“O Ministério Público reflete a educação superior no Brasil, completamente dominada pelo pensamento esquerdista. Defender as próprias opiniões pode nos trazer dificuldades para ocupar determinadas posições na carreira”. Entrevista com Carlos Cabeleira.

Depois de passar alguns anos trabalhando no Timor-Leste como consultor internacional do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o procurador da República Carlos Vinícius Cabeleira voltou com a sensação de que o conhecimento técnico-jurídico não resulta necessariamente em decisões mais justas. A pergunta que ainda imprime efeitos em sua vida profissional é “por que estudamos tanto o Direito se as decisões não ficam mais justas?”.

Sobre a educação dos filhos, Carlos acredita que famílias desestruturadas e pais ausentes são o maior problema para as crianças. “Os pais não podem terceirizar a educação dos filhos, e têm que procurar exercer uma influência pessoal e direta sobre a vida da criança”, diz.

Crítico do que entende como uma indesejável tendência dentro do Ministério Público Federal, assevera que “o ambiente no MPF é o da ideologia dominante, o mainstream esquerdista. Parece que o MPF quer executar todos os itens da cartilha esquerdista, que inclui execrar os religiosos sob a equivocadíssima interpretação do Estado Laico como Estado Ateu”. Vê, porém, que  “para a atuação do dia a dia ainda temos muita liberdade e independência para atuarmos conforme entendemos correto”.

Acompanhe nossa 22ª entrevista, com o colega Carlos Cabeleira. Um ‘dedo de prosa’ repleto de ousadia e bom-senso, como manda o figurino.

Você está atuando como PRE substituto em matéria de propaganda eleitoral. Que desafios o Ministério Público Eleitoral tem enfrentado na questão da propaganda eleitoral?

As dificuldades são de três ordens. Em primeiro lugar, a legislação eleitoral é muito benevolente com os candidatos. Há muitas vedações na propaganda eleitoral para as quais não há previsão de sanção além da proibição da sua prática, como o uso de trios elétricos ou a propaganda noturna. Em outros casos, a lei dá uma tolerância absurda ao dar o direito de quem coloca propaganda indevida em bem público, por exemplo, de ser notificado para, sem sofrer multa, retirar a propaganda em 48h e restaurar o bem. Há ainda casos como a participação na inauguração de obras públicas ou a captação de sufrágio, nos quais a única sanção prevista é a cassação do registro ou diploma. Como essa punição se mostra muitas vezes exagerada, acaba não acontecendo nada com os infratores.

Em segundo lugar, a Justiça Eleitoral é ainda mais benevolente com os candidatos, ao exigir provas diabólicas para condenações que levem à cassação de candidaturas, com isso flexibilizando a Lei da Ficha Limpa e abrandando todas as penalidades nela previstas.

Por fim, a estrutura do Ministério Público para a fiscalização e atuação em matéria eleitoral ainda é muito deficiente, em especial para investigações de condutas vedadas e abuso do poder, em que não temos o apoio da Polícia Federal por não se tratar de crime. Isso também tem ocorrido em casos de propaganda vedada.

O desafio é continuar trabalhando, de forma criativa, usando os recursos que temos para tentar dar o mínimo de eficácia à legislação eleitoral naquilo em que ela ainda tem algum rigor.

A esse respeito, você deve conhecer pessoas que não gostam de ‘perder o voto’. A divulgação de pesquisas eleitorais, nesse contexto, não seria um modo inadequado de influenciar a vontade do eleitor?

As pesquisas eleitorais são um instrumento de orientação dos candidatos e partidos nas suas estratégias de campanha. Para essa finalidade, elas não precisariam ser divulgadas. Mas as pesquisas também permitem que o eleitor se oriente para o chamado “voto útil”, que se baseia mais na rejeição a um candidato do que na aprovação de qualquer um deles. Assim, quando o eleitor quer que o governo mude, por exemplo, é sempre válido votar no candidato de oposição mais bem classificado. Isso também ocorre nos casos em que não há segundo turno nas eleições majoritárias. Também no caso em que a prioridade do eleitor é eleger um candidato de determinada região, não importando o partido, as pesquisas lhe podem ser muito úteis.

Na verdade, seria conveniente que existissem mais pesquisas, principalmente para as eleições proporcionais, em que o voto é aproveitado para eleger qualquer candidato da coligação — quando o que recebe o voto não é eleito. Nesses casos há um verdadeiro “tiro no escuro”, que poderia ser melhor orientado se existissem pesquisas.

Assim, acho legítimo que o eleitor não queira “perder seu voto” e adote o chamado voto útil. A legislação atual já é bem rigorosa com as pesquisas, que devem ser registradas e devem cumprir vários requisitos. Além disso são vedadas as enquetes eleitorais e a divulgação de resultados das pesquisas no dia das eleições. A influência inadequada na vontade do eleitor ocorre nos casos de pesquisas fraudulentas ou feitas sem método adequado, porque faz com que o eleitor tome sua decisão com base em dados falsos. Mas acredito que a legislação atual já reprime bem essa situação.

O que você foi fazer no Timor-Leste, Carlos? Se pudesse transmitir aos colegas de sua geração duas lições que aprendeu lá, quais seriam?

Fui para o Timor-Leste trabalhar como consultor internacional do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), no âmbito de um acordo de cooperação trilateral Brasil-PNUD-Timor, para exercer a função de Procurador da República Internacional, ajudando a formação inicial e continuada dos membros do Ministério Público naquele país.

Uma coisa que pude vivenciar é como o direito está em dependência total da cultura em que vai ser aplicado. No Timor, a maioria das leis editadas no país independente eram cópias de leis portuguesas, ou de leis australianas, mas a aplicação, a interpretação, na prática, era muito diferente da do país de origem. Elaborar a aplicar a lei no Timor tinha esse desafio extra de conhecer e respeitar o país e sua cultura para chegar à interpretação adequada àquela realidade.

Pude ver também, com certa decepção, que o conhecimento técnico-jurídico não resulta necessariamente em decisões mais justas. Os juízes, procuradores e advogados timorenses têm muito menos conhecimento técnico-jurídico que seus correspondentes de outras partes do mundo, mas isso não significa que as decisões deles sejam piores no conjunto, sob a ótica da sociedade. Isso me faz pensar, até hoje, por que estudamos tanto o Direito se as decisões não ficam mais justas?

E ainda aprendi que certos valores consolidados entre nós são completamente relativos. Por exemplo: lá no Timor-Leste havia uma estrutura hierárquica dentro do Ministério Público e não havia delegados de polícia nem cargos equivalentes. E pude perceber que em um Ministério Público em que falta iniciativa e capacidade de trabalho aos procuradores, nada melhor que uma chefia para obrigá-los a trabalhar. Em um ambiente como aquele, a independência funcional geraria a mais completa ineficiência. Quanto aos delegados de polícia: se os agentes de investigação são do Ministério Público, estando administrativamente subordinados aos procuradores, os delegados são figuras dispensáveis. Por outro lado, se a estrutura policial for utilizada para investigação, a existência de um corpo mais qualificado de “chefes de investigação” favorece a efetividade do trabalho.

Tenho a impressão de que o mundo está muito mudado, Carlos. Hoje convivemos com a Lei da Palmada, com a má-qualidade do ensino nas escolas, com a erotização da infância: o Brasil é um bom lugar para educar os nossos filhos?

Sim, eu acho. O Brasil é um bom lugar para educar nossos filhos. Uso “bom”, aqui, como intermediário de uma escala entre ‘péssimo’ e ‘ótimo’. Sinto que a criação dos filhos é menos uma escolha da pessoa do que uma vocação, um chamado a que temos que corresponder como uma missão divina. Assim, temos o dever de criar os filhos da melhor maneira possível em qualquer conjuntura. Sabendo, como São Paulo, viver na escassez e na abundância. Há lugares melhores do que o Brasil, em especial no quesito qualidade da educação, mas também tem muito lugar pior.

O maior problema que vejo para as crianças hoje é a ausência dos pais, seja em razão de famílias desestruturadas ou mesmo inexistentes, ou da mera ausência física devido à jornada de trabalho integral do pai e da mãe, quando elas crescem e se educam sob a responsabilidade de professores, empregados, parentes ou mesmo de ninguém. Os pais não podem terceirizar a educação dos filhos, e têm que procurar exercer uma influência pessoal e direta sobre a vida da criança. O pai presente pode dar a formação ética e religiosa adequada a seus filhos, e exercer a autoridade para limitar a erotização da infância e o desrespeito à autoridade.

A internet hoje, com a quantidade de informação disponível, é uma ferramenta poderosa para corrigir a baixa qualidade do ensino que vemos em quase todas as escolas brasileiras. E é também um lugar onde se podem encontrar boas influências e companhias adequadas para seus filhos. Mas o ideal é que os pais guiem seus filhos pelas mãos também na internet, assim como os levam pelas ruas.

Você acompanha o trabalho do prof. Olavo de Carvalho. Qual é a influência dele em suas reflexões?

No colégio, os professores sempre ensinavam que devíamos ser “críticos”, “questionadores”, duvidar do que nós víamos na mídia e na imprensa. Curiosamente, lendo o jornal O Globo (do Rio de Janeiro, onde fui criado), os articulistas que sempre me pareceram mais críticos, que traziam opiniões diferentes do lugar-comum do que era dito, não apenas no jornal, como na escola mesmo, foram Roberto Campos e Olavo de Carvalho. Infelizmente Roberto Campos morreu em 2001, mas Olavo continua aí até hoje.

Depois que ele saiu do Globo, continuei acompanhando seus artigos na Revista Época e na internet, conheci seus livros, o podcast True Outspeak, seus cursos, que sempre trouxeram uma visão diferente do mainstream esquerdista. Ele certamente tem mais conhecimento do que qualquer pessoa presente na mídia ou nas universidades. Ele tem as opiniões mais fundamentadas e tem os melhores argumentos. Até porque ele leu mais livros do que todas essas pessoas. Está em um outro plano qualitativo. Além disso, o Olavo é uma pessoa de uma retidão moral admirável, e ainda é politicamente incorreto: fuma, caça ursos, fala palavrão etc. Não é uma questão de representar a direita ou os conservadores. A mim ele me convence com seus argumentos, comparados com aos argumentos de outras pessoas.

Acho que o Olavo de Carvalho é uma referência obrigatória em qualquer debate em ciências humanas no Brasil hoje. Se ele tiver dito alguma coisa sobre um determinado assunto, certamente terá trazido uma contribuição relevante para o debate.

Agora, sobre minhas reflexões. A verdade é que eu não tenho muitas reflexões. Procuro seguir o modelo do Olavo na sinceridade, na dedicação ao estudo, na paciência com os ignorantes e com os menos preparados, no reconhecimento das minhas limitações, em suma: no amor à Verdade.

Eu fico imaginando, não sei se você concorda, que daqui a cinquenta anos o prof. Olavo de Carvalho continuará a ser lido, como filósofo e como analista político. Você imagina algum brasileiro atualmente vivo que terá esse mesmo tratamento?

Finalmente uma pergunta fácil: é claro que não!

Qual é a lembrança mais antiga que você tem da sua infância?

A lembrança mais antiga da minha infância é um diálogo com uma prima minha em que ela me dizia para dar um brinquedo para o meu irmão, porque ele tinha acabado de nascer e não tinha brinquedo nenhum. Como meu irmão é dois anos e três meses mais novo, essa lembrança deve ser de quando eu tinha uns dois anos e oito meses, porque os bebês demoram algum tempo para interagirem com brinquedos. É mais ou menos dessa mesma época a lembrança que tenho de estar entrando na minha primeira escolinha.

Hoje é natural que as pessoas planejem uma família com poucos filhos. Geralmente fundamentados na limitação financeira, os casais já se dão por satisfeitos por terem um ou, no máximo, dois filhos. Diferentemente, você acredita que os filhos são um ‘bom investimento’?

Como eu já disse, os filhos são uma vocação. Atender ao chamado e obedecer à própria vocação é uma condição para a felicidade. Assim, se nós não gastarmos dinheiro com nossos filhos vamos gastar com o quê? Viagens? Vinhos? Carros? Roupas? Acho que os filhos são a melhor forma possível de gastar dinheiro.

Por outro lado, pela lei básica da oferta e da procura, como muita gente não quer mais ter filhos e quem os quer aceita um ou no máximo dois, me ocorre que os “filhos” serão um artigo muito valorizado no futuro, em razão da própria escassez desse “bem”.

Parece-me que existe uma ignorância econômica geral no seguinte sentido. Há uma crença de que na economia rural é bom ter muitos filhos, porque serão mais braços para o trabalho do campo, mas que no mundo moderno e urbano quanto menos filhos melhor porque aí então sobrará mais riqueza. Mas não acho que haja uma diferença ontológica entre a economia urbana e a rural. Além disso, a riqueza pode ser produzida. Quanto mais gente numa família, mais gente para produzir riqueza.

Imagino que reconheça, como cristão, que nossa carreira nos submeta a algumas ‘tentações específicas’. Que dificuldades a busca da santidade submete especificamente o procurador da República?

Eu acho que a nossa maior dificuldade fica em saber se estamos nos envergonhando de Cristo ao não entrarmos em determinados debates ou se, pelo contrário, estaríamos jogando pérolas aos porcos. Confesso que é muito difícil fazer a distinção.

O ambiente no Ministério Público Federal é o da ideologia dominante, do mainstream esquerdista. Parece que o MPF quer executar todos os itens da cartilha esquerdista, que inclui execrar os religiosos sob a equivocadíssima interpretação do Estado Laico como Estado Ateu. Veem a Constituição como um programa ideológico de esquerda a ser implementado. E o pior é que os conservadores, entre eles eu, formam uma massa silenciosa.

Mas acho que o Ministério Público reflete a educação superior no Brasil, completamente dominada pelo pensamento esquerdista. Onde, por exemplo, alguém dizer que não é evolucionista ou que não acredita na reforma agrária soa como a maior ignorância do mundo.

Divulgar e defender as próprias crenças e opiniões pode nos trazer dificuldades para exercer determinados cargos ou ocupar determinadas posições na carreira. Existe aí uma tentação. Mas para a atuação do dia a dia, ainda temos muita liberdade e independência para atuarmos conforme entendemos correto.

E existe uma outra dificuldade relacionada à vaidade. O procurador da República muitas vezes se acha superior a todas as outras pessoas, que julga ladrões ou incompetentes. Essa é mais uma tentação.

Há autores como Hans Joas que chegam a dizer hoje que “Os direitos humanos são fruto, principalmente, de resistência contra a aliança de poder entre Estado e Igreja (Católica) ou contra o cristianismo como um todo”. A noção que está por trás dos direitos humanos hoje o deixa à vontade em sua atuação na PRDC em especial e na Procuradoria da República em geral?

O que acabei de dizer é especialmente verdadeiro com relação à PFDC, que defende, institucionalmente, a facilitação do aborto, o controle da natalidade, a pílula do dia seguinte, o casamento gay, a caça às bruxas da ditadura, a exaltação dos terroristas do passado, a defesa dos “movimentos sociais”, mesmo quando estão violando as leis, a tolerância com invasões de terra e de imóveis urbanos, a desmilitarização da polícia etc. Em resumo, todas as bandeiras esquerdistas, com exceção, talvez, do controle da mídia.

Gostaria, na PRDC, de resgatar a noção de direitos humanos baseada na dignidade do ser humano como imagem e semelhança de Deus, sem compromisso com cumprir a cartilha esquerdista. A verdade é que há uma gama muito grande de direitos humanos para os quais é necessário dar atenção, em especial a universalização da saúde, a qualidade da educação, a segurança pública, a defesa da livre iniciativa e a valorização do trabalho, o direito a ter uma família e a ter filhos, o direito à liberdade religiosa e de culto, entre outros.

 

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Entrevista com Ryanna Veras: “A sociedade atual é extremamente dinâmica. Temos de escrever nossa história diariamente”.

Orgulhosa da história do Ministério Público Federal e de seu trabalho na instituição, Ryanna acredita que o MPF representa o que há de mais desenvolvido no serviço público brasileiro hoje. Assevera, porém, que diante da dinâmica da sociedade atual, em que novas questões surgem diariamente “temos de escrever nossa história diariamente”.

Ryanna passou sua infância em Santo André, SP, onde tinha uma vida simples mas repleta de amigos. “Brincávamos na rua, de jogos de tabuleiro, saíamos de bicicleta por todo o bairro sem qualquer preocupação. Foi uma época muito especial, com menos insegurança, que infelizmente meu filho não conseguirá experimentar”.

Ryanna começou sua carreira em 2002 na PRM Santo André e desde 2007 trabalha na área criminal da PRSP, na capital paulista. Embora veja como mais positiva para a sociedade a atuação cível do Ministério Público, optou pela área criminal pela afinidade intelectual com a matéria e pelo desafio de, apesar dos percalços, dar um melhor de si em um trabalho marcado pelas desilusões de um sistema de justiça permeado de contradições.

Além de dedicar-se aos seus processos criminais, Ryanna divide seu tempo entre os cuidados com seu filho, a vida espiritual, o trabalho voluntário e as aulas de piano — que a ajudaram a trazer disciplina para as outras atividades. ‘No meio do caminho da vida’, como Dante, reflete: “A vida até os trinta é um grande laboratório de experiências. Depois começa outro período que não é menos bonito e desafiador”.

Entre uma e outra atividade, Ryanna arrumou um tempinho para conversar conosco. Eis o nosso 20º ‘dedo de prosa’, um interlúdio agradável aos ouvidos da alma. Puxem uma cadeira e vejam se não tenho razão.

Você trabalha na área criminal desde que entrou para o MPF, Ryanna?

Não. Eu tive uma breve passagem pela área cível quando de 2002 a 2007 trabalhei na Procuradoria da República em Santo André, que hoje também abrange a Subseção Judiciária de São Bernado do Campo.

A atuação na tutela coletiva não chama a sua atenção hoje?

A nossa atuação no cível é, na minha opinião, muito mais positiva para a sociedade que a atuação criminal. Consegue obter benefícios em larga escala para as pessoas coletivamente. Mas a minha opção pela área criminal tem um misto de afinidade intelectual pela matéria e de um desafio de fazer algo de bom.

Sente que em geral nós temos cumprido com louvor nossas atribuições criminais?

Nessa área o Estado vive um misto de frustração, por não conseguir conter a sensação de insegurança da sociedade; e de autoafirmação, por tentar se mostrar presente por meio de penas retributivas e desumanas. É preciso repensar a política criminal e o papel do Direito Penal na atualidade. E isso me atrai.

Há alguns anos você morou em Londres, onde se tornou Master in Science em Criminal Justice Policy pela London School of Economics. Como foi essa experiência?

Foi uma experiência única. Conhecer pessoas do mundo todo e debater com elas, tomar contato com um ensino de alta qualidade, e viver a rotina de um outro país é algo maravilhoso. Ao mesmo tempo, é um incentivo ainda maior para trabalhar pelo nosso país, trazer para cá a literatura e o conhecimento que consegui adquirir lá e tentar de alguma forma devolver ao meu país o que foi investido na minha capacitação.

É possível dizer com justiça que você está satisfeita com o seu trabalho no MPF?

Tenho muito orgulho da história do MPF e do meu trabalho na instituição. Acho que o MPF representa o que há de mais desenvolvido no serviço público brasileiro hoje. Trabalha com alto nível de eficiência, com pessoal motivado, baixos índices de corrupção e condições de trabalho razoáveis. Entretanto, ainda há muito a se conquistar. A sociedade atual é extremamente dinâmica e novas questões surgem diariamente. Temos de escrever nossa história diariamente, como um órgão neutro, combativo e sempre ao lado da sociedade na luta pela justiça.

Mudando de assunto, onde você passou sua infância, Ryanna? Que lembranças traz daquela época?

Eu passei minha infância em Santo André, na região do Grande ABC. Tinha uma vida humilde, mas com muitos amigos. Brincávamos na rua, de jogos de tabuleiro, saíamos de bicicleta por todo o bairro sem qualquer preocupação. Foi uma época muito especial, com menos insegurança, que infelizmente meu filho não conseguirá experimentar.

Acredita que alguma circunstância dessa época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Na minha família são todos da área da saúde então tive pouco contato com o mundo das leis. Minha opção pelo Direito foi natural. Eu gostava mais de ciências humanas. Naquela época eu nem tinha noção das opções de carreira que podia ter. Era só Direito, Engenharia ou Medicina… Era tudo muito limitado.

E você ainda toca piano?

O piano é um hobby que mantenho até hoje. Faço aula semanalmente e treino sempre nas horas vagas. Acredito que os treinos de piano me ajudaram a trazer disciplina para todas as outras atividades. Como não sou uma pianista por vocação, preciso repetir muito e estudar para conseguir uma boa performance.

Acredita que a disciplina e a técnica que você adquiriu nas aulas de piano a ajudam de alguma forma na vida e no trabalho?

Sem dúvida. Essa disciplina me ajudou muito nos estudos para o concurso e, hoje em dia, me ajuda na organização da rotina profissional.

Nosso colega João Brandão já me disse que ‘a música é a sonoplastia da vida’… Eu particularmente gostei dessa definição. Existe alguma música que represente adequadamente hoje o que se passa na sua vida interior, Ryanna?

São tantas músicas que fizeram parte da nossa vida, não é verdade? Cada uma traz uma lembrança própria, vozes, cheiros, sensações… Atualmente, estou numa fase muita particular, entrando na segunda metade da vida. É nessa hora em que reflito sobre tudo o que aprendi, o que fiz, quais são os verdadeiros valores da vida. Tenho me dedicado muito à minha vida espiritual e ao trabalho voluntário. Quero fazer a minha parte, deixar um legado para as pessoas e para isso tenho buscado dedicar meu tempo ao que realmente tem valor no mundo. No momento, vou citar Society, do Eddie Vedder. É muito questionadora, como eu estou hoje.

Se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá?

Considero que até os trinta a vida é um grande laboratório de experiências. Devemos nos arriscar, acertar ou errar, sentir, experimentar sensações, viajar, nutrir a alma. É uma fase brilhante da vida. De vitalidade física e de uma imaturidade que é necessária para nos permitir a nos envolver nas mais diversas atividades. Acho que é até os trinta que adquirimos a bagagem que nos será útil para o resto da vida. É uma fase da vida que deve ser desfrutada intensamente. Depois dos trinta começa outro período que não é menos bonito e desafiador. Temos que pensar no que queremos deixar escrito na nossa história e isso é muito assustador. Ninguém quer passar a vida apenas dormindo, trabalhando e viajando. Espero que aos sessenta anos eu tenha feito coisas boas pela minha família, pelos amigos e pela sociedade. Ter histórias de lutas e de superação. Ser um exemplo para meu filho. Poder incentivar os mais jovens.

Imagine-se sobrevoando a história da humanidade. Usando a imagem criada por Antoine de Saint-Exupéry, você vislumbra algumas luzes na planície. Que luzes lhe parecem as mais interessantes? Por quê?

Sem sombra de dúvida eu gostaria muito de ver o Buda Gautama, Jesus, Confúcio… No Tao costumam chamá-los de seres iluminados, pessoas que se fizeram presente neste planeta para mostrar o caminho para a humanidade.

Independentemente da minha religião, é grande a admiração que eu tenho pela gratidão e pelo coração desses homens. Com certeza eles são a luz.

 

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“Não vivo apenas dias bons dentro da instituição. O Ministério Público Federal não é perfeito. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza”. Entrevista com Márcio Schusterschitz.

Nascido em Minas Gerais e criado em Belo Horizonte, Márcio Schusterschitz trabalha desde o começo de sua carreira na capital paulista, cidade com a qual diz manter uma relação romântica. Para ele, mudar de cidade é uma oportunidade provocadora. “Costumamos estudar e trabalhar com pessoas com um contexto parecido com o nosso. O mundo é muito grande, as pessoas muito diversas e isso nem sempre nos provoca”.

Estar próximo do Márcio é ter a chance de aprender um novo gracejo ou de rir de um de seus chistes. Quando lhe perguntei qual era a sua ‘escola de humor’, ele foi direto: “Minha escola é minha família. Em casa, somos seis irmãos e o ambiente nunca foi muito sério.” A atmosfera lúdica de sua infância repercutiu em sua atual concepção de liberdade: “É o espaço da expressão que permite a dinâmica de uma sociedade engessada pelo jurídico e a manifestação da individualidade em um espaço de predomínio do público. Quanto mais reprovação e mais censura, menos desenvoltura há para se falar. A comunicação não vale apenas para o que já julgaram merecedor de aprovação”.

Sobre a realização profissional, foi sincero: “O MPF não é perfeito. Não vivo apenas dias bons dentro dele. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza. Ainda estou com a ideia de haver melhorado e amadurecido a cada ano.”

Um dos maiores interesses do Márcio está em estudar a História dos Estados Unidos e de suas instituições jurídicas, assunto sobre o qual planeja escrever um livro. Acredita que “a hegemonia americana provavelmente veio mais rápido do que o amadurecimento do país para exercê-la.” Porém, reconhece que boa parte da crítica aos Estados Unidos é produzida dentro do próprio país, no rastro da profunda tradição americana de debate e de discussão.

Nesta entrevista, buscamos evidenciar o Márcio profissional, o pai de família e o estudioso — que, temperado pelo seu habitual bom humor, fazem dele a pessoa de carne e osso que atende por um dos sobrenomes mais impronunciáveis da nossa carreira. Veja nossa 15ª entrevista — mais um dedo de prosa genuinamente mineiro, com pão de queijo e rapadura.

 

Eu tenho ouvido testemunhos dramáticos a respeito do ânimo de alguns de nossos colegas com o dia a dia do trabalho nas diversas procuradorias da República. Você se sente realizado profissionalmente, Márcio?

Sim, eu me sinto realizado. Existe uma distinção entre o que te realiza e o que é perfeito. O perfeito tem o conforto de não existir. Como não poderia deixar de ser, não vivo apenas dias bons dentro da instituição. O Ministério Público Federal não é perfeito. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza. Acredito que é importante a qualificação, o estudo, a vivência. Apesar de estarmos limitados a uma ou duas promoções em uma carreira inteira – ou, ao que parece, zero – acho que a profissão de procurador da República é uma evolução. Ainda estou com a ideia de haver melhorado e amadurecido a cada ano. Como profissão, além do mais, o Ministério Público Federal me deu muitos dos meus amigos e os recursos para viver minha vida. Tenho vivências na Procuradoria que me deixam feliz e sei que terei outras mais. Isso, de todo modo, é um sentimento pessoal e não uma análise dos rumos corporativos e funcionais do MPF e dos limites de se viver uma carreira de aplicação da lei em um país com suas desconexões, como é o Brasil.

A propósito, em que você tem trabalhado na PRSP ultimamente?

Desde 2011, atuo na área criminal. Houve uma reestruturação da PRSP em 2010 e não continuei na tutela coletiva do consumidor, que era meu ofício até então.

Como surgiu seu interesse pelos temas relacionados à História dos Estados Unidos e ao seu sistema de justiça? Reconhecendo o valor que a sociedade americana tem, a que você atribui o antiamericanismo a que com muita frequência assistimos nas discussões dos mais variados assuntos?

Eu realmente me interesso pela História dos Estados Unidos. Ler é minha distração e o que mais leio é não-ficção. Dentro da não-ficção, tento sempre ler livros de História. Ocorre que a História dos Estados Unidos é, em grande parte, a História do Direito nos Estados Unidos. Acho que o interesse cresceu com a leitura de temas relacionados à Suprema Corte e, a partir daí, à Revolução Americana. Se meu tempo livre permitir, quero escrever um livro sobre a Independência dos Estados Unidos.

Sobre o chamado antiamericanismo, acho que a resposta é muito arriscada – o que não me impede de tentar. Os Estados Unidos se tornaram a grande potência mundial. Não acho possível que a hegemonia de alguém seja fonte permanente de admiração para resto do mundo. Além do mais, a hegemonia americana provavelmente veio mais rápido do que o amadurecimento do país para exercê-la. O que parece interessante nisso tudo é que boa parte da crítica aos Estados Unidos é produzida no próprio país. Eles têm uma tradição de debate e discussão muito profunda. Engraçado aí é nossa associação entre Estados Unidos, militarismo e imperialismo. O exército norte-americano era tradicionalmente muito pequeno. A aventura imperial americana, que surge com a guerra com a Espanha – um império, por si só – começa sem muita grandiosidade, em 1898 (Filipinas e Porto Rico). No século XIX, o maior empregador público por lá era o serviço postal. Até a 2ª Guerra, o exército americano era menor do que o das principais potências européias. Foi com a Guerra Fria que se construiu o que se chamou de complexo industrial-militar, uma expressão criada precisamente por um presidente americano, Eisenhower. Mas a 2ª Guerra é, paralelamente, o momento de aprofundamento do humanismo nas relações internacionais (com a descolonização, a criação da ONU, a produção de diversos documentos internacionais e a reconstrução da Europa em um modelo de democracias sociais economicamente integradas). Nesse novo contexto, a hegemonia é potencialmente desgastante. Em um mundo de direitos humanos e liberdade para as novas nações, seria preciso legitimar o poder internacional. A diplomacia do canhão, que vitimou a China no século XIX, por exemplo, não pode mais ser tão crua. Ocorre que os países, Estados Unidos inclusive, não se fizeram tão desinteressados quanto a nova ordem internacional poderia fazer supor. Acho que era mais fácil para a Inglaterra e França no século XVIII do que para os americanos hoje.

Eu já estava querendo lhe perguntar isso há algum tempo: a quem queira conhecer os diversos aspectos e épocas da história americana, quais são, na sua opinião, os dez livros mais úteis e interessantes?

São muitos livros de História e não li mais do que alguns poucos. Existem episódios da História dos Estados Unidos que são importantes pela influência sobre outros e que, nem sempre, temos tanto conhecimento. Acho que, de modo geral, a questão racial, o federalismo e a expansão territorial influenciam a maioria dos eventos. Além do mais, a expansão econômica posterior à Guerra Civil é determinante. Recentemente, o realinhamento dos partidos, com a Nova Direita, durante a década de 1970, ainda pauta a política americana. No meio disso, as presidências de Roosevelt, que redefiniram a relação entre estados e união, governo e sociedade e entre os poderes. O New Deal aumentou as competências da união, a intervenção do governo e os poderes da presidência.

Vou preencher minha lista, então, dentro desses limites, com os dez mais recentes que li: 1. From the New Deal to the New Right (Joseph Lowndes); 2. Kissinger (Walter Isaacson); 3. The Unwinding – An Inner History of the New America (George Packer); 4. The Transformation of Virginia (Rhys Isaac); 5. Washington (Ron Chernow); 6. Justice for All: Earl Warren and the Nation He Made (Jim Newton); 7. John Adams (David McCullough); 8. The First Salute (Barbara Tuchman); 9. Benjamin Franklin (Walter Isaacson); 10. The Dark Side (Jane Mayer). Acompanho os livros que vão sendo publicados pela New York Review of Books e pela parte de livros do New York Times e do Washington Post. A produção editorial é grande por lá e, com a internet e o livro eletrônico, é grande também o acesso tanto aos livros quanto às análises sobre eles. A NYRB é especialmente interessante. Uma coisa curiosa na lista acima. As biografias de Kissinger e Franklin são do mesmo autor da biografia do Steve Jobs.

Mudando de assunto, onde você passou sua infância? Que lembranças traz daquela época?

Passei minha infância em Belo Horizonte, no bairro Gutierrez. O que mais me chama atenção quando penso na minha infância é a mudança e evolução do mundo. Vejo minha infância como um mundo de poucas coisas. Não por limites financeiros, estritamente. Era uma mundo de refrigerante só uma vez por semana, restaurante no dias das mães, três ou quatro canais de televisão. Segunda-feira, todo mundo tinha visto os Trapalhões. Era todo mundo muito dentro dos mesmos limites. Especial do Balão Mágico, uma vez por ano, deixava a criançada ansiosa.

Por outro lado, o mundo ficou mais violento, ou, ao menos, mais medroso. Sou mais medroso hoje, como pai, do que meu pai era comigo. Havia um clube no meu bairro e eu chegava lá sozinho, andando. No primário já ia de ônibus sozinho para a escola. Fiz o primário em uma ótima escola pública. Mas, como não era essa facilidade de um pai ou mãe ficar combinado com o outro algo para fazer com as crianças, as amizades da escola ficavam mais na própria escola. Fora dela, a infância era o clube e os amigos do prédio. Futebol e playmobil. Minhas filhas iriam morrer de tédio. Não havia tanta preocupação em dar ocupação para a criança o dia inteiro. Outra coisa que eu lembro era banana amassada com farinha láctea. Comia e ainda jogava açúcar por cima. Não deve ser algo tão estranho para quem gostava de comer leite condensado congelado.

Pois é. Você é mineiro, formado em Direito pela UFMG, e adotou São Paulo como a sua cidade. Não se sente bem em Minas Gerais? O que foi buscar em São Paulo que nosso Estado não lhe ofereceu?

Minha relação com São Paulo é romântica. Minha mulher é daqui. Não a tivesse conhecido, provavelmente não teria vindo para cá (talvez nem fosse procurador). Fora esse motivo pessoal, desenvolvi uma relação muito boa com São Paulo. Quanto mais agora que tenho filhas e elas são daqui. Logo cedo, cheguei à conclusão que não seria preciso escolher. Pode-se ter os dois Estados e as duas capitais no coração. Nossa capacidade de se sentir bem em um lugar não é limitada assim. Talvez a grande mudança seja mudar. Estar em outra cidade exige a reconstrução da rotina e das relações (tanto as novas, quanto as antigas). Acho que isso é uma oportunidade. Costumamos estudar e trabalhar com pessoas com um contexto parecido com o nosso. O mundo é muito grande, as pessoas muito diversas e isso nem sempre nos provoca.

Minha formação foi toda em Belo Horizonte. Minha profissão toda em São Paulo. O que ocorre, de alguma forma, é a ligação afetiva com Belo Horizonte paralisar um pouco minha percepção da cidade. Sempre que vou, procuro me relacionar com o passado, rever a família e antigos amigos. A ideia acabou invertida, um pouco. Hoje é em Belo Horizonte que vou buscar algo, mas algo mais antigo. Como é natural, acabo desenvolvendo meus planos para a cidade onde moro. O que não me impede de reconhecer que as duas cidades sejam realidades algo distintas. Fora o que a gente pode imaginar da diferença de tamanho (todo mundo sempre pensa no trânsito e violência), vejo uma diferença grande. São Paulo é uma cidade com muita gente chegando. Há empregos e as pessoas pensam mais nas carreiras. Belo Horizonte é uma cidade de servidores, profissionais liberais e empresários locais, principalmente. A vida das pessoas em Belo Horizonte é mais linear, sem muitas mudanças de emprego e de cidade, e as relações fora do ambiente de trabalho acabam sendo mais importantes. Provavelmente estou errado nisso. Mas quero arriscar compartilhar uma impressão para não parecer murista.

Não estou bem certo de que você seja ‘murista’, mas é certamente um ótimo humorista. Você é bem humorado também pessoalmente? Tem preferência por algum humorista em especial? Qual foi a sua ‘escola’?

Minha escola é minha família. Em casa, somos seis irmãos e o ambiente nunca foi muito sério. Depois foi o colégio. Fazendo uma conexão com a pergunta anterior, não deve ser o que as pessoas imaginam, mas existe muita brincadeira em Belo Horizonte. O mineiro se sente confortável com os amigos (vão falar que a culpa é do bar). Sempre percebi assim. O engraçado é que sempre pensei no humor e na brincadeira como algo natural, do encontro com pessoas. Não sou tão vinculado ao humor como arte ou produto. No meu tempo livre, nem sempre me preocupo com coisas humorísticas.

Hoje, praticamente parei de assistir televisão. Minhas últimas séries foram dramas, como o Breaking Bad – que achei sensacional. Gosto de ler, mas não leio quase nada humorístico. Para o humor, prefiro os meios visuais. Meu programa preferido é o Monty Python. Na década de 1990, passava no Multishow. A televisão por assinatura trouxe o seriado. Antes, o grupo era conhecido mais pelos filmes. Apesar do Monty Python ser da década de 1960, 1970, prefiro, de modo geral, o humor de hoje. Não sei se é assim, mas poderia arriscar que o humor tem melhorado. No cinema não vejo muito. Os seriados hoje são mais engraçados e o tamanho do seriado é ideal. O formato do filme é muito longo – embora goste de animação. Agora que sou pai, por exemplo, levo minha filha para ver os desenhos no cinema com prazer, embora os filmes sejam infantis. Isso deve querer dizer algo sobre minha maturidade.

É você quem está dizendo isso… Mas, ainda dentro desse assunto, você deve ter acompanhado algumas críticas feitas, nos últimos dois anos, a alguns comediantes brasileiros. Segundo a compreensão de alguns, alguns deles extrapolaram os ‘limites do humor’. Quais são os limites do humor, Márcio?

Sim, eu acho que existem limites para o humor. O que complica a discussão no Brasil é que nos falta uma tradição de discussões sobre a liberdade de expressão. Eu gosto de ler sobre liberdade de expressão e, de um modo geral, se reconhece ao humor um espaço mais amplo do que às demais formas de expressão. Nosso problema é que costumamos ver a equação apenas do lado das suscetibilidades. Se a expressão sempre perde espaço para as suscetibilidades de quem se sente ofendido, não há verdadeiramente liberdade de expressão. Outro problema é a centralização da discussão em determinados nós de verdade. O sentido da liberdade de expressão é a descentralização. A liberdade de expressão provavelmente fica mais importante agora que a intervenção do Estado e do Direito ficou mais ampla. É o espaço da expressão que permite a dinâmica de uma sociedade engessada pelo jurídico e a manifestação da individualidade em um espaço de predomínio do público.

Além do mais, o poder público tem diversas competências, mas ainda não tem a elevação para se permitir ditar a verdade. Há de certa forma uma inversão. A liberdade de expressão é um espaço de debate que permitia, inclusive, o controle do público. Hoje é um fundamento para o controle pelo público. Não discordo de quem diz que o erro se descobre com mais expressão e não com menos. Quanto mais reprovação e mais censura, menos desenvoltura há para se falar. É o que a doutrina chama de efeito resfriador. Quem enxerga a reprovação de alguém que falou, vai preferir ficar calado. Não é a mensagem do Direito cultivar o silêncio. Quando pautamos a expressão em uma sociedade, escolhemos o melhor discurso antes do próprio debate. A comunicação não vale apenas para o que já julgaram merecedor de aprovação.

Mas, mudando de assunto. Sobre seu interesse pelo Código de Defesa do Consumidor. Você também passa raiva com as operadoras de telefonia celular e de TV por assinatura? Acha que o sistema brasileiro de proteção ao consumidor é eficiente para coibir os abusos que ainda existem nesse contexto?

A realidade do consumidor no Brasil não pode ser boa. Antes de chegar no texto do Código do Consumidor, já é ruim. O Brasil é um país muito caro. Não sei se é culpa do modelo de substituição de importações. Embora o país seja industrializado e produza boa parte dos bens de consumo vendidos aqui, os preços são anormais. A Copa do Mundo não me deixa mentir. A primeira percepção do turista é o custo das coisas. O mercado de consumo no Brasil não funciona para produzir utilidade para o consumidor. Não pode haver outra conclusão em um país em que, de um lado, os bens são caros e, de outro, sua qualidade e variedade muito limitadas. Nos setores regulados, isso é pior. Aí, com as barreiras da regulação, a lógica é, menos ainda, o consumidor. Interessa mais para a firma em um setor regulado se preocupar com a regulação do que com o consumidor. É a regulação que gera o lucro, pois o consumidor tem apenas as opções das empresas autorizadas por ela. Se o consumidor não tem opção de correr, o interessante é saber em quais condições o regulador vai exigir a prestação.

Além do mais, as demandas consumeristas não funcionam bem na Justiça. Se a regulação não funciona, é muito desinteressante para o consumidor ir para o Judiciário. Imagine a relação entre custo e benefício de se pagar um advogado para discutir o valor de uma conta de telefone. Isso sem contar que o Judiciário, além de todos os seus problemas, não funciona bem para demandas privadas. Tanto assim que, nos contratos empresariais, muita coisa já migrou para a arbitragem. Além de lento, o Judiciário brasileiro é dominado pela Fazenda Pública. Basta ler o Diário de Justiça. As Turmas do STJ de Direito Privado, na minha opinião, geram menos esclarecimentos sobre o Direito Privado do que o correspondente em Direito Público e Penal nas demais turmas.

E a última pergunta: como você convenceria um agricultor da zona rural de Inhapim, MG, de que vale a pena investir R$ 6,1 bilhões anuais (segundo a nossa proposta orçamentária para 2015) no funcionamento do Ministério Público Federal?

Os ministérios públicos dos Estados são muito mais capilarizados. É uma daquelas coisas do federalismo brasileiro, onde a pena e a verba são da União, mas os braços são do Estado. Teria que pedir alguma dica para o Promotor de Justiça. Minha primeira necessidade seria a de entender o comparativo do que seriam esses 6 bilhões. Como são gastos 6 bilhões no Brasil? Um estádio? Um astronauta? Um financiamento público? Certamente não o convenceria se tivesse que explicar quanto tempo um processo precisa até acabar ou quantos crimes são descobertos. Mas eu acho que o Ministério Público Federal tem uma função importante para explicar não apenas seu orçamento, mas o orçamento da União. O MP é uma de nossas grandes construções e tem um efeito que deveria derramar. Se o Ministério Público trabalhar bem e controlar o respeito aos princípios da República, como é sua função, estaria fazendo valer seu orçamento e protegendo o uso correto dos outros. Mas acho que, como em uma piscina, não se consegue boiar acima do nível da água – embora não seja necessário afundar.

 

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