Raquel passou parte de sua infância em uma fazenda no interior de Goiás, onde entre entristecida e confusa assistiu ao desaparecimento de seu cachorrinho ‘Vinagre’. Histórias que não são esquecidas… De Goiás para Brasília, a trajetória de uma vida. Hoje, procuradora regional, ela encontra satisfação fora do trabalho no convívio com seus filhos, nas leituras e nas viagens que faz.
Com uma vasta experiência na área do patrimônio público dentro do Ministério Público Federal, ela acredita que a dificuldade em investigar e obter a condenação de agentes públicos corruptos está em que geralmente os maiores prejuízos ao erário decorrem de “uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas”.
A morosidade da justiça brasileira é, para Raquel, um dos maiores fatores de impunidade. Além disso, os órgãos de fiscalização e controle trabalham muitas vezes com a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, com pouca efetividade. Seu testemunho é firme e direto: “Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais”.
De sua participação na investigação e na formulação da acusação que originou a Ação Penal 470 (Mensalão), ela extraiu a lição de que “quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz”.
Acompanhe o nosso 27ª ‘dedo de prosa’, um rico testemunho de uma procuradora que vive, de forma dinâmica e reflexiva, as vitórias e as amarguras da defesa do patrimônio público brasileiro neste começo de século.
Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude e que, quando menos, os gastos realizados nos contratos administrativos são mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina alguma modificação legislativa que pudesse começar a alterar esse quadro?
De fato nós, cidadãos brasileiros, diante de tantas notícias que acompanhamos na mídia dos mais diversos tipos de fraudes em licitações, não podemos dissociar do nosso imaginário que as contratações que envolvem dinheiro público são decorrentes de negociações espúrias.
Na condição de procuradora da República, atuei, durante anos, na área de defesa do patrimônio público e da probidade administrativa em Brasília, especificamente na área de licitação pública. Em razão do contato diário com a matéria, posso afirmar que, infelizmente, não obstante a existência de uma legislação para coibir abusos e estabelecer transparência, eficácia, impessoalidade e limite de preços às aquisições e serviços, é muito alto o índice de fraudes em licitações públicas que resultam em sobrepreço e superfaturamento, decorrentes de prévios ajustes entre representantes do setor público e privado — ajustes quase sempre de difícil ou quase impossível caracterização probatória.
O que mais dificulta a apuração é o fato de que não se trata de crimes praticados por servidores públicos de forma isolada, ou seja, sem grandes conexões, no exercício de sua função. Trata-se, ao meu sentir, de uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas. Assim, o que comanda o gasto público são os interesses dos partidos políticos. E isso não apenas favorece empresas privadas, que ganham muito por diversos tipos de fraudes, mas também partidos políticos e pessoas físicas, que se beneficiam do retorno de parte desse dinheiro indevidamente pago nessas contratações.
Há necessidade, sim, de mudança da legislação. Principalmente, dos regimes especiais que foram criados nos últimos anos para flexibilizar as contratações públicas. Uma importante alteração, principalmente na área de obras públicas, é a exigência de projeto prévio bem detalhado no aspecto quantitativo e de preços. Outra modificação importante é a da legislação sobre preços referenciais, muito ampla e que, de forma ‘legítima’, em obras de maior vulto, já permite uma margem oculta de lucro em torno de 25% às empreiteiras, consórcios etc.
A morosidade da justiça é geralmente apontada como uma das causas da impunidade em nosso país, principalmente em casos de corrupção com verbas públicas. Que fazer?
Infelizmente, não para desconsiderar o fato de que a morosidade da Justiça é, efetivamente, um dos maiores fatores da impunidade no Brasil, sobretudo nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Deveríamos simplificar alguns ritos, sem qualquer alteração no devido processo legal. Por exemplo, as duas fases de defesa antes do recebimento da inicial da ação de improbidade ou da denúncia em algumas espécies de processo criminal.
Poderiam ser criadas varas especializadas para a matéria de improbidade administrativa e as ações de improbidade deveriam ter prioridade na tramitação judicial. Também há algumas alterações possíveis na legislação penal para se permitir a execução provisória da pena em processos julgados em segundo grau de jurisdição; a diminuição das hipóteses de recursos excepcionais, ou seja, que não se atenham à matéria fática; e o desenvolvimento de uma doutrina jurídica que não aplique o garantismo de forma irracional como ocorre no Brasil. Essa última questão nos colocaria na linha dos países mais avançados que conseguem, com muita tranquilidade, equilibrar a garantia do devido processo legal e a efetividade da Justiça.
Como vê a atuação da Controladoria-Geral da União e da Polícia Federal em casos de corrupção nos últimos anos?
Infelizmente, no Brasil, há vários órgãos com atribuição de apuração de fatos irregulares, inclusive com sobreposição de atribuições em alguns aspectos, mas o que vemos é a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, acumulam uma quantidade imensa de papel, mas que não trazem nenhuma efetividade ao seu termo.
A CGU, nos últimos doze anos, não obstante tratar-se de órgão vinculado ao Poder Executivo, conseguiu, de certa forma, romper com essa lógica, inovando e estabelecendo dinâmicas de auditoria e corregedoria mais efetivas. A atuação conjunta entre CGU e MPF e por vezes Polícia Federal, nos casos em que atuei, sempre deram bons resultados. Criou-se um arcabouço jurídico que permitiu à CGU trabalhar de forma muito mais efetiva e durante todos esses anos é o único órgão federal que conseguiu chegar aos mais diversos locais do país para apurar a aplicação das verbas públicas federais nos municípios.
Infelizmente, a CGU, como diversos outros órgãos, não obstante a excelência do trabalho do seu corpo técnico, depende de uma diretriz firme, o mais independente possível e com a estrutura material e de pessoal adequadas.
Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais. A sistemática de fiscalização por sorteio em municípios incomodou muito os gestores municipais e, de certa forma, também foi esvaziada. Agora, houve mudança da sua direção máxima, que sempre esteve nas mãos do então Ministro Jorge Hage que, sem sombra de dúvidas, foi um excelente Controlador, e a minha posição é de espectadora sem grandes expectativas.
O aparelhamento da CGU é algo possível e muito perigoso para o país. O saldo do trabalho da CGU nesses anos, a meu ver, é muito positivo e, ao contrário do TCU, que é um Tribunal cujos julgamentos são naturalmente imbuídos de força política, os relatórios de auditoria da CGU são perenes, ou seja, uma vez aprovados, não são alterados a cada nova revisão, como ocorre no TCU, cujos processos demoram anos para serem concluídos.
Quanto à Polícia Federal, apesar de vários problemas internos, como disputas políticas, a sua também vinculação ao Poder Executivo, tem feito um trabalho razoável no combate à corrupção na parte, ao meu ver, das operações policiais. Ainda falta uma maior especialização dos delegados, agentes e escrivães na investigação de crimes de colarinho branco, inclusive de corrupção. Paralelamente às operações de busca e apreensão e escuta telefônica, é necessário que sejam feitas análises e outros tipos de investigação para robustecer a materialidade e autoria de forma rápida — o que não tem acontecido. São deflagradas grandes operações, que acumulam uma grande quantidade de material e que, depois, carece de análise e uma investigação mais concatenada for falta de pessoal, recursos financeiros ou mesmo interesse.
Que aprendizado você extraiu de sua atuação na investigação que fundamentou a acusação formulada pelo Ministério Público Federal na AP 470 (Mensalão)? Que balanço faz do julgamento já concluído?
Bem, o principal aprendizado é de que quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz.
A minha atuação no caso permitiu uma consolidação de experiência na investigação de crimes de grande porte, do colarinho branco, que demandam uma investigação muito mais estruturada e organizada entre Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário. O caso Mensalão alcançou esse estado da arte e, ao meu ver, por esse motivo, foi muito bem sucedido na sua primeira etapa, ou seja, até o julgamento da ação pela Suprema Corte.
Não obstante discordar da forma como foram aplicadas as penas e também da interferência política do Planalto no julgamento, com a nomeação de Ministros que se mostraram totalmente favoráveis às teses absurdas de defesas de alguns réus, faço um balanço positivo pois foi um leading case no próprio STF e a única ação penal que processou e efetivamente julgou e condenou a cúpula de partidos políticos, do Governo e de banqueiros envolvidos em crimes contra a administração.
Em sua atuação na PRR da 1ª Região certamente você, aliada à sua experiência, tem uma visão privilegiada do trabalho dos colegas da base e de sua perspectiva de frutos uma vez superada a fase de tramitação do processo no primeiro grau de jurisdição. Que sugestões daria aos colegas para ajudar a melhorar a instrução das ações penais contra servidores públicos e das ações por ato de improbidade e aumentar assim suas chances de sucesso?
Bem, se eu pudesse dar uma sugestão aos meus colegas seria para que passem a atuar sempre de forma mais dinâmica, saindo do gabinete para ir ao encontro dos fatos, reunindo-se com a Polícia, com as representações da CGU, do TCU etc. Que, de fato, acompanhem as investigações e não as transformem apenas em meros expedientes burocráticos de entrada e saída do gabinete. As ações de improbidade, assim como as ações criminais, demandam uma prévia fase investigativa para se estabelecer autoria e materialidade, bem consolidadas. Assim, temos que pensar antes de agir para estruturar, na melhor forma possível, as investigações, não dependendo apenas da atuação de outros órgãos, como Polícia Federal, CGU etc.
Ocasionalmente, analiso inquéritos que tramitam durante anos, com simples carimbos de concessão de prazo por parte do Ministério Público, sem qualquer análise mais acurada, que poderia determinar, logo no início das investigações, diligências bastante simples mas que conduziriam ao seu êxito ao invés do insucesso, como sempre ocorre. Muitas vezes medidas simples são suficientes para se concluir uma investigação, desde que a investigação seja efetivamente acompanhada pelo titular da ação penal.
Como você encontra satisfação pessoal fora do trabalho?
Fora do trabalho, encontro satisfação pessoal no convívio com meus filhos, na leitura e em viagens. Gosto muito de viajar. Também gosto de ler e fazer alguns cursos, principalmente de inglês, pela internet.
Qual é a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?
Eu venho de uma família que sempre teve muita dificuldade financeira, mas sempre fui muito incentivada a estudar para ‘mudar de vida’. Uma das lembranças mais antigas que tenho é da época em que morávamos em uma fazenda do meu avô, no interior de Goiás. Eu tinha uns quatro ou cinco anos e sofri muito com a morte de um cachorro chamado ‘Vinagre’, que brincava muito comigo. Disseram, na época, que alguém tinha dado veneno para o Vinagre e eu lembro que sofri muito sem entender o motivo de uma ação dessa natureza.
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