Entrevista com André Dias: “O julgamento da Ação Penal n. 470 deixou uma grande lição ao Ministério Público: jamais devemos nos omitir em adotar todas as medidas processuais que estejam ao nosso ao alcance”.

Criado em Pirapora, MG, André tem uma relação de amor profundo com o Rio São Francisco e uma infância repleta de boas lembranças: “é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio. Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais”.

Leitor voraz de clássicos da literatura universal, a começar pelos pré-socráticos, reconhece como suas principais influências a Bíblia Sagrada, Nietzsche, Dostoiévski e Philip Pettit.

Antes de ingressar no MPF — onde iniciou a carreira na PRM Angra dos Reis –, André foi promotor de justiça em Minas Gerais, o que lhe dá um excelente trânsito entre os colegas do MPMG, com quem mantém uma cooperação, profícua, que merece ser adotada como referência entre as montanhas de Minas.

Porque vê o STF, hoje, como “um tribunal político, no pior sentido do termo”, acredita que “o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível do poder político”.

Um duro crítico da atuação de nossos tribunais superiores, um trabalhador incansável contra a corrupção que assola os municípios do Norte de Minas Gerais, um leitor de Dante, Stendhal, Goethe, Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa; enfim, um procurador combativo e um devorador de livros. É com ele, de Montes Claros, MG, que trocamos o nosso 11º dedo de prosa — entre a luz e a sombra. Uma prosa mineira, naturalmente.

 

Você acredita no combate à corrupção no Brasil o trabalho da justiça tem ocupado posição importante? Às vezes sinto que o trabalho punitivo, embora necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Penso que, infelizmente, nossa Justiça é um espelho das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, o que se reflete substancialmente na prestação jurisdicional em face da corrupção, seja em matéria penal (em que a seletividade secundária beira as raias do absurdo), seja em matéria cível lato sensu, inclusive a nível preventivo, em que nosso Poder Judiciário, mediante uma pletora de subterfúgios e interpretações surreais, promove a blindagem dos nichos de poder político e econômico, pouco importando as facções ou as ideologias subjacentes. Nesse contexto, o combate à corrupção torna-se absolutamente inócuo, porque a resposta da Justiça é pífia e risível, sob qualquer parâmetro de comparação (seja externo, no cotejo a praxe judiciária de países minimamente desenvolvidos, seja interno, no confronto com a rigidez com que a Justiça brasileira reprime os “ilícitos” das classes menos favorecidas e dos movimentos sociais). A resposta jurisdicional é monstruosamente desproporcional, quase fictícia, sem o mínimo de eficácia para inibir e reprimir a criminalidade do poder, e talvez seja este o principal fator, em nosso país, por que o combate à corrupção não tem tido o condão de concorrer decisivamente às necessárias mudanças macroestruturais do grupamento social (tal qual, por exemplo, a bem sucedida experiência italiana).

Egresso do Ministério Público de Minas Gerais, como você vê, na sua região, a diferença entre as estruturas de um e de outro órgão nas lides diárias? Acredita que o MPF pode aprender algo com o trabalho do MPE-MG?

Meu amigo, assim como você e outros valorosos colegas de MPF (como Helder Magno e Edmundo Dias), tive a honra de integrar os quadros do MPMG nos idos de 2003/2005. Penso que o Parquet mineiro evoluiu muito nestes últimos anos, e, a nível estrutural, o principal avanço foi a implantação de coordenadorias regionais (patrimônio público, meio ambiente e outras) e temáticas (bacias hidrográficas e outras), a ensejar a solução de conflitos num contexto alargado, com a sistematização da colheita e processamento de informações e a promoção articulada de trabalhos em rede, estrategicamente deliberados.

Você acompanhou de perto o processo do Mensalão. O que, na sua visão, todo colega deveria saber e absorver em seu trabalho após a experiência por que passou o STF?

Como expus alhures, penso que o julgamento da Ação Penal 470, pelo STF, foi permeado de avanços (especialmente em teoria das provas) e retrocessos (notadamente em sede de aplicação e dosimetria das penas), e estes predominaram ao cabo, no julgamento dos embargos infringentes (blindagem teórica do colarinho branco ao crime de quadrilha, derrogação judicial do crime de lavagem de dinheiro quando o delito antecedente for corrupção, etc). Todavia, as evoluções ou involuções daquele julgamento, no mais das vezes, não se relacionam diretamente ao trabalho do Ministério Público. A ausência de arguição da suspeição de um Ministro que, supostamente, teria relações próximas com alguns dos réus, talvez seja a maior lição ao MP: jamais se omitir em adotar todas as medidas processuais ao alcance, na tutela dos interesses da coletividade, ainda que isso possa significar desgastes com quem quer que seja, inclusive membros da mais alta corte do país.

Como vê a atuação do STF hoje? Se pudesse fazer duas alterações estruturais (relativas à competência, ao rito etc), visando à melhoria dos serviços, quais seriam?

Vejo o STF de hoje como um tribunal político, no pior sentido do termo. O problema estrutural por excelência reside no processo de escolha dos Ministros, que, de um lado, favorece escolhas estratégicas em prol exclusivo de facções políticas e de grupos econômicos, e, de outro, estimula a subserviência e o clientelismo dos candidatos ao mais alto cargo do Poder Judiciário perante aqueles interesses. Creio que o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível dos detentores do poder político.

O MPF começou, há alguns anos, uma rotina de correições ordinárias em suas unidades em todo o país. A atividade se debruça sobre a fiscalização do cumprimento dos prazos nos procedimentos e processos judiciais e na verificação da estrutura das procuradorias. Essa atividade fiscalizatória, extremamente necessária, fornece-nos um atestado de regularidade do exercício de nosso ministério público. Como lançar nossas redes em águas mais profundas, André?

A atuação correicional é imprescindível para assegurar a transparência, a regularidade e a operosidade do exercício da função ministerial. Acontece que, hoje, esta atividade ainda se dá a nível superficial, pelo critério quantitativo-estatístico, que se revela absolutamente insuficiente, porque números podem ser artificialmente fabricados e inflados, sem qualquer relevo social. Penso que se devem pensar standards objetivos de aferição qualitativa, vinculados menos à frieza dos números e mais em termos de verificação do efetivo desempenho de trabalhos prospectivos, de larga monta e impacto social.

De suas leituras na área da literatura, da história, da filosofia e da psicologia, que livros — e por que — mais influenciaram sua vida e sua forma de pensar hoje?

Na literatura, Dante, Stendhal, Goethe, Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa deixaram fortes marcas em meu espírito, mas, sem dúvida, o maior impacto adveio do contato com a obra de Dostoiévski, aos dezesseis anos, especialmente “Crime e Castigo” e “Memórias do Subsolo”, que revolvem os arcanos da experiência humana. Na filosofia, os pré-socráticos, Bacon, Spinoza, Kant, Sartre, Foucault, dentre tantos outros, mas sem dúvidas foi a leitura de todo o Nietzsche, aos vinte anos, a responsável pela grande guinada de meu pensamento – embora eu tenha sérias reservas quanto a alguma de suas idéias, e, a nível dos conceitos estereótipos, praticamente em nada seja “nietzschiano”. Na filosofia política, que muito prezo, minha predileção é por uma linha de pensamento hoje denominada “republicanismo neo-romano”, que remonta a Cícero, Tito Lívio, Tácito e outros na Roma antiga, Maquiavel na Renascença Italiana, Milton e Harrington no período das revoluções inglesas, Rousseau em França pré-revolução, e, na atualidade Quentin Skinner, Maurizio Viroli, Jean-Fabien Spitz, tendo sua versão mais perfeita na obra de Philip Pettit. Em psicologia, sempre tive sérias discordâncias com a linha freudiana, tive meus tempos de abertura ao pensamento de Jung, mas confesso que nada teve muita influência. Por fim, foi a leitura integral e atenta de todos os livros da Bíblia, em 1999, a experiência de maior impacto em minha vida. Quanto à história, sou entusiasta da metodologia da “Escola de Cambridge” (Pocock, Skinner e outros), mas nenhum livro me marcou tanto quanto a “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides.

Onde passou sua infância? Qual é a melhor lembrança que você tem de sua meninice?

Passei toda a minha infância em Pirapora, MG (com viagens constantes a Montes Claros, Bocaiúva e Olhos D’Água, família paterna). Não existe “a” melhor lembrança, porque é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio (dali vem minha relação de amor profundo com o Rio São Francisco). Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais. Enfim, só boas lembranças.

Em seu livro ‘O Nobre Deputado’, o juiz de direito Márlon Reis transcreveu o testemunho de um senador da República para quem “o resultado de qualquer eleição brasileira já está[va] definido muito antes do encerramento da votação. Muito antes da abertura das urnas. A vontade do eleitor individual não vale nada no processo. O que conta é a quantidade de dinheiro arrecadado para a campanha vencedora, que usa a verba num infalível esquema de compra de votos. Arrecadou mais, pagou mais. Pagou mais, levou”. Não há grandes surpresas nesse depoimento, a não ser naquilo em que ele busca afirmar a universalidade da prática. Imagino que você não veja as coisas de modo muito diverso. Você trabalha em uma PRM que tem atribuição sobre dezenas de pequenos municípios do Norte de Minas Gerais e também por isso conhece um pouco o imaginário geral dos moradores dessa região. Acredita que esse problema essencial para a vitalidade da democracia faça parte das preocupações (ou mesmo do entendimento) da maioria da população? Não haveria aí nessa falta de educação uma quebra do princípio democrático?

Sem dúvida, essas questões essenciais passam ao largo das preocupações das massas, porém muito dessa letargia decorre da descrença nas instituições constituídas e da desinformação, daí que a quebra da circularidade deste processo passa, necessariamente, pela efetividade do controle social e da ação dos órgãos de fiscalização, atacando e rompendo os elos desta cadeia perversa de captura do poder; pela ampla e massiva divulgação, publicidade e conscientização por meio da imprensa e das redes sociais; e pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento das vias formais de ensino e educação, ministrando bases seguras para a autodeterminação da vontade popular democrática.

 

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