Entrevista com Elizeta Ramos: “Quando cheguei ao final da carreira de Ministério Público Estadual resolvi correr atrás de outra semelhante, onde fosse possível começar de novo. Acho mesmo que gosto de recomeços!”

Um caso raro — e talvez único — no Ministério Público brasileiro, Elizeta chegou ao último grau da carreira do Ministério Público do Estado do Amazonas e, através de novo concurso e disputadas promoções, também ao último grau da carreira do MPF.

Lembrando de um passado nem tão distante, onde cada passo que se dava na vida era muito valorizado, Elizeta dá um testemunho que serve de lição aos mais jovens: “fico perplexa quando vejo acomodação e desanimo por parte da juventude, que hoje pode desfrutar de um mundo sem fronteiras”. Segundo ela, “a facilidade pode atrapalhar o ser humano; com ela parece que as ideias, as expectativas, os valores, as ambições ficam reduzidas a um patamar mínimo”.

Sua alegria e disposição, Elizeta em parte herdou de seus pais, muito alegres, e em parte ouvindo a ‘Irene preta e boa’ de Manuel Bandeira, que entrou no Céu sem precisar pedir licença.

E parece que sempre foi assim… Frequentava bailes de rua na adolescência, tocava pianola em um conjunto, e era a atriz que, nas aulas de teatro, sempre interpretava as personagens mais falantes. Se Elizeta tivesse vivido essa época em Águas Formosas, MG, certamente diriam: essa moça é muito ‘siligristida’…

Divertido e muito tocante, eis o nosso 28º ‘dedo de prosa’.

 

Bruno: De estagiária a subprocuradora-geral da República, como foi a sua trajetória profissional, Elizeta?

Elizeta: Doce e amarga, com altos e baixos, sucessos e perdas, mas rica e cheia de ação, emoção e novidades.

Numa retrospectiva rápida posso dizer que iniciei minha carreira como estagiária da Defensoria Pública no Rio de Janeiro por dois anos, naquele tempo de mil novecentos e se esqueça, Guanabara. E devo a este estágio muito do que consegui fazer como membro do Ministério Público, por mais paradoxal que possa parecer. Ali tive preciosos ensinamentos doutrinários, éticos e práticos que me valem até hoje.

Bruno: É engraçado você dizer isso. Em que sentido você deve ao estágio na Defensoria Pública muito do que conseguiu fazer no MPF? Em que sentido você diz isso?

Elizeta: É que o início da carreira do Ministério Público era a Defensoria Pública. Desse modo os defensores sabiam que depois de determinado tempo seriam promotores e assim os estagiários tinham dupla experiência. Com eles aprendi, por exemplo, que a defesa prévia era o momento de serem arroladas as testemunhas e mais nada. Na minha primeira peça sustentei várias teses e o defensor olhava para mim e dizia que estava ruim, fora de contexto. E eu não entendia. Fiz bem umas quatro até que a última ele rasgou e me deu a lição de que o menos ali era mais, pois qualquer coisa que eu escrevesse serviria de base para as alegações finais do promotor. É claro que chorei muito quando ele desprezou todas as minhas ‘lindas’ manifestações, pois tinha passado horas a fio estudando para elaborá-las. Esse foi um ensinamento que levei e trago comigo para o resto da vida e todas as vezes que leio uma defesa prévia ‘recheada’  de teses jurídicas agradeço ao advogado por tornar mais tranquila a acusação.

Lá também aprendi a ser fiel ao cliente — individual ou sociedade — entregando-me de corpo e alma ao trabalho do momento. E mais, ainda que eu não estivesse muito convencida da tese, mas desde que tivesse que atuar, que eu procurasse ser o mais profissional possível. Essa era uma fórmula que jamais falhava num júri, por exemplo.

Bruno: Sim, depois do estágio na Defensoria Pública, você se formou. Qual foi seu primeiro emprego depois da faculdade?

Elizeta: Pois é. Já formada fiz o primeiro concurso de que tive conhecimento, e que ocorreu no Amazonas, para o Ministério Público. Com 23 anos de idade, assumi o cargo de promotora de justiça na Comarca de Boca do Acre, em 1978, onde passei seis meses. A comarca estava sem juiz e, por isso, acabem me tornando responsável por assuntos que envolviam terras, posses e propriedades, índios, meio ambiente — e ainda isso nem era moda! –, dentre outros, até mesmo como mediadora. Lá,também atuei em matéria eleitoral.

Removida para Parintins, onde fiquei três anos, passei a ter minhas atribuições de MP mais bem traçadas. Funcionava em todos os processos, cíveis e criminais, elaborando pareceres, recursos, contrarrazões, fazia audiências todos os dias, júri, até mesmo em comarcas contíguas, exercia as funções de promotora eleitoral, atendia o público em geral e, como morava ao lado do Fórum, o trabalho era diuturno.

Já com bastante experiência fui promovida e atuei, na Capital, na Vara de Júri e Execuções Penais, quando ainda não havia a Lei n. 7.210/84 e assim as balizas de trabalho externo, regimes, e tudo o mais eram dados pelo promotor de justiça. Atuei também em Família, Criminal, Fazenda Pública, Menores, enfim, em praticamente tudo. Após um tempo fui novamente promovida para ocupar o cargo de procuradora de justiça, com assento no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas e na Chefia da Assessoria do Procurador-Geral de Justiça na parte criminal. Chegando ao fim de uma carreira, tendo sido, inclusive, membro de banca examinadora em dois concursos, e ainda nova, resolvi começar outra…

Bruno: Mas isso é muito inusitado! O que lhe passou pela cabeça, Elizeta?

Elizeta: Sei lá! Acho que o mesmo que passou quando sai do Rio de Janeiro para Boca do Acre no Amazonas. Dessa vez eu fiz o caminho inverso pois já estava na hora de voltar. Quando cheguei ao final da carreira de Ministério Público Estadual resolvi correr atrás de outra semelhante, que eu também respeitava, mas onde fosse possível começar de novo. Acho mesmo que gosto de recomeços!

Léon Tolstoi  disse que “o lugar que ocupamos é menos importante do que aquele para o qual nos dirigimos”. Por acreditar nisso, segui caminhando. Como só sei ser Ministério Público e não tendo qualquer aptidão para a magistratura — e, assim, fugindo de concorrer ao quinto constitucional –, resolvi fazer o concurso para o Ministério Público Federal, onde, após ter passado no concurso público de provas e títulos, fui mandada para o Espírito Santo.

Em Vitória exerci a substituição do Eleitoral e da Chefia da Procuradoria da República, além das atribuições naturais do cargo. Atuei não só no criminal — eu preferia elaborar todas as denúncias, alegações finais, recursos criminais do que contestar uma ação como advogada da União –, mas também em importantes causas previdenciárias, que atingiam os aposentados na época, em ações civis públicas, e especialmente no inquérito civil contra a Aracruz Celulose que foi um marco na minha vida institucional.

Bruno: O que o inquérito civil contra a Aracruz Celulose teve de tão especial? O que ele lhe ensinou?

Elizeta: Eu não tinha a mínima experiência nessa área e me vi deslumbrada com uma matéria completamente nova, ritos novos, trabalhando com peritos capacitados, vendo como as empresas podem influir, e muito, nos depoimentos dos empregados, nas provas; enfim, como elas são ‘poderosas’ E o Ministério Público atuando com responsabilidade e auxiliado por uma equipe de primeira. Acho que me senti importante porque estava fazendo a diferença e numa área na qual eu nunca havia sequer pensando em atuar. Creio que a novidade me moveu!

Aprendi o valor do conjunto, aprendi a ver a beleza e a utilidade no diálogo, na participação e no respeito mútuo. Venci algumas barreiras juntamente colegas que me ajudaram com suas experiências, força, coragem, a exemplo do Wagner Mathias e do Onofre Martins. Até então o meu trabalho sempre tinha sido muito solitário.

Bruno: Depois disso você pediu remoção para Brasília…

Elizeta: Sim. Removida para Brasília, ainda como procuradora da República, atuei na área criminal, onde permaneci depois da promoção para a Procuradoria Regional da República da 1ª Região. Participei de algumas operações, dentre elas a ‘Diamante’, com colegas brilhantes.

Minha promoção ao último grau da carreira ocorreu em 02 de dezembro de 2010, ocasião em que fui designada para funcionar nos feitos cíveis do STJ, inclusive participando das sessões da 2ª Turma daquela Corte — onde, aliás, permaneço até hoje. No ano seguinte fui designada para atuar nos feitos criminais e compor a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão na qualidade de titular, pois dela já havia participado como suplente.

Em tudo isso não me faltam casos interessantes, alguns engraçados e outros estarrecedores, para contar de cada lugar. Quem sabe um dia eu pare para recordar e faça um manuscrito?

Bruno: Por falta de incentivo e de leitores essa ideia não fracassará, Elizeta. Tenha certeza… Outra coisa. Lembro que ao falar da organização de seu gabinete na PGR, você me disse que tem feito pedidos de agilização de julgamentos dos processos que “dormem nos gabinetes dos magistrados como as almas do purgatório”. Ainda não conhecia essa metáfora, que é quase-prefeita. É que as almas do purgatório, como Dante Alighieri as retrata na Divina Comédia, pedem a todo o momento que os vivos rezem por elas, para encurtar seu tempo de sofrimento. Conta para a gente um pouco desse trabalho. E aproveitando essa excelente figura de linguagem, pergunto: há também nos tribunais, na sua opinião, determinados processos que já foram condenados à aflição eterna ou eleitos para os píncaros da glória – como se diz, que ‘vão direto para o céu’?

Elizeta: É um trabalho difícil, mas temos conseguido algumas vitórias. No ano passado mesmo, fiz muitos pedidos de preferência e os Ministros atenderam e julgaram todos os feitos. Mas é claro que eu sei — e não tenho a ilusão de pensar o contrário — que vários, e os mais importantes, ficam na ‘aflição eterna’ justamente para que aqueles que têm os nomes ali escritos desfrutem de uma vida terrena mais suave…

Ainda sobre esse assunto, no início da minha carreira dizia o defensor público — olha aí mais um ensinamento dentre tantos que recebi na época — que o processo penal se ganhava na Delegacia de Polícia. E realmente eu vi isso em toda a minha carreira. Pobres coitados ficavam a vida toda para serem julgados, empunhados, enquanto os mais poderosos resolviam com seus advogados no inquérito policial como deveria ser feita a prova, ou aguardando a prescrição. No início os promotores eram bastante passivos, frequentando apenas os seus gabinetes e recebendo os autos da maneira que as demais autoridades queriam. Felizmente isso se foi modificando, o MP começou a atuar em várias frentes e de forma independente. Deixamos de ser meros burocratas e nos transformamos em parte ativa e fiscais da lei, tanto em matéria criminal, como na cível.

Bruno: Qual é o seu segredo para manter a disposição e a alegria, Elizeta?

Elizeta: Acho que fiquei impressionada com Manuel Bandeira quando escreveu Irene preta / Irene Boa / Irene sempre de bom humor / Imagino Irene entrando no céu: / — Licença, meu branco! / E São Pedro bonachão: / — Entra Irene, você não precisa pedir licença. Ou seja, os bem humorados sempre são acarinhados, tanto no Céu como na Terra.

Mas, na verdade mesmo, tirando a brincadeira, devo isso ao DNA. Meus pais são muito alegres e dispostos. E eu sempre fui assim, desde criancinha. No colégio das Irmãs de Caridade, onde estudei no primário, ganhava notas ótimas em todas as matérias, mas em comportamento…  só o suficiente para não reprovar mesmo.

De qualquer forma, fazia teatro, e sempre me colocavam para fazer o papel de quem mais falava. Não sei por quê. Fazia balé, tocava piano, coquinho, sininho, muitas atividades. Na adolescência frequentava os bailes da rua, e todos queriam dançar comigo, pois eu arrasava! Tocava pianola em um conjunto, lia o que podia, embora o acesso aos livros naquela época fosse mais difícil; frequentava bibliotecas e estudava muito.

Bruno: A propósito, você iniciou um curso de psicologia que não chegou a terminar. E disse que com as aulas que teve aprendeu a valorizar ‘o antigo e o novo, a liberdade de ação e de expressão, os contrastes’. Que coisas antigas você valoriza e que contrastes a deixam perplexa hoje em dia?

Elizeta: Valorizo pessoas como os meus pais, que eram de classe média pobre e me deram toda a educação possível sem me deixar faltar nada. Valorizo as amizades que se faziam antigamente, época em que não havia computador e muito menos celular. Eu nem tinha telefone fixo na infância. O amor dos professores, que eram verdadeiros educadores, por seus alunos. Quantas vezes ganhei coleções de livros deles, que viam que eu gostava de estudar e era interessada por vários assuntos!

Mas valorizo também tudo o que é novo em termos tecnológicos e o que facilita a nossa vida. Acho que trazem a alegria do começo, a iniciativa, as ideias sem preconceitos. Você já viu como uma criança sabe tudo? Pergunte a ela algumas coisas e ficará até bobo com as respostas…

Os antigos já trazem algumas decepções e tristezas, certos limites, mas trazem também uma visão geral que sempre ajuda na hora de uma ‘composição’. Um não existe sem o outro. O só novo seria um mudar diário sem consequências e sem estabilidade. O só antigo seria a mesmice, sem evolução.

Acho que como subprocuradora-distribuidora de processos, logo que cheguei na PGR, e também no CSMPF, pude mostrar um pouco como valorizo as diferenças e os contrastes.

Fico perplexa quando vejo acomodação e desanimo por parte da juventude, que hoje pode desfrutar de um mundo sem fronteiras. Tudo antigamente, cada passo que se dava, era muito valorizado. Também fico perplexa em ver como a facilidade pode atrapalhar o ser humano. Com a facilidade parece que as ideias, as expectativas, os valores, as ambições, tudo fica reduzido a um patamar mínimo.

Bruno: No seu ‘tesouro da juventude’, guardado consigo, há muito da boa literatura brasileira, grandes romancistas e muita poesia. Ainda há traços dessa época na Elizeta de hoje?

Elizeta: Claro. Adoro poesias, só não tenho mais cabeça para decorá-las, como fazia na infância.

Mas nas horas de chateação eu abro um livro de poesias — e temos alguns colegas que são inspirados… –, leio e me delicio com a imaginação do poeta e com a sapiência das obras. Gosto também de fazer palavras cruzadas mais difíceis e de uma boa literatura brasileira, que sempre abre fronteiras em nossa mente e em nosso coração. Ninguém continua o mesmo depois de ler um bom livro. Em qualquer de suas manifestações, aí está a beleza da arte. A arte transforma!

Bruno: Você chegou a participar de concertos de piano na adolescência. Além dessa semente plantada na juventude, há alguma outra que você teve de deixar pelos caminhos da vida?

Elizeta: Nenhuma que pudesse dar frutos. O piano foi importante porque colocou música clássica e popular, de uma forma emocionante, nos meus ouvidos. Eu aproveitei para evoluir e senti que tinha até talento, mas não era virtuose e nem tinha vocação para dedicar horas a fio à música, especialmente à música clássica. Usei muito desse instrumento para dar vazão às raivas e às iras que tinha de vez em quando, ou seja, sentava e tocava Bach, Beethoven, e outros compositores fortes em suas obras. Mas o ser humano tem cada coisa, não é?

Bruno: E como tem…

Elizeta: Imagina que eu, menina ainda, queria ser aeromoça, mas não tinha altura, não era loura, não tinha olhos azuis… Fico olhando as aeromoças de hoje, revoltada, e pensando que eu poderia ter inovado! Depois eu queria fazer Direito e seguir carreira jurídica. E essa semente germinou… Sou realizada, pois estou além do que imaginei estar algum dia, na área em que sempre quis e lutei para estar.

Elizeta: Aliás, eu bem que gostaria de saber como você se distraía e fazia suas raivas passarem na infância e mocidade e também se deixou sementes plantadas pelo caminho…

Bruno: Eu ainda não pensei na minha história sob esse ponto de vista… Bom, na minha infância eu me distraía, por exemplo, desenhando as coisas e rabiscando letras, palavras e pequenas frases nos cadernos. Gostava de organizar o material da escola, apontar os lápis, colocar tudo no estojo e na mochila. E também gostava muito de ouvir os discos de vinil do meu pai — Sá & Guarabira, Novos Baianos, Beatles, John Lennon, George Harrison, o Michael Jackson do The Jackson 5 e outros. Era o momento de nossa parcial comunhão. O detalhe é que eu também tinha o costume de jogar os discos dele nas paredes da sala. Como se fossem ‘discos voadores’. Ocorre-me agora que isso podia ser a semente de uma vocação, a vocação de crítico musical. Algo como: não gostou do disco?, parede nele… Mas, para ser mais ‘ortodoxo’, prefiro catalogar esse hábito, que, garanto, abandonei aos seis anos de idade, entre as atividades que me aliviavam a raiva, uma raiva que a maioria das crianças desenvolve desde muito novinhas, talvez por funcionarem meio que como antena dos adultos.

Na adolescência continuei me distraindo com a música e cheguei a fazer parte de um conjunto cover dos Beatles, onde tocava guitarra e simulava, com muito esforço e pouco resultado, os solos do George Harrison e a voz do John Lennon. Talvez isso contribuísse também para dissipar um pouco da raiva. Eu particularmente acho que depois de uma certa fase, que talvez tenha começado no disco Beatles For Sale, o John Lennon passou a viver, e a cantar, com raiva. Raiva e melancolia. Imitá-lo, pelo menos através da voz, talvez permitisse que eu desse vazão aos meus sentimentos afins. Certamente devia haver outras formas mais interessantes de lidar com isso, mas foi o que deu para fazer…

Você quer saber se eu deixei sementes plantadas ao longo do caminho. A guitarra, o rock em geral, foi uma dessas sementes. Não que eu pensasse em me profissionalizar. Não é isso. Mas acredito que cheguei a investir um bom tempo e uma parcela da minha vida afetiva nesse gênero musical que hoje não me diz nada. Ficou lá atrás.

Algumas ‘sementes’ a gente deixa porque renuncia aos seus frutos possíveis. A renúncia a uma especialização temática dentro do Direito, por exemplo, é uma dessas. Há alguns anos eu planejava iniciar um mestrado em Direito Penal. Hoje, não mais. Abrir mão de ser promotor de justiça também doeu um pouco durante um tempo. São possibilidades que foram ficando para trás.

Mas está lá nos Evangelhos. Se a semente não é jogada em solo fértil e bem cuidado ela não dará frutos. Saber que sementes devemos semear na nossa vida, e saber como e quando devemos fazê-lo, é uma arte. Saber as que devemos abandonar, também.

Elizeta: Eu lhe agradeço, Bruno, pela ideia dessa audição, que mostra toda a diversidade que há entre nós, colegas e amigos do MPF. E deixo aqui a mensagem de George Bernard Shaw, que disse que “precisamos de algumas pessoas malucas; vejam só para onde as pessoas normais nos levaram” .

 

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“A maior parte de meus pareceres é acatada pelo TRF, sempre a favor do humilde e do oprimido, e contra o opressor”. Veja a entrevista com Luiz Francisco Fernandes de Souza.

Leitor de Cícero, Sêneca, dos Santos Padres e notadamente da Bíblia Sagrada, Luiz Francisco se considera um socialista católico. Para ele, Marx e Engels, e principalmente Stálin, distorceram o socialismo (…), que, segundo ele,  não é originalmente “estatização de todos os bens e muito menos ditaduras”.

Ícone do combate à corrupção nos altos círculos de Brasília durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e conhecido por ter trabalhado em processos criminais abertos contra o ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, Luiz foi promovido por antiguidade à Procuradoria Regional da 1ª Região em 2004, onde busca “ajudar pessoas pobres e mover o Estado contra criminosos ricos”.

Avesso a qualquer tipo de turismo, nosso entrevistado — também conhecido por sua simplicidade — encontra seu lugar na convivência com pessoas humildes na Ceilândia, no Guará, no Bandeirante, em Brasília.

Homem de hábitos frugais e preocupado com a saúde, frequenta a academia de ginástica e não nega conselhos de alimentação a quem lhos pede. Luiz Francisco é o Dom Quixote do Planalto Central, sempre pronto — ninguém pode negar — para defender seu próprio ideal de justiça social.

Veja nossa interessante entrevista com o procurador regional Luiz Francisco, em nosso 18º encontro.

O jornalista Augusto Nunes, da Veja, escreve sobre você com alguma frequência, geralmente fazendo referência ao que ele entende como uma paralisação de sua atuação profissional contra a corrupção nos altos círculos do Governo Federal após a eleição de 2002. Essas notícias o incomodam? Você gostaria de explicar o que realmente aconteceu?

Perfeitamente. Em 2002, o Cláudio Fonteles, então procurador-geral, me telefonou e disse que eu podia me promover por merecimento. Eu então rejeitei. Fui para Portugal para fazer um mestrado que podia ser transformado em doutorado. Porém, chegando a Lisboa, estudei onze dias e vi que os estudos seriam inúteis para o meu trabalho. Por isso, renunciei ao mestrado e voltei. Cuidei da CPI do Banestado e do caso contra o presidente do BACEN no governo Lula. E lutei por mais verbas para a educação. Até que eu fui promovido por antiguidade, em 2004. Tirei noventa dias de licença-prêmio e trabalhei todos os dias, para deixar limpo o gabinete, e me tornei procurador regional. Foi isso o que aconteceu. Na Regional, não podia mais abrir investigações e nem ficar com elas. Desde 2004, tenho excelente estatística e sempre trabalhei duramente para ajudar pessoas pobres e para mover o Estado contra criminosos ricos. O tal Augusto Nunes é bancado pelos anúncios das multinacionais. Não tem estofo ético para me criticar.

Com o que você tem trabalhado hoje na PRR1? Sente-se realizado com o trabalho?

Estou, sim, muito realizado. Tenho 31 anos de serviço público. Se o tempo extra da PEC de 98, que mudou o tempo de aposentadoria de trinta para 35 anos, for contado posso me aposentar daqui a uns quatro anos e pouco. A maior parte de meus pareceres é acatada pelo TRF, sempre a favor do humilde e do oprimido, e contra o opressor.

Eu me lembro que você esteve na Faculdade de Direito da UFMG em 2000 para uma palestra dirigida aos universitários. Eu, ainda estudante, estava na plateia. Naquela época, Luiz, você era um verdadeiro modelo de atuação para os jovens ‘idealistas’ que sonhavam em entrar no Ministério Público. Hoje, temos divergências praticamente inconciliáveis sobre parte das questões mais sérias de nossas vidas. Você concorda com Churchill, quando ele disse que quem não é socialista aos vinte anos não tem coração; e que quem continua a sê-lo aos cinquenta não tem inteligência?

Não concordo com essa conclusão de Winston Churchill. Ele era belicista, imperialista e neoliberal. Não é exemplo para ninguém. Tenho 52 anos, sou socialista católico, como era Alceu Amoroso Lima, como era Charles de Gaulle, que tem textos lindos de católico contra o imperialismo e o capitalismo — e outros. Ser socialista é ser favorável a uma economia mista, sem miséria, sem grandes fortunas privadas. O modelo da Bíblia, de Aristóteles, dos estóicos, dos Santos Padres. Odeio o capitalismo, o imperialismo e o latifúndio. E odeio também o capital monopolista privado. Eu tenho coração e inteligência e espero morrer como socialista católico.

Eu compreendo sua opção pelo socialismo… Mas, na sua opinião, o que aconteceria se pessoas como Margaret Thatcher, Winston Churchill, Ronald Reagan e os ‘fonding fathers’ americanos governassem todas as nações do planeta por cinquenta anos?

O mundo seria destruído. Pelo amor de Deus! O mundo iria bem se fosse governado por gente como Franklin Delano Roosevelt e outros. Reagan e Thatcher são pessoas banhadas em sangue, como assassinos, e o mesmo vale para Bush e outros.

Você foi seminarista da Ordem dos Jesuítas, não é? O que o modo jesuíta de viver a fé tem a ensinar aos demais cristãos de hoje e à sociedade de um modo geral?

Sim, fui. Ainda sigo em muitos pontos os textos e exemplos de Santo Inácio de Loyola, especialmente a forma de fazer escolhas, dos Exercícios Espirituais, e regras sobre a vida, da autobiografia de Santo Inácio. Tenho muito amor à Igreja e principalmente aos Jesuítas, mas também aos Franciscanos, Dominicanos, Agostinianos e outros.

Ainda sobre esse assunto, um comentarista disse de seu livro ‘Socialismo: uma utopia cristã’ que nele você “mostra de modo convincente que até a metade do século XIX o socialismo ostentava uma clara inspiração religiosa, especialmente cristã” e que “só depois do Manifesto de Marx e Engels é que o socialismo se afastou de suas fontes religiosas.” Na sua opinião, foi Karl Marx e Friedrich Engels que distorceram o Socialismo?

Marx e Engels, e principalmente Stálin, distorceram o socialismo. Socialismo é economia mista, com democracia política, cultural, econômica, difusão de bens, erradicação da miséria e das grandes fortunas privadas. Não é estatização de todos os bens e muito menos ditaduras.

Você se definiu como ‘socialista católico’. Acredita que o Socialismo compreendeu melhor que a Igreja a boa nova de Jesus Cristo?

Veja. Eu sigo a Doutrina Social da Igreja, numa versão que é chamada de socialismo católico. Sigo os ensinamentos da Igreja, e não de Marx, Engels, Lênin ou Stálin. Tenho ampla leitura sobre estes temas e sei distinguir o joio do trigo. Sou acima de tudo católico, e espero morrer assim, com a ajuda de Deus.

A propósito, os regimes comunistas mataram, no século XX, cerca de 100 milhões de pessoas. Nenhum regime comunista foi democrático. Diante disso, você se inclina a favor do livre mercado? O liberalismo econômico, limitado pela intervenção estatal moderada, não é o melhor regime já encontrado até hoje?

Eu sou contra o liberalismo econômico. Sou favorável à difusão de bens e a que todos tenham propriedades privadas. Mas seu uso deverá ser controlado pela ética e pelo Estado, como ensinaram Leão XIII, Pio XI, João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e também o Papa Francisco. Tenho veneração por todos os papas.

O governo de Cuba tem muita proximidade ideológica com personagens nacionais que estão entre os seus preferidos. Você já disse que é necessário que haja democracia e multipartidarismo em Cuba hoje. Acredita que o regime ditatorial de Fidel Castro foi um passo necessário a uma futura e eventual abertura política? Qual é o legado de Fidel Castro para o povo cubano?

O regime ditatorial em Cuba é errado. Deve haver democracia lá, tal como difusão da pequena e média propriedade. Estas são as lutas da Igreja lá, que eu apoio. Gosto de Fidel Castro como guerreiro que combateu o imperialismo. Fidel é pessoa inteligente. Nunca elogiei a falta de democracia e a falta de difusão de bens, pois Deus fez os bens para todos.

Mudando de assunto, Luiz, onde você passou sua infância? Lembra-se de ter sofrido, você, seus pais ou parentes próximos, com a ditadura militar?

Nasci em Brasília. Meu pai era homem pobre, forte, muito inteligente e veio entre os trinta mil que construíram Brasília, como candango. Vivi até os dezesseis anos na Vila Planalto, que era três vezes maior que hoje, tudo em madeira, muito pobre. Minha família não foi perseguida pela ditadura, exceto o General Bragança de Goiânia — não confundir com o General Bragança de MG. O General Bragança de Goiânia é de minha família, parente distante de minha falecida avó e muito amigo de meu falecido pai. Ele foi perseguido pela ditadura. Morreu com mais de noventa anos e jogava xadrez comigo. Além disso, uma família vizinha à nossa teve um filho preso em 1976. Participei de atos da Igreja, especialmente com os Capuchinhos, para soltar o coitado. Minha tia-avó, irmã de minha falecida avó, é freira, professora, de esquerda, como eu.

Quem são, na sua visão, os três maiores artistas de todos os tempos?

Eu sou ótimo em filosofia, literatura, história, economia etc, mas ruim em artes. Gosto de Michelangelo, Beethoven e Leonardo da Vinci, três bons católicos, a meu ver. Gosto de Victor Hugo. Mas gosto principalmente da Bíblia.

Onde o Luiz encontra seu lugar em Brasília? Viaja com frequência?

Eu só convivo com gente pobre, na Ceilândia, no Guará, no Bandeirante. E praticamente nunca viajo, pois odeio turismo.

Você lê com frequência escritores catalogados como ‘conservadores’: G. K. Chesterton, Platão, Cícero, Churchill. Para o filósofo Roger Scruton, “[c]onservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa é encontrar o que você odeia e tentar destruir”. Você concorda com ele? Acha que a sanha de destruir as coisas é uma constante da alma humana?

Chesterton não era conservador, era distributivista, como eu sou. O mesmo para Platão, Aristóteles e os estóicos. Já li bons textos de Churchill sobre a guerra, pois tenho boa leitura sobre estes temas, mas nunca gostei de Churchill. Tenho verdadeira veneração por Cícero, e mais ainda por Sêneca. Quem quer destruir é o Diabo, com os neoliberais. Eu quero ajudar Deus no esforço de criação e renovação do universo, como ensina a boa teologia.

O Brasil tem demonstrado desempenho insuficiente nos mais variados testes internacionais de educação. Você vê relação entre esse desempenho e a pedagogia de Paulo Freire? Em outras palavras, Paulo Freire é culpado pela má-educação dos brasileiros?

Paulo Freire foi o maior educador do Brasil. Não tem culpa alguma pela má educação. A culpa pela má educação é dos liberais.

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