“As artes têm um extraordinário poder de vencer nosso aprisionamento linguístico e chegar aonde as palavras não vão”. Veja nosso bate-papo com Rodrigo Prado.

Por circunstâncias estranhas à sua vontade, Rodrigo Prado já atua há doze anos na área criminal da PRMG, em que reconhece ter participado de iniciativas interessantes, “com potencial transformador verdadeiro, sobretudo na área de crimes financeiros”. Apesar da extrema dedicação a seu ofício, acredita não ter o perfil mais indicado para oficiar na área criminal — opinião, posso assegurar, que não é corroborada por quem conhece seu trabalho. Segundo diz, “por mais reprovável que tenha sido a conduta do agente, por mais necessária que seja a pena, não consigo sentir prazer em razão de sua sujeição a um sofrimento (…). É claro que alguém tem que promover a persecução e faço o melhor que posso para tentar me desincumbir dessa missão”.

Rodrigo diz não botar fé no Direito como instrumento reformador, “mas no potencial construtivo individual de alguns de seus agentes”. Nessa linha, é otimista em relação à atuação do Ministério Público Federal: “Considerando a tradição ministerial de bater carimbos de dilação de prazo e de emitir pareceres sobre representações policiais, penso que avançamos muito. Há dez anos, quem imaginaria que teríamos especialistas na negociação de acordos de cooperação premiada na Casa? Que protagonizaríamos a redação de manuais de investigação ou que discutiríamos, em pé de igualdade com o COAF e a Receita Federal, sobre procedimentos e rotinas internas desses órgãos? Para manter o otimismo, sempre tento olhar para trás e ver como já fomos um dia”.

Esse bate-papo, que foi muito além de uma entrevista, passeou por temas como cinema, loucura e generosidade (uma das coisas em que, aliás, Rodrigo acredita com a força da fé).

Juntem-se a nós neste 25º encontro, de preferência bem sentados e atentos. Eis um colóquio interessante e denso, prenúncio de outros tantos que ainda virão.

Bruno Magalhães — Você é conhecido pela sua extrema exigência com a qualidade e a correção em suas manifestações processuais. Os réus também ‘sofrem’ com esse seu rigor, Rodrigo?

Rodrigo Prado — Se eu entendi bem a que você se refere – o rigor na conferência de cada termo de verificação fiscal, na manutenção do padrão de leiaute da peça, na releitura integral dos autos na fase do art. 402 do CPP — acho que a resposta é negativa. Eu é que “sofro” com um preciosismo que pouco ou nada interfere no resultado da atuação ministerial. Em algumas situações, é claro que essa tendência de exaurir o objeto dos autos pode acarretar algum ônus para os alvos; isto ocorre, sobretudo, nos casos de grande vulto, nos quais se instala um hiato na minha vida e viro madrugadas no gabinete, na esperança de que minha atuação no MPF sirva para alguma coisa, como reaver o produto do crime ou dificultar a vida de uma organização criminosa. Na maioria das vezes, porém, essa pegada obsessiva acaba aproveitando mais aos réus mal representados do que à acusação, pois favorece, por exemplo, a detecção de defeitos na imputação ministerial.

Rodrigo Prado — E quanto a você, Bruno? Se fosse descrever as características que o definem como procurador da República, o que diria?

Bruno Magalhães — Antes de dizer o que me define como procurador da República seria interessante dizer o que, penso, nos define como instituição. Porque é dentro dessa matriz que eu, que cada colega, tem a liberdade de imprimir suas características pessoais. Aliás, eu acredito que é pra isso que nascemos: pra preencher com nossa vida e com a matéria de nossos desejos as estruturas que herdamos de nossa família, das instituições e da sociedade em geral. Apenas um parênteses: é verdade que alguns colegas, parecendo não observar qualquer matriz, aparentemente querem refundar a República ex nihilo. Mas mesmo eles, pensando bem, acreditam que estão seguindo certa tradição (conversam entre si, formam grupos, citam-se mutuamente em dissertações e teses acadêmicas, louvam seus mestres e tentam trilhar o caminho possível que eles indicam).

Então, a que nós, procuradores da República, servimos? A minha opinião é: não servimos ao povo em geral. Isso é uma bobagem que não anima ninguém. É uma abstração que não nos leva a lugar nenhum. A verdade é que servimos aos bons. Porque o sistema é bem articulado, os outros recebem os efeitos benéficos de nossa atuação, quando ela é efetivamente benéfica. Que bom que é assim. De outra forma o sistema já se teria desmontado. A ideia de que servimos a todos só se sustenta, e só assim a aceito, se reconhecermos que assim fazemos contra a vontade expressa de alguns. É uma questão espinhosa, veja. Por que não servimos à sociedade em geral? Porque a sociedade é composta de milhões de interesses individuais ou coletivos, a maioria deles contraditórios entre si — e alguns francamente inconfessáveis. Por exemplo, somente por meio de uma construção abstrata e distante da realidade, só mesmo em uma Teoria do Estado de laboratório, se pode dizer que a nossa atuação contra a improbidade administrativa ‘serve à sociedade’, a uma sociedade em que a maioria das pessoas, se perguntada, responderia espontaneamente que não há nada de errado em que o administrador público escolha para a execução de um contrato uma empresa em que ele confie; que não vê nada de errado em que um deputado federal receba 10% ou 20% do valor de uma emenda parlamentar desde que ele próprio trabalhe para ‘conquistá-la’ com o objetivo de, ao fim de tudo, trazer uma quadra poliesportiva para determinado município. A quadra está lá para que os jovens a utilizem. Para a maioria dos nossos, é isso o que importa afinal. Eu já disse em outro lugar que, às vezes, somos uma instituição um pouco aristocrática — naquilo que a aristocracia tinha de antipático aos olhos do povo, ou pelo menos tem aos olhos dos historiadores. Resumindo: acredito que o Ministério Público em geral atue no interesse dos bons ou, para dourar um pouco a pílula, atue ‘no interesse do melhor interesse’ de cada uma das pessoas. Na nossa atuação, deveríamos nos perguntar: como as melhores pessoas agiriam nesta situação? Por ‘melhores’ me refiro aos mais honestos, aos mais corajosos, aos mais lúcidos, aos mais sinceros.

Mas voltemos à pergunta. O que me define como procurador? Eu gostaria de ouvir uma opinião qualificada a respeito disso. A imagem que faço de mim, creio, é excessivamente benevolente. E entre mim e o que em mim é o quem eu me suponho corre um rio sem fim. Mas evidentemente sou hoje um procurador diferente daquele que tomou posse há dez anos. Havia em mim, naquela época, uma certa hybris de que me envergonho, hoje, como nos envergonhamos, alguns de nós, do que tenhamos dito ou feito inadvertidamente em estado de embriaguez. Trazia uma certa agitação, uma necessidade de estar em movimento, como certos carros que, dizem, só amaciam depois de milhares de quilômetros de estrada. O tempo e a vida vão acalmando a gente. Estou hoje calmo como o homem da terra dos gadarenos que Jesus curou. Talvez isso seja parte de uma sensação que passei a ter com o tempo, que curiosamente surgiu entre nós ali onde estiveram os primeiros filósofos gregos: uma sensação de que o mundo é ordenado, de que é verdadeiramente um cosmos. Aqui e ali surgem determinadas desordens parciais, que só serão aplacadas com aquilo de que são a privação: um genuíno amor às pessoas e às coisas. E não vejo modo melhor de indicar a essência de minhas atribuições hoje: transmitir um pouco de amor às pessoas, e devolver a Deus um pouco do muito que recebo, tentando colocar alguma ordem na pequena parte do mundo que me cabe, cujo centro e símbolo, por assim dizer, são o meu gabinete e os casos, atuais e potenciais, que estão sob os meus cuidados.

Mas creio que ainda não respondi à sua pergunta. Que tipo de procurador sou eu? Bom, eu busco ser atento à adequação das minhas manifestações em relação à importância dos processos e ao resultado do que faço. Tenho certa obsessão por redação, especialmente a redação de denúncias. Vejo entristecido tantas e tantas ações penais perdidas por falta de uma boa acusação e tento a cada dia melhorar pessoalmente essa técnica. Não costumo brigar com a polícia. Quando ainda era promotor de justiça precisei entrar com uma ação de improbidade contra um delegado e, já no MPF, precisei representar contra dois delegados que me tiravam do sério, em outra unidade da federação, porque não trabalhavam, e quando eventualmente tentavam alguma pálida atuação sempre ‘terceirizavam’ ao Ministério Público a iniciativa, os meios e o desfecho de tudo. Fora isso, trato-os como colegas de trabalho que têm seus dramas e seus altos e baixos. Meu avô trabalhou na guarda civil em Belo Horizonte nas décadas de 50 e 60, eu cresci no IAPI, um conjunto habitacional em cuja entrada fica o Departamento de Investigações da Lagoinha (da Polícia Civil) e muitos dos amigos de meu pai eram delegados de polícia. Cresci com alguns deles. Tocavam violão nas festas em nosso apartamento, eram amigos de meu pai. Por isso, acho, eu os compreendo e muitas vezes me compadeço de suas mazelas. Fico muito contente quando encontro um servidor do MPF dedicado e inteligente e me chateio quando, apesar de tantas instruções, alertas e advertências, alguns permaneçam com seus maus hábitos de trabalho. Sinto que nosso trabalho renderia mais e melhor se tivéssemos um pouco mais de liberdade de escolher nossa equipe. Mas, para ser sincero, acho que eu pessoalmente, como cresço com minhas próprias dificuldades, cresço também com as dificuldades dos meus servidores, que me incentivam a encontrar maneiras diferentes de ajudá-los.

Na área criminal, não costumo ser um procurador ‘lei e ordem’ — sou muito sensível a alguns excessos persecutórios (que, mea culpa, inclusive eu mesmo já cheguei a cometer). Gosto de resolver casos complexos, volumosos, principalmente se estou com tempo. Desvendar como o crime foi praticado, juntar as ‘peças’, que cada página do inquérito policial apenas insinua, e transformar tudo isso em uma acusação narrada em uma denúncia criminal é uma das coisas que mais me dá satisfação. Em poucas palavras: colocar ordem na minúscula parcela do mundo que está sob minha responsabilidade.

Bruno Magalhães — Você é provavelmente o único procurador da sua geração que atua, desde sempre, exclusivamente, no núcleo criminal de uma capital. Já se sentiu atraído pela tutela coletiva?

Rodrigo Prado — Como a Ana Paula PRR, nunca sonhei em ser procurador. Só me inscrevi no concurso porque, numa noite de réveillon, eu e um amigo deliberamos lá pela vigésima cerveja que não dava mais para cumprir algumas súmulas imorais do Gilmar Mendes na AGU e o jeito seria mudar de carreira. Acabei passando na primeira etapa de bobeira, comecei a estudar freneticamente e dei a sorte de ser lotado diretamente em Belo Horizonte.

Descobri a tutela coletiva só aqui dentro. Fiquei embasbacado com a possibilidade de ajudar a vida de tanta gente, às vezes com providências singelas como uma reunião ou a expedição de uma recomendação, mas somente havia vagas na área criminal. Tal situação perdurou por mais de uma década e aqui estou.

Creio que não tenho o perfil mais indicado para oficiar na área criminal. Por mais reprovável que tenha sido a conduta do agente, por mais necessária que seja a pena, não consigo sentir prazer em razão de sua sujeição a um sofrimento, nem deixar de pensar, por exemplo, que seu proceder reflete um sem-número de vetores que forjaram a psique do sujeito ou que a apenação trará grande sofrimento para seus pais, seus filhos, seu cônjuge. É claro que alguém tem que promover a persecução e faço o melhor que posso para tentar me desincumbir dessa missão. Só acho que, para a manutenção da dialética processual, é desejável que figure alguém mais apaixonado no polo ativo da ação penal.

Porém, já se vão doze anos … durante os quais não fiz itinerâncias e oficiei no Cível apenas em alguns plantões, justamente porque minha formação na tutela é muito deficiente. Em contrapartida, tive o privilégio de poder atuar fora do gabinete na área criminal e de participar de iniciativas bacanas, com potencial transformador verdadeiro, sobretudo na área de crimes financeiros. Quando surgir uma vaga na tutela coletiva, será vou ter a coragem de abrir mão das conquistas na área criminal, morrer de estudar e começar a criar um acervo de peças do zero? Não sei. No momento adequado, espero que sim.

Rodrigo Prado — Já você, segundo as próprias palavras, “faz de tudo um pouco” na PRM em Governador Valadares. Você se identifica de forma especial com alguma área temática da tutela coletiva cível, além da improbidade? A que atribui essa identificação?

Bruno Magalhães — A tutela coletiva cível, aqui na PRM Governador Valadares, é basicamente improbidade administrativa. Há um considerável volume de verbas federais em cada um dos 56 municípios de nossa atribuição. E muita gente de olho nelas. Há, claro, algum trabalho a ser feito na área do meio ambiente (principalmente mineração), na saúde, no funcionamento dos serviços públicos e na PFDC. Mas o grosso é mesmo a improbidade administrativa. Não tenho afinidade especial por nenhuma área da tutela coletiva aqui. Mas já tive há alguns anos muita vontade de trabalhar na área da educação. Acho louvável a iniciativa dos colegas do MPEduc. É preciso que se comece de algum ponto. Não há, penso, nenhuma crítica a fazer a esses colegas, que estão trabalhando na coisa certa. Acredito, porém, que o baixo nível de nosso ensino não se deve à falta de verbas, à estrutura deficiente das escolas ou à desvalorização dos professores. Mas sim a um intencional desmonte das estruturas educacionais, proporcionados, entre outros, pela pedagogia falida de Paulo Freire, um vírus que infestou toda a educação brasileira há décadas. Mas há hoje diversas iniciativas surgindo aqui e ali na área da educação e muitas delas, felizmente, têm aparecido e se fortalecido à margem do Estado, no seio da sociedade civil. Fico feliz que seja assim.

Bruno Magalhães — O fenômeno do terrorismo é um de seus muitos interesses. O que chama a sua atenção aí?

Rodrigo Prado — Sei lá… Chama a minha atenção, de cara, a controvérsia que reina sobre quase todas suas facetas. Há mais de um século tem-se tentado conceituar o terrorismo, em vão – e olha que poucas palavras têm tanto peso semântico, tanto poder incendiário para mexer com barreiras morais, representações culturais e gatilhos psicológicos. Outra coisa interessante é a dificuldade de discernir “good guys” e “bad guys” em um fenômeno com raízes tão profundas, em cuja etiologia gravitam o interesse do fornecedor de armas, a ligação ancestral entre um povo e sua terra, a ausência de um sistema financeiro formal, a doutrina de um líder religioso, um Estado falido, uma conjuntura geopolítica, tanta coisa. É um prato cheio para quem não gosta de respostas prontas, como eu.

Rodrigo Prado — Certa vez, você disse na rede Membros que não havia no Brasil um partido que fosse efetivamente conservador, nem que se autodeclarasse como tal. Achei tal constatação sensacional, pois, talvez em razão das minhas próprias convicções, nunca tinha me dado conta de que existia uma lacuna de representatividade tão grande no país. Em sua opinião, esse quadro mudou com a ascensão do PRTB de Levy Fidelix, do PSC do Pastor Feliciano ou do PP de Jair Bolsonaro, por exemplo?

Bruno Magalhães — Acho que não mudou, não. Levy Fidelix, Feliciano e Bolsonaro são caricaturas e, mais importante, não são partidos políticos. Feliciano, Bolsonaro e Pastor Everaldo (candidato à presidência nas últimas eleições) exteriorizam, à sua maneira às vezes caricata, o que pensa a maior parte dos brasileiros. Mas eles ainda não têm um projeto de país claramente delineado — e se têm, temo, com a possível exceção do Pastor Everaldo, que eles não representem exatamente o conservadorismo a que me referi na mensagem que você recordou. A verdade é que temos uma mídia intolerante — ela, sim, conservadora no mau sentido, conservadora de suas bizarrices e de suas próprias ideias preconcebidas –, que serve de anteparo entre a população e eventuais e potenciais líderes políticos. Apesar das novelas, apesar do Jornal Nacional, apesar das ONGs e apesar dos sociólogos, a população continua acreditando que é justo um endurecimento penal, continua sendo contra a descriminalização das drogas e do aborto. O brasileiro em geral, embora seja relativamente liberal entre quatro paredes, ainda busca conservar um saudável pudor em público, sabe reconhecer uma boa música, uma bela construção. Apesar disso, as modinhas políticas e culturais medram e abundam nos meios de comunicação — e a população em geral, que no fundo tem sensibilidade moral e estética, acaba consumindo lixo e votando em gente estranha. Sabemos avaliar a honestidade e a firmeza de um bom político, mas na hora de votar nos aparecem figuras sem fibra, maledicentes, desbocadas, incompetentes e frequentemente desonestas. É dose. A população sabe reconhecer uma bela canção popular, mas na hora dos encontros da firma, das festinhas de aniversário, o que colocam para animar? Você sabe o que colocam para animar…

O ressurgimento de partidos conservadores no Brasil, ou mais propriamente a revalorização da política por aqui, deverá começar, como diz o prof. Olavo de Carvalho, pelo imaginário, principalmente pela literatura — de que hoje estamos absolutamente carentes, aliás. O nosso imaginário está tão bagunçado e confuso que já perdemos a noção do que seja uma discussão sincera. E o que vemos hoje são trocas de convicções (melhor seria dizer, em vez de ‘trocas’: arremessos, como se arremessam tomates), convicções de que os interlocutores já não têm a mínima intenção de abrir mão. O brasileiro médio não sabe valorizar — se é que conhece — as grandes conquistas da humanidade. Em outros países também temos pessoas assim, aos montes, mas elas têm a sorte de contar com instituições mais ou menos sólidas, que acabam fazendo o serviço e suprindo a sua ignorância. Além do mais, em países com cultura consolidada as pessoas têm e valorizam sua história — representada pelos monumentos e construções, pelos livros, pela técnica, pelos costumes. Se não sabemos até onde a humanidade já subiu, estaremos condenados a ficar no raso, no trivial, batendo cabeça, redescobrindo a roda e, pior, constatando depois, atônitos, que as rodas que construímos não servem a nossos propósitos. E que foram muito caras. Em um ambiente assim, qualquer movimento conservador levará muitos anos para se estabelecer. E tudo o que tem aparecido sob esse nome só terá expressão caricatural. Como disse o José Kalil em uma das entrevistas deste site, parece que infelizmente ainda não temos muito o que conservar no Brasil.

Bruno Magalhães — Você diz que acredita no potencial do Direito como instrumento para uma atuação construtiva, generosa, na área da cidadania. Eu acho que compreendo o que você diz e concordo em grande parte com a ideia geral implícita nas ações de ‘direito & cidadania’. Mas você não acha que, como sociedade, perdemos a noção de ‘deveres do cidadão’ como um dos elementos do Estado de Direito?

Rodrigo Prado — Não boto muita fé no Direito como instrumento reformador, mas no potencial construtivo individual de alguns de seus agentes. Temos grandes nomes no MPF, como o Aureo, o Daniel Avelino e o Eduardo El-Hage, na tutela coletiva, de cuja atuação me orgulho profundamente.

No mais, concordo com você. Se a comunidade não se autorregula, ou se ela se autorregula em detrimento da possibilidade de que alguns de seus membros tenham o direito de ter direitos, é preciso que o exercício da cidadania seja assegurado através de algum expediente exógeno. Um deles é a previsão de deveres jurídicos. Acredito mais, porém, na gestação dos deveres através da educação, do processo histórico, do que da imposição de sanções.

Antes de passar adiante, Bruno, gostaria de deixar claro que não tenho o menor embasamento teórico para dar pitacos sobre estas coisas. O grande espaço que o chatíssimo discurso jurídico tem ocupado na minha vida desde o início da faculdade asfixiou meu prazer pela leitura fora do gabinete; sou hoje um mero técnico do Direito, um “chão de fábrica” desprovido de qualquer instrumental reflexivo. Minhas respostas, portanto, não refletem posições abalizadas, só achismos.

Rodrigo Prado — A PFDC geralmente é identificada com agendas reformadoras, sobretudo no campo dos costumes. A impressão que tenho é que você, que já foi PRDC, não compactuaria com parte delas. Há espaço para a atuação ministerial com viés conservador na área da cidadania?

Bruno Magalhães — Espaço, propriamente falando, há. Prova disso é que temos o Aílton Benedito, em Goiás, e o Carlos Cabeleira, no Espírito Santo, dois bravos colegas que buscam fazer o seu trabalho da melhor forma possível. Certamente são vistos como ‘revolucionários’ (ironicamente, é isso mesmo) dentro da PFDC afinada com algumas bandeiras de discutível validade jurídica.

A minha atuação na PRDC no Pará foi meteórica. Foram apenas dois ou três meses. Não tive espaço, nem presença de espírito suficiente, para traçar qualquer plano de atuação na área. Atuei em meia dúzia de casos de baixa e de média repercussão. Nada mais. Já disse a alguns colegas, em tom de brincadeira, que — se preparem! — dentro de alguns anos vamos nos reunir em pelo menos dez estados-chave, na época da eleição para a PRDC, e vamos tomar o poder pela via democrática. Alguns já prometeram votar em mim em Minas Gerais. A verdade é que, com a exceção dos colegas mais novos, que entraram na carreira depois de se alimentarem com essas doutrinas, a maioria da classe ou não concorda com a maioria das bandeiras levantadas pela PFDC ou pelo menos as acha excêntricas. Penso que muitas delas têm lá sua razão de ser. O problema é que muitíssimas outras atuações, de importância crucial, não vêm sendo desenvolvidas. Provavelmente por isso temos tido dificuldade de encontrar candidatos à PRDC em muitos estados da federação.

Bruno Magalhães — Você iniciou seu doutorado em Direito Econômico mas não chegou a concluí-lo. Desiludiu-se com a vida acadêmica?

Rodrigo Prado — Meu início de doutorado foi muito decepcionante. As aulas eram conversas de boteco, ninguém estudava, mas o grupo se apresentava com pompa ao citar em público nomes de autores pouco conhecidos e usar chavões sem conteúdo (“esta questão da internalização do capital estrangeiro é realmente muito relevante”).

Mas não me desiludi com a vida acadêmica. Apenas espero a hora certa para, na instituição de ensino certa, aprender um pouco sobre algumas ideias que tenho na manga.

Rodrigo Prado — A obtenção do domínio possível sobre toda a cultura clássica ocupa um grande espaço em sua vida. Você acredita que o conhecimento lhe pode trazer felicidade? De que forma?

Bruno Magalhães — Em termos, sim. A vida teorética, já dizia Aristóteles, é a vida mais feliz. A ignorância nunca é um bem. Pode, no máximo, ser uma aparência de bem. É o conhecimento da verdade que nos liberta. No Evangelho de São João, a vida eterna é descrita como o conhecimento que temos ou teremos de Deus como Deus Único e a Jesus Cristo, Seu Filho.

Em um outro sentido, mais relacionado à sua pergunta, acredito que seríamos mais felizes se cada um de nós tivesse — ou pelo menos buscasse, o que já é metade do caminho — o domínio possível dos conhecimentos necessários e compatíveis à sua forma de vida. Não sei se estou certo no que vou dizer, mas é uma intuição que me é muito recorrente: a maior parte de nosso sofrimento tem origem em alguma forma de ignorância. O ser é amável, todos os seres são amáveis, e de tudo o que nos acontece podemos extrair um bem. Se não amamos os seres e se sofremos com as circunstâncias da vida é porque não os conhecemos suficientemente e não temos a noção das relações que entre tudo e entre todos a mão de Deus estabelece. Parênteses: como não sou adepto do intelectualismo socrático, preciso reconhecer que apesar do conhecimento muitas vezes falará mais alto nossa maldade, nosso coração de pedra. Ele, sim, é a origem primeira de nosso sofrimento. A nossa rebeldia é que está na raiz de tudo isso. E se à rebeldia acrescentamos doses generosas de ignorância, o estrago costuma ser bem grande.

Jamais teremos o completo conhecimento dos desígnios de Deus, mas podemos escolher entre a completa ignorância e um conhecimento suficiente e adequado da parte que nos cabe conhecer. Esse conhecimento nos traz lampejos de felicidade. Nos faz mais felizes saber algo que não sabíamos. Você certamente já teve essa experiência. Experimente lembrar a sensação que você teve quando, diante de um caso complexo, de um processo complicado, encontrou uma boa solução após ler a opinião de um doutrinador ou encontrar na legislação um dispositivo a ele aplicável. É uma pequena alegria. Como é uma pequena alegria encontrar o caminho certo depois de ficar um tempão perdido nas ruas de uma cidade desconhecida. Pois então. Vejo a nossa vida como um grande e complicado processo ou como o caminhar por caminhos de uma cidade desconhecida. A medida em que nos damos conta das soluções — ou simplesmente das explicações para o que não tem solução — e dos caminhos possíveis é a medida das nossas pequenas e grandes alegrias diárias. A soma disso, no contexto de uma vida, é um análogo da verdadeira felicidade e pode nos ajudar a buscá-la com maior ânimo.

Mas, veja. O estudo sistemático, através de livros, é apenas um dos modos de conhecimento — e pode ser, paradoxalmente, também um dos modos de emburrecimento. Aprendemos muito uns com os outros, com as pessoas com que convivemos, com nossos mestres, com as experiências, com as crianças , com os animais e até com as plantas. Ler mal e, além disso, ler determinadas obras pode nos emburrecer. É o que eu penso.

Outra coisa. Esse conhecimento que nos aproxima da felicidade não deve ser confundido com a erudição, com o beletrismo ou com um título de pós-graduação. Esses símbolos de conhecimento podem ser, e com muita frequência são, como cheques sem fundo: muito valiosos aos nossos olhos, mas quando vamos testar seu verdadeiro valor na boca do caixa vemos que não passavam disto: uma tentativa mais ou menos fracassada de simbolizar algo valioso.

Bruno Magalhães — A ESMPU promoveu há pouco tempo um curso sobre técnicas especiais de investigação. Você foi um dos destacados professores escalados para o evento. Acredita que o MPF tem avançado nessa questão? Na sua opinião, o nosso inquérito policial de hoje é uma instituição falida?

Rodrigo Prado — Considerando a tradição ministerial de bater carimbos de dilação de prazo e de emitir pareceres sobre representações policiais, penso que avançamos muito. Há dez anos, quem imaginaria que teríamos especialistas na negociação de acordos de cooperação premiada na Casa? Que protagonizaríamos a redação de manuais de investigação ou que discutiríamos, em pé de igualdade com o COAF e a Receita Federal, sobre procedimentos e rotinas internas desses órgãos? Para manter o otimismo, sempre tento olhar para trás e ver como já fomos um dia.

Quanto ao inquérito policial, não creio que seja, por si só, uma instituição falida. A forma como ele é disciplinado e conduzido é que é ruim. Muitos delegados são burocratas que não sabem investigar. A obrigatoriedade da ação penal, que um dia serviu a propósitos muito republicanos – você já viu um inquérito da década de 50? o isolamento da cena do crime, a perícia na grama, tudo parece saído de uma série de tv americana – hoje impede que o aparato estatal obtenha resultados na persecução, sobretudo no terreno da macrocriminalidade. Qualquer um de nós poderia ficar meia hora aqui apontando outros problemas sobre a coleta de elementos de convicção na seara penal. É preciso adequar sua disciplina aos desafios que vivemos hoje.

Rodrigo Prado — Sigo fora da temática jurídica. A seu ver, qual é o papel da simploriedade, da espontaneidade e da leveza na formação cultural humana?

Bruno Magalhães — É uma pergunta difícil, essa. E inusitada, também. Veja. Você deve ter assistido ao filme Dogville. Pois então. O peso que a personagem da Nicole Kidman arrasta talvez simbolize muito do que nos impede de chegar a essa desejada espontaneidade e leveza (não sei em que sentido você fala em ‘simploriedade’, palavra que para mim está vinculada a um certo tipo de inocência, inadequada, indesejada, diante da vida — diferente de ‘simplicidade’, que me parece mais afim à espontaneidade e à leveza). Acredito que as crianças novinhas sejam realmente simplórias e tenham muita espontaneidade e leveza em seu ser. Vamos perdendo isso com o tempo, né? Um autor católico diz que uma criança de sete anos de idade acha o máximo quando lhe contam uma estória em que ‘Joãozinho bateu à porta e quando ele menos esperava do outro lado surgiu um tigre’; e que, por sua vez, uma criança de três anos de idade acha o máximo quando lhe contam uma estória em que ‘Joãozinho bateu à porta’.

É comum que as pessoas busquem resgatar esse estado, digamos, primordial através de técnicas de relaxamento, de meditação, de esvaziamento da mente. Algum motivo devem ter para isso. De algum modo isso deve funcionar em seus casos. Mas acho que não devemos nos enganar: para grande parte das pessoas, hoje, a reaquisição de uma vida simples, de uma espontaneidade e leveza não seriam alcançadas senão através de renúncias que a pessoa provavelmente não estará disposta a implementar.

A espontaneidade e a leveza são características que, para mim, estão necessariamente vinculadas à graça de Deus. Veja que São Paulo Apóstolo, em dois momentos diferentes, dá exemplos disso. Certa feita havia um peso enorme em sua consciência; e ele disse: “o bem que quero não faço, mas faço o mal que não quero”. Em outra oportunidade, sentiu como que uma leveza, fico imaginando, e uma simplicidade ao ponto da quase-aniquilação — e pôde então dizer: “não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”.

Acredito que os esportes, as artes e todas as atividades humanas podem ser praticados com graça. Vejo por exemplo muita leveza e espontaneidade em uma performance da ginasta romena Nadia Comaneci (de que há um vídeo no YouTube chamado “First Perfect Score | Montreal 1976 Olympics“) e vejo também leveza e espontaneidade ouvindo Raphael Rabello tocando, por exemplo, Sons de Carrilhões (também há no YouTube) — sinal de que leveza e espontaneidade parecem exigir algum tipo de esforço. Que tipo de esforço? Não sei ao certo. Talvez aquele esforço que Eugen Herrigel descreveu na Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, um esforço que é uma confiança na capacidade de orientação própria do ser.

Na área da cultura, talvez a leveza e a espontaneidade estejam na exata adequação entre conhecimento e vida, entre consciência e ato. Evidentemente se trata de um ideal inalcançável, mas nem por isso devemos renunciar a ele.

Há uma expressão deplorável hoje que expressa, por contraste, o que estou querendo dizer. A expressão é ‘bagagem cultural’. Porém, veja, a verdadeira cultura não pesa nas costas como uma ‘bagagem’ mas é verdadeiramente incorporada na pessoa. A cultura simbolizada pela bagagem é geralmente pesada, limitada, pode prejudicar a saúde e sobretudo não faz parte do patrimônio pessoal do indivíduo, pois não está verdadeiramente incorporada a ele. Então, leveza e espontaneidade tem tudo a ver com a boa cultura.

Bruno Magalhães — Você acredita no Direito Penal, Rodrigo? Qual sua importância concreta, hoje, para as pessoas?

Rodrigo Prado — Acredito que ele é um mal necessário, mas que a sanção penal tem servido mais à manutenção de uma estrutura social do que à ressocialização de que ouvimos falar na escola. Como é que um sujeito que nunca foi “socializado”, sob o ponto de vista da elite cultural de que fazemos parte, pode ser ressocializado através da aplicação monocromática da norma? Nem por isto, infelizmente, dá para descartar o Direito Penal. Precisamos de sua representação simbólica, do conjunto de valores que ele veicula e da proteção que ele promete.

Rodrigo Prado — Gostaria de ouvir seu posicionamento sobre a mesma questão.

Bruno Magalhães — Eu também gosto da ideia de que o Direito Penal seja um ‘mal necessário’. A propósito, eu acredito no Direito Penal assim como acredito que determinadas pessoas, em certo ponto da vida, já não conseguirão resistir a seus hábitos criminosos. A finalidade ressocializadora da pena é, na minha opinião, uma quimera, é uma justificativa que damos para nós próprios e para a sociedade a fim de que não pareçamos muito insensíveis diante da grande violência que é a segregação de um ser humano pela pena de prisão — mal que você já mencionou agora há pouco. Mas, o que se há de fazer? Não suportamos conviver com estupradores à solta, com assaltantes andando por aí, com traficantes oferecendo drogas nas esquinas aos nossos filhos. O Direito Penal é importante por isso: nos promete — e cumpre-o em algum grau — um mínimo de paz social. Quem ressocializa é uma família estruturada, é dar e receber amor, são os bons amigos; é a religião, é a arte. Todos os dias dezenas de pessoas no país são ‘salvas’ de uma vida desgraçada principalmente por pastores evangélicos e grupos de protestantes que pregam nas penitenciárias. Eu conheço dois casos de pessoas muito próximas de mim que deixaram o submundo das drogas e da criminalidade violenta através da religião. Sozinhas, as grades não ressocializam ninguém, os agentes penitenciários não ressocializam ninguém. Os poucos que saem da execução penal ressocializados fazem-no ‘apesar’ do sistema penitenciário; ou então são os beneficiários do Método APAC (que, a rigor, não é indicado para todas as personalidades). Tertium non datur.

Bruno Magalhães — Qual é na sua visão o fundamento moral da generosidade? Dito de outro modo, por que o ‘ser generoso’ é um bem?

Rodrigo Prado — Xi, não sei responder. Talvez seja um bem porque, em nosso processo evolutivo, constatamos que a generosidade era importante para a preservação do grupo e porque precisávamos acreditar na existência de valores universalmente bons. A tradição cristã certamente desempenhou um papel crucial nesse processo. Para minha alegria, está aí uma das únicas coisas em que consigo ter fé: a generosidade.

Rodrigo Prado — Falando em generosidade: para você, há um limite a partir do qual a gentileza, a mansidão e a generosidade deixam de ser um bem na vida quotidiana?

Bruno Magalhães — Eis aí outra pergunta complicada, porque as situações da vida são muito diversas. Cada caso é um caso. A gentileza e a mansidão não têm valor absoluto. A generosidade, sim. Às vezes o único bem que podemos fazer a uma pessoa é fazer balançar seus alicerces. A gentileza e a mansidão diante de uma grande injustiça, diante de uma violência ou de uma indesculpável negligência provavelmente não contribuirão para melhorar as coisas. Nesse sentido, uma severa advertência, embora não seja nada mansa ou gentil, pode ser um ato de autêntica generosidade. Alguém já disse que a generosidade é a joia da alma. Acho que tinha razão.

Bruno Magalhães — Suas sessões de cinema são permeadas pelos temas da música e da loucura. Acredita no poder que a música tem de limitar ou de expandir a consciência do ouvinte habitual?

Rodrigo Prado — Acredito que tudo pode limitar ou expandir a consciência do indivíduo; e que as artes, especificamente, têm um extraordinário poder de vencer nosso aprisionamento linguístico e chegar aonde as palavras não vão.

Rodrigo Prado — Ao descrever suas músicas preferidas, você citou Thomas Tallis e Oswaldo Montenegro, sinfonias de Beethoven e madrigais do Monteverdi. Enxergo aí um aparente paradoxo – circunspecção e pieguice, força e singeleza – que é a cara do Bruno Magalhães, um cara rigoroso e às vezes beligerante na rede Membros, mas sorridente e sereno em pessoa. Isto que eu disse faz algum sentido para você?

Bruno Magalhães — Faz muito sentido, sim. Aliás, já que a pieguice ficou por conta do Oswaldo Montenegro, ‘Todo mundo é lobo por dentro’ é uma canção que fala muito bem disso que você chamou de aparente paradoxo. Essa música fala muito de mim.

A propósito, o que gosto no Oswaldo é sua alma de artista. ‘Vale Encantado’ é um disco muito comovente e divertido. É verdade que ele ultimamente está meio maluco-beleza. A última dele, já há algum tempo, foi pintar as paredes da casa com dezenas de cores e formas. É de pessoas assim que Platão diz, no Fedro (245a): “quem se apresenta às portas da poesia sem estar atacado do delírio das musas, convencido de que apenas com o auxílio da técnica chegará a ser poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo a eclipsar-se sua poesia, a do indivíduo equilibrado, pela do poeta tomado do delírio”. Oswaldo é um artista delirante no sentido platônico, é um aedo, um menestrel, um poeta-cantor que nos momentos de aperto (como na batalha que Ulisses travou contra os pretendentes de Penélope no final da Odisséia) tem o direito de ser poupado de determinadas convenções sociais.

Bruno Magalhães — Você mencionou o tema da loucura e cá estou eu falando em delírio. Pergunto a você: quem é o louco?

Rodrigo Prado — Nossa, outra pergunta difícil. Se eu fosse chutar, diria que é aquele cuja diferença em face de um padrão de normalidade psíquica ultrapassa publicamente um limite convencional. Gosto muito dos exemplos de loucura/paixão descritos na música “O Que Será (à Flor da Terra)”, do Chico Buarque: “o que cantam os poetas mais delirantes”, “o que juram os profetas embriagados”, “o que está na fantasia dos infelizes”, “o que todos os avisos não vão evitar”, “o que todos os risos vão desafiar”, “o que não tem governo, nem nunca terá”, “o que não tem juízo”, “o que não faz sentido”.

Rodrigo Prado — E o santo, quem é, Bruno?

Bruno Magalhães — O santo é a pessoa cujos vetores da alma (os desejos, as inclinações etc), a duras penas, estão todos voltados para a única coisa que importa, que é Deus e tudo o que Lhe diz respeito. A ele todas as coisas são acrescentadas. Deus cuida dos santos como de suas criaturas mais preciosas. Vencendo toda a sorte de dificuldades, eles se foram deixando moldar pelas mãos de Deus, com cuja vontade estão na sintonia possível. Se a felicidade humana está em cumprir o plano de Deus, isso quer dizer que os santos são os seres mais bem-aventurados. É por conta deles que Deus ainda suporta a humanidade.

A imagem do santo como uma pessoa boazinha, fraca, quase-boba, meio-retardada e ingênua, é um desastre pedagógico, penso. Como disse padre Justino, na ‘Crônica da Casa Assassinada’, a vida dos santos não é uma vida harmônica, mas uma caverna de paixões em luta. É preciso ler a vida dos santos. Temos muito a aprender com eles, com o modo como conversavam com Deus, como lidavam com as situações da vida e da morte. Não tenho vasta experiência nesse ramo literário, mas recomendo especialmente O Livro da Vida (Santa Teresa de Ávila), Biografia de São Francisco de Assis I e II (Tomás de Celano), Recordações sobre Mons. Escrivá e o Homem de Vila Tevere (sobre São Josemaría Escrivá) e História de Uma Alma (Santa Terezinha do Menino Jesus). Os Santos que Abalaram o Mundo também é uma boa pedida, talvez como preâmbulo para as demais leituras.

Bruno Magalhães — Se fosse eleger os três filmes da sua vida, quais seriam e por quê?

Rodrigo Prado — Eu não elegeria os filmes de que mais gostei, mas os que tiveram maior impacto na minha história pessoal.

Cronologicamente, o primeiro seria “Vidas Amargas”. Sempre achei interessante a estória de Caim e Abel, mas fiquei muito tocado ao ver o mundo, lá pelos meus 18 anos, sob o ponto de vista de um Caim tão humano e rejeitado, que sente inveja do impecável Abel porque não foi aquinhoado com as virtudes do irmão e, na busca pelo amor paterno, provoca Abel a pecar. Este filme eu recomendo.

O segundo foi “Todas as Manhãs do Mundo”, que conta a estória do compositor Marin Marais e as desventuras de seu professor Monsieur de Sainte-Colombe. Foi a primeira vez que ouvi música barroca não germânica, o que viria a ser uma das experiências estéticas mais prazerosas da minha vida e a porta de entrada para a Faculdade de Música da UFMG, onde fiz muitos amigos e vivi meu primeiro relacionamento amoroso.

O terceiro é o de pior qualidade , mas o que causou maior impacto: “O Talentoso Ripley”. Ele aborda temas que me comovem muito, como desamor próprio, fantasia, livre-arbítrio, identidade, relativismo moral, loucura e aprisionamento pelo olhar do outro, e, de quebra, tem uma trilha sonora excelente, incluindo a balada de jazz e a peça erudita que eram minhas favoritas à época. Fui ao cinema ver um filme comercial e saí com a impressão de que tinha levado uma surra.

Rodrigo Prado — Também gostaria de conhecer os filmes da sua vida…

Bruno Magalhães — Não sou cinéfilo, mas já acumulei algumas boas experiências no cinema. Os filmes mais significativos para mim, também como experiência pessoal, foram: Cinema Paradiso: chorei igual menino no final. Um filme muito tocante. Zelig, do Woody Allen, pelo que ele desmascara em nós de leviano, de superficial, de inautêntico. Aurora, de F. W. Murnau: uma bela história de redenção pelo arrependimento e pelo perdão dentro de um casamento. Sherlock Jr., de Buster Keaton: um personagem com o qual me identifiquei bastante. Peixe Grande: um grande filme e um grande tema. O pai retratado no filme é o meu próprio pai. Clube da Luta: excelente, por falar do gigante que todo mundo traz dentro de si e do medo que temos de deixá-lo viver. E, recentemente, Detachment, que representa muito do que, segundo vejo, representamos como procuradores para as pessoas à nossa volta. Somos todos, enfim, ‘procuradores substitutos’ no exato sentido desse filme — que aliás termina com a recitação de um trecho de um conto de Edgar Allan Poe que parece ter sido escrito exatamente para ele.

Bruno Magalhães — Em suas muitas andanças pelo mundo, qual foi a experiência mais bizarra por que passou? E qual foi a mais importante para sua formação humana? Que função essas viagens ocupam na sua vida?

Rodrigo Prado — Nossa, eu coleciono trocentas experiências bizarras, de ataques de nuvem de barata d’água a detenção como suposto terrorista. Acho que o caso mais engraçado envolve uma tempestade ocorrida no Deserto do Atacama após 30 anos sem chuva, com direito a internação hospitalar forçada porque me confundiram com outra pessoa e condicionamento da aplicação de uma Benzetacil à demonstração de passinhos de samba (risos). Depois eu te conto, de preferência com um chopp na mão, senão esta entrevista vai ficar ainda maior do que já está.

A viagem mais importante, sem sombra de dúvida, foi para Jerusalém. Pairam no ar uma tensão e uma grandeza que nunca senti em outro lugar, embora não seja religioso, nem “sensitivo”. A antiga cidade murada parece uma metonímia da civilização ocidental.

As viagens foram minhas portas para mundos novos. Durante toda a vida, fui fascinado pela diferença, pelas outras versões, até que meu coração serenou e comecei a voltar aos lugares por onde mochilei, dessa vez para apresentar o que já me fora apresentado.

Rodrigo Prado — Reservei esta última pergunta para um dos tópicos que mais me interessam na existência: a fé. Usando a primeira coisa que passar em sua cabeça, sem refletir, como você a definiria? Para alguém que preza tanto o questionamento intelectual, como você, como foi possível empreender uma entrega tão intensa em favor de uma ideia, um sentimento?

Bruno Magalhães — A primeira coisa que me passa pela cabeça quando penso em fé é confiança. Mas não acho que as pessoas consigam confiar em Deus assim, ‘do nada’. Assim como não é possível amar a Deus sem amar aqueles que estão mais perto de nós, assim também acontece — aconteceu comigo, pelo menos — que não é possível confiar em Deus se não se confia nos seres humanos (daí você vê a tragédia que é viver em uma sociedade que nutre em nós tantas razões para a desconfiança nas pessoas).

Foram justamente os questionamentos intelectuais que me trouxeram de volta à Igreja. Em busca de respostas a esses questionamentos fui encontrando professores e autores que, em sua maioria, eram cristãos. Fui percebendo que pessoas que eu próprio julgava muito melhores que eu, do ponto de vista intelectual e moral, se haviam ‘convencido’, digamos assim, de que a Tradição da Igreja, o próprio Corpo Místico de Cristo, era um depósito interessantíssimo, um fermento para a inteligência.

No início do curso Religiões do Mundo, o prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto diz que as pessoas geralmente procuram a religião por um de três motivos: uma experiência dolorosa (perda de uma pessoa querida, um fracasso profissional etc), uma aposta na vida após a morte e a necessidade de buscá-la ou, por fim, uma necessidade de buscar a verdade a respeito do ser. Acredito que o que me reaproximou da Igreja foi uma certa dor existencial, mas principalmente a necessidade de buscar explicações para a vida e seus enigmas. Isso após muitos e muitos anos de uma infértil procura em doutrinas e em atividades que se não foram completamente inúteis me fizeram perder um tempo precioso.

A fé não é incompatível com a razão. Diferentemente, a razão leva à fé e a fé enriquece o exercício da razão. O melhor e mais acessível livro que li a esse respeito ainda é Ortodoxia, de Chesterton, que recebeu recentemente uma segunda edição pela Editora Ecclesiae, de Campinas, SP (já tínhamos a edição da Mundo Cristão). Um livro magnífico capaz de mudar uma vida. É dele, aliás, o caso da criança de três anos que se maravilha com a história do ‘Joãozinho que bate na porta’. Também nessa linha recomendaria os livros do C. S. Lewis (Cristianismo Puro e Simples, A Abolição do Homem, Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz) e What´s so Great About Cristianity, do Dinesh de Sousa. Há uma tradução brasileira, sofrível, dessa obra; recomendo, para quem compreende minimamente o inglês, que baixe a versão americana no Kindle ou adquira o audiobook no site de alguma livraria americana. Dá para ouvir na academia de ginástica e fará um bem danado à inteligência e à alma. O autor é muito engenhoso e muitas vezes seu fino humor, um tanto chestertoniano, contribui para tornar tudo mais interessante.

Links de interesse:

Publicidade

Entrevista com Aureo Lopes: “As respostas que buscava na Filosofia eu as encontrei na evolução e na ressignificação de minha história pessoal”.

Aureo Lopes é um procurador que não acredita em respostas prontas e nem em ganhos de curto prazo. À frente da ‘Teia Social’, busca através dela “sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho”, pelo “tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais”.

Mestre em Filosofia pela PUC-SP, Aureo diz que não encontrou em seus estudos filosóficos o que ali buscava. Onde encontrou? “Na evolução e ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos”.

Em sua curta experiência na chefia da Procuradoria da República no Estado de São Paulo, aprendeu a ser mais prático, pois “o trabalho na Administração é mais dinâmico que o do gabinete. Lá “você lida com pessoas, mais do que com processos”.

Por falar em dinamismo, Aureo é provavelmente o dono do currículo mais eclético do Ministério Público Federal: antes de ser aprovado no 20º concurso de ingresso vendeu revistas e cursos de inglês porta-a-porta, teve o bar de praia em Tramandaí, RS, vendeu têxteis no varejo, tentou montar uma ONG de suporte a outras ONGs, foi corretor de imóveis, ministrou um culto como pastor protestante, teve um cursinho preparatório para carreiras públicas, onde chegou a lecionar, e, finalmente, foi oficial de promotoria do MPSP.

Admirador de Raul Seixas e estudante primeiranista de piano, reconhece que sua relação com a música é unilateral: “Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim”.

Sobre sua realização no trabalho, sente-se “dividido, como acho que estão muitos colegas”. Segundo acredita, assistimos à “manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros”.

Um colega que resiste, bravamente, diante dos inúmeros problemas que o cotidiano profissional nos oferece; sempre em busca de soluções, de alternativas, de saídas dos labirintos em que, surpresos, com muita frequência nos encontramos.

Eis o Aureo — provavelmente o colega com quem eu particularmente tenho mais ‘horas de papo’ já saldadas (há certamente algumas ainda por saldar — este colóquio é apenas um adiantamento dos juros). Acompanhe nosso 14ª dedo de prosa. Assentados, por favor, que a prosa é boa.

 

Você está à frente da Teia Social, um projeto no âmbito do MPF que “não busca a discussão abstrata de qual é o conhecimento público ‘verdadeiro’, (mas que) em vez disso prefere cuidar da disponibilidade das informações públicas, integração dos conteúdos técnicos, leigos e científicos (transdisciplinaridade) e utilidade do conhecimento para fomentar e auxiliar na solução sustentável e efetiva de problemas públicos”. Como tem sido o seu trabalho na Teia Social? Onde ela poderá levar o MPF?

A ‘Teia Social’ surgiu como uma iniciativa para tentar sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho. Seu desenvolvimento contém tarefas diversas tais como: a) desenvolvimento de uma ontologia/linguagem geral para um tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais incluídos no trabalho. b) quanto ao trabalho como procurador, ela apenas atribui uma “identidade” a práticas e valores que venho acumulando na tutela coletiva, como a mediação entre os diversos viéses, a estimativa dos impactos sociais da atuação, atenção à prevenção e ao longo prazo, etc. c) acho que diversos valores e percepções são compartilhados entre a teia social e o planejamento estratégico, e nesse aspecto estamos indo na mesma direção. De diferença geral acho que poderia citar que na teia as energias são concentradas em diálogo para o consenso visando a obtenção de resultados sustentáveis, bem mais que para a punição. Acho que a proposta da teia poderia ser muito útil ao MPF ou aos colegas que pretendessem adotá-la, ainda que parcialmente.

Imagino que a Teia Social venha colocando você em contato com pessoas muito diferentes e com outras instituições públicas e privadas. O que isso lhe tem ensinado sobre a resolução dos conflitos que chegam ao MPF?

É verdade. Esse contato tem-me ensinado que embora nossa carga de trabalho seja grande, e nosso senso de responsabilidade também, estamos, como órgão de controle (que diz como deveria ter sido feito) numa posição mais confortável do que os responsáveis pela execução direta das políticas públicas. Acho que devemos aproveitar essa vantagem de forma produtiva. Aprendi também que, salvo raras exceções, pelo senso comum cada um acha que seu trabalho é mais complexo e importante e que a culpa é dos outros órgãos e que eles só não fazem o que têm que fazer porque não querem. Quando se reúnem todos esses, essas percepções autocentradas têm um potencial explosivo de conflito. Para evitá-lo, temos que nos guiar por princípios (a teia propõe oito) como a inclusão de todos atores sociais, partir do amor aos fatos e não da briga com a realidade, pelo seu contraste com as coisas como deveriam ser, guardar proporcionalidade entre meios e fins, colaborar, adotar a transparência para si e cobrá-la para os demais (a transparência é para o órgão o que a franqueza é para a pessoa), agir de forma a poder continuar agindo do mesmo modo no futuro – sustentabilidade, e assim por diante.

Como foi sua experiência na administração da maior Procuradoria da República do país? Temos bons administradores entre os colegas?

Atuei como procurador chefe em exercício no Ministério Público Federal em primeiro grau em São Paulo de março a outubro de 2012. Aprendi a ser mais prático, que o trabalho na Administração muitas vezes é mais dinâmico que o do gabinete e que você lida com pessoas, mais do que com processos: É uma ótima experiência profissional que contribui para nossa maturidade quanto aos limites da realidade que transcende os autos, e penso que todos os colegas deveriam passar um tempo, ainda que curto, no cargo.

Acho que temos colegas muito talentosos para lidar com os outros e para executar, e implantar as coisas na prática, e essa experiência rápida na chefia iria revelar outros talentos, desmistificar alguns mitos da função e nos dar parâmetros mais completos para os juízos que exercemos sobre os administradores públicos que processamos.

Você é mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. De que tratou em sua dissertação de mestrado? Suas pesquisas o ajudaram a encontrar respostas para as questões que o atormentavam?

O título da minha dissertação de mestrado é “A teia humana: Metateoria do comum, próprio e alheio da pessoa concreta, como possibilidade orgânico-opositiva, entre as verdades do sujeito e do objeto”. Tive que consultá-lo porque, como diz um amigo e colega nosso, é impossível decorá-lo. O trabalho pode ser classificado como de antropologia filosófica e buscou centrar-se nas pessoas concretas como fonte de significado e fundamento central das ideias e valores. Pode ser considerada uma teoria eclética, sem se incomodar com as críticas que buscam caracterizar essa postura como um demérito: há espaço no mundo para todos, todas as ideias, todos os sonhos… Mas se buscamos a exclusão do Outro, não há espaço, porque somos multifacetados e diversos. Para os outros, nós somos os outros. As pesquisas serviram para que eu pudesse deixar partir minha “fé” no conhecimento, que sempre me acompanhou. Ainda gosto, tenho convivência e intimidade com o conhecimento, mas hoje vejo que o homem, as pessoas, são muito mais que isso, que o conhecimento é apenas uma parte, tão importante como outras.

A esse propósito, você tem dito que não encontrou no estudo da Filosofia as respostas para suas inquietações profissionais. Onde você tem encontrado aquilo que não encontrou na Filosofia?

Tenho encontrado essas respostas na evolução e na ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos (a primeira terapeuta foi indicada por um bom amigo). Olho para as minhas origens, para meus desafios pessoais, infantis, como adolescente e como adulto, vejo quantas vezes a vida desfez minhas fantasias e ao mesmo tempo em que me abriu novas oportunidades. Vejo como nossa existência é efêmera, como somos pretensiosos (mostremos ou não), cada um a seu modo e na área escolhida para sê-lo. Isso não nos faz menos humanos, por não atingirmos ideais de perfeição, isso nos faz humanos. Gosto daquela frase: “Somos o que somos, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos”.

Falar em ‘ser’ e em ‘mudança’ nos remete à ideia inicial deste projeto: as luzes. Se você sobrevoasse a história da humanidade e vislumbrasse, como Antoine de Saint-Exupéry, algumas luzes na planície, quem seriam na sua visão as mais interessantes? Por quê?

A vida, que é a vida, não julga. Mas nós julgamos. Somos profissionais e somos pagos para “apontar o dedo” ao que está certo ou errado (e pedir a punição dos injustos). Esse é um peso muito grande, o peso de sermos julgados com o mesmo peso daqueles a que julgamos. Por nós mesmos ou por outros, hoje ou amanhã. Mas muito disso escapa ao nosso controle (afinal, somos filhos do nosso tempo), exceto o autojulgamento. Desse podemos, progressivamente, nos libertar. E merecemos essa liberdade.

Você falou em liberdade e eu lembrei de uma coisa que você comentou: as aulas de piano que você começou a tomar há pouco tempo. Como surgiu esse interesse? Considerando que a linguagem musical tem uma carga simbólica muito rica, que música representaria hoje de modo mais ou menos adequado os conteúdos da sua vida interior, Aureo?

Tenho uma relação unilateral com o tocar música: Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim. Tenho tentado e fracassado recorrentemente em aprender um instrumento musical e o piano é mais uma chance (um outro amigo, também colega, diz que o que ele é de fato é “o porta-copos mais caro da América Latina”). Eu gosto de várias músicas, mas as letras sempre foram muito importantes. Se tiver que eleger um músico, é Raul Seixas. Acho um gênio.

Antes de ser procurador da República você já arrendou e explorou um bar de praia e vendeu livros de porta a porta. Como foi que o MPF lhe apareceu como uma perspectiva de trabalho interessante?

Antes de ser procurador eu vendi (tentei) revistas, cursos de inglês, tive o bar na praia (chamava “Twister” e ficava em Tramandaí, RS), vendi têxteis no varejo, tentei montar uma ong de suporte a outras ongs, tirei o Creci e fui corretor de imóveis, ministrei um culto como pastor, tive um cursinho preparatório para carreiras públicas e dei algumas aulas e fui oficial de promotoria do MPSP. Meu querido pai, evidentemente preocupado com onde eu iria parar desse jeito variante, pôs pilha para as carreiras públicas e, dentre elas, o MPF mostrou-se simultaneamente como um desafio e como um ideal profissional fantástico.

E continua tudo tão fantástico como naquela época? Quer dizer: sente-se realizado hoje no trabalho?

Hoje eu me sinto dividido, como acho que estão muitos colegas. De um lado investimento de tempo extra para desenvolver novas formas de trabalho e obter resultados estimulantes. De outro a manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros. Apesar de tudo isso, me sinto bastante realizado, pois existem novos modos de trabalho que são auspiciosos, e as boas notícias de bons trabalhos de colegas que ouvimos constantemente confirmam isso.

Você se volta hoje contra o que chama de uma tradição e uma prática jurídicas que na sua visão não chegam a solucionar os problemas reais da vida em sociedade. Provavelmente esse sentimento é compartilhado por inúmeros promotores e juízes em todo o país. Há um caminho alternativo viável?

Algumas pessoas me falaram que eu era muito crítico com o Direito. Refleti sobre isso e cheguei a conclusão que se desacredito tanto nele é porque o conheço muito, de perto, e nele – durante minha graduação – depositei esperanças demais. Posso olhar para o Direito como uma ciência, uma linguagem, uma estrutura etc, mas, ao final, ele é apenas uma das incontáveis facetas sociais e dimensões humanas, e não podemos esquecer que ele “é feito por pessoas”, “aplicado por pessoas” e feito “para pessoas”, e não há teoria, racionalidade, fechamento de sistema capaz de “exorcizar” esse limite à objetividade que é a beleza da subjetividade, da humanidade.

Acredito, sim, em caminhos alternativos viáveis, e desenvolvo hoje um deles com minha pesquisa da ‘Teia Social – Sistema para a compreensão e solução de problemas públicos’. Mas não acredito em respostas prontas ou fáceis. Não acredito nos ganhos de curto prazo. Não acredito na (mono)disciplinariedade, seja do Direito, seja qualquer outra. Não acredito na desproporcionalidade entre fins e meios. E não acredito em fórmulas que se propõem melhores por meio da exclusão e da negação da existência válida das outras, o conhecido “caminho único”.

 

Links de interesse:

Entrevista com Renata Baptista: “Um dos maiores erros de abordagem dos órgãos do Estado é não ver que o criminoso, o corrupto, é um ser racional que vai ponderar os ônus e os bônus de sua atividade na busca pela própria felicidade”.

Renata Baptista busca trabalhar as questões jurídicas com os olhos abertos para o mundo. Os estudos de análise econômica do Direito — aos quais se tem voltado atualmente — vêm-na auxiliando nesse caminho. Para ela, muito além de operacionalizar o Direito em si, importa sermos “capazes de compreender problemas e de oferecer respostas que levem em conta também outros aspectos do mesmo problema”.

Por que ela escolheu o MPF? “É a única carreira que eu poderia acessar por concurso e na qual poderia trabalhar com combate à corrupção e política pública, partindo de múltiplas perspectivas”.

Raciocinando a partir de premissas lançadas por Gary Becker, diz que o criminoso (aí incluído o agente público corrupto) levará em conta as vantagens e as desvantagens de sua conduta; e que “a efetividade das punições é um fator que aumenta o ônus para o criminoso”. Segundo entende, com um Poder Judiciário que não consegue aplicar as devidas punições, os bônus da atividade criminosa superarão os seus naturais ônus.

Para ela, a convivência de várias gerações dentro do MPF é semelhante ao que vem ocorrendo no seio da própria sociedade e de suas agências — fenômeno que ela, porém, vê com certa naturalidade. Comparando nossa instituição com uma orquestra sinfônica, diz que “cada um tem a crença pessoal de que todos saberão desempenhar bem seus papéis. É um reconhecimento que nasce apesar do desconhecimento mútuo sobre a pessoa de cada um”.

Renata é entusiasta do treinamento de sua equipe na PRTO. Periodicamente, reúne-se com eles para assistir a vídeos do TED Talks sobre Economia, Psicologia e Neurociência e para falar sobre temas jurídicos específicos.

Aprovada no 25º Concurso de Procurador da República, Renata Baptista, carioca, assumiu suas funções em 2012 na Procuradoria da República no Estado de Rondônia, onde foi Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão. Atualmente cuida de um dos ofícios do Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República no Estado do Tocantins. Veja o interessante dedo de prosa que trocamos com ela, em nossa 13ª entrevista.

 

Economia comportamental, neurociência, sociologia e psicologia social: esses são os temas com que, além do trabalho, você tem se ocupado hoje. Acredita que a nossa atividade na Procuradoria da República é um campo fértil para essas pesquisas? Se sim, em que sentido?

Bom, em primeiro lugar, em atividades de alta performance, que requerem domínio bastante específico de normas, técnicas, linguagem e rotinas, vejo que grande parte das pessoas diretamente envolvidas (senão todas elas) estão niveladas em alto grau de excelência no campo principal de atuação.

No Ministério Público, por exemplo, ninguém duvida que os colegas são muito capacitados para oferecer respostas jurídicas (no plural, mesmo) aos problemas que lhes são apresentados. Nesse cenário, em que os integrantes estão nivelados por cima, o Direito é o que menos importa. O que importa é se somos realmente capazes de compreender problemas e de oferecer respostas que levem em conta também outros aspectos do mesmo problema. É lógico que, antes de tudo, precisamos transitar dentro do campo jurídico. Mas entre os caminhos possíveis – e, muitas vezes, até para definir o que é o jurídico ou não –, é essencial levar em consideração outros campos do saber.

O que percebo é um movimento de cada vez maior especialização jurídica: já vi uma disciplina eletiva de um curso de graduação chamada “Direito dos Contratos Internacionais do Petróleo”. É evidente que a complexidade da vida requer algum tipo de mergulho estritamente jurídico, mas talvez possa ser igualmente producente resgatar aquela formação humanística que marcou os cursos de Direito lá atrás, e sair um pouco dessa abordagem estritamente jurídica das controvérsias.

Há questões concretas que você busca responder através de suas leituras? Se sim, quais são?

Prometi a mim mesma uma espécie de período sabático depois de ingressar no MPF. Meu maior interesse passou a ser mesmo só aquele que parece mover todo ser humano, ainda que de modo geral: entender um pouco mais sobre si mesmo, conhecer um pouco mais dos outros, compreender o mundo que nos cerca… Enfim, era um projeto que parecia nada ou menos cansativo do que buscar respostas concretas, mas acho que, quando abrimos a mente, descobrimos mais perguntas e pouca coisa pode ser mais desafiadora do que descobrir mais perguntas.

Para Schopenhauer, “nossas ações e nossa biografia não são obras nossas, mas sim daquilo que ninguém considera como tal, ou seja, da nossa essência e existência… Portanto, a vida do homem já está irrevogavelmente traçada, em todos os seus pormenores, no momento do nascimento”. O estudante de neurociência hoje tende a confirmar essa visão? Acredita que a ciência chegará um dia a provar que a liberdade humana é uma ilusão, Renata?

Felizmente, acho difícil que um estudante de Neurociência chegasse a tanto. Estudos sérios de Neurociência jamais chegariam a uma afirmação tão ampla como essa. Bem, de fato, não só estudos sérios de Neurociência, como também estudos sérios de Genética e Psicologia Evolutiva, poderiam lhe dizer que há, sim, traços inatos do ser humano que influenciam decisivamente o processo de tomadas de decisão, mas não a ponto de, a partir disto, concluir que a liberdade humana é uma ilusão. Sua referência reflete bem o modo como rotineiramente se costuma atrelar genética a determinismo – e, de determinismo a soluções extremas, também se costuma das um pulo argumentativo rápido e pretensamente racional.

A lógica binária é “se há livre arbítrio, então não há traços inatos; se há traços inatos, então não há livre arbítrio”. As ciências humanas têm uma pretensão que pode ser essencialmente resumida em oferecer soluções para compreender e pensar modos de adequar o comportamento humano. Para tanto, há a premissa de que o comportamento humano é moldável. O problema é o salto argumentativo: dizer que há alguns traços inatos, imutáveis, não significa dizer que todo o comportamento está indelevelmente traçado pelos genes desde a origem e que, portanto, não é possível fornecer os estímulos certos para formar e adequar o comportamento humano de modo a viabilizar plenitude pessoal e convívio social harmônico.

Onde você passou sua infância? Que lembranças traz daquela época? Acredita que alguma circunstância daquela época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Passei toda minha infância na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Depois, mudamos para Copacabana e, entre os 15 e 17 anos, morei em Corona, na Califórnia, Estados Unidos, por conta de um intercâmbio. Quando voltei do intercâmbio, estava em dúvida entre fazer Engenharia, Direito ou Medicina.

Tive sorte porque minha família nunca me cobrou ou precisou me cobrar uma decisão e sempre me estimularam a tomá-la com elementos concretos em mãos. Eu mesma sempre achei desumano exigir que um jovem com apenas 17, 18 anos decida tão cedo o que, presume-se, vai fazer pelos próximos muitos anos. Então, fiz vestibular para as três. Passei, mas só cursei simultaneamente Engenharia e Direito. Com pouco tempo, vi que seria difícil conciliar e nunca cheguei a cursar o ciclo específico de Engenharia. Percebi que gostava mesmo era de Direito, mas nunca desisti completa e intimamente das Exatas. Sabia que, talvez no futuro, eu pudesse conciliar.

E foi a partir dessa vontade de conciliar Exatas e Humanas que eu conheci o MPF. Quando estava no oitavo período de Direito, li por conta própria um artigo do Richard Posner que citava um artigo do Gary Becker, sobre o criminoso racional, e me interessei sobre política pública de combate à corrupção. A AGU, minha primeira experiência profissional no setor público, também tem propostas interessantes neste campo, mas existem limitadores, como o fato de não poder lidar cotidianamente com a ação penal. Escolher o MPF, então, foi questão simples: é a única carreira que eu poderia acessar por concurso e na qual poderia trabalhar com combate à corrupção e política pública, partindo de múltiplas perspectivas (micro e macro).

Você provavelmente já esteve diante de um inquérito policial e teve dúvidas sobre se era justo denunciar o investigado ou arquivar a investigação. Você acredita que existam, nesse campo, decisões substancialmente técnicas? O que você costuma levar em conta na decisão de denunciar um investigado?

Talvez esse seja mesmo o momento mais difícil das nossa atividade criminal: denunciar ou arquivar. Sem maiores dados, e na seara criminal, chuto que em 90% dos casos 90% dos colegas concordariam com a decisão tomada por um outro membro de arquivar ou denunciar – se não concordassem cabalmente, ao menos reconheceriam que ela é racional. Este alto grau de consenso parece derivar da técnica jurídica que subjaz à formação de todos nós e que permeia a análise dos fatos. E, portanto, esse consenso também parece ser uma prova de que há, sim, decisões substancialmente (e não exclusivamente) técnicas.

Os casos em que há dúvida razoável são poucos. Neles, adoto um procedimento padrão para tentar simplificar o dilema: havendo dúvida razoável, denuncio, porque assim possibilito que um ator sistemicamente idealizado para decidir (o Judiciário) possa exercer seu papel.

Você é apreciadora de heavy metal e rock clássico… A propósito, o rock brasileiro está morto, Renata?

Não tenho orgulho do que vou dizer, mas não conheço nada, nada mesmo, de rock brasileiro. Talvez porque na época em que comecei a me interessar de verdade por música ele já tivesse morrido. Quem sabe?

É uma possibilidade… Bom, concordamos então que a certidão de óbito já foi lavrada, não é? Mas, mudando de assunto, Renata, você acredita que a Justiça tem ocupado posição importante no combate à corrupção no Brasil? Carrego comigo a impressão de que o nosso trabalho de natureza punitiva, extremamente necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Sim, o Judiciário é um ator relevante no combate à corrupção. Mas, atualmente, e de forma geral, ele vem passando estímulos ruins e, por isto, o trabalho de natureza punitiva não vem gerando os resultados esperados. A corrupção é um fenômeno complexo, mas, em essência, lida com o que há de mais intrínseco no ser humano: maximizar a própria felicidade. Um dos maiores erros de abordagem dos órgãos do Estado – o que inclui o Judiciário – é não considerar o criminoso, o ímprobo, como um ser racional que vai ponderar ônus e bônus na busca pela própria felicidade. Jamais conseguiremos anular essa busca. Mas Direito é uma ferramenta disponível para que se passe aos estímulos certos no sentido de que essa busca pela felicidade não seja exercida em detrimento, algumas vezes involuntário, de outros valores caros aos demais indivíduos e à sociedade em geral.

A efetividade das punições é um fator que aumenta o ônus para o criminoso e, no nosso sistema, o Judiciário é por excelência o ator responsável pela aplicação legítima das punições. Imagine então se o Judiciário faz isso de forma displicente… É uma cadeia de raciocínio tão óbvia que me faz refletir se, de algum modo, essa leniência judicial já não chega a ser dolosamente querida – é preciso desconfiar dos propósitos de atores racionais quando, conhecedores das circunstâncias essenciais, não adotam comportamentos racionais esperados.

Vamos falar da gente. O Ministério Público conquistou nas décadas de 80 e 90 garantias institucionais e instrumentos processuais que o constituíram com uma das forças públicas mais atuantes na história recente do Brasil. Alguns colegas dessa geração convivem hoje com colegas como você, recém-empossados, dos quais estão separados por até duas gerações. A geração mais nova conhece o trabalho dos colegas da primeira década pós-Constituição? Acredita que esse trabalho consolidou uma certa tradição? Se sim, que tradição é essa?

O choque de gerações é natural dentro e fora das instituições. O que vivemos dentro do MPF é parte representativa de um cenário vivido no país, formada pelo envelhecimento da sociedade – com o consequente aumento do limite etário para o término da vida laborativa – e pelo fator “multi-habilidade” – os jovens estão conseguindo conciliar muito bem estudo e trabalho – e, em consequência, finalizam os estudos com proficiência cada vez mais cedo e, como já estão no mercado de trabalho, a exigência temporal de exercício de atividade jurídica é alcançada com facilidade.

Mas, com o cenário de criação de novas vagas – praticamente dobrando a quantidade de cargos existentes –, a realidade de acréscimo de gerações na carreira e o aumento da diferença entre os extremos etários tende se reforçar muito em breve. E, aí, acho que pode caber uma pergunta, igualmente racional, mas bem menos comum que a sua: será que os colegas da primeira década pós-Constituição conhecem e conhecerão os colegas recém-empossados?

Há algo que esquecemos reiteradamente quando direcionamos esse tipo de questão: em certas conjunturas, o melhor que se pode esperar de alguém a título de respeito é reconhecer sem conhecer. Vou usar de uma analogia aqui: certo tempo depois da fundação de uma orquestra, ocorre o recrutamento de músicos e, não raro, aqueles que já a integravam não conhecem cada aspecto dos músicos recrutados. Este desconhecimento aprofundado é bem comum, inclusive, quanto aos maestros, em especial depois que orquestras ganharam a dimensão que têm hoje. Mas o fato é que cada um – mesmo o selecionado – confia, primeiro, nos critérios de seleção e no julgamento dos selecionadores; e, segundo, confia no selecionado, de modo que cada um tem uma crença pessoal de que todos saberão desempenhar bem seus papéis. É um reconhecimento que nasce apesar do desconhecimento mútuo sobre a pessoa de cada um.

O MPF tem duas práticas muito salutares nesse sentido. A primeira delas é a atribuição, a membros da carreira, da responsabilidade por todas as fases do concurso de seleção. É um bom modo artesanal de fazer o recrutamento, porque permite uma espécie de contato inicial entre a proposta institucional, representada pelos integrantes da banca, e os candidatos, tudo na via de um procedimento objetivo. A segunda é o mecanismo de revisão mínima da atividade-fim por outros membros, que, por sua vez, são previamente conduzidos a esta função por um procedimento transparente de que participam outros tantos membros. Particularmente, acho reconfortante ter meus posicionamentos revisados por colegas mais experientes, ainda que o resultado não seja favorável. Acredito na ideia de que precisamos ser capazes de convencer e ser convencidos por argumentos racionais.

Vejo como os principais traços da “tradição” do Ministério Público a motivação e a compreensão crítica da realidade. O tempo passa, as pessoas mudam, as demandas mudam, os recursos mudam, mas com a dosagem adequada de motivação e análise crítica é possível construir um ótimo resultado.

 

Links de interesse: