“Por ser filho do debate, do conflito e das concessões mútuas, o Direito não pode ser coerente ou sistemático. O respeito a essas contradições é o respeito ao espírito democrático que moldou sua criação”. Entrevista com Anderson Oliveira.

Transitando entre momentos de satisfação e de ocasionais frustrações, Anderson Oliveira, procurador da República em Caçador, SC, reconhece que as reivindicações dos colegas, ocorridas nos últimos anos, gerou mudanças dentro do Ministério Público Federal. Segundo acredita, “a pressão acordou os próprios colegas, que antes eram mais conformados com posturas mais retrógradas da cúpula do MPF em questões corporativas”. Conforme vê hoje, após as recentes mudanças, “a maior parte da indignação acabou”.

Anderson é praticante de tiro amador e está certo de que a proibição do comércio de armas de fogo não é benéfica à sociedade porque favorece a criminalidade. “O criminoso não adquire arma de fogo de forma lícita. Você já processou quantas pessoas por roubo, latrocínio, sequestro, quadrilha armada etc cujos réus tinham armas registradas?”, pergunta. Nenhuma, Anderson! E alguém já?

Desde 2000, o colega é professor universitário, atividade que o realiza pelo incentivo à atualização, ao estudo e ao questionamento de seus próprios fundamentos. Apesar de tudo, sente que a maioria dos alunos hoje não está realmente interessada em aprender e se superar. “Vejo-os preocupados com respostas rápidas para passarem na disciplina e se tornarem bacharéis”, lamenta.

Este é o nosso 23º encontro — o terceiro com colegas catarinenses. Falamos sobre magistério, armas de fogo, café expresso e Budismo. A propósito, a preparação do café ficou por conta do nosso entrevistado, que tem boa experiência no assunto e, além de tudo, é exigente. Veja a entrevista.

Como tem sido o trabalho na PRM Caçador, Anderson? Você tem encontrado satisfação no cotidiano da Procuradoria?

Sabes que ‘satisfação’ na nossa profissão é um sentimento um tanto instável. Às vezes conseguimos fazer uma boa ação penal ou de improbidade, com boas provas e temos uma sentença favorável. Isso gera satisfação. Mas, não raro, os Tribunais acabam revertendo penas e até condenações em acórdãos nos quais é perceptível que não houve uma análise aprofundada como aquela feita pelo magistrado de primeiro grau. E, para piorar, algumas vezes o colega que atua na Procuradoria Regional não recorre e permite que a injustiça se consolide. O sentimento, nesses casos, é de desânimo.

Na atuação extrajudicial a satisfação é mais comum, porque é muito corriqueira a resolução das questões e das pendências através de ofícios e de recomendações. Os órgãos públicos têm uma percepção de irregularidades quando elas são bem apontadas e costumam corrigir suas posturas quando as soluções são simples. Mas quando a questão envolve dispêndio de recursos, ainda que não seja tão volumoso, a atuação extrajudicial em regra não é suficiente — e nesses casos é necessário recorrer ao Judiciário. E em tutela coletiva o Judiciário é sempre imprevisível, talvez porque a questão não seja somente probatória, mas da própria leitura do ordenamento jurídico. Enquanto o Ministério Público enxerga uma violação, muitas vezes o magistrado não vê a mesma coisa.

Eu ainda tenho fôlego para ser ‘clínico geral’ e atuar sozinho em uma PRM. E isso apesar da desvalorização dessas unidades menores, costumeiramente preteridas na carreira. Basta ver a questão dos afastamentos para cursar pós-graduação, as novas regras de acumulação de ofícios etc. São contradições de um MPF que pretende maior proximidade com a comunidade e ao mesmo tempo não valoriza aqueles que se dispõem a ficar em unidades mais longínquas e em cidades menos estruturadas.

Você é conhecido, na rede corporativa do Ministério Público, por suas manifestações de caráter reivindicatório. Atualmente, há muito com que se indignar, Anderson?

É verdade que a situação tem melhorado bastante. Evidentemente a situação somente melhorou a partir da pressão feita por vários colegas, durante os últimos quatro anos, quase cotidianamente no nosso ambiente de comunicação livre e pública: a rede membros. Sem essa pressão, a ANPR não teria o respaldo e a força para conseguir sucesso em seus requerimentos. Essa pressão também resultou em escolhas de colegas para ocupar cargos no CSMPF e a própria lista tríplice para PGR, para os quais foram escolhidos colegas mais comprometidos com questões consideradas urgentes para grande parte da classe. E a pressão acordou os próprios colegas, que antes eram mais conformados com posturas mais retrógradas da cúpula do MPF em questões corporativas. Sinceramente, não era possível aceitar que promotores de justiça ganhassem cinco, sete, dez mil reais a mais que nós, quando os mesmos benefícios pagos a eles poderiam ser pagos a nós, com certa boa vontade hermenêutica. Era de indignar ver a negativa de pagamento do auxílio-moradia àqueles com imóvel próprio, por puro capricho ou teimosia dos PGRs. Isso porque a lei jamais trouxe essa vedação.

Mas a maior parte da indignação acabou. Vejo no atual PGR, o colega Rodrigo Janot, um novo MPF. Não votei nele e nem fiz campanha para ele, mas hoje dou a mão à palmatória porque ele trouxe vários avanços em questões institucionais e corporativas ao Ministério Público Federal. Um PGR que se mostrou sensível aos clamores da classe e à necessidade de valorização da carreira, superando o sentimento de menosvalia que tomava conta de nós em razão do tratamento desigual com os ministérios públicos estaduais, agravado por uma defasagem salarial próxima a 35%.

O que mais o tira do sério hoje no Ministério Público?

O que me tira do sério no MPF hoje é a incapacidade de muitos colegas de enxergarem as relações de poder que entremeiam as relações institucionais e de alto escalão. Ainda há colegas que não conseguem ver além do ‘jurídico’ e compreender que há questões que demandam uma capacidade de articulação e de concessões mútuas de ‘poderes’ para a manutenção do equilíbrio republicano. As forças políticas nunca serão totalmente domadas pelos preceitos jurídicos. Aliás, essa é a dialética insuperável dos Estados de Direito, o embate entre o poder de fato, que são as forças políticas, e o poder do Direito. E, como sempre digo, o procurador-geral da República é um dos maiores ‘poderes de fato’ da nação, porque tem poder para instaurar investigações e ações penais que podem desequilibrar um Governo e até a própria República.

Você iniciou um curso de contabilidade depois que já havia ingressado no Ministério Público. Você buscava incrementar sua atividade na Procuradoria da República ou dava vazão a um hobby?

Eu comecei a fazer Contabilidade porque pretendia me aprimorar para compreender melhor os registros das contas públicas e privadas. Infelizmente somente consegui fazer os dois primeiros semestres, porque minha filhinha nasceu e eu não quis perder as noites estudando e deixando de curti-la e curtir meu outro filho pequeno.

Como surgiu seu interesse por armas de fogo? Pratica com frequência?

Sempre fui curioso por arma de fogo. Mas ano passado fizemos um curso de técnicas de defesa na Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina e tivemos treinamento com várias armas. Gostei definitivamente. Então, associei-me a dois clubes de tiro em Caçador, SC: o tiro ao prato, com espingarda calibre 12, e o tiro prático. O tiro prático é modalidade criada pela International Pratical Shooting Confederation e consiste em campeonatos que associam habilidade, mira e agilidade no manuseio de armas de fogo em situações que simulam alvos reais. É muito interessante para aqueles que se interessam em treinar com armas de fogo para ter mais segurança no manuseio para a autodefesa. Pratico todo fim de semana o tiro ao prato — trap americano –, que é uma modalidade mais clássica e elegante. A fossa olímpica é a modalidade de tiro ao prato que é considerada esporte olímpico. O tiro prático é mais emocionante, tem adrenalina. Hoje tenho uma espingarda 12 de dois tiros, uma ERA 2001, uma espingarda boito pump calibre 12 e uma pistola CZ 75 DUTY P-07, calibre 380. Sou inscrito como atirador no Exército Brasileiro, além de ter o porte de arma que temos em razão da função, que independe de autorização de qualquer autoridade.

Na sua opinião, as armas de fogo que ajudam a proteger domicílios e empresas são essencialmente um bem a serviço do bem ou são um mal necessário?

Armas no domicílio e na empresa são sim um instrumento de proteção. O cidadão que está armado e vê que seu domicílio está sendo invadido tem condições de recuar para um canto da casa protegido, com sua família, e usar a arma para afastar a ameaça à sua integridade física e de sua família. Evidente que o uso da arma depende de treino, porque arma sem treino é um perigo. E no Brasil a legislação é uma piada de mal gosto, por vários motivos. O primeiro foi o maior golpe institucional pós-88 na democracia brasileira. Foi realizado um referendo para saber se a população era a favor da proibição do comércio de armas e munições, e 64%, ou seja, 59 milhões de brasileiros, disseram não. Mesmo assim, não se alterou a Lei Federal n. 10.826/03, que torna inacessível a arma de fogo para a maior parte da população e torna impossível, praticamente, o porte de arma de fogo.

Ademais, a lei deixou vários aspectos para que o Exército regulamentasse. Como o Exército é contra a existência de uma população armada, os regulamentos são extremamente restritivos, além de ser confusos e em vários aspectos ilegais. Mas isso é questão para outro momento. Então hoje o cidadão que tem arma de fogo curta para defesa, revólver ou pistola, somente pode adquirir cinquenta cartuchos de munição por ano. É competência do Exército definir a quantidade de cartuchos. E eu pergunto: como esse cidadão vai treinar? De que adianta permitir a posse de arma sem dar a mínima condição para o cidadão praticar e poder ter segurança no momento de perigo? Esse é o mesmo número para o porte! Imagine você um cidadão que porta arma de fogo sem que tenha a habilidade de manuseio e segurança no uso… Um cidadão desses é um perigo para si e para os que o rodeiam. No mínimo são necessários uns mil tiros por ano para aquisição e manutenção das habilidades necessárias para o uso de armas de fogo.

Além disso, a Lei Federal n. 10.826/03 praticou verdadeiro estelionato contra o povo brasileiro. Conhecido como ‘Estatuto do Desarmamento’, a lei facilitou o registro de armas de fogo, bastando ao cidadão apresentá-la à Polícia Federal e declarar origem lícita. Isso levou milhares de brasileiros a trazerem suas armas à legalidade e ao registro. Ocorre que, e isso não foi informado aos cidadãos, o registro tem validade de três anos. Decorrido esse prazo o cidadão é obrigado a renovar o registro nos moldes da lei, ou seja, tem que apresentar atestado de aptidão de manuseio — feito com técnico credenciado –, atestado psicológico — um teste psicotécnico cansativo, longo e inacessível para pessoas mais simples –, além das certidões negativas de processos criminais. Muitos que regularizaram a arma de fogo são do meio rural, pessoas analfabetas ou semi-analfabetas. Como farão para passar nos testes exigidos? isso sem contar o custo disso tudo. Os dois testes somados custam R$ 600,00. Portanto, o cidadão que trouxe sua arma à legalidade agora está de novo na ilegalidade, porque atualmente há milhares de registros vencidos. Aliás, renovação de registro já é em si um excrecência, somente explicável pela ideologia preconceituosa contra as armas de fogo.

Eis uma grande questão. Você acredita que a proibição do comércio de armas de fogo poderia enfraquecer a criminalidade armada? Como vê essa questão que volta e meia está na ordem do dia?

A proibição do comércio de armas de fogo somente pode favorecer a criminalidade, não enfraquecê-la. O criminoso não adquire arma de fogo de forma lícita. Você já processou quantas pessoas por roubo, latrocínio, sequestro, quadrilha armada etc cujos réus tinham armas registradas? Tenho certeza de que nunca processou nenhuma pessoa assim, porque isso não existe… Quem registra arma de fogo é cidadão de bem, não criminoso de rua, que consegue comprar no mercado negro as armas que usa. E digo mais: hoje é tão difícil e caro ter arma de fogo que ela é praticamente proibida para 90% da população brasileira. Porte, então, é uma raridade, somente concedido àqueles que tem o porte por prerrogativa funcional, que são os policiais, os magistrados do Poder Judiciário e Ministério Público, os auditores da Receita etc. No entanto, a criminalidade armada só aumenta e os homicídios só aumentam no país. Em 2013 foram 53 mil homicídios! É sempre bom lembrar que sem armas de fogo jamais teríamos Canudos, Contestado, Sabinada, Revolução Farroupilha, dentre outras revoltas contra os abusos do poder central. População desarmada é, sim, população indefesa.

Que disciplinas você está lecionando atualmente? Sente-se vocacionado ao magistério?

Estou lecionando Direito Processual Penal III, que aborda os procedimentos, sentença, nulidades e recursos. Sempre gostei do magistério. Inclusive, minha carteira de trabalho foi assinada aos meus dezesseis anos, como professor de inglês do CCAA de Criciúma, SC, que é minha cidade natal e onde vivi até meus dezoito anos. Durante meu mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina consegui aprovação no concurso para professor substituto e lecionei por dois anos Direito Penal e Criminologia. Meu mestrado foi em Criminologia. Minha orientadora foi a nossa querida Ela Wiecko. Vim para Caçador, que fica a 400 quilômetros da capital, em 2003, contratado pela Universidade do Contestado, hoje extinta.

Sou professor universitário desde o ano 2000, com um intervalo entre 2010 e 2013. Gosto muito de ser professor porque gosto muito de me atualizar, de estudar e de questionar meus próprios fundamentos. Já prometi a mim mesmo que quando meus filhos estiverem maiores passarei a escrever obras jurídicas. Será um novo caminho.

Imagino que seus alunos já façam parte de uma cultura universitária um pouco diferente daquela de que você próprio fez parte no início de seus estudos. Essa observação faz sentido?

Faz sim, sem dúvida. Hoje as coisas estão muito diferentes. Não sinto que a maioria dos alunos esteja realmente interessada em aprender e se superar. Vejo-os preocupados com respostas rápidas para passarem na disciplina e se tornarem bacharéis. Lembro-me que quando estudava, salvo raras exceções, nós buscávamos estudar obras completas da maioria das disciplinas e tínhamos uma interação maior com os professores, provavelmente pelo nosso conhecimento decorrente das leituras. Não vejo isso hoje em meus alunos.

Na sua opinião, Anderson, no nosso atual modelo de sociedade, o Direito deve ser enfatizado como ‘tradição’ ou como ‘revolução’?

O Direito, no meu entender, é uma forma de racionalizar e de controlar os poderes de fato que agem em uma sociedade. O Direito serve à regulação das condutas para dar ao ser humano um meio mais digno para se desenvolver livremente. E quando digo que o Direito controla os poderes de fato da sociedade não estou dizendo que o Direito seja estranho a esses poderes políticos, empresariais, de grupos de pressão, sociedades organizadas etc. Só estou dizendo que o Direito é filho da negociação realizada por esses poderes, e que ele determina uma forma de regulação social possível, diante de tantas contradições de interesses e ideologias. O Direito é o resultado de uma debate e confronto de interesses, conjugados no local da democracia, ou seja, no Poder Legislativo, que impõe as normas de conduta social. Somente os seres humanos podem, em um ambiente livre e democrático, dispor sobre seus interesses e negociá-los, e o fazem dentro da perspectiva da melhor solução possível. Por isso ele é o instrumento que permite o desenvolvimento mais digno dentro de uma sociedade plural. E por ser filho do debate, do conflito e das concessões mútuas, o Direito não pode ser coerente ou sistemático, como querem alguns. O intérprete do Direito tem que ter a humildade de aceitar as contradições das normas, porque o respeito a essas contradições é o respeito ao espírito democrático que moldou sua criação.

Tenho a impressão de que o mundo está muito mudado, Anderson. Hoje convivemos com a Lei da Palmada, com a má-qualidade do ensino nas escolas, com a erotização da infância: o Brasil é um bom lugar para educar seus filhos?

Pois é. Primeiro é preciso saber o que é uma boa educação… Quando os pais sabem que estão educando certo? Essas são questões que me atormentam muito no trato com meus filhos. Até onde ir sem ser castrador e invasivo e quando parar sem ser omisso? Eu crio meus filhos tentando lhes ensinar alguns princípios, especialmente o respeito, a honestidade e a responsabilidade. Não consigo dimensionar que efeitos deletérios — ou, quem sabe, benéficos! — terão esses novos valores da adolescência em suas vidas. Mas creio que os pilares do respeito, honestidade e responsabilidade são a base para a formação de bons seres humanos. Se o Brasil é um país bom para criar meus filhos? Sinceramente, não sei, por me faltar paradigma. Conheço outros países somente como turista, não como morador. E isso me retira a possibilidade de comparação.

Mudando de assunto, você cunhou a curiosa expressão ‘ditadura do café expresso’. A que ela se refere? Pensa que a massificação do consumo é inimiga da liberdade nesse particular?

Essa expressão é resultado da constatação dos males que os modismos podem causar, inclusive em culinária e em gastronomia. Hoje virou modinha pedir café expresso, mesmo que a maioria das pessoas não conheçam café e nem o degustem adequadamente. Como se o café expresso fosse um café melhor… Não é um café melhor, porque ‘café expresso’ é uma técnica de extração do café. Há o café passado no pano, no filtro, na cafeteira francesa etc. Essas são outras técnicas de extração do sabor do café para fazer a bebida. A técnica ‘café expresso’ precisa de bons grãos, porque ela é uma técnica que extrai ao máximo as nuances do fruto. Logo, se você usar um grão ruim para tirar um café expresso, principalmente se for esses tipos ‘comerciais’ de supermercado, ele será intragável, será amargo ao extremo, com gosto de queimado, adstringente e desequilibrado. Então, não adianta ir em restaurante chinfrin e pedir um expresso, porque provavelmente o pó e o grão são ruins e a técnica ‘expresso’ o deixará mais intragável ainda. O café passado no coador extrai menos as nuances e é mais aconselhável em locais de que você não conhece a qualidade do pó e do grão. O que tem que ficar claro é que a técnica não faz milagre. Café ruim é sempre café ruim. E café bom é sempre café bom. A técnica apenas contribui com determinados tipos de grão para extrair-lhe o melhor o potencial, mas desde que sejam bons grãos. Se o grão é ruim, não há técnica que faça milagre. E nesse particular, o expresso é a pior delas. Um bom grão moído na hora e passado na cafeteira francesa… para mim é imbatível!

Como é que o Budismo, do qual você se aproximou, vê o sofrimento humano? Aonde nos levam nossos desejos?

No Budismo o sofrimento humano é resultado do carma e do apego. O carma é um aspecto individual e coletivo que influi nossa energia nesta vida em decorrência dos acúmulos de energia de outras vidas. O nascimento no reino humano já é em si meritório. Há outros reinos: dos infernos, dos fantasmas famintos; dos animais; dos deuses invejosos e dos deuses. Porque esse nascimento permite a opção por uma vida voltada à prática do bem; no reino dos animais não há essa opção, porque é um estado de inércia e estupor. Também nos permite a libertação do sofrimento; no reino dos infernos e dos fantasmas famintos o sofrimento é tão intenso que não há um momento de lucidez que permita a opção e a prática do bem.

O sofrimento no reino humano decorre do apego às ilusões causadas pelo Samsara. O Samsara é a aparência de realidade que acreditamos ser a realidade em si. O Samsara somente existe porque deixamos que nossa mente inquieta domine nosso ser e alimente ininterruptamente as fantasias desse estado. A meditação, entendida como a capacidade de romper o ciclo da mente, ou seja, calar a mente, é um dos principais caminhos budistas para a superação do Samsara e o rompimento com o apego — apego a bens materiais, pessoas, auto-imagem, vaidades etc. A meditação seguida da vontade sincera de beneficiar todos os seres é o caminho búdico, que permite atingir a iluminação — superação da falsa separação entre o eu e o todo para a compreensão de que estamos no todo e somos o todo. A meditação permite que você compreenda a verdadeira raiz dos seus desejos, a partir da contemplação de que eles são vazios de sentido. O que dá sentido aos seus desejos é a mente inquieta e iludida, que vive no Samsara. Quando você medita, aquieta a mente e contempla a si mesmo sem uso da linguagem — porque a mente reproduz a linguagem que, no fim das contas, é a forma como conseguimos enxergar o mundo racionalmente –, os desejos passam a se revelar de natureza vazia e você consegue se libertar das compulsões, das ansiedades etc.

O Budismo é uma religião e uma técnica. Você pode praticar o Budismo com conotação teísta ou sem os ritos sacramentais, somente como técnica de libertação da mente. E como disse o Dalai Lama atual, o budismo é uma canoa para chegar ao outro lado do rio. Se você consegue chegar lá nadando ou de outra forma, o budismo não lhe será importante. O importante é que você chegue do outro lado.

Ouvinte de Metallica, Iron Maiden, Black Sabbath e Pink Floyd, você acredita que esses conjuntos musicais conseguiram manter a autenticidade apesar das tentações da indústria cultural? Há um núcleo de valores comuns que os apreciadores do rock compartilham?

Deixa eu te falar uma coisa: eu sou extremamente eclético para música. No rock gosto do metal: Metallica, Iron e Black; e do psicodélico, Pink Floyd. Mas também gosto do punk de Ramones, do rock antigo do Doors e adoro a música brasileira em muitas das suas modalidades — não gosto de axé, funk e sertanejo universitário. Adoro Raul, Chico, Jobim, Luiz Gonzaga, Noel Rosa, Engenheiros, Legião, Paralamas, Zeca Baleiro, Cartola e Cazuza. Depende do humor e do dia. Mas quando ouço rock metal adoro o som do baixo. É fantástico ouvir aqueles graves envolvendo a guitarra!

Para o filósofo Roger Scruton, “Conservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa é encontrar o que você odeia e tentar destruir”. Você concorda com ele? Considera-se um conservador no sentido político?

Não sou conservador, mas também não sou revolucionário de Facebook ou de universidade. O que não admito são pessoas que escrevem, estudam e defendem pontos de vista mas não vivem o que defendem. Não consigo aturar pseudo-comunistas que não dividem nem o sinal do wi-fi com seus vizinhos. Ora, a palavra sem a vivência é hipocrisia e mera catarse, porque a pessoa não se aceita como é que quer trazer ao mundo o seu não-ser através da palavra para tentar se afirmar nela. Os ‘socialistas’ e ‘comunistas’ que conheço são todos de fachada, intranquilos consigo mesmos e com problemas de consciência que deveriam resolver no divã. Porque nenhum dos que conheço doa sequer 20% do que ganha para seu vizinho. No entanto, vivem falando em solidariedade, em comunismo, criticam a ganância e os empresários! Não sou conservador no sentido de estar apegado a uma forma ou de amar uma forma. Ao contrário, tenho tendências a ser uma metamorfose ambulante. Mas não sou de dar ou defender opiniões das modinhas politicamente corretas, se eu não as considero como guias de minha conduta de vida. Ou se vive o que se defende ou é melhor se calar. Falar contra o que está aí, mas viver o que está aí é vanguarda de Facebook e de universidade, sem nenhuma sinceridade. Pura hipocrisia. Os que sentem necessidade de defender o que não vivenciam devem procurar com urgência um psicólogo.

Para terminar, o que o futuro reserva ao MPF de hoje?

Eu prefiro não responder a esta questão. Acredito que o momento atual é de transição para algo melhor. Não estou mais tão certo de minhas antigas previsões. Aguardemos um tempo para ver para onde a correnteza nos levará.

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Entrevista com Aureo Lopes: “As respostas que buscava na Filosofia eu as encontrei na evolução e na ressignificação de minha história pessoal”.

Aureo Lopes é um procurador que não acredita em respostas prontas e nem em ganhos de curto prazo. À frente da ‘Teia Social’, busca através dela “sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho”, pelo “tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais”.

Mestre em Filosofia pela PUC-SP, Aureo diz que não encontrou em seus estudos filosóficos o que ali buscava. Onde encontrou? “Na evolução e ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos”.

Em sua curta experiência na chefia da Procuradoria da República no Estado de São Paulo, aprendeu a ser mais prático, pois “o trabalho na Administração é mais dinâmico que o do gabinete. Lá “você lida com pessoas, mais do que com processos”.

Por falar em dinamismo, Aureo é provavelmente o dono do currículo mais eclético do Ministério Público Federal: antes de ser aprovado no 20º concurso de ingresso vendeu revistas e cursos de inglês porta-a-porta, teve o bar de praia em Tramandaí, RS, vendeu têxteis no varejo, tentou montar uma ONG de suporte a outras ONGs, foi corretor de imóveis, ministrou um culto como pastor protestante, teve um cursinho preparatório para carreiras públicas, onde chegou a lecionar, e, finalmente, foi oficial de promotoria do MPSP.

Admirador de Raul Seixas e estudante primeiranista de piano, reconhece que sua relação com a música é unilateral: “Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim”.

Sobre sua realização no trabalho, sente-se “dividido, como acho que estão muitos colegas”. Segundo acredita, assistimos à “manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros”.

Um colega que resiste, bravamente, diante dos inúmeros problemas que o cotidiano profissional nos oferece; sempre em busca de soluções, de alternativas, de saídas dos labirintos em que, surpresos, com muita frequência nos encontramos.

Eis o Aureo — provavelmente o colega com quem eu particularmente tenho mais ‘horas de papo’ já saldadas (há certamente algumas ainda por saldar — este colóquio é apenas um adiantamento dos juros). Acompanhe nosso 14ª dedo de prosa. Assentados, por favor, que a prosa é boa.

 

Você está à frente da Teia Social, um projeto no âmbito do MPF que “não busca a discussão abstrata de qual é o conhecimento público ‘verdadeiro’, (mas que) em vez disso prefere cuidar da disponibilidade das informações públicas, integração dos conteúdos técnicos, leigos e científicos (transdisciplinaridade) e utilidade do conhecimento para fomentar e auxiliar na solução sustentável e efetiva de problemas públicos”. Como tem sido o seu trabalho na Teia Social? Onde ela poderá levar o MPF?

A ‘Teia Social’ surgiu como uma iniciativa para tentar sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho. Seu desenvolvimento contém tarefas diversas tais como: a) desenvolvimento de uma ontologia/linguagem geral para um tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais incluídos no trabalho. b) quanto ao trabalho como procurador, ela apenas atribui uma “identidade” a práticas e valores que venho acumulando na tutela coletiva, como a mediação entre os diversos viéses, a estimativa dos impactos sociais da atuação, atenção à prevenção e ao longo prazo, etc. c) acho que diversos valores e percepções são compartilhados entre a teia social e o planejamento estratégico, e nesse aspecto estamos indo na mesma direção. De diferença geral acho que poderia citar que na teia as energias são concentradas em diálogo para o consenso visando a obtenção de resultados sustentáveis, bem mais que para a punição. Acho que a proposta da teia poderia ser muito útil ao MPF ou aos colegas que pretendessem adotá-la, ainda que parcialmente.

Imagino que a Teia Social venha colocando você em contato com pessoas muito diferentes e com outras instituições públicas e privadas. O que isso lhe tem ensinado sobre a resolução dos conflitos que chegam ao MPF?

É verdade. Esse contato tem-me ensinado que embora nossa carga de trabalho seja grande, e nosso senso de responsabilidade também, estamos, como órgão de controle (que diz como deveria ter sido feito) numa posição mais confortável do que os responsáveis pela execução direta das políticas públicas. Acho que devemos aproveitar essa vantagem de forma produtiva. Aprendi também que, salvo raras exceções, pelo senso comum cada um acha que seu trabalho é mais complexo e importante e que a culpa é dos outros órgãos e que eles só não fazem o que têm que fazer porque não querem. Quando se reúnem todos esses, essas percepções autocentradas têm um potencial explosivo de conflito. Para evitá-lo, temos que nos guiar por princípios (a teia propõe oito) como a inclusão de todos atores sociais, partir do amor aos fatos e não da briga com a realidade, pelo seu contraste com as coisas como deveriam ser, guardar proporcionalidade entre meios e fins, colaborar, adotar a transparência para si e cobrá-la para os demais (a transparência é para o órgão o que a franqueza é para a pessoa), agir de forma a poder continuar agindo do mesmo modo no futuro – sustentabilidade, e assim por diante.

Como foi sua experiência na administração da maior Procuradoria da República do país? Temos bons administradores entre os colegas?

Atuei como procurador chefe em exercício no Ministério Público Federal em primeiro grau em São Paulo de março a outubro de 2012. Aprendi a ser mais prático, que o trabalho na Administração muitas vezes é mais dinâmico que o do gabinete e que você lida com pessoas, mais do que com processos: É uma ótima experiência profissional que contribui para nossa maturidade quanto aos limites da realidade que transcende os autos, e penso que todos os colegas deveriam passar um tempo, ainda que curto, no cargo.

Acho que temos colegas muito talentosos para lidar com os outros e para executar, e implantar as coisas na prática, e essa experiência rápida na chefia iria revelar outros talentos, desmistificar alguns mitos da função e nos dar parâmetros mais completos para os juízos que exercemos sobre os administradores públicos que processamos.

Você é mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. De que tratou em sua dissertação de mestrado? Suas pesquisas o ajudaram a encontrar respostas para as questões que o atormentavam?

O título da minha dissertação de mestrado é “A teia humana: Metateoria do comum, próprio e alheio da pessoa concreta, como possibilidade orgânico-opositiva, entre as verdades do sujeito e do objeto”. Tive que consultá-lo porque, como diz um amigo e colega nosso, é impossível decorá-lo. O trabalho pode ser classificado como de antropologia filosófica e buscou centrar-se nas pessoas concretas como fonte de significado e fundamento central das ideias e valores. Pode ser considerada uma teoria eclética, sem se incomodar com as críticas que buscam caracterizar essa postura como um demérito: há espaço no mundo para todos, todas as ideias, todos os sonhos… Mas se buscamos a exclusão do Outro, não há espaço, porque somos multifacetados e diversos. Para os outros, nós somos os outros. As pesquisas serviram para que eu pudesse deixar partir minha “fé” no conhecimento, que sempre me acompanhou. Ainda gosto, tenho convivência e intimidade com o conhecimento, mas hoje vejo que o homem, as pessoas, são muito mais que isso, que o conhecimento é apenas uma parte, tão importante como outras.

A esse propósito, você tem dito que não encontrou no estudo da Filosofia as respostas para suas inquietações profissionais. Onde você tem encontrado aquilo que não encontrou na Filosofia?

Tenho encontrado essas respostas na evolução e na ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos (a primeira terapeuta foi indicada por um bom amigo). Olho para as minhas origens, para meus desafios pessoais, infantis, como adolescente e como adulto, vejo quantas vezes a vida desfez minhas fantasias e ao mesmo tempo em que me abriu novas oportunidades. Vejo como nossa existência é efêmera, como somos pretensiosos (mostremos ou não), cada um a seu modo e na área escolhida para sê-lo. Isso não nos faz menos humanos, por não atingirmos ideais de perfeição, isso nos faz humanos. Gosto daquela frase: “Somos o que somos, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos”.

Falar em ‘ser’ e em ‘mudança’ nos remete à ideia inicial deste projeto: as luzes. Se você sobrevoasse a história da humanidade e vislumbrasse, como Antoine de Saint-Exupéry, algumas luzes na planície, quem seriam na sua visão as mais interessantes? Por quê?

A vida, que é a vida, não julga. Mas nós julgamos. Somos profissionais e somos pagos para “apontar o dedo” ao que está certo ou errado (e pedir a punição dos injustos). Esse é um peso muito grande, o peso de sermos julgados com o mesmo peso daqueles a que julgamos. Por nós mesmos ou por outros, hoje ou amanhã. Mas muito disso escapa ao nosso controle (afinal, somos filhos do nosso tempo), exceto o autojulgamento. Desse podemos, progressivamente, nos libertar. E merecemos essa liberdade.

Você falou em liberdade e eu lembrei de uma coisa que você comentou: as aulas de piano que você começou a tomar há pouco tempo. Como surgiu esse interesse? Considerando que a linguagem musical tem uma carga simbólica muito rica, que música representaria hoje de modo mais ou menos adequado os conteúdos da sua vida interior, Aureo?

Tenho uma relação unilateral com o tocar música: Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim. Tenho tentado e fracassado recorrentemente em aprender um instrumento musical e o piano é mais uma chance (um outro amigo, também colega, diz que o que ele é de fato é “o porta-copos mais caro da América Latina”). Eu gosto de várias músicas, mas as letras sempre foram muito importantes. Se tiver que eleger um músico, é Raul Seixas. Acho um gênio.

Antes de ser procurador da República você já arrendou e explorou um bar de praia e vendeu livros de porta a porta. Como foi que o MPF lhe apareceu como uma perspectiva de trabalho interessante?

Antes de ser procurador eu vendi (tentei) revistas, cursos de inglês, tive o bar na praia (chamava “Twister” e ficava em Tramandaí, RS), vendi têxteis no varejo, tentei montar uma ong de suporte a outras ongs, tirei o Creci e fui corretor de imóveis, ministrei um culto como pastor, tive um cursinho preparatório para carreiras públicas e dei algumas aulas e fui oficial de promotoria do MPSP. Meu querido pai, evidentemente preocupado com onde eu iria parar desse jeito variante, pôs pilha para as carreiras públicas e, dentre elas, o MPF mostrou-se simultaneamente como um desafio e como um ideal profissional fantástico.

E continua tudo tão fantástico como naquela época? Quer dizer: sente-se realizado hoje no trabalho?

Hoje eu me sinto dividido, como acho que estão muitos colegas. De um lado investimento de tempo extra para desenvolver novas formas de trabalho e obter resultados estimulantes. De outro a manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros. Apesar de tudo isso, me sinto bastante realizado, pois existem novos modos de trabalho que são auspiciosos, e as boas notícias de bons trabalhos de colegas que ouvimos constantemente confirmam isso.

Você se volta hoje contra o que chama de uma tradição e uma prática jurídicas que na sua visão não chegam a solucionar os problemas reais da vida em sociedade. Provavelmente esse sentimento é compartilhado por inúmeros promotores e juízes em todo o país. Há um caminho alternativo viável?

Algumas pessoas me falaram que eu era muito crítico com o Direito. Refleti sobre isso e cheguei a conclusão que se desacredito tanto nele é porque o conheço muito, de perto, e nele – durante minha graduação – depositei esperanças demais. Posso olhar para o Direito como uma ciência, uma linguagem, uma estrutura etc, mas, ao final, ele é apenas uma das incontáveis facetas sociais e dimensões humanas, e não podemos esquecer que ele “é feito por pessoas”, “aplicado por pessoas” e feito “para pessoas”, e não há teoria, racionalidade, fechamento de sistema capaz de “exorcizar” esse limite à objetividade que é a beleza da subjetividade, da humanidade.

Acredito, sim, em caminhos alternativos viáveis, e desenvolvo hoje um deles com minha pesquisa da ‘Teia Social – Sistema para a compreensão e solução de problemas públicos’. Mas não acredito em respostas prontas ou fáceis. Não acredito nos ganhos de curto prazo. Não acredito na (mono)disciplinariedade, seja do Direito, seja qualquer outra. Não acredito na desproporcionalidade entre fins e meios. E não acredito em fórmulas que se propõem melhores por meio da exclusão e da negação da existência válida das outras, o conhecido “caminho único”.

 

Links de interesse:

Entrevista com Renata Baptista: “Um dos maiores erros de abordagem dos órgãos do Estado é não ver que o criminoso, o corrupto, é um ser racional que vai ponderar os ônus e os bônus de sua atividade na busca pela própria felicidade”.

Renata Baptista busca trabalhar as questões jurídicas com os olhos abertos para o mundo. Os estudos de análise econômica do Direito — aos quais se tem voltado atualmente — vêm-na auxiliando nesse caminho. Para ela, muito além de operacionalizar o Direito em si, importa sermos “capazes de compreender problemas e de oferecer respostas que levem em conta também outros aspectos do mesmo problema”.

Por que ela escolheu o MPF? “É a única carreira que eu poderia acessar por concurso e na qual poderia trabalhar com combate à corrupção e política pública, partindo de múltiplas perspectivas”.

Raciocinando a partir de premissas lançadas por Gary Becker, diz que o criminoso (aí incluído o agente público corrupto) levará em conta as vantagens e as desvantagens de sua conduta; e que “a efetividade das punições é um fator que aumenta o ônus para o criminoso”. Segundo entende, com um Poder Judiciário que não consegue aplicar as devidas punições, os bônus da atividade criminosa superarão os seus naturais ônus.

Para ela, a convivência de várias gerações dentro do MPF é semelhante ao que vem ocorrendo no seio da própria sociedade e de suas agências — fenômeno que ela, porém, vê com certa naturalidade. Comparando nossa instituição com uma orquestra sinfônica, diz que “cada um tem a crença pessoal de que todos saberão desempenhar bem seus papéis. É um reconhecimento que nasce apesar do desconhecimento mútuo sobre a pessoa de cada um”.

Renata é entusiasta do treinamento de sua equipe na PRTO. Periodicamente, reúne-se com eles para assistir a vídeos do TED Talks sobre Economia, Psicologia e Neurociência e para falar sobre temas jurídicos específicos.

Aprovada no 25º Concurso de Procurador da República, Renata Baptista, carioca, assumiu suas funções em 2012 na Procuradoria da República no Estado de Rondônia, onde foi Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão. Atualmente cuida de um dos ofícios do Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República no Estado do Tocantins. Veja o interessante dedo de prosa que trocamos com ela, em nossa 13ª entrevista.

 

Economia comportamental, neurociência, sociologia e psicologia social: esses são os temas com que, além do trabalho, você tem se ocupado hoje. Acredita que a nossa atividade na Procuradoria da República é um campo fértil para essas pesquisas? Se sim, em que sentido?

Bom, em primeiro lugar, em atividades de alta performance, que requerem domínio bastante específico de normas, técnicas, linguagem e rotinas, vejo que grande parte das pessoas diretamente envolvidas (senão todas elas) estão niveladas em alto grau de excelência no campo principal de atuação.

No Ministério Público, por exemplo, ninguém duvida que os colegas são muito capacitados para oferecer respostas jurídicas (no plural, mesmo) aos problemas que lhes são apresentados. Nesse cenário, em que os integrantes estão nivelados por cima, o Direito é o que menos importa. O que importa é se somos realmente capazes de compreender problemas e de oferecer respostas que levem em conta também outros aspectos do mesmo problema. É lógico que, antes de tudo, precisamos transitar dentro do campo jurídico. Mas entre os caminhos possíveis – e, muitas vezes, até para definir o que é o jurídico ou não –, é essencial levar em consideração outros campos do saber.

O que percebo é um movimento de cada vez maior especialização jurídica: já vi uma disciplina eletiva de um curso de graduação chamada “Direito dos Contratos Internacionais do Petróleo”. É evidente que a complexidade da vida requer algum tipo de mergulho estritamente jurídico, mas talvez possa ser igualmente producente resgatar aquela formação humanística que marcou os cursos de Direito lá atrás, e sair um pouco dessa abordagem estritamente jurídica das controvérsias.

Há questões concretas que você busca responder através de suas leituras? Se sim, quais são?

Prometi a mim mesma uma espécie de período sabático depois de ingressar no MPF. Meu maior interesse passou a ser mesmo só aquele que parece mover todo ser humano, ainda que de modo geral: entender um pouco mais sobre si mesmo, conhecer um pouco mais dos outros, compreender o mundo que nos cerca… Enfim, era um projeto que parecia nada ou menos cansativo do que buscar respostas concretas, mas acho que, quando abrimos a mente, descobrimos mais perguntas e pouca coisa pode ser mais desafiadora do que descobrir mais perguntas.

Para Schopenhauer, “nossas ações e nossa biografia não são obras nossas, mas sim daquilo que ninguém considera como tal, ou seja, da nossa essência e existência… Portanto, a vida do homem já está irrevogavelmente traçada, em todos os seus pormenores, no momento do nascimento”. O estudante de neurociência hoje tende a confirmar essa visão? Acredita que a ciência chegará um dia a provar que a liberdade humana é uma ilusão, Renata?

Felizmente, acho difícil que um estudante de Neurociência chegasse a tanto. Estudos sérios de Neurociência jamais chegariam a uma afirmação tão ampla como essa. Bem, de fato, não só estudos sérios de Neurociência, como também estudos sérios de Genética e Psicologia Evolutiva, poderiam lhe dizer que há, sim, traços inatos do ser humano que influenciam decisivamente o processo de tomadas de decisão, mas não a ponto de, a partir disto, concluir que a liberdade humana é uma ilusão. Sua referência reflete bem o modo como rotineiramente se costuma atrelar genética a determinismo – e, de determinismo a soluções extremas, também se costuma das um pulo argumentativo rápido e pretensamente racional.

A lógica binária é “se há livre arbítrio, então não há traços inatos; se há traços inatos, então não há livre arbítrio”. As ciências humanas têm uma pretensão que pode ser essencialmente resumida em oferecer soluções para compreender e pensar modos de adequar o comportamento humano. Para tanto, há a premissa de que o comportamento humano é moldável. O problema é o salto argumentativo: dizer que há alguns traços inatos, imutáveis, não significa dizer que todo o comportamento está indelevelmente traçado pelos genes desde a origem e que, portanto, não é possível fornecer os estímulos certos para formar e adequar o comportamento humano de modo a viabilizar plenitude pessoal e convívio social harmônico.

Onde você passou sua infância? Que lembranças traz daquela época? Acredita que alguma circunstância daquela época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Passei toda minha infância na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Depois, mudamos para Copacabana e, entre os 15 e 17 anos, morei em Corona, na Califórnia, Estados Unidos, por conta de um intercâmbio. Quando voltei do intercâmbio, estava em dúvida entre fazer Engenharia, Direito ou Medicina.

Tive sorte porque minha família nunca me cobrou ou precisou me cobrar uma decisão e sempre me estimularam a tomá-la com elementos concretos em mãos. Eu mesma sempre achei desumano exigir que um jovem com apenas 17, 18 anos decida tão cedo o que, presume-se, vai fazer pelos próximos muitos anos. Então, fiz vestibular para as três. Passei, mas só cursei simultaneamente Engenharia e Direito. Com pouco tempo, vi que seria difícil conciliar e nunca cheguei a cursar o ciclo específico de Engenharia. Percebi que gostava mesmo era de Direito, mas nunca desisti completa e intimamente das Exatas. Sabia que, talvez no futuro, eu pudesse conciliar.

E foi a partir dessa vontade de conciliar Exatas e Humanas que eu conheci o MPF. Quando estava no oitavo período de Direito, li por conta própria um artigo do Richard Posner que citava um artigo do Gary Becker, sobre o criminoso racional, e me interessei sobre política pública de combate à corrupção. A AGU, minha primeira experiência profissional no setor público, também tem propostas interessantes neste campo, mas existem limitadores, como o fato de não poder lidar cotidianamente com a ação penal. Escolher o MPF, então, foi questão simples: é a única carreira que eu poderia acessar por concurso e na qual poderia trabalhar com combate à corrupção e política pública, partindo de múltiplas perspectivas (micro e macro).

Você provavelmente já esteve diante de um inquérito policial e teve dúvidas sobre se era justo denunciar o investigado ou arquivar a investigação. Você acredita que existam, nesse campo, decisões substancialmente técnicas? O que você costuma levar em conta na decisão de denunciar um investigado?

Talvez esse seja mesmo o momento mais difícil das nossa atividade criminal: denunciar ou arquivar. Sem maiores dados, e na seara criminal, chuto que em 90% dos casos 90% dos colegas concordariam com a decisão tomada por um outro membro de arquivar ou denunciar – se não concordassem cabalmente, ao menos reconheceriam que ela é racional. Este alto grau de consenso parece derivar da técnica jurídica que subjaz à formação de todos nós e que permeia a análise dos fatos. E, portanto, esse consenso também parece ser uma prova de que há, sim, decisões substancialmente (e não exclusivamente) técnicas.

Os casos em que há dúvida razoável são poucos. Neles, adoto um procedimento padrão para tentar simplificar o dilema: havendo dúvida razoável, denuncio, porque assim possibilito que um ator sistemicamente idealizado para decidir (o Judiciário) possa exercer seu papel.

Você é apreciadora de heavy metal e rock clássico… A propósito, o rock brasileiro está morto, Renata?

Não tenho orgulho do que vou dizer, mas não conheço nada, nada mesmo, de rock brasileiro. Talvez porque na época em que comecei a me interessar de verdade por música ele já tivesse morrido. Quem sabe?

É uma possibilidade… Bom, concordamos então que a certidão de óbito já foi lavrada, não é? Mas, mudando de assunto, Renata, você acredita que a Justiça tem ocupado posição importante no combate à corrupção no Brasil? Carrego comigo a impressão de que o nosso trabalho de natureza punitiva, extremamente necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Sim, o Judiciário é um ator relevante no combate à corrupção. Mas, atualmente, e de forma geral, ele vem passando estímulos ruins e, por isto, o trabalho de natureza punitiva não vem gerando os resultados esperados. A corrupção é um fenômeno complexo, mas, em essência, lida com o que há de mais intrínseco no ser humano: maximizar a própria felicidade. Um dos maiores erros de abordagem dos órgãos do Estado – o que inclui o Judiciário – é não considerar o criminoso, o ímprobo, como um ser racional que vai ponderar ônus e bônus na busca pela própria felicidade. Jamais conseguiremos anular essa busca. Mas Direito é uma ferramenta disponível para que se passe aos estímulos certos no sentido de que essa busca pela felicidade não seja exercida em detrimento, algumas vezes involuntário, de outros valores caros aos demais indivíduos e à sociedade em geral.

A efetividade das punições é um fator que aumenta o ônus para o criminoso e, no nosso sistema, o Judiciário é por excelência o ator responsável pela aplicação legítima das punições. Imagine então se o Judiciário faz isso de forma displicente… É uma cadeia de raciocínio tão óbvia que me faz refletir se, de algum modo, essa leniência judicial já não chega a ser dolosamente querida – é preciso desconfiar dos propósitos de atores racionais quando, conhecedores das circunstâncias essenciais, não adotam comportamentos racionais esperados.

Vamos falar da gente. O Ministério Público conquistou nas décadas de 80 e 90 garantias institucionais e instrumentos processuais que o constituíram com uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns colegas dessa geração convivem hoje com colegas como você, recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. A geração mais nova conhece o trabalho dos colegas da primeira década pós-Constituição? Acredita que esse trabalho consolidou uma certa tradição? Se sim, que tradição é essa?

O choque de gerações é natural dentro e fora das instituições. O que vivemos dentro do MPF é parte representativa de um cenário vivido no país, formada pelo envelhecimento da sociedade – com o consequente aumento do limite etário para o término da vida laborativa – e pelo fator “multi-habilidade” – os jovens estão conseguindo conciliar muito bem estudo e trabalho – e, em consequência, finalizam os estudos com proficiência cada vez mais cedo e, como já estão no mercado de trabalho, a exigência temporal de exercício de atividade jurídica é alcançada com facilidade.

Mas, com o cenário de criação de novas vagas – praticamente dobrando a quantidade de cargos existentes –, a realidade de acréscimo de gerações na carreira e o aumento da diferença entre os extremos etários tende se reforçar muito em breve. E, aí, acho que pode caber uma pergunta, igualmente racional, mas bem menos comum que a sua: será que os colegas da primeira década pós-Constituição conhecem e conhecerão os colegas recém-empossados?

Há algo que esquecemos reiteradamente quando direcionamos esse tipo de questão: em certas conjunturas, o melhor que se pode esperar de alguém a título de respeito é reconhecer sem conhecer. Vou usar de uma analogia aqui: certo tempo depois da fundação de uma orquestra, ocorre o recrutamento de músicos e, não raro, aqueles que já a integravam não conhecem cada aspecto dos músicos recrutados. Este desconhecimento aprofundado é bem comum, inclusive, quanto aos maestros, em especial depois que orquestras ganharam a dimensão que têm hoje. Mas o fato é que cada um – mesmo o selecionado – confia, primeiro, nos critérios de seleção e no julgamento dos selecionadores; e, segundo, confia no selecionado, de modo que cada um tem uma crença pessoal de que todos saberão desempenhar bem seus papéis. É um reconhecimento que nasce apesar do desconhecimento mútuo sobre a pessoa de cada um.

O MPF tem duas práticas muito salutares nesse sentido. A primeira delas é a atribuição, a membros da carreira, da responsabilidade por todas as fases do concurso de seleção. É um bom modo artesanal de fazer o recrutamento, porque permite uma espécie de contato inicial entre a proposta institucional, representada pelos integrantes da banca, e os candidatos, tudo na via de um procedimento objetivo. A segunda é o mecanismo de revisão mínima da atividade-fim por outros membros, que, por sua vez, são previamente conduzidos a esta função por um procedimento transparente de que participam outros tantos membros. Particularmente, acho reconfortante ter meus posicionamentos revisados por colegas mais experientes, ainda que o resultado não seja favorável. Acredito na ideia de que precisamos ser capazes de convencer e ser convencidos por argumentos racionais.

Vejo como os principais traços da “tradição” do Ministério Público a motivação e a compreensão crítica da realidade. O tempo passa, as pessoas mudam, as demandas mudam, os recursos mudam, mas com a dosagem adequada de motivação e análise crítica é possível construir um ótimo resultado.

 

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