Estado omite-se, criminosamente, em atender a razão de ser de qualquer Estado digno de continuar existindo: segurança pública e segurança jurídica. Compreendo que um Estado que é incapaz de prover isso à própria sociedade não tem legitimidade para atuar em nenhum outro setor da ação humana.

O que um mineiro está fazendo em Goiás? O pão de queijo daí é melhor do que o daqui?

Identifico em Goiás muito do que gosto em Minas Gerais, especialmente o povo e o cerrado.

Que papel o prof. Olavo de Carvalho desempenha na sua vida de estudos?

Tenho no prof. Olavo meu mestre intelectual. Compro e leio os seus livros, já participei de alguns dos seus cursos virtuais. O livro ‘O Jardim das Aflições: de Epicuro à Ressurreição de César‘ é, para mim, divisor de águas. Foi a primeira obra que li do professor. Ali compreendi o quanto a academia brasileira está dominada pelo marxismo cultural, uma praga exterminadora de inteligência.

Como interessado por temas de psicologia social, você credita que as massas são hoje mais facilmente manipuladas que no começo do século XX? Já identificou alguns mecanismos usados atualmente que sejam dignos de nota?

Tenho-me interessado pela psicologia social, com vistas a melhor compreender a mente humana, a partir de dados objetivos perceptíveis no mundo exterior. Se Freud ocupou-se precipuamente do inconsciente subjetivo, a psicologia social permite-nos divisar o inconsciente individual e coletivo a partir de elementos do real.

Mas devo dizer que, por isso, a psicologia das massas foi, é e será sempre manipulada. Hoje, com maior gravidade, com o advento dos meios de comunicação de massa, facilitam-se sobremaneira ações manipuladoras. Pensemos na internet, por exemplo. Bilhões de pessoas conectadas simultaneamente; só no Brasil, estima-se que 60% da população esteja cotidianamente conectada. Vejamos as redes sociais, durante o atual processo eleitoral para escolha dos nossos futuros governos e representantes: são milhões de pessoas desconhecidas entre si, postando simultaneamente, ocupando todos os espaços disponíveis, fazendo crescer as adesões a candidaturas, defendendo seus candidatos, atacando os adversários, visando à vitória eleitoral.

A propósito disso que disse anteriormente, sobre o entrechoque entre coletivismo e individualismo, os grandes movimentos revolucionários coletivistas do Século XX (Nazismo, Fascismo, Comunismo) tiveram na manipulação das massas o mais poderoso dos instrumentos de assalto, consolidação e expansão do poder absolutista. Se àquele tempo já existisse a internet, talvez hoje o mundo fosse todo uma miscelânea de nazi-facismo-comunista. Quem sabe não seja de fato?

Não é consideravelmente diferente do que sucede atualmente, no Brasil. Aqui, as massas são cotidianamente manipuladas, sobretudo pelos governos, mediante o uso desbragado dos meios de comunicação social: a) pela publicidade estatal autodenominada institucional, usada, no mais das vezes, para promoção pessoal do governante e do seu partido político, bem como difusão de programas, ações e políticas públicas que só existem no papel, mas que são propagandeados como existentes de fato e redentores de todas as mazeladas da sociais; b) pela publicidade de empresas privadas, as quais emulam a estética da publicidade estatal, às vezes, de forma tão despudorada, que é praticamente impossível distinguir se se trata de publicidade estatal ou privada; c) pela criação de obstáculos legais explícitos ou dissimulados à publicidade privada de produtos vendidos no mercado por grandes empresas privadas, comumente portentosos anunciantes, sob a alegada justificativa de proteção da saúde, à segurança, à infância, à mulher etc.

Tem conseguido tempo para organizar sua imensa biblioteca particular? Há temas específicos dos quais você busca títulos especiais?

Confesso que tenho muito mais livros na minha biblioteca do que o tempo necessário para organizá-los. Além disso, ainda padeço do pecado do consumismo bibliográfico. O desejo de ler e aprender ainda têm sido maior do que a minha capacidade de leitura e organização.

Temas que sempre me apetecem e me fazem adquirir livros são Nazismo, Fascismo, Comunismo, Liberalismo, Marxismo cultural.

Você entende que o MPF tem sido afetado pelo chamado ‘Marxismo cultural’? Se sim, em que isso, na sua visão, pode prejudicar a instituição?

Sim. Os herdeiros retardatários do socialismo real, saudosos do marxismo revolucionário, da revolução armada, meio para edificar a ditadura do proletariado — a real democracia, na distopia deles –, estão presentes na sociedade e nas instituições públicas e privadas brasileiras. Superada a possibilidade da imposição daquela distopia pela revolução armada, tentam promovê-la, a partir do lugar que ocupam, através da guerra de valores, subvertendo as bases culturais da sociedade e das instituições, buscando transformar o Estado, desde dentro, num Estado marxista.

Dessa perspectiva, é possível observar que programas, ações e políticas públicas, instrumentos pelos quais o Estado deve realizar os seus mandatos constitucionais, são concebidos, instituídos e executados conforme os valores do Marxismo cultural. Não é diferente com o MPF.

Coerente com essa percepção, vemos, por exemplo, a defesa que setores do MPF fazem do que chamam “Estado laico”. Advoga-se praticamente um radical materialismo do Estado laico, especialmente contra valores, doutrinas e símbolos do Cristianismo de vertente católica, como se a Igreja Católica estivesse em guerra contra todas as outras denominações religiosas e, mais grave ainda, se servisse do Estado para impedir a liberdade de crença dos brasileiros não católicos. Essa é uma leitura que não faço da Constituição, que, se, de um lado, erige o Estado laico; de outro, não instituiu um Estado anticristão ou anticatólico.

Aspecto que me chama atenção: é dever do Estado zelar pela liberdade de crença dos brasileiros, no entanto, quando a Igreja Católica e, por conseguinte, os católicos brasileiros são agredidos nos seus valores, doutrinas, símbolos, não se costuma ver atuação do MPF em sua defesa.

 

Links de interesse:

Entrevista com Marcelo Moscogliato: “O Ministério Público me atraiu pela liberdade de pensamento e pela autonomia para questionar a realidade jurídica”.

Um entusiasta da liberdade de expressão, eis uma definição adequada, entre tantas outras possíveis, do procurador regional Marcelo Moscogliato. Para ele, “O livre fluxo de informações e opiniões é indispensável à formação do pensamento crítico e responsável; e é fundamental para desconstruir políticas populistas tão comuns na nossa história”.

Que caminhos o levaram ao Direito? “Quando comecei o curso de Direito, aos dezesseis anos, eu não tinha a menor ideia do que queria ser quando crescer. Cheguei ao Direito por exclusão”.

Sobre os possíveis ‘limites do humor, Marcelo diz que “Humor e paródia são duas entre as principais formas de comunicação e educação. Com eles a comunicação flui e se constroem sociedades mais livres. Bloquear ou censurar humor é o mesmo que apagar fogo com gasolina”. Ressalvada a possibilidade de indenização pecuniária ou a paródia reversa em caso de ofensas, acredita que “quanto mais liberdade de expressão, melhor”.

Nascido na zona rural do interior do Paraná, onde teve uma boa infância, reconhece hoje que o seu lugar, no mundo e no Brasil, é a cidade grande, “onde eu posso encontrar e interagir com mais semelhantes diferentes”.

Leia a entrevista que Marcelo nos concedeu da capital paulista.

Em que, basicamente, você tem trabalhado na PRR3? Sente-se realizado com o seu trabalho?

Eu tenho trabalhado com processos criminais há alguns anos e me sinto realizado e útil com as minhas tarefas.

Você faz parte do Instituto Palavra Aberta. Quais são os objetivos desse instituto? O que moveu você a fazer parte dele?

O PalavraAberta se dedica à liberdade de expressão, um tema que me é muito caro. Vivi o restabelecimento da democracia no Brasil quando estava na Faculdade de Direito e aprendi que no nosso país a mais ampla liberdade de expressão é fundamental. Há muito tempo eu entendo que o fluxo livre de informações e opiniões é indispensável à formação do pensamento crítico e responsável, é fundamental para desconstruir políticas populistas (tão comuns na nossa história) e pode nos salvar dos “salvadores da pátria”.

É senso comum dizer que não existem direitos absolutos. Você provavelmente concorda que com a liberdade de expressão não é diferente. Sabendo disso, você é capaz de dizer quais são os limites dessa garantia constitucional? Em outras palavras, o que a garantia constitucional da liberdade de expressão não alcança?

Bom, do ponto de vista individual, a morte é absoluta e na sua presença não há direitos ou negociações possíveis. Quanto aos limites à liberdade de expressão, sempre existirão conflitos em todas as sociedades. Ninguém está imune aos questionamentos e riscos. Mas, não vejo como conflitos à liberdade unicamente. Vejo como conflito de valores e, por exemplo, temos conflitos entre liberdade e equidade, entre liberdade e educação, entre liberdade e saúde. Há inúmeros paradoxos. Mas, é para eles que existem o debate e a democracia ocidental. Por isto, sempre, quanto mais liberdade de expressão, melhor.

Nos últimos dois anos, alguns comediantes brasileiros foram criticados porque, segundo o entendimento de alguns, extrapolaram os ‘limites do humor’. O humor tem limites, Marcelo?

Humor e paródia são duas entre as principais formas de comunicação e educação humana. Com humor e paródia a comunicação flui e se constroem sociedades mais livres. Observe que ditaduras e discursos politicamente e/ou religiosamente corretos não se comportam bem diante de humor e paródia. Caso resultem em ofensa a pessoas ou grupos, o humor, a paródia reversa ou a indenização pecuniária podem ser soluções. Bloquear ou censurar humor é o mesmo que apagar fogo com gasolina.

Você acredita que a internet ainda continuará livre por muito tempo?

Nunca via a internet como livre. Ela é um meio de comunicação fenomenal, revolucionário na nossa era. Mas, nas suas respectivas épocas, a prensa, o telefone e o rádio também foram, só para citar três exemplos. A internet está presa a um sistema físico-mecânico, não virtual. No mundo real, é cabeada e depende de energia. Portanto, depende de muita inteligência, investimento e dinheiro para existir, motivo pelo qual é regrada, negociada e regulada em todo o planeta. O fato de ela ter facilitado o fluxo de informações e incrementado (e muito) a nossa liberdade de expressão não significa que ela é absolutamente livre.

Eu percebo seu interesse no estudo da sistemática dos mercados financeiros e em sua regulamentação. Você acha que no peito dos investidores também bate um coração?

Sim. Investidores somos todos nós. Todos investimos quando poupamos e quando pagamos tributos. Quando poupamos, escolhemos quem administrará o nosso consumo futuro (um banco, uma empresa, nossa família, o nosso colchão, etc.). Quando pagamos tributos, entregamos o nosso consumo futuro nas mãos dos governantes que tomarão decisão em nosso nome (construirão instituições, construirão pontes, construirão estádios, construirão dívidas, elefantes brancos, etc.). Neste último caso, gosto muito do seguinte ditado popular: “o problema de quem diz não gostar de política é esquecer que é governado por quem gosta”.

Onde passou sua infância? Que lembranças traz daquela época? Acredita que alguma circunstância daquela época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Sou do interior do Paraná, da zona rural. Tive uma boa infância, numa família estruturada e segura. O meu Pai era bancário e a minha Mãe era professora pública, tenho dois irmãos e tivemos muita liberdade na nossa formação. Eu cheguei ao Direito por exclusão, porque aos dezesseis anos de idade (quando comecei o curso) eu não tinha a menor ideia (como muitos ainda não tem hoje em dia) do que queria ser quando crescer. Mais do que o Direito, o Ministério Público me atraiu pela liberdade de pensamento e pela autonomia para questionar a realidade jurídica. Antes do MPF, fui Promotor de Justiça por pouco mais de um ano e meio.

Em ‘A rebelião das massas’, publicado em 1930, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset disse que “As cidades estão cheias de gente. As casas, cheias de inquilinos. Os hotéis, cheios de hóspedes. Os trens, cheios de passageiros. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. Os consultórios dos médicos famosos, cheios de pacientes. Os espetáculos, não sendo muito fora de época, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não costumava ser problema agora passa a sê-lo quase de forma contínua: encontrar lugar”. Você concorda com ele? Onde você costuma encontrar seu lugar no mundo e no Brasil?

Ele viu um problema e descreveu. A concentração urbana é uma constante na realidade humana e o movimento não parou. Na verdade, neste início de século, acho que até aumentou. Posso intuir que hoje, mais seres humanos vivem em cidades e não no campo. Isto coloca pressão em toda infraestrutura urbana no planeta, mas não é um movimento que pode ser parado. A cidade tem força gravitacional e atrai, sempre. Na verdade, penso que a infraestrutura deve ser acelerada para acomodar mais, melhor e de forma inteligente todos que chegam e vivem nas cidades. Fora do Brasil há bons exemplos de projetos urbanos de sucesso, em grandes cidades onde a ocupação dos espaços públicos (praças, parques, reservas, transporte) e privados (moradias e negócios) é mais inteligente.

No mundo e no Brasil, o meu lugar é a cidade grande, onde eu posso encontrar e interagir com mais semelhantes diferentes.

Links de interesse: