“O papel essencial do Estado é garantir igualdade de condições para que as pessoas possam desempenhar as suas potencialidades. Sempre que o Estado avança além dessa linha tende a distorcer seu papel e a abusar de seu poder”. Veja a nossa entrevista com Aílton Benedito.

A atuação de Aílton Benedito na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em Goiás é um ponto fora da curva. Visto como um ‘conservador’ na PRDC — para alguns, um liberal em sentido estrito –, ele diz não se preocupar com essas definições: “Meu objetivo é fazer o meu trabalho da melhor forma possível, segundo as balizas que me oferecem a Constituição e as leis”. Seja como for, por trabalhar com direitos humanos sem flertar com as teorias político-culturais de Antonio Gramsci e da Escola de Frankfurt, nosso entrevistado comprova que a pluralidade de ideias no Ministério Público Federal não é apenas um item estéril de nosso portfólio institucional.

Tal como Alexis de Tocqueville, Aílton é ‘conservador nos valores e liberal na política’. Para ele, “o papel essencial do Estado é garantir fundamentalmente igualdade de condições, para que os indivíduos livres, por si mesmos, possam desempenhar as suas potencialidades sociais, econômicas, axiológicas, espirituais. Pois sempre que o Estado avança além de proporcionar igualdade de condições tende a distorcer seu papel e abusar do seu poder”.

Aílton é um procurador que rema contra a maré do ‘politicamente correto’ patrocinada por aqueles a quem chama de “herdeiros retardatários do socialismo real, saudosos do marxismo revolucionário e da revolução armada”. Por isso chama-lhe a atenção a defesa que dois ou três procuradores da República fazem do que chamam ‘Estado laico’: “Advoga-se praticamente um radical materialismo contra valores, doutrinas e símbolos do Cristianismo de vertente católica. Essa é uma leitura que não faço da Constituição, que não instituiu um Estado anticristão ou anticatólico”.

Tendo atuado nas PRMs de Jales, SP, e de Rio Verde, GO, Aílton, mineiro de Paracatu, está em Goiânia há cinco anos, de onde nos concedeu esta emblemática entrevista. Sente-se conosco, sirva o seu café e acompanhe o nosso 12ª encontro.

 

Como vai o trabalho aí na PRGO, Aílton?

Estou no MPF há oito anos. Desde os tempos de faculdade, quando o estabeleci como meu objetivo profissional, vejo-o como uma instituição admirável. Nesses oito anos, passei por duas PRMs, em Jales, SP e Rio Verde, GO, onde, a despeito das limitações pessoais e institucionais, funcionei como procurador da República ‘clínico geral’, desenvolvendo todas as atribuições relativas à atividade-fim de primeira instância, inclusive, ressalte-se, as da PDC. É, contudo, na PRGO que, há cinco anos, venho atuando com especial ênfase na tutela dos direitos do cidadão.

A par dos fundamentos normativos da atuação do MPF, tenho como princípio que a tutela dos direitos do cidadão deve ser um dos instrumentos de libertação do cidadão da tutela estatal. A meu juízo, esse tipo de tutela deve ser apenas mais um instrumento apto a promover a concretização dos direitos humanos de primeira (liberdade), segunda (igualdade) e terceira (fraternidade) geração ou dimensão.

No entanto, essa tutela, a meu ver, deve mirar, sobretudo a realização dos direitos que propiciem igualdade de condições para que o cidadão possa, livre e conscientemente, ser humano, conforme seu exclusivo juízo.

Tenho a impressão de que sua atuação PRDC pode positivamente ser descrita, muitas vezes, como ‘um ponto fora da curva’. Você já enfrentou críticas em razão de sua atuação na área dos direitos humanos? Pode nos dar alguns exemplos?

Não se trata apenas de impressão. A realidade é que minha atuação se distingue, às vezes, como “um ponto fora da curva”, comparadamente com o que vem marcando a atuação das PRDCs na tutela dos direitos do cidadão.

Nesse sentido, já fui interpelado por diversos colegas, surpreendidos, indagando-me: “como eu consigo atuar como PRDC?!”, cuja marca histórica no Brasil é de identificação com a defesa de valores alegadamente progressistas, revolucionários, coletivistas, “socialmente justos”, “politicamente corretos”, igualitários, fraternos, laicos etc. enquanto eu cultivaria valores que, na opinião deles, supostamente se caracterizariam ideologicamente conservadores, evolucionários, individualistas, “politicamente incorretos”, tradicionais, religiosos etc.

No entanto, a bem da verdade, não me preocupo com definir minha atuação conforme essas bitolas ideológicas. Meu objetivo sempre é fazer o meu trabalho da melhor forma possível, segundo as balizas que me oferecem a Constituição e as leis, para o cidadão e a sociedade, independentemente da cor, etnia, da condição social, do sexo, do credo, a religião, do gênero.

A título de exemplo, certa feita, numa reunião dos PRDCs e PDCs da 1ª Região, em Belo Horizonte, posta a reforma agrária em debate, um tema bastante caro ao MPF, compreendida como um instrumento acesso à terra e de realização de justiça social, então, um colega defendeu que a reforma dever-se-ia realizar de qualquer forma, se necessário, contra a Constituição. Quando me foi concedida a palavra, rebati aquela afirmação, ao fundamento de que a mesma Constituição que sustenta o MPF estabelece a reforma agrária. Admitir-se que se possa violentar a Carta Magna para realizar essa qualquer outra política pública implica aceitar que se permite rasgá-la para extinguir o Ministério Público, fechar o Congresso Nacional, suprimir direitos fundamentais, se se constituem obstáculo à “justiça social” que só existe na cabeça de algum doidivanas, que, Deus nos proteja!, nunca chegará ao poder central no Brasil.

Há algum tempo, a União entrou com uma ação contra o Twitter na qual buscou impedir o compartilhamento de informações entre os usuários a respeito de radares com sensores de velocidade ativos em diversas cidades do país. O seu parecer pela improcedência da ação utilizou, entre outros argumentos, a garantia da liberdade de ação dos indivíduos. Em um breve resumo, em que concepção de Estado você se espelhou para se manifestar nesse caso? Qual é a sua retaguarda teórica?

Considero que essa foi uma das minhas mais relevantes atuações na tutela dos direitos do cidadão, na PRDC em Goiás. Ali se cuidou do que é o conflito atual mais importante da sociedade da informação. De um lado, o indivíduo exercendo sua liberdade de pensar, se expressar, se comunicar, se informar, usando os meios de comunicação como sua extensão, no caso específico, a internet, que conforma o mundo contemporâneo. De outro lado, o Estado, cuja gênese implica controle, o qual, infelizmente, no Brasil, tem um histórico de crescimento continuado em detrimento da sociedade e o indivíduo. Costumo dizer que, desde a sua independência o Estado brasileiro cresce sem parar. Apenas durante a década de 1990, até a posse do governo Lula, a expansão contínua do Estado sofreu um brevíssimo soluço. Desde então, contudo, ele voltou ao seu leito natural, de crescer e se multiplicar, contra a sociedade e o indivíduo.

Do entrechoque de visões, cada vez mais, a liberdade individual é controlada, constrangida, ameaçada, consumida pela força irrefreável do Estado. Da minha parte, eu não tenho dúvida em escolher trilhar a liberdade individual, em suas diversas dimensões, porquanto, assim, entendo a realização do ser humano. Dessa forma, agi, ao intervir e me manifestar na ação movida pela União contra o Twitter. Não tive dúvidas de que a pretensão estatal violentava desarrazoadamente o exercício daquelas liberdades individuais na internet. Não é incomum que governos, diante da própria incapacidade de exercer devidamente suas competências estatais, busque manobras diversionistas para trespassar a culpa por suas falhas para os indivíduos, a sociedade. Foi o que percebi e contra o que me investi, ao me insurgir contra a mencionada ação.

Nessa perspectiva, a minha concepção de Estado ideal, que tenho como modelo possível à natureza falha do ser humano, é descrita por Alexis de Tocqueville, em ‘Democracia na América‘: conservador nos valores, liberal na política. Com efeito, tenho que o papel essencial do Estado é garantir fundamentalmente igualdade de condições, para que os indivíduos livres, por si mesmos, possam desempenhar as suas potencialidades sociais, econômicas, axiológicas e espirituais. É inexorável: sempre que o Estado avança além de proporcionar igualdade de condições tende a distorcer seu papel e a abusar do seu poder.

Você está atuando como PRE substituto e auxiliar em matéria de propaganda eleitoral. Que desafios o Ministério Público Eleitoral tem enfrentado na questão da propaganda eleitoral?

A meu ver, o maior desafio do Ministério Público Eleitoral, ao enfrentar a propaganda eleitoral ilícita, não exsurge agora, durante o processo eleitoral propriamente dito, que começa três meses antes da realização do pleito. Na verdade, o grande desafio da instituição é coibir a propaganda eleitoral disfarçada de institucional, que ocorre durante o período de governo, antes do processo eleitoral propriamente dito, na União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Essa, sim, é a propaganda que, muito mais gravemente, violenta o Estado de Direito, a democracia, a igualdade entre partidos do governo e da oposição, para qual o Ministério Público Eleitoral precisa despertar-se, sair do berço esplêndido. Nesse sentido, penso que principal papel do MPE é inibir que haja abuso da máquina pública, e quem abusa dessa máquina é obviamente quem a domina, é quem a ocupa. Circunscrever, pois, a atuação do MPE ao estrito período eleitoral, desconsiderando-se toda a propaganda eleitoral disfarçada de institucional, é fechar os olhos para a realidade, é tapar o sol com a peneira, é quedar-se frente ao abuso praticado pelos detentores do poder.

Por outro lado, entendo que o período específico aberto à propaganda eleitoral, apenas três meses, é sobremaneira exíguo, com evidente privilégio dos que ocupam mandatos e cargos eletivos e que, cotidianamente, servem-se das estruturas estatais para divulgar seus trabalhos,  propostas, programas, enfim, fazer o seu marketing eleitoral; enquanto aqueles que não detêm mandatos e cargos eletivos não possuem as mesmas condições, e ainda podem ser acusados de realizar propaganda eleitoral antecipada ilegal, se antes do interstício aberto, apresentam-se como futuros candidatos.

Ora, se o Ministério Público Eleitoral fecha os olhos para essa realidade e, consequentemente, trata partidos e candidatos com a mesma régua, estar-se-á concorrendo, relevantemente,  para a perpetuação do poder político nas mãos dos que já o detêm.

O que pensa sobre a divulgação das pesquisas eleitorais durante e nas vésperas das eleições?

Por princípio, entendo que o eleitor tem direito a receber todo tipo de informação que possa contribuir para formar seu juízo sobre o processo eleitoral, candidatos e partidos. Inclusive as pesquisas eleitorais, em qualquer época. Assim, é evidente que os eleitores são influenciados por resultados de pesquisas eleitorais. Mas, a priori, não enxergo nada de ilícito nesse tipo de influência, já que é da natureza das relações sociais a existência de influências recíprocas entre os diversos atores.

Nesse contexto, chega a ser risível o comportamento de alguns protagonistas de disputas eleitorais, sobretudo os que ocupam os governos, a invocar uma suposta necessidade de que o eleitor exerça o sufrágio absolutamente imune a qualquer tipo de interferência. O que, todavia, é passível de se compreender como pilhéria, troça da inteligência alheia, vez que, não é incomum, governantes mal-avaliados, bastante rejeitados pelos eleitores, tentam, por meios diretos ou indiretos, censurar a difusão de quaisquer tipos de informações que lhes são negativas, desde análises econômicas de instituições financeiras, números de inflação, pesquisas de desemprego, índices de atividade empresarial.

No entanto, considero que o Ministério Público Eleitoral e a Justiça Eleitoral precisam despertar para a necessidade de fiscalizar a lisura das pesquisas eleitorais, a fim de assegurar que não haja a sua manipulação ilícita. É, portanto, imprescindível o desenvolvimento de instrumental teórico e prático para a realização desse mister. Talvez o desenvolvimento de ferramentas de informática e a capilaridade da internet venham proporcionar meios substancialmente relevantes a esse objetivo.

Lembro-me de um colega de faculdade que, inclinado a votar em determinado candidato, mudou seu voto após ter acesso a pesquisas eleitorais que indicavam sua pequena chance de vitória. Você deve conhecer pessoas que não gostam de ‘perder o voto’… A divulgação de pesquisas eleitorais, nesse contexto, não seria um modo inadequado de influenciar a vontade do eleitor?

É o que eu já disse na resposta à pergunta anterior: entendo que é ontologicamente impossível evitar que o eleitor seja influenciado. Na realidade, o eleitor está sujeito a infinitos fatos de influência, pessoais, familiares, sociais, culturais, ambientais etc. Afinal, o eleitor não vive numa bolha inexpugnável. Portanto, não vejo razão aceitável para se proibir divulgação de pesquisas eleitorais. Que o eleitor tenha liberdade de formar seu juízo, inclusive se socorrendo de tais pesquisas.

Na sua apresentação no site do Instituto Millenium, diz-se que você ‘defende a educação, o trabalho e o esforço individual como os principais fatores de construção dos ideais democráticos’. Há democracia sem indivíduo, Aílton?

Impossível! Para mim, a democracia é indissociável do indivíduo. Qualquer regime político que visa a suprimir o indivíduo pode ser qualquer coisa, mas não será democrático. Somente o indivíduo, dotado de consciência e vontade, de liberdade para decidir e agir, responsável por seus atos, é capaz de vislumbrar e buscar realizar a democracia.

De que modo os regimes políticos que enfatizam o aspecto coletivo da sociedade, em detrimento do indivíduo, distanciam-se do ideal democrático?

Sem retroagir demais na história, tem-se que, durante o Século XX, a humanidade viveu — e ainda vive hoje — um conflito interminável entre duas visões de mundo: de um lado o coletivismo, de outro, o individualismo, num típico movimento pendular, ora preponderando um, ora outro. Não tenho dúvida de que em todas as vezes em que predomina o coletivo sobre o indivíduo a sociedade distancia-se da democracia; mas dela se aproxima à medida que se sobreleva o indivíduo. Para ficar ainda no Século XX, é claro que o coletivismo, nas suas vertentes nazifascista e comunista, serviu-se de ditaduras políticas, mais ou menos sanguinárias, para se impor às diversas sociedades, desde a Rússia soviética, a Alemanha nazista, a Itália fascista, a China maoista, Cuba castrista, a Venezuela bolivariana, apenas para citar alguns exemplos, próximos ou distantes no tempo e no espaço. Sob os mais diversos fundamentos filosóficos, esses casos revelam o traço comum básico: mais coletivo, menos indivíduo. Eu, de fato, sou incapaz de apontar uma só ditadura política cuja base tenha sido mais indivíduo e menos coletivo.

Às vezes tenho a impressão de que o regime democrático é mais benéfico para os intelectuais, para os industriários e para os comerciantes que para o restante da população. Ora, se a democracia é ‘coisa de elite’, então, embora os regimes comunistas tenham errado em tudo o mais, parece que acertaram no diagnóstico e na solução política… O que pensa disso?

A meu ver, democracia não é ‘coisa de elite’, é ‘coisa de qualquer um’. Explico: democracia é o sistema social que faculta, mas não obriga, a qualquer indivíduo almejar fazer-se elite, fazer-se intelectual, industrial, comercial, econômica, musical, artística… enfim, fazer-se elite em qualquer campo de ação humana, sem atavismos genéticos, étnicos, religiosos, raciais, sexuais, nobiliárquicos etc.

Se o administração pública brasileira fosse uma empresa, julga que daria lucro a seus acionistas? Penso que a sociedade civil vem investindo, através de impostos, somas consideráveis nesse projeto…

Estaria falida, se fosse gerida da forma atual, ou seria muitíssimo melhor para a sociedade, se fosse tratada, de fato, em moldes empresariais.

Nada mais distante de uma administração empresarial do que a administração pública brasileira. Contudo, nem vejo que seja por aí a forma correta de ser definir como seria melhor a administração pública verde-loura. O fato é que o Estado brasileiro quer-se empresário, atuando em setores para os quais não tem capacidade, além de desperdiçar dinheiro público: energia elétrica, petróleo e derivados, correios, transportes, instituições financeiras etc., porém, ao mesmo tempo, contraditoriamente, esse mesmo Estado omite-se, criminosamente, em atender a razão de ser de qualquer Estado digno de continuar existindo: segurança pública e segurança jurídica. Compreendo que um Estado que é incapaz de prover isso à própria sociedade não tem legitimidade para atuar em nenhum outro setor da ação humana.

O que um mineiro está fazendo em Goiás? O pão de queijo daí é melhor do que o daqui?

Identifico em Goiás muito do que gosto em Minas Gerais, especialmente o povo e o cerrado.

Que papel o prof. Olavo de Carvalho desempenha na sua vida de estudos?

Tenho no prof. Olavo meu mestre intelectual. Compro e leio os seus livros, já participei de alguns dos seus cursos virtuais. O livro ‘O Jardim das Aflições: de Epicuro à Ressurreição de César‘ é, para mim, divisor de águas. Foi a primeira obra que li do professor. Ali compreendi o quanto a academia brasileira está dominada pelo marxismo cultural, uma praga exterminadora de inteligência.

Como interessado por temas de psicologia social, você credita que as massas são hoje mais facilmente manipuladas que no começo do século XX? Já identificou alguns mecanismos usados atualmente que sejam dignos de nota?

Tenho-me interessado pela psicologia social, com vistas a melhor compreender a mente humana, a partir de dados objetivos perceptíveis no mundo exterior. Se Freud ocupou-se precipuamente do inconsciente subjetivo, a psicologia social permite-nos divisar o inconsciente individual e coletivo a partir de elementos do real.

Mas devo dizer que, por isso, a psicologia das massas foi, é e será sempre manipulada. Hoje, com maior gravidade, com o advento dos meios de comunicação de massa, facilitam-se sobremaneira ações manipuladoras. Pensemos na internet, por exemplo. Bilhões de pessoas conectadas simultaneamente; só no Brasil, estima-se que 60% da população esteja cotidianamente conectada. Vejamos as redes sociais, durante o atual processo eleitoral para escolha dos nossos futuros governos e representantes: são milhões de pessoas desconhecidas entre si, postando simultaneamente, ocupando todos os espaços disponíveis, fazendo crescer as adesões a candidaturas, defendendo seus candidatos, atacando os adversários, visando à vitória eleitoral.

A propósito disso que disse anteriormente, sobre o entrechoque entre coletivismo e individualismo, os grandes movimentos revolucionários coletivistas do Século XX (Nazismo, Fascismo, Comunismo) tiveram na manipulação das massas o mais poderoso dos instrumentos de assalto, consolidação e expansão do poder absolutista. Se àquele tempo já existisse a internet, talvez hoje o mundo fosse todo uma miscelânea de nazi-facismo-comunista. Quem sabe não seja de fato?

Não é consideravelmente diferente do que sucede atualmente, no Brasil. Aqui, as massas são cotidianamente manipuladas, sobretudo pelos governos, mediante o uso desbragado dos meios de comunicação social: a) pela publicidade estatal autodenominada institucional, usada, no mais das vezes, para promoção pessoal do governante e do seu partido político, bem como difusão de programas, ações e políticas públicas que só existem no papel, mas que são propagandeados como existentes de fato e redentores de todas as mazeladas da sociais; b) pela publicidade de empresas privadas, as quais emulam a estética da publicidade estatal, às vezes, de forma tão despudorada, que é praticamente impossível distinguir se se trata de publicidade estatal ou privada; c) pela criação de obstáculos legais explícitos ou dissimulados à publicidade privada de produtos vendidos no mercado por grandes empresas privadas, comumente portentosos anunciantes, sob a alegada justificativa de proteção da saúde, à segurança, à infância, à mulher etc.

Tem conseguido tempo para organizar sua imensa biblioteca particular? Há temas específicos dos quais você busca títulos especiais?

Confesso que tenho muito mais livros na minha biblioteca do que o tempo necessário para organizá-los. Além disso, ainda padeço do pecado do consumismo bibliográfico. O desejo de ler e aprender ainda têm sido maior do que a minha capacidade de leitura e organização.

Temas que sempre me apetecem e me fazem adquirir livros são Nazismo, Fascismo, Comunismo, Liberalismo, Marxismo cultural.

Você entende que o MPF tem sido afetado pelo chamado ‘Marxismo cultural’? Se sim, em que isso, na sua visão, pode prejudicar a instituição?

Sim. Os herdeiros retardatários do socialismo real, saudosos do marxismo revolucionário, da revolução armada, meio para edificar a ditadura do proletariado — a real democracia, na distopia deles –, estão presentes na sociedade e nas instituições públicas e privadas brasileiras. Superada a possibilidade da imposição daquela distopia pela revolução armada, tentam promovê-la, a partir do lugar que ocupam, através da guerra de valores, subvertendo as bases culturais da sociedade e das instituições, buscando transformar o Estado, desde dentro, num Estado marxista.

Dessa perspectiva, é possível observar que programas, ações e políticas públicas, instrumentos pelos quais o Estado deve realizar os seus mandatos constitucionais, são concebidos, instituídos e executados conforme os valores do Marxismo cultural. Não é diferente com o MPF.

Coerente com essa percepção, vemos, por exemplo, a defesa que setores do MPF fazem do que chamam “Estado laico”. Advoga-se praticamente um radical materialismo do Estado laico, especialmente contra valores, doutrinas e símbolos do Cristianismo de vertente católica, como se a Igreja Católica estivesse em guerra contra todas as outras denominações religiosas e, mais grave ainda, se servisse do Estado para impedir a liberdade de crença dos brasileiros não católicos. Essa é uma leitura que não faço da Constituição, que, se, de um lado, erige o Estado laico; de outro, não instituiu um Estado anticristão ou anticatólico.

Aspecto que me chama atenção: é dever do Estado zelar pela liberdade de crença dos brasileiros, no entanto, quando a Igreja Católica e, por conseguinte, os católicos brasileiros são agredidos nos seus valores, doutrinas, símbolos, não se costuma ver atuação do MPF em sua defesa.

 

Links de interesse:

Publicidade

Entrevista com André Dias: “O julgamento da Ação Penal n. 470 deixou uma grande lição ao Ministério Público: jamais devemos nos omitir em adotar todas as medidas processuais que estejam ao nosso ao alcance”.

Criado em Pirapora, MG, André tem uma relação de amor profundo com o Rio São Francisco e uma infância repleta de boas lembranças: “é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio. Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais”.

Leitor voraz de clássicos da literatura universal, a começar pelos pré-socráticos, reconhece como suas principais influências a Bíblia Sagrada, Nietzsche, Dostoiévski e Philip Pettit.

Antes de ingressar no MPF — onde iniciou a carreira na PRM Angra dos Reis –, André foi promotor de justiça em Minas Gerais, o que lhe dá um excelente trânsito entre os colegas do MPMG, com quem mantém uma cooperação, profícua, que merece ser adotada como referência entre as montanhas de Minas.

Porque vê o STF, hoje, como “um tribunal político, no pior sentido do termo”, acredita que “o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível do poder político”.

Um duro crítico da atuação de nossos tribunais superiores, um trabalhador incansável contra a corrupção que assola os municípios do Norte de Minas Gerais, um leitor de Dante, Stendhal, Goethe, Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa; enfim, um procurador combativo e um devorador de livros. É com ele, de Montes Claros, MG, que trocamos o nosso 11º dedo de prosa — entre a luz e a sombra. Uma prosa mineira, naturalmente.

 

Você acredita no combate à corrupção no Brasil o trabalho da justiça tem ocupado posição importante? Às vezes sinto que o trabalho punitivo, embora necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Penso que, infelizmente, nossa Justiça é um espelho das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, o que se reflete substancialmente na prestação jurisdicional em face da corrupção, seja em matéria penal (em que a seletividade secundária beira as raias do absurdo), seja em matéria cível lato sensu, inclusive a nível preventivo, em que nosso Poder Judiciário, mediante uma pletora de subterfúgios e interpretações surreais, promove a blindagem dos nichos de poder político e econômico, pouco importando as facções ou as ideologias subjacentes. Nesse contexto, o combate à corrupção torna-se absolutamente inócuo, porque a resposta da Justiça é pífia e risível, sob qualquer parâmetro de comparação (seja externo, no cotejo a praxe judiciária de países minimamente desenvolvidos, seja interno, no confronto com a rigidez com que a Justiça brasileira reprime os “ilícitos” das classes menos favorecidas e dos movimentos sociais). A resposta jurisdicional é monstruosamente desproporcional, quase fictícia, sem o mínimo de eficácia para inibir e reprimir a criminalidade do poder, e talvez seja este o principal fator, em nosso país, por que o combate à corrupção não tem tido o condão de concorrer decisivamente às necessárias mudanças macroestruturais do grupamento social (tal qual, por exemplo, a bem sucedida experiência italiana).

Egresso do Ministério Público de Minas Gerais, como você vê, na sua região, a diferença entre as estruturas de um e de outro órgão nas lides diárias? Acredita que o MPF pode aprender algo com o trabalho do MPE-MG?

Meu amigo, assim como você e outros valorosos colegas de MPF (como Helder Magno e Edmundo Dias), tive a honra de integrar os quadros do MPMG nos idos de 2003/2005. Penso que o Parquet mineiro evoluiu muito nestes últimos anos, e, a nível estrutural, o principal avanço foi a implantação de coordenadorias regionais (patrimônio público, meio ambiente e outras) e temáticas (bacias hidrográficas e outras), a ensejar a solução de conflitos num contexto alargado, com a sistematização da colheita e processamento de informações e a promoção articulada de trabalhos em rede, estrategicamente deliberados.

Você acompanhou de perto o processo do Mensalão. O que, na sua visão, todo colega deveria saber e absorver em seu trabalho após a experiência por que passou o STF?

Como expus alhures, penso que o julgamento da Ação Penal 470, pelo STF, foi permeado de avanços (especialmente em teoria das provas) e retrocessos (notadamente em sede de aplicação e dosimetria das penas), e estes predominaram ao cabo, no julgamento dos embargos infringentes (blindagem teórica do colarinho branco ao crime de quadrilha, derrogação judicial do crime de lavagem de dinheiro quando o delito antecedente for corrupção, etc). Todavia, as evoluções ou involuções daquele julgamento, no mais das vezes, não se relacionam diretamente ao trabalho do Ministério Público. A ausência de arguição da suspeição de um Ministro que, supostamente, teria relações próximas com alguns dos réus, talvez seja a maior lição ao MP: jamais se omitir em adotar todas as medidas processuais ao alcance, na tutela dos interesses da coletividade, ainda que isso possa significar desgastes com quem quer que seja, inclusive membros da mais alta corte do país.

Como vê a atuação do STF hoje? Se pudesse fazer duas alterações estruturais (relativas à competência, ao rito etc), visando à melhoria dos serviços, quais seriam?

Vejo o STF de hoje como um tribunal político, no pior sentido do termo. O problema estrutural por excelência reside no processo de escolha dos Ministros, que, de um lado, favorece escolhas estratégicas em prol exclusivo de facções políticas e de grupos econômicos, e, de outro, estimula a subserviência e o clientelismo dos candidatos ao mais alto cargo do Poder Judiciário perante aqueles interesses. Creio que o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível dos detentores do poder político.

O MPF começou, há alguns anos, uma rotina de correições ordinárias em suas unidades em todo o país. A atividade se debruça sobre a fiscalização do cumprimento dos prazos nos procedimentos e processos judiciais e na verificação da estrutura das procuradorias. Essa atividade fiscalizatória, extremamente necessária, fornece-nos um atestado de regularidade do exercício de nosso ministério público. Como lançar nossas redes em águas mais profundas, André?

A atuação correicional é imprescindível para assegurar a transparência, a regularidade e a operosidade do exercício da função ministerial. Acontece que, hoje, esta atividade ainda se dá a nível superficial, pelo critério quantitativo-estatístico, que se revela absolutamente insuficiente, porque números podem ser artificialmente fabricados e inflados, sem qualquer relevo social. Penso que se devem pensar standards objetivos de aferição qualitativa, vinculados menos à frieza dos números e mais em termos de verificação do efetivo desempenho de trabalhos prospectivos, de larga monta e impacto social.

De suas leituras na área da literatura, da história, da filosofia e da psicologia, que livros — e por que — mais influenciaram sua vida e sua forma de pensar hoje?

Na literatura, Dante, Stendhal, Goethe, Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa deixaram fortes marcas em meu espírito, mas, sem dúvida, o maior impacto adveio do contato com a obra de Dostoiévski, aos dezesseis anos, especialmente “Crime e Castigo” e “Memórias do Subsolo”, que revolvem os arcanos da experiência humana. Na filosofia, os pré-socráticos, Bacon, Spinoza, Kant, Sartre, Foucault, dentre tantos outros, mas sem dúvidas foi a leitura de todo o Nietzsche, aos vinte anos, a responsável pela grande guinada de meu pensamento – embora eu tenha sérias reservas quanto a alguma de suas idéias, e, a nível dos conceitos estereótipos, praticamente em nada seja “nietzschiano”. Na filosofia política, que muito prezo, minha predileção é por uma linha de pensamento hoje denominada “republicanismo neo-romano”, que remonta a Cícero, Tito Lívio, Tácito e outros na Roma antiga, Maquiavel na Renascença Italiana, Milton e Harrington no período das revoluções inglesas, Rousseau em França pré-revolução, e, na atualidade Quentin Skinner, Maurizio Viroli, Jean-Fabien Spitz, tendo sua versão mais perfeita na obra de Philip Pettit. Em psicologia, sempre tive sérias discordâncias com a linha freudiana, tive meus tempos de abertura ao pensamento de Jung, mas confesso que nada teve muita influência. Por fim, foi a leitura integral e atenta de todos os livros da Bíblia, em 1999, a experiência de maior impacto em minha vida. Quanto à história, sou entusiasta da metodologia da “Escola de Cambridge” (Pocock, Skinner e outros), mas nenhum livro me marcou tanto quanto a “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides.

Onde passou sua infância? Qual é a melhor lembrança que você tem de sua meninice?

Passei toda a minha infância em Pirapora, MG (com viagens constantes a Montes Claros, Bocaiúva e Olhos D’Água, família paterna). Não existe “a” melhor lembrança, porque é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio (dali vem minha relação de amor profundo com o Rio São Francisco). Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais. Enfim, só boas lembranças.

Em seu livro ‘O Nobre Deputado’, o juiz de direito Márlon Reis transcreveu o testemunho de um senador da República para quem “o resultado de qualquer eleição brasileira já está[va] definido muito antes do encerramento da votação. Muito antes da abertura das urnas. A vontade do eleitor individual não vale nada no processo. O que conta é a quantidade de dinheiro arrecadado para a campanha vencedora, que usa a verba num infalível esquema de compra de votos. Arrecadou mais, pagou mais. Pagou mais, levou”. Não há grandes surpresas nesse depoimento, a não ser naquilo em que ele busca afirmar a universalidade da prática. Imagino que você não veja as coisas de modo muito diverso. Você trabalha em uma PRM que tem atribuição sobre dezenas de pequenos municípios do Norte de Minas Gerais e também por isso conhece um pouco o imaginário geral dos moradores dessa região. Acredita que esse problema essencial para a vitalidade da democracia faça parte das preocupações (ou mesmo do entendimento) da maioria da população? Não haveria aí nessa falta de educação uma quebra do princípio democrático?

Sem dúvida, essas questões essenciais passam ao largo das preocupações das massas, porém muito dessa letargia decorre da descrença nas instituições constituídas e da desinformação, daí que a quebra da circularidade deste processo passa, necessariamente, pela efetividade do controle social e da ação dos órgãos de fiscalização, atacando e rompendo os elos desta cadeia perversa de captura do poder; pela ampla e massiva divulgação, publicidade e conscientização por meio da imprensa e das redes sociais; e pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento das vias formais de ensino e educação, ministrando bases seguras para a autodeterminação da vontade popular democrática.

 

Links de interesse: