Entrevista com André Dias: “O julgamento da Ação Penal n. 470 deixou uma grande lição ao Ministério Público: jamais devemos nos omitir em adotar todas as medidas processuais que estejam ao nosso ao alcance”.

Criado em Pirapora, MG, André tem uma relação de amor profundo com o Rio São Francisco e uma infância repleta de boas lembranças: “é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio. Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais”.

Leitor voraz de clássicos da literatura universal, a começar pelos pré-socráticos, reconhece como suas principais influências a Bíblia Sagrada, Nietzsche, Dostoiévski e Philip Pettit.

Antes de ingressar no MPF — onde iniciou a carreira na PRM Angra dos Reis –, André foi promotor de justiça em Minas Gerais, o que lhe dá um excelente trânsito entre os colegas do MPMG, com quem mantém uma cooperação, profícua, que merece ser adotada como referência entre as montanhas de Minas.

Porque vê o STF, hoje, como “um tribunal político, no pior sentido do termo”, acredita que “o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível do poder político”.

Um duro crítico da atuação de nossos tribunais superiores, um trabalhador incansável contra a corrupção que assola os municípios do Norte de Minas Gerais, um leitor de Dante, Stendhal, Goethe, Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa; enfim, um procurador combativo e um devorador de livros. É com ele, de Montes Claros, MG, que trocamos o nosso 11º dedo de prosa — entre a luz e a sombra. Uma prosa mineira, naturalmente.

 

Você acredita no combate à corrupção no Brasil o trabalho da justiça tem ocupado posição importante? Às vezes sinto que o trabalho punitivo, embora necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Penso que, infelizmente, nossa Justiça é um espelho das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, o que se reflete substancialmente na prestação jurisdicional em face da corrupção, seja em matéria penal (em que a seletividade secundária beira as raias do absurdo), seja em matéria cível lato sensu, inclusive a nível preventivo, em que nosso Poder Judiciário, mediante uma pletora de subterfúgios e interpretações surreais, promove a blindagem dos nichos de poder político e econômico, pouco importando as facções ou as ideologias subjacentes. Nesse contexto, o combate à corrupção torna-se absolutamente inócuo, porque a resposta da Justiça é pífia e risível, sob qualquer parâmetro de comparação (seja externo, no cotejo a praxe judiciária de países minimamente desenvolvidos, seja interno, no confronto com a rigidez com que a Justiça brasileira reprime os “ilícitos” das classes menos favorecidas e dos movimentos sociais). A resposta jurisdicional é monstruosamente desproporcional, quase fictícia, sem o mínimo de eficácia para inibir e reprimir a criminalidade do poder, e talvez seja este o principal fator, em nosso país, por que o combate à corrupção não tem tido o condão de concorrer decisivamente às necessárias mudanças macroestruturais do grupamento social (tal qual, por exemplo, a bem sucedida experiência italiana).

Egresso do Ministério Público de Minas Gerais, como você vê, na sua região, a diferença entre as estruturas de um e de outro órgão nas lides diárias? Acredita que o MPF pode aprender algo com o trabalho do MPE-MG?

Meu amigo, assim como você e outros valorosos colegas de MPF (como Helder Magno e Edmundo Dias), tive a honra de integrar os quadros do MPMG nos idos de 2003/2005. Penso que o Parquet mineiro evoluiu muito nestes últimos anos, e, a nível estrutural, o principal avanço foi a implantação de coordenadorias regionais (patrimônio público, meio ambiente e outras) e temáticas (bacias hidrográficas e outras), a ensejar a solução de conflitos num contexto alargado, com a sistematização da colheita e processamento de informações e a promoção articulada de trabalhos em rede, estrategicamente deliberados.

Você acompanhou de perto o processo do Mensalão. O que, na sua visão, todo colega deveria saber e absorver em seu trabalho após a experiência por que passou o STF?

Como expus alhures, penso que o julgamento da Ação Penal 470, pelo STF, foi permeado de avanços (especialmente em teoria das provas) e retrocessos (notadamente em sede de aplicação e dosimetria das penas), e estes predominaram ao cabo, no julgamento dos embargos infringentes (blindagem teórica do colarinho branco ao crime de quadrilha, derrogação judicial do crime de lavagem de dinheiro quando o delito antecedente for corrupção, etc). Todavia, as evoluções ou involuções daquele julgamento, no mais das vezes, não se relacionam diretamente ao trabalho do Ministério Público. A ausência de arguição da suspeição de um Ministro que, supostamente, teria relações próximas com alguns dos réus, talvez seja a maior lição ao MP: jamais se omitir em adotar todas as medidas processuais ao alcance, na tutela dos interesses da coletividade, ainda que isso possa significar desgastes com quem quer que seja, inclusive membros da mais alta corte do país.

Como vê a atuação do STF hoje? Se pudesse fazer duas alterações estruturais (relativas à competência, ao rito etc), visando à melhoria dos serviços, quais seriam?

Vejo o STF de hoje como um tribunal político, no pior sentido do termo. O problema estrutural por excelência reside no processo de escolha dos Ministros, que, de um lado, favorece escolhas estratégicas em prol exclusivo de facções políticas e de grupos econômicos, e, de outro, estimula a subserviência e o clientelismo dos candidatos ao mais alto cargo do Poder Judiciário perante aqueles interesses. Creio que o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível dos detentores do poder político.

O MPF começou, há alguns anos, uma rotina de correições ordinárias em suas unidades em todo o país. A atividade se debruça sobre a fiscalização do cumprimento dos prazos nos procedimentos e processos judiciais e na verificação da estrutura das procuradorias. Essa atividade fiscalizatória, extremamente necessária, fornece-nos um atestado de regularidade do exercício de nosso ministério público. Como lançar nossas redes em águas mais profundas, André?

A atuação correicional é imprescindível para assegurar a transparência, a regularidade e a operosidade do exercício da função ministerial. Acontece que, hoje, esta atividade ainda se dá a nível superficial, pelo critério quantitativo-estatístico, que se revela absolutamente insuficiente, porque números podem ser artificialmente fabricados e inflados, sem qualquer relevo social. Penso que se devem pensar standards objetivos de aferição qualitativa, vinculados menos à frieza dos números e mais em termos de verificação do efetivo desempenho de trabalhos prospectivos, de larga monta e impacto social.

De suas leituras na área da literatura, da história, da filosofia e da psicologia, que livros — e por que — mais influenciaram sua vida e sua forma de pensar hoje?

Na literatura, Dante, Stendhal, Goethe, Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa deixaram fortes marcas em meu espírito, mas, sem dúvida, o maior impacto adveio do contato com a obra de Dostoiévski, aos dezesseis anos, especialmente “Crime e Castigo” e “Memórias do Subsolo”, que revolvem os arcanos da experiência humana. Na filosofia, os pré-socráticos, Bacon, Spinoza, Kant, Sartre, Foucault, dentre tantos outros, mas sem dúvidas foi a leitura de todo o Nietzsche, aos vinte anos, a responsável pela grande guinada de meu pensamento – embora eu tenha sérias reservas quanto a alguma de suas idéias, e, a nível dos conceitos estereótipos, praticamente em nada seja “nietzschiano”. Na filosofia política, que muito prezo, minha predileção é por uma linha de pensamento hoje denominada “republicanismo neo-romano”, que remonta a Cícero, Tito Lívio, Tácito e outros na Roma antiga, Maquiavel na Renascença Italiana, Milton e Harrington no período das revoluções inglesas, Rousseau em França pré-revolução, e, na atualidade Quentin Skinner, Maurizio Viroli, Jean-Fabien Spitz, tendo sua versão mais perfeita na obra de Philip Pettit. Em psicologia, sempre tive sérias discordâncias com a linha freudiana, tive meus tempos de abertura ao pensamento de Jung, mas confesso que nada teve muita influência. Por fim, foi a leitura integral e atenta de todos os livros da Bíblia, em 1999, a experiência de maior impacto em minha vida. Quanto à história, sou entusiasta da metodologia da “Escola de Cambridge” (Pocock, Skinner e outros), mas nenhum livro me marcou tanto quanto a “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides.

Onde passou sua infância? Qual é a melhor lembrança que você tem de sua meninice?

Passei toda a minha infância em Pirapora, MG (com viagens constantes a Montes Claros, Bocaiúva e Olhos D’Água, família paterna). Não existe “a” melhor lembrança, porque é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio (dali vem minha relação de amor profundo com o Rio São Francisco). Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais. Enfim, só boas lembranças.

Em seu livro ‘O Nobre Deputado’, o juiz de direito Márlon Reis transcreveu o testemunho de um senador da República para quem “o resultado de qualquer eleição brasileira já está[va] definido muito antes do encerramento da votação. Muito antes da abertura das urnas. A vontade do eleitor individual não vale nada no processo. O que conta é a quantidade de dinheiro arrecadado para a campanha vencedora, que usa a verba num infalível esquema de compra de votos. Arrecadou mais, pagou mais. Pagou mais, levou”. Não há grandes surpresas nesse depoimento, a não ser naquilo em que ele busca afirmar a universalidade da prática. Imagino que você não veja as coisas de modo muito diverso. Você trabalha em uma PRM que tem atribuição sobre dezenas de pequenos municípios do Norte de Minas Gerais e também por isso conhece um pouco o imaginário geral dos moradores dessa região. Acredita que esse problema essencial para a vitalidade da democracia faça parte das preocupações (ou mesmo do entendimento) da maioria da população? Não haveria aí nessa falta de educação uma quebra do princípio democrático?

Sem dúvida, essas questões essenciais passam ao largo das preocupações das massas, porém muito dessa letargia decorre da descrença nas instituições constituídas e da desinformação, daí que a quebra da circularidade deste processo passa, necessariamente, pela efetividade do controle social e da ação dos órgãos de fiscalização, atacando e rompendo os elos desta cadeia perversa de captura do poder; pela ampla e massiva divulgação, publicidade e conscientização por meio da imprensa e das redes sociais; e pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento das vias formais de ensino e educação, ministrando bases seguras para a autodeterminação da vontade popular democrática.

 

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Entrevista com Mário Medeiros: “O artista consegue captar e explicar coisas que nos passariam totalmente despercebidas; a arte aguça a compreensão”.

“Nosso trabalho no Ministério Público é um belo trabalho, mas não é melhor que todos os demais”. É assim que Mário Medeiros vê e valoriza o trabalho que faz no Ministério Público Federal. Observador dos costumes institucionais, deplora duas posturas de trabalho que lhe parecem imaturas: “a do procurador-Robespierre (faça-se a Justiça, ainda que pereça o MP) e a do procurador-Savonarola (iluminado que se acredita imbuído de uma missão civilizatória)”.

Depois de passar alguns anos entre as montanhas de Minas Gerais, removeu-se para a PRM Vitória da Conquista e, mais recentemente, para Salvador, BA. Seus cinco anos de experiência em uma PRM o levaram a concluir que a política institucional em relação às unidades no interior dos Estados ainda é uma variação em torno da ideia de que “a lotação em PRMs é destinada aos que se iniciam na carreira que, por isso mesmo, devem se conformar e aguardar o momento oportuno de se removerem para as capitais”.

Recém-chegado de Florença — onde participou como ouvinte de dois cursos: Língua Italiana e História da Arte –, Mário entende que “o prazer estético derivado da arte funciona como a melhor ‘válvula de escape’ para as angústias e atribulações do cotidiano”. A esse propósito, diz que a leitura do primeiro volume de ‘Em Busca do Tempo Perdido’, de Marcel Proust, marcou profundamente seu imaginário: “Estilo magnífico, sensibilidade sobre-humana e uma análise do ciúme absolutamente espetacular”.

Acompanhe aqui a entrevista que Mário nos concedeu enquanto se preparava para assumir, na condição de substituto, a Procuradoria Regional Eleitoral no Estado da Bahia nas Eleições de 2014.

Que saldo pessoal ficou de seus cinco anos na PRM Vitória da Conquista? Acredita que a cúpula de nossa instituição reconhece com justiça o nosso trabalho feito em pequenas PRMs?

O saldo penso ser positivo. Os primeiros anos foram muito difíceis: sozinho, elevadíssima movimentação processual, alto grau de exposição. Com a criação de um segundo ofício as dificuldades se arrefeceram significativamente. Paralelamente, os bons resultados do trabalho realizado foram surgindo, notadamente as condenações de agentes públicos ímprobos (com o reconhecimento disso pela comunidade), melhoria das condições de determinadas minorias e a realização de busca ativa de contaminados por amianto.

Quanto ao reconhecimento institucional, não posso julgar o meu caso especificamente, mesmo porque como tímido que sou, evito maior exposição. Entretanto, impossível deixar de lamentar a existência de um pensamento que, se não é disseminado pela cúpula da instituição, pelo menos já foi abertamente defendido por pelo menos um destacado integrante dela, segundo o qual a lotação em PRMs é destinada aos que se iniciam na carreira e que, por isso mesmo, devem se conformar e aguardar o momento oportuno de se removerem para as capitais. O pensamento é duplamente errado. Por um lado, há colegas já antigos em PRMs, que querem residir no interior. Por outro, o fato de os seus ofícios eventualmente serem ocupadas por colegas novos não justifica em absoluto nenhuma distinção na destinação de recursos humanos e materiais para o trabalho (pelo contrário, frequentemente eles são mais necessários em PRMs que nas capitais).

Que lugar o trabalho no MPF ocupa na sua vida hoje, Mário? Posso dizer, sem exagero, que você é uma pessoa satisfeita com o que faz na Procuradoria da República?

Sem dúvida, dedico a maior parte do meu tempo ao trabalho. Penso que fiz a escolha certa, mas me frusto com a percepção de que não avançamos ainda para uma equitativa divisão da carga de trabalho. Não concordo, também, com duas posturas de trabalho frequentes mas que me parecem imaturas: a do procurador-Robespierre (faça-se a Justiça, ainda que pereça o MP) e a do procurador-Savonarola (iluminado que se acredita imbuído de uma missão civilizatória).

Para mim, o nosso é um belo trabalho, mas não melhor que todos os demais.

Você acaba de chegar da Itália, onde participou de dois cursos. De que se trata?

Um curso de idioma italiano e um curso de História da Arte. Ambos realizados em Florença e sem nenhuma finalidade institucional; apenas diletantismo…

Suas últimas leituras indicam um interesse pela história da arte. Parafraseando o título de um interessante livro do escritor Alain de Botton, acredita que a arte pode ‘mudar a nossa vida’? Se sim, como essa mudança ocorre?

Acredito que sim. O artista, ainda que muitas vezes de modo intuitivo e graças à sua sensibilidade, consegue captar e explicar coisas que passariam totalmente despercebidas. Revela-nos o mundo. Por outro lado, o prazer estético derivado da arte funciona como a melhor “válvula de escape” que conheço para as angústias e atribulações do cotidiano. Finalmente, a arte aguça a compreensão. Acho que foi por essa razão que Engels disse haver aprendido mais com Balzac do que com todos os outros profissionais, historiadores, economistas e estatísticos juntos.

Você passou alguns anos trabalhando em Belo Horizonte. O mineiro tem um jeito próprio de ser, naturalmente. Como você apresentaria ‘o jeito mineiro de ser’ aos baianos?

Evito sempre as generalizações e os clichês, mas sempre faço a seguinte comparação: em Belo Horizonte você pensa que tem quatro ou cinco amigos verdadeiros, mas tem uns vinte; em Salvador, acredita ter uns vinte, mas na realidade tem quatro ou cinco. As diferenças estão todas aí: menos expansivos e acolhedores mas, ao mesmo tempo, mais fiéis, verdadeiros e solidários.

Se um garoto lhe parasse no caminho da casa para o trabalho e lhe perguntasse ‘o que você está indo fazer’, acha que teria uma resposta interessante a lhe dar?

Douraria a pilha, mas certamente preferiria as brincadeiras do menino ao trabalho que iria fazer… Mas temos que dar o exemplo, não é?

Você tem lido literatura de ficção? Consegue dizer os três livros de ficção que mais o marcaram e por quê?

“Em busca do tempo perdido” (mais precisamente o volume “No caminho de Swann”) é o livro que mais me marcou. Periodicamente retorno a ele. Estilo magnífico, sensibilidade sobre-humana e uma análise do ciúme absolutamente espetacular. A leitura de “Crime e Castigo” também me marcou muito, por razões diferentes da maioria das pessoas. É que, ao contrário do senso comum, não consegui perceber no livro nenhum “estudo sobre o processo de formação da culpa”. Desde então, passei a desconfiar muito de alguns eruditos que apenas repetem o que ouviram ou leram a respeito. O terceiro livro que mencionarei marcou-me por haver sido para mim a transição da literatura infanto-juvenil para a adulta: “O falcão maltês”, de Dashiel Hammet.

Você acredita que no combate à corrupção no Brasil o trabalho da justiça tem ocupado posição importante? Às vezes sinto que o trabalho punitivo, embora necessário, não tem alcançado a essência do problema…

O trabalho punitivo da justiça tem que ser feito, para reafirmação do sistema jurídico como meio de resolução de conflitos. Mas concordo que o trabalho punitivo do ponto de vista político é acessório. Os melhores resultados surgem quando há consciência de que os valores protegidos pela lei devam prevalecer. Isso ficou claro para mim em dois exemplos: nepotismo e obrigatoriedade do uso do cinto de segurança. No caso do nepotismo, lembro-me que quando criança era absolutamente normal e de se esperar que alguém eleito para cargo público empregasse a parentela. Hoje isso é repudiado pela quase unanimidade das pessoas. Moralmente tornou-se inaceitável, mas não era. Quanto ao cinto de segurança, ao menos na Bahia todos queriam usá-lo mas temiam ser vistos como maus motoristas (especialmente os homens). Assim, quando se anunciaram normas mais rígidas, embora todos achassem que elas não seriam efetivamente fiscalizadas, imediatamente passaram a utilizar o cinto de segurança. Curiosamente, a lei serviu de desculpa para os motoristas fazerem o que sempre quiseram, mas tinham vergonha.

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“Eu me considero um monarquista e sou contra a tortura e qualquer forma de covardia contra o indivíduo”. Veja o nosso segundo ‘dedo de prosa’, com Luiz Lessa.

Bem humorado com os amigos e mau humorado com a vida“: assim se define Luiz Lessa. Homem de poucas palavras, seus usuais comentários ao noticiário institucional, partilhado com os colegas na nossa lista eletrônica, desafiam nossa capacidade de interpretação, a explorar por baixo de sua pura literalidade algumas camadas plenas de significado.

Para ele, na investigação de alguns crimes específicos, “um Doutorado na Harvard Law School vale tanto quanto um certificado de conclusão de um curso de tricô e crochê“.

Embora reconheça que o MPF é a melhor carreira jurídica do Brasil, diz-se frustrado com o sistema jurídico nacional, que reputa “caro, demorado, ineficaz“. “Estamos sempre correndo atrás e enxugando gelo“.

Na sua opinião, a atuação do MPF na persecução dos crimes praticados por agentes públicos durante o Regime Militar de 1964-1985, não é “coisa de comunista” ou de quem está “a serviço dos terroristas“. Trata-se, sim, de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos; “de aplicar o Direito Penal de acordo com os ditames do Direito Internacional dos Direitos Humanos“.

Sobre o seu trabalho, diz que “mais do que um trabalhador irrecuperável, sou um curioso incurável. Se não precisasse trabalhar passaria a vida apreendendo coisas novas“.

Nesta segunda entrevista de nossa série, seu humor fino e cortante deu espaço ao dedicado profissional, ao leitor de romances policiais e ao amante de quadrinhos antigos. Eis o Lessa, por ele mesmo…

 

Você lançou recentemente a obra ‘Persecução Penal e Cooperação Internacional Direta pelo Ministério Público’ (Lumen Juris, 2013), muito festejada pelos colegas. Que obstáculos o Ministério Público Federal tem encontrado hoje em matéria de cooperação jurídica internacional?

O principal problema do MPF na cooperação penal internacional é o mesmo que atinge as demais áreas de sua atuação. Falta de recursos, sejam financeiros, sejam humanos. Não em qualidade, mas em número. Temos grandes colegas, com extenso e profundo conhecimento no tema; não temos, no entanto, colegas em número suficiente para atuar e desenvolver de forma estruturada essa atividade. É o mesmo problema que temos, penso, em todas as áreas. E, como nas demais áreas, essa falta de pessoal fez com que outros setores da Administração, tenham se apropriado de parcela significativa de nossas funções em todas as áreas. Hoje, graças ao atual PGR, essa área de atuação está sendo reforçada e estamos conseguindo construir sobre as fundações lançadas pelo Dr. Edson, que fazia o que podia praticamente sozinho.

Você está na Procuradoria Regional há cerca de um ano, depois de ter sido procurador da República por dezesseis. Já se acostumou com as novas funções? Como reagiu à mudança? Sente falta da PRRJ, Lessa?

O pique na Regional é bem mais calmo do que na PRRJ. Não que não exista trabalho, mas são pouquíssimos os procedimentos de investigação e o intercâmbio com juízes, partes, testemunhas, advogados, delegados e órgãos públicos é quase inexistente. Não se faz quase instrução e a atuação se limita à aplicação da teoria pura, fica uma coisa mais intelectual, às vezes bem chata. Por outro lado, a nossa atuação na PRR, porque é sempre uma reflexão sobre o trabalho feito em primeiro grau, sempre depende da boa atuação do PR. Se ele for mal, dificilmente dá para o PRR levar a cabo a tese suscitada em primeiro grau. Ainda bem que em um ano, quase nunca tive esse problema.

Há um clima geral de insatisfação com a carreira. Muitos encontram sua parcela de satisfação como a vida ‘fora do trabalho’ ou, em casos mais dramáticos, estão esperando a aposentadoria para finalmente ‘começar a viver’. Você disse que pretende deixar o cargo, ‘vivo e lúcido’, apenas na aposentadoria compulsória. Você gosta do que faz? Considera-se realizado profissionalmente?

O MPF é a melhor carreira jurídica do Brasil. Contamos com autoridades, reconhecidas nacionalmente pelo mercado e pela academia, em todas as áreas do Direito Público, com exceção do Direito do Trabalho, temos uma liberdade de interlocução com todos os graus e integrantes da carreira, salvo um ou outro colega, que não se encontra em nenhum outro órgão de igual importância. Pegamos, tanto no crime, quanto na tutela coletiva, os casos mais interessantes, como, por exemplo, o Mensalão, os Sanguessugas, Banco Nacional, Belo Monte, o vazamento de óleo da Chevron, aquele projeto Carne Legal, dentre outros tantos.

Agora o sistema jurídico nacional é insano, caro, demorado, ineficaz, e isso reflete na nossa atuação. Estamos sempre correndo atrás e enxugando gelo. Isso é frustrante. Veja, por exemplo, o caso recente do banqueiro que foi condenado vinte anos após a prática do delito, não obstante a investigação e o início da persecução, dada a complexidade dos fatos, tenha ocorrido com razoável presteza. A nossa infra-estrutura é insuficiente para permitir que o trabalho seja feito adequadamente e, apesar dos que muito pensam, a insatisfação com a remuneração tem ocasionado perdas significativas, tanto entre procuradores que se aposentam o mais cedo possível, quando não pedem exoneração, quanto entre os servidores que apoiam a atividade principal.

Recentemente, você atuou em processos que buscam a persecução penal dos crimes praticados por agentes públicos durante o Regime Militar de 1964-85. Acredita que a Comissão da Verdade, ao limitar sua investigação aos atos dos militares, entregará bons resultados à sociedade? Tem acompanhado o trabalho da Comissão? Como o avalia?

A proposta da Comissão da Verdade é outra, acompanho de longe o trabalho deles e não me sinto à vontade avaliando-os. A proposta do MPF, a nossa proposta, é de aplicar o Direito Penal de acordo com os ditames do Direito Internacional dos Direitos Humanos e isso não tem a ver com ideologia, mas sim com regras claras de DIDH. Falam que é coisa de esquerda, coisa de comunista, atacam o trabalho dizendo que, porque não se busca punição contra os terroristas, estamos a serviço dos terroristas. Essas pessoas ignoram o DIDH, não leram a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e desconhecem o que está sendo feito. Bem, eu me considero monarquista e parlamentarista, sendo contra a tortura e qualquer forma de covardia contra o indivíduo. Eu confio é no trabalho dos colegas que iniciaram e continuam nessa luta, colegas excelentes, dedicados, muito bem preparados, que estão fazendo um trabalho histórico e que, quem sabe, como tudo no MPF, conseguirão vencer depois anos de batalha.

A literatura policial está repleta de casos desafiadores, solucionados frequentemente através da inteligência dos detetives, do encontro de pistas, a partir de traições e de testemunhos inusitados. Como leitor de Raymond Chandler, o que pensa sobre o nosso inquérito policial como instrumento de investigação? Consegue imaginar alguma alternativa viável?

O trabalho de investigação é um trabalho que prescinde, em sua maior parte, do conhecimento jurídico. É um trabalho de análise, seja de evidências materiais, seja de dados e informações. É uma tarefa técnica de reprodução científica de algo que já aconteceu. Como tal, o conhecimento jurídico só serve para a qualificação jurídica da verdade revelada pela investigação e para a preservação dessa prova e dos direitos fundamentais do cidadão. Existem crimes, como os financeiros, por exemplo, em que o trabalho de um investigador que domine as ciências contábeis é inestimável, outros em que o exame necrológico é essencial para a apuração dos fatos. Nesses casos, um Doutorado na Harvard Law School vale tanto quanto um certificado de conclusão de um curso de tricô e crochê. O conhecimento jurídico só vai servir para organizar a prova de forma a convencer o juiz sobre a autoria e materialidade delitiva e isso quem faz é o Ministério Público. Por isso é essencial que o Ministério Público participe da investigação, para assegurar que a prova produzida satisfaz aos parâmetros que delimitam a justa causa da ação penal.

Quanto mais estudo, quanto mais converso com policiais estrangeiros, mais reforço a minha convicção de que o sistema policial brasileiro está falido, porque construído sobre bases fundadas no Século XIX, que ignoram a ciência, a velocidade em que os crimes são cometidos, a forma de organização das associações criminosas e a necessidade de uma polícia estruturada de forma flexível, visando ao resultado final; e que limitam a investigação a um simulacro de processo administrativo, burocratizado. Não é o inquérito que prova a existência do ilícito mas sim o que for apurado e confirmado perante a Justiça.

Em cada um dos últimos anos, nós temos convivido no Brasil com cerca de 50.000 homicídios/ano. Em 2013, matamos, proporcionalmente, quatro vezes mais que Estados Unidos e Argentina e vinte vezes mais que Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha e Itália. Recentemente você já foi vítima de um assalto à mão armada. Acha que eventual descriminalização do tráfico de entorpecentes pode diminuir a médio prazo os altos índices de homicídio no país?

O crime não tem uma causa única, direta. A prevenção depende da análise de múltiplos fatores associados à atividade criminosa e que devem ser identificados, estudados e atacados. Por exemplo, uma pessoa pobre não necessariamente se tornará criminosa, como o fato de um cidadão ser rico não o torna livre do cometimento de delitos. Fatores culturais, sociais, individuais e institucionais operam de forma conjunta para incentivar ou facilitar a prática delituosa. Além disso, a mera descriminalização da droga não é suficiente para dirimir a prática criminosa. A descriminalização do uso da substância ilícita não evita que essa cause graves problemas de saúde e riscos a população em geral. O fato de liberar o uso da maconha, não impede que você puna quem dirija sob o efeito da droga, ou quem a comercialize fora dos parâmetros legais. O sujeito viciado em droga lícita, como o álcool, por exemplo, comete  atos violentos como, por exemplo, vias de fato, lesões corporais, homicídios, como o faz quem é viciado em drogas ilícitas.

A redução da violência passa portanto, desde você atacar o problema da criminalização das drogas, como limitar e fiscalizar o acesso a armas de fogo, educar e dar oportunidades de crescimento social à população mais pobre, como assegurar a existência de um sistema repressivo firme, presente, mas justo e proporcional, que não alimente a ideia de que uma condenação penal equivale a impunidade.

Na comunicação com os colegas em nossa lista eletrônica de e-mails, você frequentemente deixa escapar um humor irônico muito parecido com o de Millôr Fernandes. Você é bem humorado também pessoalmente? Tem preferência por algum humorista em especial?

Sou bem humorado com os amigos e mau humorado com a vida. Gosto do humor dos comediantes escoceses, que é como o dos ingleses, seguido de um chute nas partes baixas.

Para Millôr, “A maior parte da humanidade tem absoluta necessidade de se punir com o trabalho. E nisso acaba adorando o ato de trabalhar e viciada nele. A totalidade dos trabalhadores é absolutamente irrecuperável” (em ‘O livro vermelho dos pensamentos de Millôr’). Você concorda com ele? Você é um trabalhador irrecuperável, Lessa?

Mais do que um trabalhador irrecuperável, sou um curioso incurável, viciado em notícia, informação, livro, leitura, filme, internet, fofoca, receita de bolo, a busca pelo conhecimento, mesmo o inútil, é o que me mantém vivo.

Trabalho porque tenho que pagar contas e sustentar o sistema bancário brasileiro. Se não precisasse trabalhar passaria a vida apreendendo coisas novas.

Você disse que compra revistas/livros de quadrinhos. Quais são os seus preferidos?

Livros, compro quando viajo e sempre volto com uns cinco ou seis. Dou preferência aos clássicos da literatura inglesa e por clássicos vai tudo, desde Shakespeare a Raymond Chandler. Moby Dick a Le Mort d’Arthur.

Quadrinhos, não compro mais nada, fuço a internet, leio o que consigo de graça. Sou da geração que leu as primeiras edições do Neil Gaiman, Moebius, Alan Moore e Frank Miller, que lia Heavy Metal, Love & Rockets e Metal Hurlant, que viu a Rê Bordosa morrer e renascer, que conhece o segredo do morcego e sabe quem é o León de Tchacara, que pegou o final do Henfil, acompanhou o Calvin & Hobbes, do início ao fim, que leu Garfield quando ele ainda era engraçado, quando os quadrinhos deixaram de ser coisa de criança e passaram a ser as Novelas Gráficas que tanto influenciam a dramaturgia atual.

Qual a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?

Indo com minha mãe de casa para a padaria, em Higienópolis, SP, para trocar as minhas moedinhas por um pão francês e um guaraná caçula.

A história do Ministério Público nas décadas de 80 e 90 é a história da conquista de garantias institucionais e de instrumentos processuais que o constituíram com uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns ícones dessa geração convivem hoje com colegas recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. Acredita que a geração que construiu o MPF da primeira década pós-Constituição consolidou uma certa tradição? Se sim, essa tradição foi ou vem sendo transmitida com sucesso às novas gerações?

O papel desempenhado pelos colegas mais antigos criou a imagem do MPF que sobrevive no imaginário popular como o principal órgão de defesa da sociedade e das minorias no Brasil, sem desmerecer o restante dos órgãos irmãos ou assemelhados. Alguns, como a Justiça Federal, não recebem o crédito que lhe é devido, já que sem a JF a nossa atuação seria inócua.  Acredito que por isso, a cada novo concurso novos talentos, oriundos do poder judiciário, das promotorias e das procuradorias estaduais e municipais, ingressam na carreira com o intuito de espelhar e ampliar a atuação desses colegas antigos na tutela coletiva e penal da sociedade. É bobeira da grande, mas eu sempre digo que nós do MPF podemos repetir o chavão dos Marines dos EUA: The Few The Proud, The MPF.

 

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