“A vida já valeu e valerá a pena até o último suspiro”. Vejam a segunda parte da entrevista com Osório Barbosa.

Para Osório, a fala gostosa do português do Brasil não está morta e enterrada. Crê, pelo contrário, que ela está cada vez mais viva: “Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm”.

Osório passou sua infância nas casas flutuantes dos rios de Maraã, AM. Lembrando Fernando Pessoa, diz que “tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos eles através dos estudos”. Além de evocar o poeta português, o olhar ao retrovisor trouxe também à luz as travessuras precoces da criança lá de trás…

Discípulo dos Sofistas gregos e de Marcos Bagno, Osório é por isso crítico de Platão e dos puristas da língua, porque, segundo compreende, eles não souberam e não sabem valorizar a liberdade e as incertezas da vida.

Esta é a segunda e última parte de nossa entrevista — que faz parte de nosso 4º encontro. Imperdível…

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

Bruno: Marcos Bagno ganhou sua simpatia por denunciar o que chama de ‘preconceito linguístico’. Você se sente alvo de ‘preconceito linguístico’, Osório?

Osório: Pois é. O doutrinador Marcos Bagno, no seu livro ‘Preconceito Linguístico’, demole – ele é o ‘demolidor’ – todas as pessoas, inclusive gramáticos, que dizem que escrevem certo. Ele arrasa com o Pasquale Cipro Neto, que escreve em jornais, e também com outros que escrevem em jornais, como Napoleão Mendes de Almeida. Ele mostra nesse livro que eles escrevem equivocadamente, que eles escrevem teoricamente errado. Para mim não é errado; eles simplesmente se tornam errado quando condenam quem escreve errado, porque eles escrevem também. Então esse é um dos problemas que eu sempre tenho com o preconceito que se tem em relação às pessoas que escrevem teoricamente errado. O Marcos Bagno traz um exemplo interessante. O nome ‘Geraldo’ geralmente se escreve com ‘l’. Mas principalmente aqui em São Paulo, aqueles a quem as pessoas preconceituosamente chamam de ‘caipira’ quando falam dizem ‘Gerardo’. E aí vem o preconceito: ‘Ah, ele fala Gerardo em vez de Geraldo’, dizem os preconceituosos para desqualificar e galhofar do falante. E o Marcos Bagno diz que quem está errado é quem diz ‘Geraldo’, porque o certo de se pronunciar e de se escrever no Brasil seria ‘Gerardo’, já que, ele diz, o nome vem do alemão ‘Gerard’. E assim o Marcos Bagno dá uma aula…

É muito engraçado quando uma pessoa como o Adoniran Barbosa fez os seus sambas – e outros ainda fazem hoje – falando da forma que o Adoniran fala maravilhosamente, ninguém o condena. Vocês já viram o Adoniran ser condenado pela forma como ele falava: ‘talba de tiro ao álvaro’? Então é maravilhoso o que ele deixou! E ninguém condena…

Bruno: Mas é claro que ninguém condena, Osório. Isso é arte em estado puro… O Adoniran era uma pessoa instruída. Quem foi capaz de criar esse verso tão cheio de imagens — ‘de tanto levar flechada de seu olhar meu peito parece tábua de tiro ao alvo’ — está evidentemente brincando gostosamente com a linguagem, com a liberdade do artista. Certamente não há mesmo nenhuma censura a fazer a ele por isso…

Osório: Sim! Mas foram os poetas que nos ensinaram e nos ensinam! Por que, então, estamos proibidos de imitá-los?

Você só condena quem fala e escreve errado quando você quer menosprezar, você quer desqualificar a pessoa. Quando é o seu patrão a falar errado ou a escrever errado, você vai obedecer, não o critica, e até acha bonito. Se o critica é por trás, covardemente. Se você tem interesse em comprar, verá uma placa lá escrito ‘Vende-se casas’, quando o correto seria ‘Vendem-se casas’. Mas você quer comprar e não vai dizer para o seu vendedor que ele escreveu errado. Porque talvez ele aumente o preço e você não terá condições de comprar. Então você não vai questionar. Quando lhe interessa você nunca questiona. Você só questiona quando quer desqualificar. Isso acontece muito… uma vez em um show vi o Caetano Veloso, um show pós-abertura política, dizer a uma repórter que perguntou a ele: ‘Caetano, como foi sair sobre vaias?’. O Caetano parou e disse: ‘Não é sobre vaias, mas sob vaias’. Quer dizer: ele humilhou de certo modo a repórter e não respondeu ao mote da pergunta, que era ‘como ele se sentia de estar sendo vaiado pelas pessoas naquela sua apresentação’. E ficou por isso mesmo. Ficou mal para ele. Ele ficou mal na fita. Mas quis também queimar o filme da repórter.

É por nos mostrar esse aspecto da comunicação que o livro do Marcos Bagno me encanta, livro que todas as pessoas de boa-fé, de boa índole, deveriam ler para compreender o que ele coloca lá. E eu sou apenas um discípulo desse grande mestre.

Bruno: Eu não conhecia esse incidente com o Caetano. Mas, veja, acho que se a gente se coloca no lugar dele, entendemos em que nível ele recebeu a pergunta. O camarada provavelmente estava envergonhado depois de receber vaias do público, e aí vem a repórter ‘pisar em cima dele mais um pouquinho’… Talvez tenha sido uma forma de dizer ‘desça daí, minha filha, que você não está acima de mim, sobre mim, mas sob mim‘. Eu até acho que a repórter tenha sido sincera na pergunta, mas o contexto em que ela foi feita evidentemente prolongou a situação vexatória pela qual ele havia passado. E pior: provavelmente ele ainda estava sob o efeito emocional das vaias…

Osório: Concordo contigo nesse caso específico, mas o que quis dizer é que ele esse tipo de comportamento é o padrão, infelizmente!

Bruno: Mudando de assunto, mas nem tanto. Os brasileiros têm alcançado, em testes internacionais, os piores índices de qualidade de educação entre os diversos países participantes. Você acredita que a nossa democracia convive bem com a má-qualidade do ensino?

Osório: No Brasil — eu posso falar apenas do Brasil, mas parece que isso acontece em outros lugares no mundo –, preocupa-se pouco com a educação. A gente pode até voltar para a Grécia do Séc. V a.C. Os sofistas foram os primeiros professores de que se tem notícia. E o grande século do conhecimento humano foi esse século. E quem foi o grande governante grego da época? Péricles, que era amigo e protetor dos sofistas. Inclusive há testemunhos de que ele passou um dia inteiro discutindo com Protágoras um determinado assunto sobre um lançamento de um dardo em uma competição que chegou a matar uma pessoa.

A Grécia investiu muito em educação, educação proporcionada principalmente pelos sofistas. Porque, se a gente analisar, Platão e Aristóteles praticamente não fazem parte do Século V a.C. Eles já são do Século IV a.C. E a idade de ouro grega foi dominada pelos sofistas. Então a democracia grega ‘aplicou’ muito em educação, contribuiu muito para a educação. Esse ensinamento grego é praticamente repetido pelos americanos do norte, que investiram muito em educação e ainda investem. Onde há uma grande ideia, uma pessoa inteligente, o que eles fazem? Eles arregimentam e levam para trabalhar para eles nos Estados Unidos, dando condições, dando laboratório, pagando um bom salário etc. Então eles aprenderam isso principalmente com os gregos do Século V a.C. Praticamente todos os sofistas vieram de outras cidades-estado gregas, para se estabelecer em Atenas, que era a capital do império e a cidade mais rica, onde a riqueza abundava. A mesma coisa acontece ainda com os Estados Unidos.

Se você olhar para os países periféricos, principalmente esses países ricos em petróleo, que desde 1973 têm muito dinheiro, que grande universidade árabe foi construída nesse período com todo esse dinheiro dos petrodólares. Na Venezuela, que nada em petróleo, o que foi feito em prol do ensino? Nada. A grande desconfiança que vem dos ensinamentos — e em compartilho com isso – é que ninguém quer que as pessoas se instruam. Os governantes não querem que as pessoas se instruam, porque têm medo de perder poder…

Bruno: Ah, pára, Osório! Essa teoria não está meio ultrapassada? O Lula e a Dilma estão aí para provar que ninguém precisa de conhecimento, no sentido escolar do termo, para chegar ao poder… Não compreendi bem do quê você está falando. Gostaria que você me explicasse melhor essa estória de ‘medo de perder o poder’. O que tenho visto é que em geral os iletrados não querem estudar a não ser o mínimo possível para conseguirem um emprego – e não vejo como é que um poder, aliás, qual poder?, possa impedi-los de sentar em uma biblioteca pública ou acessar vastas informações pela internet e se tornarem sábios e eruditos à maneira clássica ou à maneira contemporânea, à sua escolha…

Osório: Além de bom perguntador você é também gracejador, meu caro! A história seria longa, mas pode ser resumida no seguinte: você prefere que seu filho seja letrado, iletrado ou letrado apenas o suficiente para para conseguir um emprego? Eu, particularmente, desejo para o filho dos outros o mesmo que quero para os meus. Daí…

Bruno: Você deseja isso aos filhos dos outros mesmo contra a vontade expressa deles? Complicado isso, não? No varejo isso pode funcionar, mas no atacado, em nível de civilização, certamente se gastará muita energia nessa fantasia… Mas você estava falando de ‘disputas por poder’; e ia começar a falar da Grécia antiga…

Sim, porque esse tema nos leva de volta à Grécia: por que Platão atacou tanto os sofistas? Os sofistas ensinavam uma coisa básica às pessoas: falar, discursar. E isso era importante por quê? Porque as pessoas na democracia podiam participar com a palavra das assembleia e defender a si e aos outros nos tribunais. E isso não era importante para a oligarquia da qual Platão fazia parte. Ele era um grande oligarca, de uma família rica e tradicional. Quando os pequeno-burgueses puderam pagar por educação e pagaram aos sofistas para que os ensinasse, com isso o poder começou a mudar de mão, ou a ter a possibilidade de mudar de mão, e isso incomodou muito as pessoas, dentre as quais Platão.

Bruno: Você tem certeza que Platão implicava com os sofistas por causa de uma disputa pelo poder político? Não imagina que Platão e Aristóteles tinham consigo uma intenção mais alta e mais duradoura?

Osório: Eu não tenho dúvidas disso! Platão era um oligarca inimigo da democracia, como prova Popper no ‘A sociedade aberta e seus inimigos’. Há outros autores que dizem o mesmo.

Platão foi para Siracusa apoiar um oligarquia! Mas o fundamental a provar isso é o uso que ele, Platão, faz, de tudo que foi inaugurado pelos sofistas. Exemplo: ele condena a retórica dos outros, mas ele é o mestre dela! Ele estipula uma diferença intelectual absurda entre boa e má retórica. ‘A boa’, diz implicitamente, ‘é a minha!’

Para encerrar o tópico, Platão diz nAs Leis” (716c) o seguinte: “Aos nossos olhos a divindade será a medida de todas as coisas’ no mais alto grau”! Ou seja: dirigiu para onde ele quis o frase imortal de Protágoras, que é tido como o maior dos sofistas — “O homem é a medida de todas as coisas”.

Em relação ao Brasil, e resumindo, eu acredito que a democracia brasileira está a dever muito à educação no país. Nós temos de melhorar a educação. Mas a educação faz parte de todo um sistema. E nós fazemos parte de um sistema capitalista que cada vez mais impede praticamente as pessoas de estudarem; ou de terem o apoio da família para estudar. Os pais estão trabalhando. As mães em um lugar e o pai em outro muito distante. Poucos vêem os filhos. Entregam os filhos às escolas e as escolas não dão aquela educação, digamos, completa a bem formar o cidadão.

Hoje a criança vai para uma escola e fica quatro, cinco horas, sentada. Uma criança que está acostumada a mexer no celular, no computador, e que vê televisão, tem de ficar sentada ouvindo o professor fazendo ‘blá, blá, blá’. E isso algo inconcebível mas que ainda acontece. Então, tem de haver uma reforma completa, para ver como é que se pode dar uma melhor educação ao povo brasileiro. Esse déficit não é culpa do cidadão, mas do Estado, que às vezes parece não querer ver seu povo devidamente educado, letrado, porque isso vai incomodar o poder.

Bruno: Mas, Osório, o sujeito ativo no processo de aprendizado é o aluno. Acho muito simplista buscar os culpados pelo fracasso da educação brasileira ou nos alunos, ou na família ou no Estado. Culpar o Estado e isentar os alunos me parece ‘o fim da picada’. Estou errado?

Osório: Aí você já quer quase um milagre! No meu caso particular, foi o que aconteceu, mas não vou falar da minha história de interiorano do Estado do Amazonas, com pai analfabeto e mãe semi!

Quando eu cobro a participação maior e efetiva do Estado não quero nem falar de fardamento, comida, livros e cadernos etc, mas, basicamente, de professores competentes e estimulados, além de pais que possam efetivamente ajudar esse ‘sujeito ativo’, pois até que a criança se torne ‘sujeito ativo’, na e para a educação’ ele não passa de um ‘objeto’! O vulgo costuma dizer que é de pequeno que se torce o pepino!

Bruno: Manuel Bandeira, em ‘Evocação do Recife’, diz que “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo \ Língua certa do povo \ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil \ Ao passo que nós \ O que fazemos \ É macaquear \ A sintaxe lusíada”. Você acredita que esse ‘falar gostoso o português do Brasil’, do Recife da infância de Bandeira, está definitivamente morto hoje?

Osório: Veja como esta sua pergunta e a lembrança de Bandeira, o maior entre os gigantes, me dá razão quanto à sua pergunta anterior! A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros \ Vinha da boca do povo na língua errada do povo. Não é só dos meios — livros, jornais, computadores etc — que a criança precisa no processo de aprendizagem. Ela precisa, mais, é de gente, pois é o povo, logo, a cidade, o principal mestre de todos nós!

Mas, voltando à sua pergunta, digo: Não! Muito pelo contrário! Ele está cada vez mais vivo! Quem for em uma feira ambulante, sai de lá, sem pagar ingresso, como se tivesse saído de um desses shows modernos de stand-up, com as piadas que são ditas em um linguajar que causa graça, que causa alegria. Não! A gente é que tenta matar isso. As pessoas de ‘cultura’ tentam matar essa beleza, esse gosto de falar, que as pessoas têm. Porque você começa a policiá-las. Se a pessoa fala e você diz: Olha, isso não é assim! Olha, isso é assado!, como é que a pessoa vai se comunicar? A pessoa vai se retrair! Há uma retração das pessoas com esse policiamento idiota. É, na verdade, um policiamento idiota, porque você acaba impedindo o diálogo. E você faz isso para humilhar a pessoa, e não para educá-la, para instruí-la. Mas como é que você vai interromper um verso porque a pessoa falou ‘malmita’ e não ‘marmita’?

Outro dia eu estava em um restaurante pequeno e uma pessoa chegou e disse: ‘Eu quero almoçar, e quero que você prepare uma malmita para eu levar’. Veja se o dono do restaurante vai dizer – só se fosse um idiota – ‘olha, não é malmita, mas sim marmita’… Ele ia espantar o seu cliente! Nessa hora ninguém é preconceituoso, não é? Mas se fosse para humilhar, se fosse um namorado da filha dele, ele teria dito: “Olha, eu não sei o que você está pedindo e então não vou lhe atender”. Então, pelo contrário, o linguajar não está morto, ele está vivíssimo! O que falta é que as pessoas de boa vontade retratem isso em seus escritos. Porque ninguém quer retratar justamente por causa desse policiamento absurdo, que insiste em dizer que tudo está errado. Quando na verdade não está. Se você compreendeu uma mensagem, ela está perfeita, ela está correta. Não importa se você disse ‘malmita’ ou ‘marmita’.

Bruno: O que você tem lido ultimamente?

Osório: Leio vários livros ao mesmo tempo! Estou lendo agora, ou terminei de ler: i) Um Ano na Provence, de Peter Mayle; ii) A História da Escravidão, de Olivier Pétré-Grenouilleau; iii) A História na Escravidão, de Christian Delacampagne; iv) Federico em Sua Sacada, de Carlos Fuentes; v) Nietzsche e o Problema da Civilização, de Patrick Wotling; vi) A Filosofia Antes de Sócrates, de Richard D. McKirahan; vii) História do Riso e do Escárnio, de Georges Minois; viii) Ao Lado de Vera, de Alberto da Costa e Silva, muito chato, por sinal; ix) O Nomos da Terra etc, de Carl Schmitt; x) Introdução ao Estudo do Direito, do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Estou relendo, na verdade, lá pela sétima vez; xi) outros, de poesia, ao mesmo tempo. Isso tem me dado sentido na vida e mostrado que vale a pena continuar a estudar, pois amplia nossos horizontes e nos faz até mais tolerantes com os outros e conosco mesmos, pois cada vez percebemos que sabemos menos, embora, muitos vezes tenhamos a percepção de que sabemos mais.

Bruno: Você se identifica com autores como Charles Bukowski e Henry Miller?

Osório: Nunca ouvi falar deles! Acho que já li alguma coisa do Charles Bukowski. Talvez por falta de conhecimento, por falta de apresentação, posso dizer que não os conheço. Leio outros poetas, claro, mas eu desconheço esses dois.

Bruno: Que poema melhor representa seu sentimento em relação à vida?

Osório: Sobre o vidro da mesa onde trabalho, desde que eu pude usar uma mesa em meu trabalho — embora eu já fizesse isso em minha casa, em um muralzinho –, eu coloco o poema que melhor representa meu sentimento em relação à vida. Não é um poema muito grande. Na verdade é uma quadra de Fernando Pessoa, do poema Tabacaria, que diz o seguinte: “Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada / A parte isso, tenho em mim todos os sentimentos do mundo“. Esse é poema que guia a minha vida, o meu dia a dia e o meu atuar no teatro da vida.

Bruno: Você é um amazonense que adotou São Paulo como sua pátria. Você ainda tem parentes em sua terra natal? Retorna com frequência a Maraã?

Osório: É verdade. Tenho parentes ainda no Amazonas, especificamente em Manaus e em Maraã. Sempre que posso volto a Maraã, justamente para ouvir aquelas pessoas que falam “errado”, que contam histórias erradas, mas que encantam e que me rejuvenescem e que apagam, de certo modo, a maldade da minha alma; e que me fazem feliz com suas companhias. Pessoas muitas vezes sem estudo algum, mas de uma sabedoria exemplar.

A Scarlett O’hara diz, no filme ‘E o Vento Levou’, que sempre que está fragilizada ela volta para a fazenda dela, chamada Tara, para buscar forças. Eu sempre que posso vou a Maraã também, com a mesma finalidade, isso desde antes de conhecer o filme.

Bruno: Onde passou a infância, Osório?

Osório: Passei a minha infância no eixo Maraã-Tefé-Manaus. Eu fui fabricado em Maraã, parido em Tefé e minha mãe, após o parto, voltou para Maraã, e aí eu fiquei até os dezesseis anos. A escola não era de todo estruturada em Maraã e então eu tive de estudar em Manaus, para onde fui aos dezesseis anos. Meu pai me levou para morar na casa de um tio, que aliás me deu o nome, o tio Osório.

Posso dizer que minha infância foi toda bem vivida em Maraã. Eu saía de lá por períodos curtos, mas sempre voltava para lá.

Bruno: Qual é a lembrança mais antiga que você tem?

Osório: A lembrança mais antiga que eu tenho? Engraçado! A gente não consegue esquecer certas coisas; e certas coisas que a gente não queria lembrar sempre vêm à mente. Essa lembrança que eu tenho é uma lembrança sexual. É a lembrança mais primitiva que eu tenho. Eu não sei como isso não sumiu da minha mente. Eu era ainda muito pequeno e a minha avó morava sobre um flutuante no Paraná de Tefé – flutuantes são aquelas casas sobre as águas que existem na Amazônia e em outros locais. Tanto é que eu nasci em um desses flutuantes e o meu nome era para ser Moisés, pois eu nasci sobre as águas. Mas depois mudaram meu nome para Osório na hora de me registrar.

Pois bem. Eu estava nesse flutuante de minha avó, D. Pretinha, e junto desse flutuante ficava um campo/pasto de gado. E eu me lembro que dois primos meus, dois irmãos, me chamaram, me pegaram pelas mãos e me levaram para o campo. Eu era muito pequeno, tinha uns quatro ou cinco anos, não me lembro bem. Por isso é que eu digo que é uma lembrança engraçada. Freud certamente explica. Nesse campo tinha uma casinha que eles tinham feito de mato, de árvore, folhas. Sei que a irmã deles deitou e ele me deitou sobre a irmã dele. A partir daí apaga tudo [na minha memória]. Eu não sei nem o que me aconteceu. Eu não sei sequer se aconteceu alguma coisa. Mas essa é a minha lembrança mais primitiva.
Em nossa carreira, você é da geração dos anos 90. A nova geração de procuradores, recém-empossados, tem algo a aprender com os colegas mais antigos? E tem algo a ensinar?

Sim, nós temos muito a aprender com eles e temos também muito o que ensinar. Muitos colegas que assumem hoje o Ministério Público Federal têm mais idade que os colegas tinham quando eu assumi. A idade na carreira pode ser maior que a idade cronológica. Eu estou com 52 anos. Por exemplo, o Rafael Siqueira de Pretto, que também é da geração dos anos 90, quando ele assumiu como procurador da República tinha 21 anos, apenas. Dez anos depois estavam tomando posse colegas de cinquenta anos. Então a idade biológica dos que estão entrando pode ser bem superior à idade daqueles que já estão aqui. Mais novos são mais antigos, na carreira!

E essas pessoas, todos nós, trazemos da vida os aprendizados. Não especificamente sobre o MPF. Mas esse aprendizado que vem da vida lá de fora é muito útil aqui dentro. E nós podemos obviamente compartilhar com os colegas que estão chegando agora aquilo que nós aprendemos aqui.

É claro que eu já fiz isso, todos nós fazemos: quando chegamos, achávamos que quem está aqui dentro não sabia de nada, estava ultrapassado e que quem estava chegando é que era o dono da verdade, era quem iria revolucionar. Esse pensamento é bom, é positivo, mas saibam que nós já passamos por praticamente tudo o que vocês ainda vão passar. Coisas que para os senhores, para os recém-chegados, é novidade, nós já vimos há uns vinte ou quinze anos. Isso não quer dizer que os senhores não devam levantar o problema, até para que a gente divida a resposta que na época nós encontramos. As respostas, como eu tenho dito nesta entrevista, são sempre respostas inconclusas. Não somos, eu pelo menos eu não sou, donos da verdade. Então estamos aqui sempre para aprender, e também para ensinar um pouquinho, diria que a palavra melhor seria compartilhar — não é nem ensinar, portanto, mas compartilhar – como determinadas questões receberam determinadas respostas, nas épocas em que formuladas. Podiam estar certas como podiam não estar. Não há nada definitivo, como eu disse, e as questões poderão ser aperfeiçoadas.

Hoje nossa rede de computadores nos ajuda muito quanto a isso. Logo que entrei no MPF eu fui jogado em Roraima e lá fiquei sozinho durante algum tempo. E a nossa rede ainda não funcionava. Então eu não tinha com quem compartilhar minhas angústias, minhas preocupações, minhas dúvidas. E isso não acontece hoje. Hoje se você, colega que está lá em Pau dos Ferros, RJ, ou em Tefé, AM, tiver uma dúvida, coloca em nossa rede a sua pergunta sobre como é que foi solucionado determinado problema, se alguém já o enfrentou anteriormente, e em poucos minutos você tem pelo menos um caminho a trilhar, uma ideia. Porque um colega que já passou por aquilo compartilha um ensinamento sobre o trabalho dele. Você terá um guia tanto para seguir naquele caminho como para mudar de direção. Porque às vezes é bom a gente saber determinadas coisas para a gente não seguir aquela trilha. Por exemplo, eu assino determinado jornal aqui de São Paulo, considerado um jornal de direita. Alguém me questionou por que eu faço isso. Eu disse ‘para fazer justamente o contrário do que ele manda fazer, o que ele determina, o que ele sugere’.
Então nós temos muito ainda para compartilhar, e os colegas que estão chegando agora, que sejam bem-vindos, e que nos ensinem, que não tenham temor de compartilhar, porque todos nós estamos na terra para errar, e para acertar muito pouco — a gente dificilmente acerta. Mas o importante é ter boa vontade e estar preparado para mudar de curso quando isso for necessário e quando alguém nos mostrar que há uma saída melhor do que aquela que nós imaginávamos que seria.

Bruno: Isso que você disse tem um fundo de verdade. É evidente que do nascimento à morte estamos sempre aprendendo – pelo menos sempre podemos aprender algo novo. Mas você não acha estranho receber os colegas que, em sua maioria, nunca trabalharam como membros do Ministério Público, e lhes dizer: “Estamos aqui para aprender com vocês”? Não acha que existe aí um elemento de renúncia à responsabilidade que os veteranos têm em benefício dos recém-ingressos? Se no meu primeiro dia de estágio acadêmico meu chefe me viesse com essa de ‘estou aqui para aprender com você’ eu não o levaria muito a sério e provavelmente iria atrás de outro lugar onde pudesse aprender alguma coisa…

Osório: Eu, particularmente, prefiro errar pela humildade, sincera! Dizer a um estagiário que eu sei tudo e que ele não sabe nada pode inibi-lo definitivamente! Quando digo isso aos estagiários com quem trabalho, quero incentivá-los a externarem pensamentos seus, que às vezes já me levaram a mudar de rumo.

Tem colega que expõe seus títulos, e até sua genética, para mostrar ao estagiário quem é que manda e quem é que sabe ali! Eu optei por outro caminho! E o melhor, para mim: salvo engano, estagiário meu nunca pediu para mudar de gabinete.

Isso fica mais claro, para mim, quando trato com um procurador da República igual a mim.

Bruno: Daqui a trinta anos você estará aposentado. Se lhe perguntarem por que terá valido a pena viver a sua vida, o que provavelmente você dirá?

Osório: Eu não sei se daqui a trinta anos eu estarei aposentado. Não sei nem se eu chego até lá. As circunstâncias da vida às vezes nos fazem prever uma data longínqua quando na verdade o fim está muito próximo. A única certeza — apesar de tudo o que a gente vem falando aqui dos sofistas, que eram contra esse problema da certeza e da verdade –, a única certeza que ainda permanece como tal é a morte. A gente poderia falar longamente sobre isso, porque tem os espíritas que não acreditam na morte, mas apenas no fim da matéria etc – mas não é o caso. Então não sei se estarei aqui daqui a trinta anos. Pode ser que minha família receba o pecúlio da Associação dos Procuradores antes disso.

Mas supondo que daqui a trinta anos eu esteja aposentado. Eu estou com 52 – então nem são trinta, mas dezoito, quando virá a ‘expulsória’ com setenta anos. Você me pergunta se terá valido a pena. É claro que todos esses anos terão valido a pena. A vida vale sempre à pena. A vida é uma alegria, é uma fortuna, é tudo de bom. A gente vai aprendendo isso infelizmente quando a vida se aproxima do fim. Só aí que a gente vai vendo essa beleza da vida. quando a gente é jovem a vida não tem muito significado. A gente vive tão intensamente que não tem tempo de pensar na vida. A gente pensa muito pouco na vida. Como é bom ser jovem, como é legal ser jovem! – e a gente vê isso quando vai ficando velho. Apesar de eu ainda jogar futebol, ainda fazer um monte de astúcias que eu fazia enquanto menino, sinto que já não tenho a mesma agilidade, a despeito da habilidade em marcar gols e armar jogadas (risos). Mas terá valido a pena porque eu tenho quatro filhos. Daqui a uns dias talvez meus filhos me deem netos. Eu fiz amigos, eu questionei, eu li, eu bebi cachaça – eu não fumo, nunca fumei, mas eu bebi – cachaça (toda a espécie de bebida alcoólica está incluída no gênero cachaça), eu chorei, eu sorri, eu amei (fui amado!), eu li poesia, eu li filosofia, eu fiz tudo isso.

Mas o fundamental, que me fez inclusive aceitar esta entrevista, é aquilo que eu tenho tentado fazer na minha página na internet, no meu blog, que é o seguinte: eu não sou exemplo para nada, talvez seja uma das piores pessoas do mundo, mas eu queria que meus filhos seguissem o caminho que eu trilhei, que é o caminho dos estudos; queria que eles estudassem. Eu já lhe disse que não vou deixar herança nenhuma para eles a não ser o estudo. E gostaria que eles aproveitassem isso. Então, o que eu espero deles é o estudo.

Mas eu não espero isso apenas dos meus filhos, porque eu não quero ver um mundo feito apenas por meus filhos. Eu quero que os filhos dos outros tenham as mesmas oportunidades que os meus filhos tiveram. Eu estudei com muita dificuldade. E comparando a realidade deles hoje com a que eu tive, meus filhos estão em ‘berço esplêndido’.

Mas quando eu falo tudo isso, as pessoas para as quais eu mais me volto são as de Maraã, lá da minha terra. Para mostrar a elas que embora eu não seja nada, como disse lá no poema do Fernando Pessoa, e não queira ser nada e que jamais serei nada, eu tinha para a minha vida todos os sonhos do mundo. E eu praticamente realizei todos os meus sonhos através dos estudos: já estive em hotéis cinco estrelas, já fui para a Europa, já comprei carro novo, eu tenho casa, eu como bem etc. Então para quem quase passou fome até na época da universidade, para quem ia às aulas com a mesma camisa por dois dias seguidos, isso é muito, é muito mesmo. Se você olhar para o meu passado, eu sou um homem feliz, um homem rico e realizado.
Então, como eu disse, eu queria que todo menino de Maraã acreditasse nisso. ‘Se você acha que isso é alguma coisa e tem significado para você, estude que você também consegue. E é alguma coisa, sim, porque lhe ajudará a sair da situação de quase-fome que você vive aí’. Lá em Maraã ninguém passa fome, porque você joga o anzol no rio e logo vem o peixe – e você tem a farinha. E com tudo isso você consegue sobreviver. Mas não é só disso que a vida é feita. Você pode estudar e viver no Maraã, claro. Mas você pode estudar e ajudar a vida dos outros também.

Então, se eu puder ser exemplo de alguma coisa, se a minha história puder ser exemplo, gostaria de ficar como exemplo de perseverança para conseguir estudar. Eu queria deixar isso para o povo de Maraã. Eu tenho um filho que se chama Osório di Maraã Barbosa, que até está aqui agora comigo. Eu coloquei esse nome nesse camarada justamente para que eu não me esqueça um só dia de minha terra, essa terra que eu amo tanto. E eu queria que todos os filhos de lá estudassem…
Então a vida terá valido a pena se pelo menos um daqueles meninos — vários já fizeram isso ao longo desses últimos anos, eles têm feito isso — saísse de lá para estudar como eu fiz; e que depois voltasse ou ficasse onde quer que seja. Mas que todos saibam que por intermédio do estudo eles podem realizar seus sonhos, sonhos que às vezes são pequenos como eram os meus, mas que eram tão grandes quando eu não tinha nada, que hoje eu me surpreendo.

Então é isso: a vida já valeu a pena e vai valer a pena até o último suspiro. Eu não sei quando será. Espero que demore muito! Mas ela será e vem sendo construída, como eu procuro fazer, com muita alegria. Eu não tenho muitos amigos, mas os que tenho, que são poucos, sabem e me aceitam do jeito que eu sou: questionador, mas sempre leal. Eu procuro ser leal a meus amigos. Se não gosto da coisa, digo a eles que não gosto, que acho que não é aquilo e aí muitas vezes a gente constrói em cima disso melhores relações: eu sabendo do que eles não gostam e eles sabendo do que eu não gosto. E a gente vai vivendo assim.

A vida para mim sempre valeu a pena, valeu a pena desde que eu decidi que ia estudar, e tem valido a pena ao longo da minha vida profissional, que tem sido voltada, e foi voltada sempre, para o mais humilde, para a população que paga meu salário, meus subsídios, e que eu procuro corresponder trabalhando em prol dos mais miseráveis, porque o forte não precisa, ele já tem quem o defenda. Ao pobre, ao miserável, é difícil encontrar uma palavra em seu favor; encontrar alguém que veja que ele é um injustiçado. Para o rico isso é muito fácil. Então, para mim, por tudo isso, a vida tem valido a pena.

Bruno: Agradeço sua participação, Osório! Vá pela sombra!

Osório: A distinção do convite, as recordações e os sonhos que expus, Bruno, valeram a pena e aumentaram minha alegria por ter vivido até aqui. Obrigado!

Veja a primeira parte da entrevista aqui.

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“As artes têm um extraordinário poder de vencer nosso aprisionamento linguístico e chegar aonde as palavras não vão”. Veja nosso bate-papo com Rodrigo Prado.

Por circunstâncias estranhas à sua vontade, Rodrigo Prado já atua há doze anos na área criminal da PRMG, em que reconhece ter participado de iniciativas interessantes, “com potencial transformador verdadeiro, sobretudo na área de crimes financeiros”. Apesar da extrema dedicação a seu ofício, acredita não ter o perfil mais indicado para oficiar na área criminal — opinião, posso assegurar, que não é corroborada por quem conhece seu trabalho. Segundo diz, “por mais reprovável que tenha sido a conduta do agente, por mais necessária que seja a pena, não consigo sentir prazer em razão de sua sujeição a um sofrimento (…). É claro que alguém tem que promover a persecução e faço o melhor que posso para tentar me desincumbir dessa missão”.

Rodrigo diz não botar fé no Direito como instrumento reformador, “mas no potencial construtivo individual de alguns de seus agentes”. Nessa linha, é otimista em relação à atuação do Ministério Público Federal: “Considerando a tradição ministerial de bater carimbos de dilação de prazo e de emitir pareceres sobre representações policiais, penso que avançamos muito. Há dez anos, quem imaginaria que teríamos especialistas na negociação de acordos de cooperação premiada na Casa? Que protagonizaríamos a redação de manuais de investigação ou que discutiríamos, em pé de igualdade com o COAF e a Receita Federal, sobre procedimentos e rotinas internas desses órgãos? Para manter o otimismo, sempre tento olhar para trás e ver como já fomos um dia”.

Esse bate-papo, que foi muito além de uma entrevista, passeou por temas como cinema, loucura e generosidade (uma das coisas em que, aliás, Rodrigo acredita com a força da fé).

Juntem-se a nós neste 25º encontro, de preferência bem sentados e atentos. Eis um colóquio interessante e denso, prenúncio de outros tantos que ainda virão.

Bruno Magalhães — Você é conhecido pela sua extrema exigência com a qualidade e a correção em suas manifestações processuais. Os réus também ‘sofrem’ com esse seu rigor, Rodrigo?

Rodrigo Prado — Se eu entendi bem a que você se refere – o rigor na conferência de cada termo de verificação fiscal, na manutenção do padrão de leiaute da peça, na releitura integral dos autos na fase do art. 402 do CPP — acho que a resposta é negativa. Eu é que “sofro” com um preciosismo que pouco ou nada interfere no resultado da atuação ministerial. Em algumas situações, é claro que essa tendência de exaurir o objeto dos autos pode acarretar algum ônus para os alvos; isto ocorre, sobretudo, nos casos de grande vulto, nos quais se instala um hiato na minha vida e viro madrugadas no gabinete, na esperança de que minha atuação no MPF sirva para alguma coisa, como reaver o produto do crime ou dificultar a vida de uma organização criminosa. Na maioria das vezes, porém, essa pegada obsessiva acaba aproveitando mais aos réus mal representados do que à acusação, pois favorece, por exemplo, a detecção de defeitos na imputação ministerial.

Rodrigo Prado — E quanto a você, Bruno? Se fosse descrever as características que o definem como procurador da República, o que diria?

Bruno Magalhães — Antes de dizer o que me define como procurador da República seria interessante dizer o que, penso, nos define como instituição. Porque é dentro dessa matriz que eu, que cada colega, tem a liberdade de imprimir suas características pessoais. Aliás, eu acredito que é pra isso que nascemos: pra preencher com nossa vida e com a matéria de nossos desejos as estruturas que herdamos de nossa família, das instituições e da sociedade em geral. Apenas um parênteses: é verdade que alguns colegas, parecendo não observar qualquer matriz, aparentemente querem refundar a República ex nihilo. Mas mesmo eles, pensando bem, acreditam que estão seguindo certa tradição (conversam entre si, formam grupos, citam-se mutuamente em dissertações e teses acadêmicas, louvam seus mestres e tentam trilhar o caminho possível que eles indicam).

Então, a que nós, procuradores da República, servimos? A minha opinião é: não servimos ao povo em geral. Isso é uma bobagem que não anima ninguém. É uma abstração que não nos leva a lugar nenhum. A verdade é que servimos aos bons. Porque o sistema é bem articulado, os outros recebem os efeitos benéficos de nossa atuação, quando ela é efetivamente benéfica. Que bom que é assim. De outra forma o sistema já se teria desmontado. A ideia de que servimos a todos só se sustenta, e só assim a aceito, se reconhecermos que assim fazemos contra a vontade expressa de alguns. É uma questão espinhosa, veja. Por que não servimos à sociedade em geral? Porque a sociedade é composta de milhões de interesses individuais ou coletivos, a maioria deles contraditórios entre si — e alguns francamente inconfessáveis. Por exemplo, somente por meio de uma construção abstrata e distante da realidade, só mesmo em uma Teoria do Estado de laboratório, se pode dizer que a nossa atuação contra a improbidade administrativa ‘serve à sociedade’, a uma sociedade em que a maioria das pessoas, se perguntada, responderia espontaneamente que não há nada de errado em que o administrador público escolha para a execução de um contrato uma empresa em que ele confie; que não vê nada de errado em que um deputado federal receba 10% ou 20% do valor de uma emenda parlamentar desde que ele próprio trabalhe para ‘conquistá-la’ com o objetivo de, ao fim de tudo, trazer uma quadra poliesportiva para determinado município. A quadra está lá para que os jovens a utilizem. Para a maioria dos nossos, é isso o que importa afinal. Eu já disse em outro lugar que, às vezes, somos uma instituição um pouco aristocrática — naquilo que a aristocracia tinha de antipático aos olhos do povo, ou pelo menos tem aos olhos dos historiadores. Resumindo: acredito que o Ministério Público em geral atue no interesse dos bons ou, para dourar um pouco a pílula, atue ‘no interesse do melhor interesse’ de cada uma das pessoas. Na nossa atuação, deveríamos nos perguntar: como as melhores pessoas agiriam nesta situação? Por ‘melhores’ me refiro aos mais honestos, aos mais corajosos, aos mais lúcidos, aos mais sinceros.

Mas voltemos à pergunta. O que me define como procurador? Eu gostaria de ouvir uma opinião qualificada a respeito disso. A imagem que faço de mim, creio, é excessivamente benevolente. E entre mim e o que em mim é o quem eu me suponho corre um rio sem fim. Mas evidentemente sou hoje um procurador diferente daquele que tomou posse há dez anos. Havia em mim, naquela época, uma certa hybris de que me envergonho, hoje, como nos envergonhamos, alguns de nós, do que tenhamos dito ou feito inadvertidamente em estado de embriaguez. Trazia uma certa agitação, uma necessidade de estar em movimento, como certos carros que, dizem, só amaciam depois de milhares de quilômetros de estrada. O tempo e a vida vão acalmando a gente. Estou hoje calmo como o homem da terra dos gadarenos que Jesus curou. Talvez isso seja parte de uma sensação que passei a ter com o tempo, que curiosamente surgiu entre nós ali onde estiveram os primeiros filósofos gregos: uma sensação de que o mundo é ordenado, de que é verdadeiramente um cosmos. Aqui e ali surgem determinadas desordens parciais, que só serão aplacadas com aquilo de que são a privação: um genuíno amor às pessoas e às coisas. E não vejo modo melhor de indicar a essência de minhas atribuições hoje: transmitir um pouco de amor às pessoas, e devolver a Deus um pouco do muito que recebo, tentando colocar alguma ordem na pequena parte do mundo que me cabe, cujo centro e símbolo, por assim dizer, são o meu gabinete e os casos, atuais e potenciais, que estão sob os meus cuidados.

Mas creio que ainda não respondi à sua pergunta. Que tipo de procurador sou eu? Bom, eu busco ser atento à adequação das minhas manifestações em relação à importância dos processos e ao resultado do que faço. Tenho certa obsessão por redação, especialmente a redação de denúncias. Vejo entristecido tantas e tantas ações penais perdidas por falta de uma boa acusação e tento a cada dia melhorar pessoalmente essa técnica. Não costumo brigar com a polícia. Quando ainda era promotor de justiça precisei entrar com uma ação de improbidade contra um delegado e, já no MPF, precisei representar contra dois delegados que me tiravam do sério, em outra unidade da federação, porque não trabalhavam, e quando eventualmente tentavam alguma pálida atuação sempre ‘terceirizavam’ ao Ministério Público a iniciativa, os meios e o desfecho de tudo. Fora isso, trato-os como colegas de trabalho que têm seus dramas e seus altos e baixos. Meu avô trabalhou na guarda civil em Belo Horizonte nas décadas de 50 e 60, eu cresci no IAPI, um conjunto habitacional em cuja entrada fica o Departamento de Investigações da Lagoinha (da Polícia Civil) e muitos dos amigos de meu pai eram delegados de polícia. Cresci com alguns deles. Tocavam violão nas festas em nosso apartamento, eram amigos de meu pai. Por isso, acho, eu os compreendo e muitas vezes me compadeço de suas mazelas. Fico muito contente quando encontro um servidor do MPF dedicado e inteligente e me chateio quando, apesar de tantas instruções, alertas e advertências, alguns permaneçam com seus maus hábitos de trabalho. Sinto que nosso trabalho renderia mais e melhor se tivéssemos um pouco mais de liberdade de escolher nossa equipe. Mas, para ser sincero, acho que eu pessoalmente, como cresço com minhas próprias dificuldades, cresço também com as dificuldades dos meus servidores, que me incentivam a encontrar maneiras diferentes de ajudá-los.

Na área criminal, não costumo ser um procurador ‘lei e ordem’ — sou muito sensível a alguns excessos persecutórios (que, mea culpa, inclusive eu mesmo já cheguei a cometer). Gosto de resolver casos complexos, volumosos, principalmente se estou com tempo. Desvendar como o crime foi praticado, juntar as ‘peças’, que cada página do inquérito policial apenas insinua, e transformar tudo isso em uma acusação narrada em uma denúncia criminal é uma das coisas que mais me dá satisfação. Em poucas palavras: colocar ordem na minúscula parcela do mundo que está sob minha responsabilidade.

Bruno Magalhães — Você é provavelmente o único procurador da sua geração que atua, desde sempre, exclusivamente, no núcleo criminal de uma capital. Já se sentiu atraído pela tutela coletiva?

Rodrigo Prado — Como a Ana Paula PRR, nunca sonhei em ser procurador. Só me inscrevi no concurso porque, numa noite de réveillon, eu e um amigo deliberamos lá pela vigésima cerveja que não dava mais para cumprir algumas súmulas imorais do Gilmar Mendes na AGU e o jeito seria mudar de carreira. Acabei passando na primeira etapa de bobeira, comecei a estudar freneticamente e dei a sorte de ser lotado diretamente em Belo Horizonte.

Descobri a tutela coletiva só aqui dentro. Fiquei embasbacado com a possibilidade de ajudar a vida de tanta gente, às vezes com providências singelas como uma reunião ou a expedição de uma recomendação, mas somente havia vagas na área criminal. Tal situação perdurou por mais de uma década e aqui estou.

Creio que não tenho o perfil mais indicado para oficiar na área criminal. Por mais reprovável que tenha sido a conduta do agente, por mais necessária que seja a pena, não consigo sentir prazer em razão de sua sujeição a um sofrimento, nem deixar de pensar, por exemplo, que seu proceder reflete um sem-número de vetores que forjaram a psique do sujeito ou que a apenação trará grande sofrimento para seus pais, seus filhos, seu cônjuge. É claro que alguém tem que promover a persecução e faço o melhor que posso para tentar me desincumbir dessa missão. Só acho que, para a manutenção da dialética processual, é desejável que figure alguém mais apaixonado no polo ativo da ação penal.

Porém, já se vão doze anos … durante os quais não fiz itinerâncias e oficiei no Cível apenas em alguns plantões, justamente porque minha formação na tutela é muito deficiente. Em contrapartida, tive o privilégio de poder atuar fora do gabinete na área criminal e de participar de iniciativas bacanas, com potencial transformador verdadeiro, sobretudo na área de crimes financeiros. Quando surgir uma vaga na tutela coletiva, será vou ter a coragem de abrir mão das conquistas na área criminal, morrer de estudar e começar a criar um acervo de peças do zero? Não sei. No momento adequado, espero que sim.

Rodrigo Prado — Já você, segundo as próprias palavras, “faz de tudo um pouco” na PRM em Governador Valadares. Você se identifica de forma especial com alguma área temática da tutela coletiva cível, além da improbidade? A que atribui essa identificação?

Bruno Magalhães — A tutela coletiva cível, aqui na PRM Governador Valadares, é basicamente improbidade administrativa. Há um considerável volume de verbas federais em cada um dos 56 municípios de nossa atribuição. E muita gente de olho nelas. Há, claro, algum trabalho a ser feito na área do meio ambiente (principalmente mineração), na saúde, no funcionamento dos serviços públicos e na PFDC. Mas o grosso é mesmo a improbidade administrativa. Não tenho afinidade especial por nenhuma área da tutela coletiva aqui. Mas já tive há alguns anos muita vontade de trabalhar na área da educação. Acho louvável a iniciativa dos colegas do MPEduc. É preciso que se comece de algum ponto. Não há, penso, nenhuma crítica a fazer a esses colegas, que estão trabalhando na coisa certa. Acredito, porém, que o baixo nível de nosso ensino não se deve à falta de verbas, à estrutura deficiente das escolas ou à desvalorização dos professores. Mas sim a um intencional desmonte das estruturas educacionais, proporcionados, entre outros, pela pedagogia falida de Paulo Freire, um vírus que infestou toda a educação brasileira há décadas. Mas há hoje diversas iniciativas surgindo aqui e ali na área da educação e muitas delas, felizmente, têm aparecido e se fortalecido à margem do Estado, no seio da sociedade civil. Fico feliz que seja assim.

Bruno Magalhães — O fenômeno do terrorismo é um de seus muitos interesses. O que chama a sua atenção aí?

Rodrigo Prado — Sei lá… Chama a minha atenção, de cara, a controvérsia que reina sobre quase todas suas facetas. Há mais de um século tem-se tentado conceituar o terrorismo, em vão – e olha que poucas palavras têm tanto peso semântico, tanto poder incendiário para mexer com barreiras morais, representações culturais e gatilhos psicológicos. Outra coisa interessante é a dificuldade de discernir “good guys” e “bad guys” em um fenômeno com raízes tão profundas, em cuja etiologia gravitam o interesse do fornecedor de armas, a ligação ancestral entre um povo e sua terra, a ausência de um sistema financeiro formal, a doutrina de um líder religioso, um Estado falido, uma conjuntura geopolítica, tanta coisa. É um prato cheio para quem não gosta de respostas prontas, como eu.

Rodrigo Prado — Certa vez, você disse na rede Membros que não havia no Brasil um partido que fosse efetivamente conservador, nem que se autodeclarasse como tal. Achei tal constatação sensacional, pois, talvez em razão das minhas próprias convicções, nunca tinha me dado conta de que existia uma lacuna de representatividade tão grande no país. Em sua opinião, esse quadro mudou com a ascensão do PRTB de Levy Fidelix, do PSC do Pastor Feliciano ou do PP de Jair Bolsonaro, por exemplo?

Bruno Magalhães — Acho que não mudou, não. Levy Fidelix, Feliciano e Bolsonaro são caricaturas e, mais importante, não são partidos políticos. Feliciano, Bolsonaro e Pastor Everaldo (candidato à presidência nas últimas eleições) exteriorizam, à sua maneira às vezes caricata, o que pensa a maior parte dos brasileiros. Mas eles ainda não têm um projeto de país claramente delineado — e se têm, temo, com a possível exceção do Pastor Everaldo, que eles não representem exatamente o conservadorismo a que me referi na mensagem que você recordou. A verdade é que temos uma mídia intolerante — ela, sim, conservadora no mau sentido, conservadora de suas bizarrices e de suas próprias ideias preconcebidas –, que serve de anteparo entre a população e eventuais e potenciais líderes políticos. Apesar das novelas, apesar do Jornal Nacional, apesar das ONGs e apesar dos sociólogos, a população continua acreditando que é justo um endurecimento penal, continua sendo contra a descriminalização das drogas e do aborto. O brasileiro em geral, embora seja relativamente liberal entre quatro paredes, ainda busca conservar um saudável pudor em público, sabe reconhecer uma boa música, uma bela construção. Apesar disso, as modinhas políticas e culturais medram e abundam nos meios de comunicação — e a população em geral, que no fundo tem sensibilidade moral e estética, acaba consumindo lixo e votando em gente estranha. Sabemos avaliar a honestidade e a firmeza de um bom político, mas na hora de votar nos aparecem figuras sem fibra, maledicentes, desbocadas, incompetentes e frequentemente desonestas. É dose. A população sabe reconhecer uma bela canção popular, mas na hora dos encontros da firma, das festinhas de aniversário, o que colocam para animar? Você sabe o que colocam para animar…

O ressurgimento de partidos conservadores no Brasil, ou mais propriamente a revalorização da política por aqui, deverá começar, como diz o prof. Olavo de Carvalho, pelo imaginário, principalmente pela literatura — de que hoje estamos absolutamente carentes, aliás. O nosso imaginário está tão bagunçado e confuso que já perdemos a noção do que seja uma discussão sincera. E o que vemos hoje são trocas de convicções (melhor seria dizer, em vez de ‘trocas’: arremessos, como se arremessam tomates), convicções de que os interlocutores já não têm a mínima intenção de abrir mão. O brasileiro médio não sabe valorizar — se é que conhece — as grandes conquistas da humanidade. Em outros países também temos pessoas assim, aos montes, mas elas têm a sorte de contar com instituições mais ou menos sólidas, que acabam fazendo o serviço e suprindo a sua ignorância. Além do mais, em países com cultura consolidada as pessoas têm e valorizam sua história — representada pelos monumentos e construções, pelos livros, pela técnica, pelos costumes. Se não sabemos até onde a humanidade já subiu, estaremos condenados a ficar no raso, no trivial, batendo cabeça, redescobrindo a roda e, pior, constatando depois, atônitos, que as rodas que construímos não servem a nossos propósitos. E que foram muito caras. Em um ambiente assim, qualquer movimento conservador levará muitos anos para se estabelecer. E tudo o que tem aparecido sob esse nome só terá expressão caricatural. Como disse o José Kalil em uma das entrevistas deste site, parece que infelizmente ainda não temos muito o que conservar no Brasil.

Bruno Magalhães — Você diz que acredita no potencial do Direito como instrumento para uma atuação construtiva, generosa, na área da cidadania. Eu acho que compreendo o que você diz e concordo em grande parte com a ideia geral implícita nas ações de ‘direito & cidadania’. Mas você não acha que, como sociedade, perdemos a noção de ‘deveres do cidadão’ como um dos elementos do Estado de Direito?

Rodrigo Prado — Não boto muita fé no Direito como instrumento reformador, mas no potencial construtivo individual de alguns de seus agentes. Temos grandes nomes no MPF, como o Aureo, o Daniel Avelino e o Eduardo El-Hage, na tutela coletiva, de cuja atuação me orgulho profundamente.

No mais, concordo com você. Se a comunidade não se autorregula, ou se ela se autorregula em detrimento da possibilidade de que alguns de seus membros tenham o direito de ter direitos, é preciso que o exercício da cidadania seja assegurado através de algum expediente exógeno. Um deles é a previsão de deveres jurídicos. Acredito mais, porém, na gestação dos deveres através da educação, do processo histórico, do que da imposição de sanções.

Antes de passar adiante, Bruno, gostaria de deixar claro que não tenho o menor embasamento teórico para dar pitacos sobre estas coisas. O grande espaço que o chatíssimo discurso jurídico tem ocupado na minha vida desde o início da faculdade asfixiou meu prazer pela leitura fora do gabinete; sou hoje um mero técnico do Direito, um “chão de fábrica” desprovido de qualquer instrumental reflexivo. Minhas respostas, portanto, não refletem posições abalizadas, só achismos.

Rodrigo Prado — A PFDC geralmente é identificada com agendas reformadoras, sobretudo no campo dos costumes. A impressão que tenho é que você, que já foi PRDC, não compactuaria com parte delas. Há espaço para a atuação ministerial com viés conservador na área da cidadania?

Bruno Magalhães — Espaço, propriamente falando, há. Prova disso é que temos o Aílton Benedito, em Goiás, e o Carlos Cabeleira, no Espírito Santo, dois bravos colegas que buscam fazer o seu trabalho da melhor forma possível. Certamente são vistos como ‘revolucionários’ (ironicamente, é isso mesmo) dentro da PFDC afinada com algumas bandeiras de discutível validade jurídica.

A minha atuação na PRDC no Pará foi meteórica. Foram apenas dois ou três meses. Não tive espaço, nem presença de espírito suficiente, para traçar qualquer plano de atuação na área. Atuei em meia dúzia de casos de baixa e de média repercussão. Nada mais. Já disse a alguns colegas, em tom de brincadeira, que — se preparem! — dentro de alguns anos vamos nos reunir em pelo menos dez estados-chave, na época da eleição para a PRDC, e vamos tomar o poder pela via democrática. Alguns já prometeram votar em mim em Minas Gerais. A verdade é que, com a exceção dos colegas mais novos, que entraram na carreira depois de se alimentarem com essas doutrinas, a maioria da classe ou não concorda com a maioria das bandeiras levantadas pela PFDC ou pelo menos as acha excêntricas. Penso que muitas delas têm lá sua razão de ser. O problema é que muitíssimas outras atuações, de importância crucial, não vêm sendo desenvolvidas. Provavelmente por isso temos tido dificuldade de encontrar candidatos à PRDC em muitos estados da federação.

Bruno Magalhães — Você iniciou seu doutorado em Direito Econômico mas não chegou a concluí-lo. Desiludiu-se com a vida acadêmica?

Rodrigo Prado — Meu início de doutorado foi muito decepcionante. As aulas eram conversas de boteco, ninguém estudava, mas o grupo se apresentava com pompa ao citar em público nomes de autores pouco conhecidos e usar chavões sem conteúdo (“esta questão da internalização do capital estrangeiro é realmente muito relevante”).

Mas não me desiludi com a vida acadêmica. Apenas espero a hora certa para, na instituição de ensino certa, aprender um pouco sobre algumas ideias que tenho na manga.

Rodrigo Prado — A obtenção do domínio possível sobre toda a cultura clássica ocupa um grande espaço em sua vida. Você acredita que o conhecimento lhe pode trazer felicidade? De que forma?

Bruno Magalhães — Em termos, sim. A vida teorética, já dizia Aristóteles, é a vida mais feliz. A ignorância nunca é um bem. Pode, no máximo, ser uma aparência de bem. É o conhecimento da verdade que nos liberta. No Evangelho de São João, a vida eterna é descrita como o conhecimento que temos ou teremos de Deus como Deus Único e a Jesus Cristo, Seu Filho.

Em um outro sentido, mais relacionado à sua pergunta, acredito que seríamos mais felizes se cada um de nós tivesse — ou pelo menos buscasse, o que já é metade do caminho — o domínio possível dos conhecimentos necessários e compatíveis à sua forma de vida. Não sei se estou certo no que vou dizer, mas é uma intuição que me é muito recorrente: a maior parte de nosso sofrimento tem origem em alguma forma de ignorância. O ser é amável, todos os seres são amáveis, e de tudo o que nos acontece podemos extrair um bem. Se não amamos os seres e se sofremos com as circunstâncias da vida é porque não os conhecemos suficientemente e não temos a noção das relações que entre tudo e entre todos a mão de Deus estabelece. Parênteses: como não sou adepto do intelectualismo socrático, preciso reconhecer que apesar do conhecimento muitas vezes falará mais alto nossa maldade, nosso coração de pedra. Ele, sim, é a origem primeira de nosso sofrimento. A nossa rebeldia é que está na raiz de tudo isso. E se à rebeldia acrescentamos doses generosas de ignorância, o estrago costuma ser bem grande.

Jamais teremos o completo conhecimento dos desígnios de Deus, mas podemos escolher entre a completa ignorância e um conhecimento suficiente e adequado da parte que nos cabe conhecer. Esse conhecimento nos traz lampejos de felicidade. Nos faz mais felizes saber algo que não sabíamos. Você certamente já teve essa experiência. Experimente lembrar a sensação que você teve quando, diante de um caso complexo, de um processo complicado, encontrou uma boa solução após ler a opinião de um doutrinador ou encontrar na legislação um dispositivo a ele aplicável. É uma pequena alegria. Como é uma pequena alegria encontrar o caminho certo depois de ficar um tempão perdido nas ruas de uma cidade desconhecida. Pois então. Vejo a nossa vida como um grande e complicado processo ou como o caminhar por caminhos de uma cidade desconhecida. A medida em que nos damos conta das soluções — ou simplesmente das explicações para o que não tem solução — e dos caminhos possíveis é a medida das nossas pequenas e grandes alegrias diárias. A soma disso, no contexto de uma vida, é um análogo da verdadeira felicidade e pode nos ajudar a buscá-la com maior ânimo.

Mas, veja. O estudo sistemático, através de livros, é apenas um dos modos de conhecimento — e pode ser, paradoxalmente, também um dos modos de emburrecimento. Aprendemos muito uns com os outros, com as pessoas com que convivemos, com nossos mestres, com as experiências, com as crianças , com os animais e até com as plantas. Ler mal e, além disso, ler determinadas obras pode nos emburrecer. É o que eu penso.

Outra coisa. Esse conhecimento que nos aproxima da felicidade não deve ser confundido com a erudição, com o beletrismo ou com um título de pós-graduação. Esses símbolos de conhecimento podem ser, e com muita frequência são, como cheques sem fundo: muito valiosos aos nossos olhos, mas quando vamos testar seu verdadeiro valor na boca do caixa vemos que não passavam disto: uma tentativa mais ou menos fracassada de simbolizar algo valioso.

Bruno Magalhães — A ESMPU promoveu há pouco tempo um curso sobre técnicas especiais de investigação. Você foi um dos destacados professores escalados para o evento. Acredita que o MPF tem avançado nessa questão? Na sua opinião, o nosso inquérito policial de hoje é uma instituição falida?

Rodrigo Prado — Considerando a tradição ministerial de bater carimbos de dilação de prazo e de emitir pareceres sobre representações policiais, penso que avançamos muito. Há dez anos, quem imaginaria que teríamos especialistas na negociação de acordos de cooperação premiada na Casa? Que protagonizaríamos a redação de manuais de investigação ou que discutiríamos, em pé de igualdade com o COAF e a Receita Federal, sobre procedimentos e rotinas internas desses órgãos? Para manter o otimismo, sempre tento olhar para trás e ver como já fomos um dia.

Quanto ao inquérito policial, não creio que seja, por si só, uma instituição falida. A forma como ele é disciplinado e conduzido é que é ruim. Muitos delegados são burocratas que não sabem investigar. A obrigatoriedade da ação penal, que um dia serviu a propósitos muito republicanos – você já viu um inquérito da década de 50? o isolamento da cena do crime, a perícia na grama, tudo parece saído de uma série de tv americana – hoje impede que o aparato estatal obtenha resultados na persecução, sobretudo no terreno da macrocriminalidade. Qualquer um de nós poderia ficar meia hora aqui apontando outros problemas sobre a coleta de elementos de convicção na seara penal. É preciso adequar sua disciplina aos desafios que vivemos hoje.

Rodrigo Prado — Sigo fora da temática jurídica. A seu ver, qual é o papel da simploriedade, da espontaneidade e da leveza na formação cultural humana?

Bruno Magalhães — É uma pergunta difícil, essa. E inusitada, também. Veja. Você deve ter assistido ao filme Dogville. Pois então. O peso que a personagem da Nicole Kidman arrasta talvez simbolize muito do que nos impede de chegar a essa desejada espontaneidade e leveza (não sei em que sentido você fala em ‘simploriedade’, palavra que para mim está vinculada a um certo tipo de inocência, inadequada, indesejada, diante da vida — diferente de ‘simplicidade’, que me parece mais afim à espontaneidade e à leveza). Acredito que as crianças novinhas sejam realmente simplórias e tenham muita espontaneidade e leveza em seu ser. Vamos perdendo isso com o tempo, né? Um autor católico diz que uma criança de sete anos de idade acha o máximo quando lhe contam uma estória em que ‘Joãozinho bateu à porta e quando ele menos esperava do outro lado surgiu um tigre’; e que, por sua vez, uma criança de três anos de idade acha o máximo quando lhe contam uma estória em que ‘Joãozinho bateu à porta’.

É comum que as pessoas busquem resgatar esse estado, digamos, primordial através de técnicas de relaxamento, de meditação, de esvaziamento da mente. Algum motivo devem ter para isso. De algum modo isso deve funcionar em seus casos. Mas acho que não devemos nos enganar: para grande parte das pessoas, hoje, a reaquisição de uma vida simples, de uma espontaneidade e leveza não seriam alcançadas senão através de renúncias que a pessoa provavelmente não estará disposta a implementar.

A espontaneidade e a leveza são características que, para mim, estão necessariamente vinculadas à graça de Deus. Veja que São Paulo Apóstolo, em dois momentos diferentes, dá exemplos disso. Certa feita havia um peso enorme em sua consciência; e ele disse: “o bem que quero não faço, mas faço o mal que não quero”. Em outra oportunidade, sentiu como que uma leveza, fico imaginando, e uma simplicidade ao ponto da quase-aniquilação — e pôde então dizer: “não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”.

Acredito que os esportes, as artes e todas as atividades humanas podem ser praticados com graça. Vejo por exemplo muita leveza e espontaneidade em uma performance da ginasta romena Nadia Comaneci (de que há um vídeo no YouTube chamado “First Perfect Score | Montreal 1976 Olympics“) e vejo também leveza e espontaneidade ouvindo Raphael Rabello tocando, por exemplo, Sons de Carrilhões (também há no YouTube) — sinal de que leveza e espontaneidade parecem exigir algum tipo de esforço. Que tipo de esforço? Não sei ao certo. Talvez aquele esforço que Eugen Herrigel descreveu na Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, um esforço que é uma confiança na capacidade de orientação própria do ser.

Na área da cultura, talvez a leveza e a espontaneidade estejam na exata adequação entre conhecimento e vida, entre consciência e ato. Evidentemente se trata de um ideal inalcançável, mas nem por isso devemos renunciar a ele.

Há uma expressão deplorável hoje que expressa, por contraste, o que estou querendo dizer. A expressão é ‘bagagem cultural’. Porém, veja, a verdadeira cultura não pesa nas costas como uma ‘bagagem’ mas é verdadeiramente incorporada na pessoa. A cultura simbolizada pela bagagem é geralmente pesada, limitada, pode prejudicar a saúde e sobretudo não faz parte do patrimônio pessoal do indivíduo, pois não está verdadeiramente incorporada a ele. Então, leveza e espontaneidade tem tudo a ver com a boa cultura.

Bruno Magalhães — Você acredita no Direito Penal, Rodrigo? Qual sua importância concreta, hoje, para as pessoas?

Rodrigo Prado — Acredito que ele é um mal necessário, mas que a sanção penal tem servido mais à manutenção de uma estrutura social do que à ressocialização de que ouvimos falar na escola. Como é que um sujeito que nunca foi “socializado”, sob o ponto de vista da elite cultural de que fazemos parte, pode ser ressocializado através da aplicação monocromática da norma? Nem por isto, infelizmente, dá para descartar o Direito Penal. Precisamos de sua representação simbólica, do conjunto de valores que ele veicula e da proteção que ele promete.

Rodrigo Prado — Gostaria de ouvir seu posicionamento sobre a mesma questão.

Bruno Magalhães — Eu também gosto da ideia de que o Direito Penal seja um ‘mal necessário’. A propósito, eu acredito no Direito Penal assim como acredito que determinadas pessoas, em certo ponto da vida, já não conseguirão resistir a seus hábitos criminosos. A finalidade ressocializadora da pena é, na minha opinião, uma quimera, é uma justificativa que damos para nós próprios e para a sociedade a fim de que não pareçamos muito insensíveis diante da grande violência que é a segregação de um ser humano pela pena de prisão — mal que você já mencionou agora há pouco. Mas, o que se há de fazer? Não suportamos conviver com estupradores à solta, com assaltantes andando por aí, com traficantes oferecendo drogas nas esquinas aos nossos filhos. O Direito Penal é importante por isso: nos promete — e cumpre-o em algum grau — um mínimo de paz social. Quem ressocializa é uma família estruturada, é dar e receber amor, são os bons amigos; é a religião, é a arte. Todos os dias dezenas de pessoas no país são ‘salvas’ de uma vida desgraçada principalmente por pastores evangélicos e grupos de protestantes que pregam nas penitenciárias. Eu conheço dois casos de pessoas muito próximas de mim que deixaram o submundo das drogas e da criminalidade violenta através da religião. Sozinhas, as grades não ressocializam ninguém, os agentes penitenciários não ressocializam ninguém. Os poucos que saem da execução penal ressocializados fazem-no ‘apesar’ do sistema penitenciário; ou então são os beneficiários do Método APAC (que, a rigor, não é indicado para todas as personalidades). Tertium non datur.

Bruno Magalhães — Qual é na sua visão o fundamento moral da generosidade? Dito de outro modo, por que o ‘ser generoso’ é um bem?

Rodrigo Prado — Xi, não sei responder. Talvez seja um bem porque, em nosso processo evolutivo, constatamos que a generosidade era importante para a preservação do grupo e porque precisávamos acreditar na existência de valores universalmente bons. A tradição cristã certamente desempenhou um papel crucial nesse processo. Para minha alegria, está aí uma das únicas coisas em que consigo ter fé: a generosidade.

Rodrigo Prado — Falando em generosidade: para você, há um limite a partir do qual a gentileza, a mansidão e a generosidade deixam de ser um bem na vida quotidiana?

Bruno Magalhães — Eis aí outra pergunta complicada, porque as situações da vida são muito diversas. Cada caso é um caso. A gentileza e a mansidão não têm valor absoluto. A generosidade, sim. Às vezes o único bem que podemos fazer a uma pessoa é fazer balançar seus alicerces. A gentileza e a mansidão diante de uma grande injustiça, diante de uma violência ou de uma indesculpável negligência provavelmente não contribuirão para melhorar as coisas. Nesse sentido, uma severa advertência, embora não seja nada mansa ou gentil, pode ser um ato de autêntica generosidade. Alguém já disse que a generosidade é a joia da alma. Acho que tinha razão.

Bruno Magalhães — Suas sessões de cinema são permeadas pelos temas da música e da loucura. Acredita no poder que a música tem de limitar ou de expandir a consciência do ouvinte habitual?

Rodrigo Prado — Acredito que tudo pode limitar ou expandir a consciência do indivíduo; e que as artes, especificamente, têm um extraordinário poder de vencer nosso aprisionamento linguístico e chegar aonde as palavras não vão.

Rodrigo Prado — Ao descrever suas músicas preferidas, você citou Thomas Tallis e Oswaldo Montenegro, sinfonias de Beethoven e madrigais do Monteverdi. Enxergo aí um aparente paradoxo – circunspecção e pieguice, força e singeleza – que é a cara do Bruno Magalhães, um cara rigoroso e às vezes beligerante na rede Membros, mas sorridente e sereno em pessoa. Isto que eu disse faz algum sentido para você?

Bruno Magalhães — Faz muito sentido, sim. Aliás, já que a pieguice ficou por conta do Oswaldo Montenegro, ‘Todo mundo é lobo por dentro’ é uma canção que fala muito bem disso que você chamou de aparente paradoxo. Essa música fala muito de mim.

A propósito, o que gosto no Oswaldo é sua alma de artista. ‘Vale Encantado’ é um disco muito comovente e divertido. É verdade que ele ultimamente está meio maluco-beleza. A última dele, já há algum tempo, foi pintar as paredes da casa com dezenas de cores e formas. É de pessoas assim que Platão diz, no Fedro (245a): “quem se apresenta às portas da poesia sem estar atacado do delírio das musas, convencido de que apenas com o auxílio da técnica chegará a ser poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo a eclipsar-se sua poesia, a do indivíduo equilibrado, pela do poeta tomado do delírio”. Oswaldo é um artista delirante no sentido platônico, é um aedo, um menestrel, um poeta-cantor que nos momentos de aperto (como na batalha que Ulisses travou contra os pretendentes de Penélope no final da Odisséia) tem o direito de ser poupado de determinadas convenções sociais.

Bruno Magalhães — Você mencionou o tema da loucura e cá estou eu falando em delírio. Pergunto a você: quem é o louco?

Rodrigo Prado — Nossa, outra pergunta difícil. Se eu fosse chutar, diria que é aquele cuja diferença em face de um padrão de normalidade psíquica ultrapassa publicamente um limite convencional. Gosto muito dos exemplos de loucura/paixão descritos na música “O Que Será (à Flor da Terra)”, do Chico Buarque: “o que cantam os poetas mais delirantes”, “o que juram os profetas embriagados”, “o que está na fantasia dos infelizes”, “o que todos os avisos não vão evitar”, “o que todos os risos vão desafiar”, “o que não tem governo, nem nunca terá”, “o que não tem juízo”, “o que não faz sentido”.

Rodrigo Prado — E o santo, quem é, Bruno?

Bruno Magalhães — O santo é a pessoa cujos vetores da alma (os desejos, as inclinações etc), a duras penas, estão todos voltados para a única coisa que importa, que é Deus e tudo o que Lhe diz respeito. A ele todas as coisas são acrescentadas. Deus cuida dos santos como de suas criaturas mais preciosas. Vencendo toda a sorte de dificuldades, eles se foram deixando moldar pelas mãos de Deus, com cuja vontade estão na sintonia possível. Se a felicidade humana está em cumprir o plano de Deus, isso quer dizer que os santos são os seres mais bem-aventurados. É por conta deles que Deus ainda suporta a humanidade.

A imagem do santo como uma pessoa boazinha, fraca, quase-boba, meio-retardada e ingênua, é um desastre pedagógico, penso. Como disse padre Justino, na ‘Crônica da Casa Assassinada’, a vida dos santos não é uma vida harmônica, mas uma caverna de paixões em luta. É preciso ler a vida dos santos. Temos muito a aprender com eles, com o modo como conversavam com Deus, como lidavam com as situações da vida e da morte. Não tenho vasta experiência nesse ramo literário, mas recomendo especialmente O Livro da Vida (Santa Teresa de Ávila), Biografia de São Francisco de Assis I e II (Tomás de Celano), Recordações sobre Mons. Escrivá e o Homem de Vila Tevere (sobre São Josemaría Escrivá) e História de Uma Alma (Santa Terezinha do Menino Jesus). Os Santos que Abalaram o Mundo também é uma boa pedida, talvez como preâmbulo para as demais leituras.

Bruno Magalhães — Se fosse eleger os três filmes da sua vida, quais seriam e por quê?

Rodrigo Prado — Eu não elegeria os filmes de que mais gostei, mas os que tiveram maior impacto na minha história pessoal.

Cronologicamente, o primeiro seria “Vidas Amargas”. Sempre achei interessante a estória de Caim e Abel, mas fiquei muito tocado ao ver o mundo, lá pelos meus 18 anos, sob o ponto de vista de um Caim tão humano e rejeitado, que sente inveja do impecável Abel porque não foi aquinhoado com as virtudes do irmão e, na busca pelo amor paterno, provoca Abel a pecar. Este filme eu recomendo.

O segundo foi “Todas as Manhãs do Mundo”, que conta a estória do compositor Marin Marais e as desventuras de seu professor Monsieur de Sainte-Colombe. Foi a primeira vez que ouvi música barroca não germânica, o que viria a ser uma das experiências estéticas mais prazerosas da minha vida e a porta de entrada para a Faculdade de Música da UFMG, onde fiz muitos amigos e vivi meu primeiro relacionamento amoroso.

O terceiro é o de pior qualidade , mas o que causou maior impacto: “O Talentoso Ripley”. Ele aborda temas que me comovem muito, como desamor próprio, fantasia, livre-arbítrio, identidade, relativismo moral, loucura e aprisionamento pelo olhar do outro, e, de quebra, tem uma trilha sonora excelente, incluindo a balada de jazz e a peça erudita que eram minhas favoritas à época. Fui ao cinema ver um filme comercial e saí com a impressão de que tinha levado uma surra.

Rodrigo Prado — Também gostaria de conhecer os filmes da sua vida…

Bruno Magalhães — Não sou cinéfilo, mas já acumulei algumas boas experiências no cinema. Os filmes mais significativos para mim, também como experiência pessoal, foram: Cinema Paradiso: chorei igual menino no final. Um filme muito tocante. Zelig, do Woody Allen, pelo que ele desmascara em nós de leviano, de superficial, de inautêntico. Aurora, de F. W. Murnau: uma bela história de redenção pelo arrependimento e pelo perdão dentro de um casamento. Sherlock Jr., de Buster Keaton: um personagem com o qual me identifiquei bastante. Peixe Grande: um grande filme e um grande tema. O pai retratado no filme é o meu próprio pai. Clube da Luta: excelente, por falar do gigante que todo mundo traz dentro de si e do medo que temos de deixá-lo viver. E, recentemente, Detachment, que representa muito do que, segundo vejo, representamos como procuradores para as pessoas à nossa volta. Somos todos, enfim, ‘procuradores substitutos’ no exato sentido desse filme — que aliás termina com a recitação de um trecho de um conto de Edgar Allan Poe que parece ter sido escrito exatamente para ele.

Bruno Magalhães — Em suas muitas andanças pelo mundo, qual foi a experiência mais bizarra por que passou? E qual foi a mais importante para sua formação humana? Que função essas viagens ocupam na sua vida?

Rodrigo Prado — Nossa, eu coleciono trocentas experiências bizarras, de ataques de nuvem de barata d’água a detenção como suposto terrorista. Acho que o caso mais engraçado envolve uma tempestade ocorrida no Deserto do Atacama após 30 anos sem chuva, com direito a internação hospitalar forçada porque me confundiram com outra pessoa e condicionamento da aplicação de uma Benzetacil à demonstração de passinhos de samba (risos). Depois eu te conto, de preferência com um chopp na mão, senão esta entrevista vai ficar ainda maior do que já está.

A viagem mais importante, sem sombra de dúvida, foi para Jerusalém. Pairam no ar uma tensão e uma grandeza que nunca senti em outro lugar, embora não seja religioso, nem “sensitivo”. A antiga cidade murada parece uma metonímia da civilização ocidental.

As viagens foram minhas portas para mundos novos. Durante toda a vida, fui fascinado pela diferença, pelas outras versões, até que meu coração serenou e comecei a voltar aos lugares por onde mochilei, dessa vez para apresentar o que já me fora apresentado.

Rodrigo Prado — Reservei esta última pergunta para um dos tópicos que mais me interessam na existência: a fé. Usando a primeira coisa que passar em sua cabeça, sem refletir, como você a definiria? Para alguém que preza tanto o questionamento intelectual, como você, como foi possível empreender uma entrega tão intensa em favor de uma ideia, um sentimento?

Bruno Magalhães — A primeira coisa que me passa pela cabeça quando penso em fé é confiança. Mas não acho que as pessoas consigam confiar em Deus assim, ‘do nada’. Assim como não é possível amar a Deus sem amar aqueles que estão mais perto de nós, assim também acontece — aconteceu comigo, pelo menos — que não é possível confiar em Deus se não se confia nos seres humanos (daí você vê a tragédia que é viver em uma sociedade que nutre em nós tantas razões para a desconfiança nas pessoas).

Foram justamente os questionamentos intelectuais que me trouxeram de volta à Igreja. Em busca de respostas a esses questionamentos fui encontrando professores e autores que, em sua maioria, eram cristãos. Fui percebendo que pessoas que eu próprio julgava muito melhores que eu, do ponto de vista intelectual e moral, se haviam ‘convencido’, digamos assim, de que a Tradição da Igreja, o próprio Corpo Místico de Cristo, era um depósito interessantíssimo, um fermento para a inteligência.

No início do curso Religiões do Mundo, o prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto diz que as pessoas geralmente procuram a religião por um de três motivos: uma experiência dolorosa (perda de uma pessoa querida, um fracasso profissional etc), uma aposta na vida após a morte e a necessidade de buscá-la ou, por fim, uma necessidade de buscar a verdade a respeito do ser. Acredito que o que me reaproximou da Igreja foi uma certa dor existencial, mas principalmente a necessidade de buscar explicações para a vida e seus enigmas. Isso após muitos e muitos anos de uma infértil procura em doutrinas e em atividades que se não foram completamente inúteis me fizeram perder um tempo precioso.

A fé não é incompatível com a razão. Diferentemente, a razão leva à fé e a fé enriquece o exercício da razão. O melhor e mais acessível livro que li a esse respeito ainda é Ortodoxia, de Chesterton, que recebeu recentemente uma segunda edição pela Editora Ecclesiae, de Campinas, SP (já tínhamos a edição da Mundo Cristão). Um livro magnífico capaz de mudar uma vida. É dele, aliás, o caso da criança de três anos que se maravilha com a história do ‘Joãozinho que bate na porta’. Também nessa linha recomendaria os livros do C. S. Lewis (Cristianismo Puro e Simples, A Abolição do Homem, Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz) e What´s so Great About Cristianity, do Dinesh de Sousa. Há uma tradução brasileira, sofrível, dessa obra; recomendo, para quem compreende minimamente o inglês, que baixe a versão americana no Kindle ou adquira o audiobook no site de alguma livraria americana. Dá para ouvir na academia de ginástica e fará um bem danado à inteligência e à alma. O autor é muito engenhoso e muitas vezes seu fino humor, um tanto chestertoniano, contribui para tornar tudo mais interessante.

Links de interesse:

Primeira parte da entrevista com Osório Barbosa: “A gramática da Língua Portuguesa é uma ‘lei’ que nos é imposta; não é uma criação popular”.

Figura onipresente nos foros de discussão institucionais, incompreendido e contestador, Osório Barbosa garante que não pretende volta a trabalhar no primeiro grau da carreira: “Eu gosto da PRR. Nela eu faço um trabalho que é necessário que seja feito. Além disso, a gente não está mais sozinho no mundo”.

De seu gabinete, cercado pelos livros de sua biblioteca, Osório gravou esta entrevista cuja primeira parte é agora publicada. Apresentou-nos um de seus filhos que, curioso, assistia à fala fluente e suave do pai.

Por viver muitos anos dentro do mato, Osório enxerga as coisas por igual, como os pássaros enxergam. Como intuiu o poeta Manoel de Barros, para Osório as palavras são livres de gramáticas e podem ficar em qualquer posição. Sim, porque para ele “se você atingiu o objetivo de se comunicar, a linguagem atingiu o seu papel. Com ou sem o trema, a linguiça que você pede como tira-gosto para acompanhar a cerveja será a mesma”.

Ao Ministério Público Federal chegou inspirado pela atuação do então procurador-geral da República Aristides Junqueira. “Sua atuação me encantava! Foi um procurador geral da República ativo, que entrou com várias ações contra o presidente da República que o nomeou, inclusive questionando atos dele, como medidas provisórias, depois o denunciou perante o Supremo Tribunal Federal. Aquilo me encantava, um atuar ativo, voltado para a sociedade”.

Acusando Platão de plágio, não descarta a possibilidade de que Alfred North Whitehead seja apenas um “canalha com frases interessantes”. Um inconformado, um contestador, um admirador dos sofistas gregos: esse é o Osório, que soltou o verbo em uma entrevista que durou mais de uma hora.

Leia agora a primeira parte de sua entrevista — nosso 4º ‘dedo de prosa’.

Veja a segunda parte da entrevista aqui.

Você já está há doze anos na PRR3. Eu tenho a impressão de que você, a qualquer momento, Osório, irá renunciar à promoção e se aventurará em alguma Procuradoria da República desse nosso país afora. O Osório é uma pessoa imprevisível a esse ponto? O trabalho na PRR3 o faz sentir-se realizado profissionalmente?

Pois é. Eu já estou realmente há doze anos na Procuradoria Regional da República. Mas sobre a sua impressão – de que eu possa a qualquer momento renunciar à PRR e voltar a uma Procuradoria da República: eu não me vejo fazendo isso, no momento. Eu não sou uma pessoa imprevisível que chegue a esse ponto. Eu me sinto realizado na PRR; aqui eu faço um trabalho que é necessário que seja feito e eu gosto daqui. Até porque a estrutura do serviço público, com os diversos escalonamentos – eu vou chamar de hierarquia, embora não exista hierarquia no Ministério Púbico – é muito inteligente: você passa muito tempo em uma Procuradoria da República em primeiro grau e você às vezes faz uma clínica geral, trabalha com tudo. Mas nessa época em que você faz tudo isso, dedica-se a esse trabalho, você é novo e a juventude o ajuda a fazer isso. Quando você é promovido a Regional e a Subprocurador-geral, você já tem outra idade – aquela idade que já lhe tirou o vigor da juventude. Tem experiência, é claro, mas já não tem aquela força, aquele vigor de ficar – com eu já fiquei – quatorze, quinze horas dentro de uma Procuradoria trabalhando. Eu já não me vejo fazendo isso, embora tenha vontade, saiba e queira fazê-lo. Mas eu também posso fazer isso aqui na Regional, que é o que eu tenho feito. Eu me sinto realizado fazendo o que eu faço. Às vezes tenho as decepções da vida, o que é natural. E o próprio Ministério Público não tem às vezes o seu lado voltado para a sociedade. Mas fazer tudo isso ainda me dá muita alegria.

O que me deixa decepcionado às vezes são as pessoas que dirigem o Ministério Público, com posições com as quais eu não concordo. E isso me tira o foco daquilo que eu devo fazer. Mas eu procuro, mesmo aqui na Regional, em que as atribuições são restritas, em que o poder de iniciativa é pequeno, fazer um trabalho social voltado para o cidadão, que é a causa, que é o motivo da nossa existência, que é prestar um serviço para a sociedade. E é o que eu faço ainda aqui. Portanto, eu não sou imprevisível a esse ponto, de renunciar à Regional nesse momento. Até porque, feliz ou infelizmente, a gente não está mais sozinho no mundo – aliás, ninguém nunca está. Eu tenho filhos em São Paulo, tenho uma vida estruturada na cidade de São Paulo. Isso torna muito difícil abandonar tudo e voltar, por exemplo, a uma Procuradoria em Tefé, em Pau dos Ferros, por exemplo, lá no Rio Grande do Norte. Eu não posso fazer isso, pois penalizaria a minha família, que está toda estruturada aqui em São Paulo.

Que circunstâncias o levaram a prestar o concurso para procurador da República?

As circunstâncias que me levaram a prestar o concurso para procurador da República foram basicamente a administração e o atuar do ex-procurador geral da República Aristides Junqueira Alvarenga. Aquilo me encantava! Foi um procurador geral da República ativo, que entrou com várias ações contra o presidente da República que o nomeou, inclusive questionando atos dele, como medidas provisórias, depois o denunciou perante o Supremo Tribunal Federal. Aquilo me encantava, um atuar ativo, voltado para a sociedade, aquela vontade de fazer que eu via no Dr. Aristides. Embora eu já estivesse no Ministério Público do Estado do Amazonas, eu via o Ministério Público Federal como algo diferente. Por quê? Porque aqui eu pensei que nós fôssemos ter para sempre a oportunidade de trabalhar, de contestar, os atos que vêm principalmente do Poder Executivo, que nós teríamos essa força, esse poder de enfrentamento – não um ‘enfrentar por enfrentar’, mas enfrentar as ilegalidades que são cometidas. Depois do Dr. Aristides, todos nós vimos, eu vi – todos nós que acompanhamos a vida do Ministério Público pôde perceber – que o Ministério Público perdeu muito daquele viço, daquele vigor, que foi dado pelo Dr. Aristides. Vieram outros procuradores, e todos eles muito ligados ao Poder Executivo, sem grande iniciativa de contestação. Repito: não é que se deva contestar tudo o que venha do Poder Executivo, pois ele não erra em tudo, óbvio, mas erra muito. E quando ele erra deveria ser contestado pelo Ministério Público, pois essa é a função do Ministério Público em defesa da Constituição, que é violada constantemente pelo Poder Executivo, e que os procuradores gerais pós-Aristides não tem tido essa vontade, esse poder, essa determinação de enfrentar as inconstitucionalidades e ilegalidades praticadas pelo Poder Executivo.

Seu interesse pelos sofistas (Protágoras e Górgias, em especial) é uma nota de sua personalidade contestadora? Crê que eles foram mal-interpretados pela Academia e pelo Liceu?

Eu tenho que concordar com você: eu tenho realmente uma personalidade contestadora. Mas isso me faz bem. Eu não vejo como um cidadão que vive no Brasil possa não ser contestador diante de tanto descalabro, tanto desmando, tantas arbitrariedades, diante de tanto descumprimento de lei. Então, nós temos que ser contestadores por natureza. O ser humano é contestador por natureza, sob pena de – não havendo contestação – a sociedade parar no tempo. Pois embora queiramos sempre atuar corretamente, obviamente nem sempre fazemos isso. E, então, dentro desse meu perfil, eu tomei conhecimento dos sofistas gregos, em especial Protágoras e Górgias (mas sem esquecermos de Hípias, Antifonte e outros). Esses sofistas me encantaram! Por quê? Eles apareceram logo no início, quando o conhecimento humano estava sendo melhor estruturado ou, pelo menos, estava sendo colocado no papel – no início da escrita, no início do pensamento que nos chegou até hoje. Porque os gregos não foram os primeiros pensadores do mundo… Eles mesmo confessam que se abeberaram em outras civilizações para pensar. Mas eles foram os que nos deixaram registrada a história do pensamento. E esses sofistas, Protágoras e Górgias em especial, vieram e contestaram todo o pensamento dos filósofos que os antecederam; mostraram as falhas que existiam nesses pensadores.

É óbvio que nem Protágoras nem Górgias eram os donos da verdade – e nem eles postulavam isso. Mas o que se percebe com esses dois filósofos e com a sofística grega em geral, é que eles nos deixaram essa necessidade de contestar, porque não existe verdade. A verdade não existe! Quem prestar atenção em qualquer escrito, em qualquer debate, em qualquer palestra, as pessoas sempre começam dizendo: eu não sou o dono da verdade! Mas ao longo da exposição, ou ao longo do escrito, querem impor a sua verdade. É uma contradição interessante: ninguém é dono da verdade, mas quer que sua verdade prevaleça. O que eu percebo nos sofistas é que eles não se comprometeram sequer com o que eles disseram. Eles disseram: ‘eu não sei, mas eu sei provar que você está errado. Mas eu não tenho compromisso nem com o que eu digo. O que eu digo também pode ser contestado e eu mesmo, se puder, eu vou me contestar’. Então isso para mim é encantador! Quando aparece alguém querendo ser ‘dono da verdade’ isso me incomoda. Me incomoda muito! Então eu encontrei nos sofistas doutrinas que dão vazão a essa minha inquietação diante dos ‘donos da verdade’.

Você pergunta se os sofistas foram mal-compreendidos pela Academia e pelo Liceu, logo por Platão e Aristóteles. Eu diria que, de certo modo não, e sim. Platão, por exemplo, tem um respeito muito grande pelos sofistas. Ele não contesta em momento nenhum o pensamento de Protágoras. Muito pelo contrário, ele se refere ao grande sofista com respeito e admiração. E toda a obra de Platão é praticamente voltada para os sofistas, inclusive no nome dos seus diálogos. Ora, não se gasta vela com defunto ruim. Você acha que Platão e Aristóteles iam gastar tanta tinta para contestar o que era uma besteira, uma bobagem? Claro que não! Só isso aí já é suficiente para trazê-los para a primeira linha do pensamento humano. Embora essa questão tenha começado com Platão e Aristóteles, que contestaram os sofistas, o problema não está propriamente aí, porque eles não são capazes de demovê-los, de provar que os sofistas estão errados. Porque eles querem ir no problema da verdade; e como não existe verdade nenhuma, eles não provaram nada. Tanto é que praticamente todos os diálogos de Platão são inconclusivos; nenhum tem um final dizendo ‘olha, aqui a questão está fechada’. Geralmente Sócrates vai para o campo para continuar pensando. Então não há fechamento do pensamento de um modo geral e nenhuma teoria fechada; todas estão em aberto desde o século V a.C., quando ocorreu o movimento sofístico, está tudo em aberto. Você que está lendo esta entrevista pode contribuir fechando estas questões.

Mas, voltando a Platão e Aristóteles: não foram eles quem desvirtuaram os sofistas. Os Sofistas foram desvirtuados principalmente pelo uso que fizeram deles, ou que fizeram pelo que Platão e Aristóteles nos deixaram. Os sofistas abalaram toda a estrutura de poder político, poder religioso, poder legal. Eles questionaram a existência de Deus, eles questionaram a existência do Estado, eles questionaram a existência da Justiça. Então pessoas como essas não são bem vistas na sociedade. E quando você pega pessoas de fé que dizem ‘esses são as bestas-feras que contestam a existência de Deus’; entram os partidários do dogmatismo etc., os fanáticos, é claro que essas pessoas questionadoras serão jogadas aos leões. Mas quem começa a ler os sofistas, ou os fragmentos que sobraram deles, e começa a interpretá-los de boa fé verá que são de uma riqueza tremenda! Tanto era rico o ensinamento deles que deu nisso: Platão escrevendo inúmeros diálogos para combater os sofistas. Aristóteles também, escreveu suas refutações – principalmente o livro ‘gama’ (Livro IV) da sua Metafísica – para combater os Sofistas. Então eles foram e são os melhores provocadores da história do conhecimento humano até hoje. Não é que a Academia e o Liceu estejam errados de todo. O que os Sofistas deixaram foi uma herança maldita que é mal-utilizada pelos seguidores de Platão e Aristóteles. Mas você pode conviver com isso e tirar suas conclusões. As pessoas tiram conclusões dos Sofistas sem procurar ver quem foram os sofistas, sem procurar ir às fontes que ainda nos restam. É verdade que são muito poucos os fragmentos e isso torna difícil encontrá-los. Tanto é que as principais fontes das doutrinas sofísticas vêm de Platão e Aristóteles – uma contradição que se os seguidores, os fanáticos, soubessem teriam queimado não os livros dos Sofistas, mas os livros de Platão e Aristóteles para que tivesse sumido tudo sobre a sofística. Eles erraram nisso. Acabou que aqueles que são tidos como os principais difamadores dos Sofistas se tornaram os melhores informantes sobre eles.

Posso dar um exemplo muito simples: Platão era favorável à escravidão, era escravocrata. Os Sofistas, não; eram contra a escravidão. Platão era a favor e os Sofistas eram contra. Existe um único fragmento dos Sofistas defendendo a humanidade, dizendo que todos os homens são iguais. Mas como nós ficamos sabendo que Platão – e também Aristóteles – eram escravocratas? É claro que está na obra deles. Mas se eles se propuseram a defender a escravidão é porque havia alguém que a condenava. E não vale aquele velho argumento, que é sempre usado, de que eles (Platão e Aristóteles) eram ‘homens do seu tempo’. É óbvio que eram homens de seu tempo. Mas como homens de seu tempo também havia aqueles que eram contra a escravidão, e entre esses estão principalmente os Sofistas. Então é isso. Eu concito as pessoas que nos leem para conhecerem o pensamento dos Sofistas e tirarem suas próprias conclusões. Não acreditem em nada do que eu estou dizendo. Procurem conhecê-los. Já há hoje no Brasil muitas obras sobre os Sofistas, traduzidas, que facilitam esse conhecimento; e obras dos Sofistas são publicadas por editoras católicas, como a Editora Paulus, por exemplo. Principalmente o uso que foi feito da obra dos Sofistas na Idade Média, pela Igreja, foi que deixou essa imagem negativa deles. Mas hoje as próprias editoras católicas estão se encarregando de trazer maiores conhecimentos sobre os Sofistas. E é interessante! Quem conhecer os Sofistas se apaixonará pelo pensamento desses homens tão incompreendidos, ainda.

A despeito de os Sofistas terem investido contra a religião, Platão os combate não por esse motivo, mas por questão política, pois ele era aristocrata, enquanto os sofistas eram democratas, ou trabalhavam pela democracia.

Platão e Aristóteles estão ultrapassados? Você subscreve a opinião de Alfred North Whitehead, de que “a mais segura caracterização genérica da tradição filosófica europeia é que ela consiste numa série de notas de rodapé a Platão”?

É uma frase interessante! Mas existem muitos canalhas com frases interessantes. E não é porque uma frase é interessante que ela é verdadeira. O autor da frase é certamente um platonista, um neoplatonista. Mas se você pesquisar, verá pessoas dizendo a mesma coisa sobre Aristóteles, de que a filosofia ocidental talvez seja uma nota de rodapé à obra de Aristóteles. E ele foi o primeiro ou o mais contundente dos contestadores de Platão, que era seu mestre. Então, a frase em si é interessante. E ela se torna mais interessante ainda quando a gente sabe que Platão foi quem deixou o maior número de diálogos. O maior número de obras vindas da Antiguidade são os diálogos de Platão, que felizmente foram preservados. Como o que nos sobrou da Antiguidade Clássica grega foram os diálogos de Platão, principalmente pela conservação que foi feita por seus seguidores, vemos que realmente é pela obra de Platão que se pode voltar o olhar para a Antiguidade Grega.

Mas isso me incomoda muito! Porque há afirmativas dizendo que alguma coisa da obra de Platão é plágio de outros autores da Antiguidade. Há essa afirmativa. Nós temos outros pensadores, também gregos, dos quais ninguém fala nada, embora a obra esteja aí. E não é aquele negócio: ‘dessa obra não se fala porque não vale nada’. Não é isso. A obra tem, sim, valor, mas ela é abandonada. Platão é interessante porque ele atende à demanda religiosa. Com aquele negócio do ‘mundo das ideias’, com a sua colocação de Deus na história do pensamento, a criação de um Deus, foi muito interessante para as religiões, e são as religiões que têm mantido muito da cultura da humanidade, principalmente aquela cultura que lhe interessa – a que não interessa eles queimam, como os árabes queimaram a Biblioteca de Alexandria, e os católicos vivem queimando obras que não interessam à Doutrina Católica. O Cristianismo fez isso. Todas as religiões fazem isso. Platão não foi queimado por isso, porque ele atende a essa demanda. Ele tem um mercado que ele veio a suprir. E como, então, ele deixou isso, não devemos dar tanta ênfase a essa frase do Alfred North Whitehead. Quando a gente começa a pesquisar mais a fundo, não devemos apenas nos impressionar com a frase, mas devemos constatar se ela é verdadeira. Ela não deixa de sê-lo, como eu disse, mas não é tão verdadeira (eu estou falando de verdade) – ela não é tão certa como se imagina. Há inclusive essa acusação contra Platão de que ele plagiou algumas obras em sua própria obra. Inclusive na República, um de seus diálogos mais famosos, dizem que foi baseada na obra de Protágoras.

Por que você escreve errado, Osório?

Eu escrevo errado porque ninguém escreve certo! Eu quero saber quem é que escreve certo! Na verdade, eu escrevo errado como toda pessoa. Todo aquele que se utiliza da língua escrita escreve errado. Se você consultar qualquer obra de qualquer autor você encontrará impropriedades apontadas por um especialista. Agora, quando eu escrevo ‘gaúxo’, ‘axo’, ‘geito’, é óbvio que eu sei que eu estou grafando dessa maneira, mas eu faço justamente para provocar o meu leitor – aquela pessoa que me lê naquele momento -, para chamar a sua atenção também. Por quê? Porque, no uso da linguagem, eu entendo que se você atingiu o objetivo de se comunicar, a linguagem atingiu o seu papel. Aí não interessa se o ‘axo’ está escrito com ‘x’ ou com ‘ch’. Por exemplo, se eu disser a você leitor [em voz alta]: ‘eu acho que você está lendo esta entrevista’, você não tem como saber se esse acho que eu disse, verbalmente, eu o disse com ‘x’ ou com ‘ch’. Tudo bem. E se eu colocá-lo no papel com ‘x’ você vai entender. ‘Eu axo q ogi vay xover’: essa mensagem é muito clara e você a entenderá. Mas, obviamente, se você quiser me contestar, você não vai questionar se hoje vai chover ou não, mas vai dizer: ‘olha, ele escreveu errado! Escreveu acho com ‘x”. E aí começa o problema do preconceito linguístico. Porque a língua, a linguagem, é um símbolo, ou é utilizada como símbolo do poder: só os ricos, só os bem-nascidos, falam e escrevem certo; a pobreza escreve e fala errado. Então isso me incomoda muito. Justamente por isso: eu quero entender a mensagem que vem do povo, principalmente o povo a quem eu sirvo enquanto servidor público. Eu escrevo também para juízes, que geralmente são pessoas vindas das classes dominantes, das classes que tiveram condição de estudar. Mas eu escrevo também para o povo, eu tenho a obrigação de me comunicar também com o povo. Então se a pessoa manda um bilhete dizendo, por exemplo: ‘senhor procurador, axo que encontrei o corpo de uma vítima do geito que sugere que foi ela assaçinada’. Eu deixarei de apurar isso porque está grafado errado? Óbvio que não! Eu terei de ir atrás, cumprir a minha obrigação! Se esse mesmo bilhete vier de uma pessoa que eu queira desqualificar, eu apontarei os erros!? Vou me perder nos detalhes, vou ficar questionando o problema dos erros e não vou cumprir a minha obrigação que é investigar o crime!? Então é isso o que me incomoda. E eu faço isso realmente, às vezes, para incomodar; causar um incômodo, para provocar o debate e tentar de alguma forma fazer essa interligação entre o que diz o cidadão na feira, para o qual o Ministério Público deve estar aberto, e aquilo que acontece no dia a dia, digamos, jurídico, onde ainda se cultivam fórmulas em latim, que ninguém compreende, e apenas jogam para fora, pois não sabem sequer pronunciá-las. Os juristas têm um modo de falar e escrever em latim. Falam praticamente para eles mesmos, para mostrar uma sapiência que às vezes nem têm. Então é um pouco disso que vem essa minha maneira de escrever.

Mas não é que eu escreva errado! Na verdade, a gramática da Língua Portuguesa é dita ‘gramática normativa’, que vem de ‘norma’; ela é lei, é algo imposto a você; não é uma criação popular, não vem daquela linguagem do povo, do dia a dia. Alguém disse: ‘tem que ser assim: casa tem que ser escrito com ‘s’ e não com ‘z’.’ Ora, se você escreve ‘caza’, a pessoa vai deixar de comprar sua casa se tiver uma plaquinha lá dizendo ‘vende-se essa caza’? Ela não deixará de comprar porque ‘caza’ está escrito com ‘z’. Mas vem um gramático chato, bate lá na sua porta, apenas para dizer: ‘Olha, aquela placa está com a escrita errada’. Vai tirar uma foto para depois fazer uma gozação de você. A gramática é uma lei, e é imposta de cima para baixo, sem consulta nem nada — nisso ninguém pensa em democracia, não é? A gente sempre fala em democracia como a participação de todos, mas na formação da língua e da escrita você não é democrático. Você quer que poucos, as pessoas da Academia Brasileira de Letras, umas vinte e cinco pessoas, decidam como 200 milhões de outras irão escrever. Se você fosse democrático você consultaria lá o povão! Como é que o povão escreve? Como é que o cidadão escreve? Como é que a grande maioria escreve? E aí talvez houvesse um equilíbrio. Mas esse problema da normatividade, da imposição de cima para baixo, é que me revolta! Desde 2009, salvo engano, nós estamos escrevendo no Brasil de duas maneiras diferentes, mas ambas estão corretas. Você ainda coloca trema quando escreve a palavra ‘linguiça’? Talvez, não. Mas se colocar também não está errado. Porque há um acordo ortográfico, entre os países de Língua Portuguesa, que não entrou em vigor. Esse acordo, por exemplo, extinguirá o trema. Então, o acordo ainda não está em vigor, mas se você olhar nos livros editados depois desse acordo verá que em quase todos já não se usa mais o trema. Mas se usar não está errado. Para você ver como uma coisa depende mais da lei do que da população que se serve dessa linguagem para se comunicar.

Esse acordo vem sendo prorrogado continuamente. E hoje os jornais têm dito que ele está parado na Comissão de Educação, Cultura e Esportes do Senado Federal, onde um senador ‘sentou-se’ sobre esse acordo e lá está: um homem, um senador de um determinado Estado da Federação Brasileira, está impedindo o tramitar desse processo-projeto. Aí as pessoas não sabem se escrevem linguiça com ou sem o trema. Mas tanto escrevendo com o trema ou sem o trema, a linguiça será a mesma linguiça que você come apimentada como tira-gosto com a sua cerveja. Então, esse é um problema. Ninguém pode dizer que você está escrevendo errado! Se eu escrever linguiça com trema, alguém vai dizer ‘você está escrevendo errado’? ‘Ah, Mas pelo acordo…’, ‘mas e o acordo?’, ‘mas nos livros as palavras estão sem trema…’, ah, mas o acordo ainda não entrou em vigor…’. Então essa é uma discussão infinita que é usada mais para desqualificar do que para incentivar a leitura e o aprendizado. Por exemplo: uma das pessoas que mais me incentivou a esse tipo de questionamento que eu sempre faço foi o Gabriel García Márquez. Em sua autobiografia ‘Viver para contar’, ele diz que uma coisa que ele nunca conseguiu aprender foi a gramática da língua espanhola. Ele diz: ‘mas também eu não preciso porque eu tenho um monte de revisores que revisam o texto. O importante é ter ideias’. E uma das coisas que eu tenho tido muita dificuldade ao longo do meu trabalho que envolve escrita é terminar esse trabalho. Toda vez que eu releio o meu trabalho eu nunca acho que ele está bom; está sempre faltando alguma coisa. E se eu for querer aperfeiçoá-lo para deixar sem falha em todos os sentidos eu não acabo nunca um trabalho. Um parecer que tenha umas cinco laudas pode demandar um mês para ficar impecável, um parecer ‘para a vitrine’. Você levará todo esse tempo e o jurisdicionado não quer saber disso; ele quer ter uma solução, uma resposta para o seu problema. É isso o que interessa. Toda vez que eu leio acabo alterando alguma coisa que eu escrevi. E essas alterações não são de questão de fundo (de mérito), mas sim de de forma. Eu troco o ‘mas’ por ‘porém’, porque tinham dois ‘mas’. Troco um ou outro parágrafo e o trabalho nunca chega ao fim. Então essa é uma das razões pelas quais eu faço os questionamentos que eu faço.

Veja a segunda parte da entrevista aqui.

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