“O que mais dificulta a apuração dos atos de corrupção no Brasil é o fato de que se trata de uma forma institucionalizada de se fazer política”. Veja nossa entrevista com Raquel Branquinho.

Raquel passou parte de sua infância em uma fazenda no interior de Goiás, onde entre entristecida e confusa assistiu ao desaparecimento de seu cachorrinho ‘Vinagre’. Histórias que não são esquecidas… De Goiás para Brasília, a trajetória de uma vida. Hoje, procuradora regional, ela encontra satisfação fora do trabalho no convívio com seus filhos, nas leituras e nas viagens que faz.

Com uma vasta experiência na área do patrimônio público dentro do Ministério Público Federal, ela acredita que a dificuldade em investigar e obter a condenação de agentes públicos corruptos está em que geralmente os maiores prejuízos ao erário decorrem de “uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas”.

A morosidade da justiça brasileira é, para Raquel, um dos maiores fatores de impunidade. Além disso, os órgãos de fiscalização e controle trabalham muitas vezes com a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, com pouca efetividade. Seu testemunho é firme e direto: “Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais”.

De sua participação na investigação e na formulação da acusação que originou a Ação Penal 470 (Mensalão), ela extraiu a lição de que “quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz”.

Acompanhe o nosso 27ª ‘dedo de prosa’, um rico testemunho de uma procuradora que vive, de forma dinâmica e reflexiva, as vitórias e as amarguras da defesa do patrimônio público brasileiro neste começo de século.

 

Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude e que, quando menos, os gastos realizados nos contratos administrativos são mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina alguma modificação legislativa que pudesse começar a alterar esse quadro?

De fato nós, cidadãos brasileiros, diante de tantas notícias que acompanhamos na mídia dos mais diversos tipos de fraudes em licitações, não podemos dissociar do nosso imaginário que as contratações que envolvem dinheiro público são decorrentes de negociações espúrias.

Na condição de procuradora da República, atuei, durante anos, na área de defesa do patrimônio público e da probidade administrativa em Brasília, especificamente na área de licitação pública. Em razão do contato diário com a matéria, posso afirmar que, infelizmente, não obstante a existência de uma legislação para coibir abusos e estabelecer transparência, eficácia, impessoalidade e limite de preços às aquisições e serviços, é muito alto o índice de fraudes em licitações públicas que resultam em sobrepreço e superfaturamento, decorrentes de prévios ajustes entre representantes do setor público e privado — ajustes quase sempre de difícil ou quase impossível caracterização probatória.

O que mais dificulta a apuração é o fato de que não se trata de crimes praticados por servidores públicos de forma isolada, ou seja, sem grandes conexões, no exercício de sua função. Trata-se, ao meu sentir, de uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas. Assim, o que comanda o gasto público são os interesses dos partidos políticos. E isso não apenas favorece empresas privadas, que ganham muito por diversos tipos de fraudes, mas também partidos políticos e pessoas físicas, que se beneficiam do retorno de parte desse dinheiro indevidamente pago nessas contratações.

Há necessidade, sim, de mudança da legislação. Principalmente, dos regimes especiais que foram criados nos últimos anos para flexibilizar as contratações públicas. Uma importante alteração, principalmente na área de obras públicas, é a exigência de projeto prévio bem detalhado no aspecto quantitativo e de preços. Outra modificação importante é a da legislação sobre preços referenciais, muito ampla e que, de forma ‘legítima’, em obras de maior vulto, já permite uma margem oculta de lucro em torno de 25% às empreiteiras, consórcios etc.

A morosidade da justiça é geralmente apontada como uma das causas da impunidade em nosso país, principalmente em casos de corrupção com verbas públicas. Que fazer?

Infelizmente, não para desconsiderar o fato de que a morosidade da Justiça é, efetivamente, um dos maiores fatores da impunidade no Brasil, sobretudo nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Deveríamos simplificar alguns ritos, sem qualquer alteração no devido processo legal. Por exemplo, as duas fases de defesa antes do recebimento da inicial da ação de improbidade ou da denúncia em algumas espécies de processo criminal.

Poderiam ser criadas varas especializadas para a matéria de improbidade administrativa e as ações de improbidade deveriam ter prioridade na tramitação judicial. Também há algumas alterações possíveis na legislação penal para se permitir a execução provisória da pena em processos julgados em segundo grau de jurisdição; a diminuição das hipóteses de recursos excepcionais, ou seja, que não se atenham à matéria fática; e o desenvolvimento de uma doutrina jurídica que não aplique o garantismo de forma irracional como ocorre no Brasil. Essa última questão nos colocaria na linha dos países mais avançados que conseguem, com muita tranquilidade, equilibrar a garantia do devido processo legal e a efetividade da Justiça.

Como vê a atuação da Controladoria-Geral da União e da Polícia Federal em casos de corrupção nos últimos anos?

Infelizmente, no Brasil, há vários órgãos com atribuição de apuração de fatos irregulares, inclusive com sobreposição de atribuições em alguns aspectos, mas o que vemos é a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, acumulam uma quantidade imensa de papel, mas que não trazem nenhuma efetividade ao seu termo.

A CGU, nos últimos doze anos, não obstante tratar-se de órgão vinculado ao Poder Executivo, conseguiu, de certa forma, romper com essa lógica, inovando e estabelecendo dinâmicas de auditoria e corregedoria mais efetivas. A atuação conjunta entre CGU e MPF e por vezes Polícia Federal, nos casos em que atuei, sempre deram bons resultados. Criou-se um arcabouço jurídico que permitiu à CGU trabalhar de forma muito mais efetiva e durante todos esses anos é o único órgão federal que conseguiu chegar aos mais diversos locais do país para apurar a aplicação das verbas públicas federais nos municípios.

Infelizmente, a CGU, como diversos outros órgãos, não obstante a excelência do trabalho do seu corpo técnico, depende de uma diretriz firme, o mais independente possível e com a estrutura material e de pessoal adequadas.

Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais. A sistemática de fiscalização por sorteio em municípios incomodou muito os gestores municipais e, de certa forma, também foi esvaziada. Agora, houve mudança da sua direção máxima, que sempre esteve nas mãos do então Ministro Jorge Hage que, sem sombra de dúvidas, foi um excelente Controlador, e a minha posição é de espectadora sem grandes expectativas.

O aparelhamento da CGU é algo possível e muito perigoso para o país. O saldo do trabalho da CGU nesses anos, a meu ver, é muito positivo e, ao contrário do TCU, que é um Tribunal cujos julgamentos são naturalmente imbuídos de força política, os relatórios de auditoria da CGU são perenes, ou seja, uma vez aprovados, não são alterados a cada nova revisão, como ocorre no TCU, cujos processos demoram anos para serem concluídos.

Quanto à Polícia Federal, apesar de vários problemas internos, como disputas políticas, a sua também vinculação ao Poder Executivo, tem feito um trabalho razoável no combate à corrupção na parte, ao meu ver, das operações policiais. Ainda falta uma maior especialização dos delegados, agentes e escrivães na investigação de crimes de colarinho branco, inclusive de corrupção. Paralelamente às operações de busca e apreensão e escuta telefônica, é necessário que sejam feitas análises e outros tipos de investigação para robustecer a materialidade e autoria de forma rápida — o que não tem acontecido. São deflagradas grandes operações, que acumulam uma grande quantidade de material e que, depois, carece de análise e uma investigação mais concatenada for falta de pessoal, recursos financeiros ou mesmo interesse.

Que aprendizado você extraiu de sua atuação na investigação que fundamentou a acusação formulada pelo Ministério Público Federal na AP 470 (Mensalão)? Que balanço faz do julgamento já concluído?

Bem, o principal aprendizado é de que quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz.

A minha atuação no caso permitiu uma consolidação de experiência na investigação de crimes de grande porte, do colarinho branco, que demandam uma investigação muito mais estruturada e organizada entre Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário. O caso Mensalão alcançou esse estado da arte e, ao meu ver, por esse motivo, foi muito bem sucedido na sua primeira etapa, ou seja, até o julgamento da ação pela Suprema Corte.

Não obstante discordar da forma como foram aplicadas as penas e também da interferência política do Planalto no julgamento, com a nomeação de Ministros que se mostraram totalmente favoráveis às teses absurdas de defesas de alguns réus, faço um balanço positivo pois foi um leading case no próprio STF e a única ação penal que processou e efetivamente julgou e condenou a cúpula de partidos políticos, do Governo e de banqueiros envolvidos em crimes contra a administração.

Em sua atuação na PRR da 1ª Região certamente você, aliada à sua experiência, tem uma visão privilegiada do trabalho dos colegas da base e de sua perspectiva de frutos uma vez superada a fase de tramitação do processo no primeiro grau de jurisdição. Que sugestões daria aos colegas para ajudar a melhorar a instrução das ações penais contra servidores públicos e das ações por ato de improbidade e aumentar assim suas chances de sucesso?

Bem, se eu pudesse dar uma sugestão aos meus colegas seria para que passem a atuar sempre de forma mais dinâmica, saindo do gabinete para ir ao encontro dos fatos, reunindo-se com a Polícia, com as representações da CGU, do TCU etc. Que, de fato, acompanhem as investigações e não as transformem apenas em meros expedientes burocráticos de entrada e saída do gabinete. As ações de improbidade, assim como as ações criminais, demandam uma prévia fase investigativa para se estabelecer autoria e materialidade, bem consolidadas. Assim, temos que pensar antes de agir para estruturar, na melhor forma possível, as investigações, não dependendo apenas da atuação de outros órgãos, como Polícia Federal, CGU etc.

Ocasionalmente, analiso inquéritos que tramitam durante anos, com simples carimbos de concessão de prazo por parte do Ministério Público, sem qualquer análise mais acurada, que poderia determinar, logo no início das investigações, diligências bastante simples mas que conduziriam ao seu êxito ao invés do insucesso, como sempre ocorre. Muitas vezes medidas simples são suficientes para se concluir uma investigação, desde que a investigação seja efetivamente acompanhada pelo titular da ação penal.

Como você encontra satisfação pessoal fora do trabalho?

Fora do trabalho, encontro satisfação pessoal no convívio com meus filhos, na leitura e em viagens. Gosto muito de viajar. Também gosto de ler e fazer alguns cursos, principalmente de inglês, pela internet.

Qual é a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?

Eu venho de uma família que sempre teve muita dificuldade financeira, mas sempre fui muito incentivada a estudar para ‘mudar de vida’. Uma das lembranças mais antigas que tenho é da época em que morávamos em uma fazenda do meu avô, no interior de Goiás. Eu tinha uns quatro ou cinco anos e sofri muito com a morte de um cachorro chamado ‘Vinagre’, que brincava muito comigo. Disseram, na época, que alguém tinha dado veneno para o Vinagre e eu lembro que sofri muito sem entender o motivo de uma ação dessa natureza.

 

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“Por ser filho do debate, do conflito e das concessões mútuas, o Direito não pode ser coerente ou sistemático. O respeito a essas contradições é o respeito ao espírito democrático que moldou sua criação”. Entrevista com Anderson Oliveira.

Transitando entre momentos de satisfação e de ocasionais frustrações, Anderson Oliveira, procurador da República em Caçador, SC, reconhece que as reivindicações dos colegas, ocorridas nos últimos anos, gerou mudanças dentro do Ministério Público Federal. Segundo acredita, “a pressão acordou os próprios colegas, que antes eram mais conformados com posturas mais retrógradas da cúpula do MPF em questões corporativas”. Conforme vê hoje, após as recentes mudanças, “a maior parte da indignação acabou”.

Anderson é praticante de tiro amador e está certo de que a proibição do comércio de armas de fogo não é benéfica à sociedade porque favorece a criminalidade. “O criminoso não adquire arma de fogo de forma lícita. Você já processou quantas pessoas por roubo, latrocínio, sequestro, quadrilha armada etc cujos réus tinham armas registradas?”, pergunta. Nenhuma, Anderson! E alguém já?

Desde 2000, o colega é professor universitário, atividade que o realiza pelo incentivo à atualização, ao estudo e ao questionamento de seus próprios fundamentos. Apesar de tudo, sente que a maioria dos alunos hoje não está realmente interessada em aprender e se superar. “Vejo-os preocupados com respostas rápidas para passarem na disciplina e se tornarem bacharéis”, lamenta.

Este é o nosso 23º encontro — o terceiro com colegas catarinenses. Falamos sobre magistério, armas de fogo, café expresso e Budismo. A propósito, a preparação do café ficou por conta do nosso entrevistado, que tem boa experiência no assunto e, além de tudo, é exigente. Veja a entrevista.

Como tem sido o trabalho na PRM Caçador, Anderson? Você tem encontrado satisfação no cotidiano da Procuradoria?

Sabes que ‘satisfação’ na nossa profissão é um sentimento um tanto instável. Às vezes conseguimos fazer uma boa ação penal ou de improbidade, com boas provas e temos uma sentença favorável. Isso gera satisfação. Mas, não raro, os Tribunais acabam revertendo penas e até condenações em acórdãos nos quais é perceptível que não houve uma análise aprofundada como aquela feita pelo magistrado de primeiro grau. E, para piorar, algumas vezes o colega que atua na Procuradoria Regional não recorre e permite que a injustiça se consolide. O sentimento, nesses casos, é de desânimo.

Na atuação extrajudicial a satisfação é mais comum, porque é muito corriqueira a resolução das questões e das pendências através de ofícios e de recomendações. Os órgãos públicos têm uma percepção de irregularidades quando elas são bem apontadas e costumam corrigir suas posturas quando as soluções são simples. Mas quando a questão envolve dispêndio de recursos, ainda que não seja tão volumoso, a atuação extrajudicial em regra não é suficiente — e nesses casos é necessário recorrer ao Judiciário. E em tutela coletiva o Judiciário é sempre imprevisível, talvez porque a questão não seja somente probatória, mas da própria leitura do ordenamento jurídico. Enquanto o Ministério Público enxerga uma violação, muitas vezes o magistrado não vê a mesma coisa.

Eu ainda tenho fôlego para ser ‘clínico geral’ e atuar sozinho em uma PRM. E isso apesar da desvalorização dessas unidades menores, costumeiramente preteridas na carreira. Basta ver a questão dos afastamentos para cursar pós-graduação, as novas regras de acumulação de ofícios etc. São contradições de um MPF que pretende maior proximidade com a comunidade e ao mesmo tempo não valoriza aqueles que se dispõem a ficar em unidades mais longínquas e em cidades menos estruturadas.

Você é conhecido, na rede corporativa do Ministério Público, por suas manifestações de caráter reivindicatório. Atualmente, há muito com que se indignar, Anderson?

É verdade que a situação tem melhorado bastante. Evidentemente a situação somente melhorou a partir da pressão feita por vários colegas, durante os últimos quatro anos, quase cotidianamente no nosso ambiente de comunicação livre e pública: a rede membros. Sem essa pressão, a ANPR não teria o respaldo e a força para conseguir sucesso em seus requerimentos. Essa pressão também resultou em escolhas de colegas para ocupar cargos no CSMPF e a própria lista tríplice para PGR, para os quais foram escolhidos colegas mais comprometidos com questões consideradas urgentes para grande parte da classe. E a pressão acordou os próprios colegas, que antes eram mais conformados com posturas mais retrógradas da cúpula do MPF em questões corporativas. Sinceramente, não era possível aceitar que promotores de justiça ganhassem cinco, sete, dez mil reais a mais que nós, quando os mesmos benefícios pagos a eles poderiam ser pagos a nós, com certa boa vontade hermenêutica. Era de indignar ver a negativa de pagamento do auxílio-moradia àqueles com imóvel próprio, por puro capricho ou teimosia dos PGRs. Isso porque a lei jamais trouxe essa vedação.

Mas a maior parte da indignação acabou. Vejo no atual PGR, o colega Rodrigo Janot, um novo MPF. Não votei nele e nem fiz campanha para ele, mas hoje dou a mão à palmatória porque ele trouxe vários avanços em questões institucionais e corporativas ao Ministério Público Federal. Um PGR que se mostrou sensível aos clamores da classe e à necessidade de valorização da carreira, superando o sentimento de menosvalia que tomava conta de nós em razão do tratamento desigual com os ministérios públicos estaduais, agravado por uma defasagem salarial próxima a 35%.

O que mais o tira do sério hoje no Ministério Público?

O que me tira do sério no MPF hoje é a incapacidade de muitos colegas de enxergarem as relações de poder que entremeiam as relações institucionais e de alto escalão. Ainda há colegas que não conseguem ver além do ‘jurídico’ e compreender que há questões que demandam uma capacidade de articulação e de concessões mútuas de ‘poderes’ para a manutenção do equilíbrio republicano. As forças políticas nunca serão totalmente domadas pelos preceitos jurídicos. Aliás, essa é a dialética insuperável dos Estados de Direito, o embate entre o poder de fato, que são as forças políticas, e o poder do Direito. E, como sempre digo, o procurador-geral da República é um dos maiores ‘poderes de fato’ da nação, porque tem poder para instaurar investigações e ações penais que podem desequilibrar um Governo e até a própria República.

Você iniciou um curso de contabilidade depois que já havia ingressado no Ministério Público. Você buscava incrementar sua atividade na Procuradoria da República ou dava vazão a um hobby?

Eu comecei a fazer Contabilidade porque pretendia me aprimorar para compreender melhor os registros das contas públicas e privadas. Infelizmente somente consegui fazer os dois primeiros semestres, porque minha filhinha nasceu e eu não quis perder as noites estudando e deixando de curti-la e curtir meu outro filho pequeno.

Como surgiu seu interesse por armas de fogo? Pratica com frequência?

Sempre fui curioso por arma de fogo. Mas ano passado fizemos um curso de técnicas de defesa na Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina e tivemos treinamento com várias armas. Gostei definitivamente. Então, associei-me a dois clubes de tiro em Caçador, SC: o tiro ao prato, com espingarda calibre 12, e o tiro prático. O tiro prático é modalidade criada pela International Pratical Shooting Confederation e consiste em campeonatos que associam habilidade, mira e agilidade no manuseio de armas de fogo em situações que simulam alvos reais. É muito interessante para aqueles que se interessam em treinar com armas de fogo para ter mais segurança no manuseio para a autodefesa. Pratico todo fim de semana o tiro ao prato — trap americano –, que é uma modalidade mais clássica e elegante. A fossa olímpica é a modalidade de tiro ao prato que é considerada esporte olímpico. O tiro prático é mais emocionante, tem adrenalina. Hoje tenho uma espingarda 12 de dois tiros, uma ERA 2001, uma espingarda boito pump calibre 12 e uma pistola CZ 75 DUTY P-07, calibre 380. Sou inscrito como atirador no Exército Brasileiro, além de ter o porte de arma que temos em razão da função, que independe de autorização de qualquer autoridade.

Na sua opinião, as armas de fogo que ajudam a proteger domicílios e empresas são essencialmente um bem a serviço do bem ou são um mal necessário?

Armas no domicílio e na empresa são sim um instrumento de proteção. O cidadão que está armado e vê que seu domicílio está sendo invadido tem condições de recuar para um canto da casa protegido, com sua família, e usar a arma para afastar a ameaça à sua integridade física e de sua família. Evidente que o uso da arma depende de treino, porque arma sem treino é um perigo. E no Brasil a legislação é uma piada de mal gosto, por vários motivos. O primeiro foi o maior golpe institucional pós-88 na democracia brasileira. Foi realizado um referendo para saber se a população era a favor da proibição do comércio de armas e munições, e 64%, ou seja, 59 milhões de brasileiros, disseram não. Mesmo assim, não se alterou a Lei Federal n. 10.826/03, que torna inacessível a arma de fogo para a maior parte da população e torna impossível, praticamente, o porte de arma de fogo.

Ademais, a lei deixou vários aspectos para que o Exército regulamentasse. Como o Exército é contra a existência de uma população armada, os regulamentos são extremamente restritivos, além de ser confusos e em vários aspectos ilegais. Mas isso é questão para outro momento. Então hoje o cidadão que tem arma de fogo curta para defesa, revólver ou pistola, somente pode adquirir cinquenta cartuchos de munição por ano. É competência do Exército definir a quantidade de cartuchos. E eu pergunto: como esse cidadão vai treinar? De que adianta permitir a posse de arma sem dar a mínima condição para o cidadão praticar e poder ter segurança no momento de perigo? Esse é o mesmo número para o porte! Imagine você um cidadão que porta arma de fogo sem que tenha a habilidade de manuseio e segurança no uso… Um cidadão desses é um perigo para si e para os que o rodeiam. No mínimo são necessários uns mil tiros por ano para aquisição e manutenção das habilidades necessárias para o uso de armas de fogo.

Além disso, a Lei Federal n. 10.826/03 praticou verdadeiro estelionato contra o povo brasileiro. Conhecido como ‘Estatuto do Desarmamento’, a lei facilitou o registro de armas de fogo, bastando ao cidadão apresentá-la à Polícia Federal e declarar origem lícita. Isso levou milhares de brasileiros a trazerem suas armas à legalidade e ao registro. Ocorre que, e isso não foi informado aos cidadãos, o registro tem validade de três anos. Decorrido esse prazo o cidadão é obrigado a renovar o registro nos moldes da lei, ou seja, tem que apresentar atestado de aptidão de manuseio — feito com técnico credenciado –, atestado psicológico — um teste psicotécnico cansativo, longo e inacessível para pessoas mais simples –, além das certidões negativas de processos criminais. Muitos que regularizaram a arma de fogo são do meio rural, pessoas analfabetas ou semi-analfabetas. Como farão para passar nos testes exigidos? isso sem contar o custo disso tudo. Os dois testes somados custam R$ 600,00. Portanto, o cidadão que trouxe sua arma à legalidade agora está de novo na ilegalidade, porque atualmente há milhares de registros vencidos. Aliás, renovação de registro já é em si um excrecência, somente explicável pela ideologia preconceituosa contra as armas de fogo.

Eis uma grande questão. Você acredita que a proibição do comércio de armas de fogo poderia enfraquecer a criminalidade armada? Como vê essa questão que volta e meia está na ordem do dia?

A proibição do comércio de armas de fogo somente pode favorecer a criminalidade, não enfraquecê-la. O criminoso não adquire arma de fogo de forma lícita. Você já processou quantas pessoas por roubo, latrocínio, sequestro, quadrilha armada etc cujos réus tinham armas registradas? Tenho certeza de que nunca processou nenhuma pessoa assim, porque isso não existe… Quem registra arma de fogo é cidadão de bem, não criminoso de rua, que consegue comprar no mercado negro as armas que usa. E digo mais: hoje é tão difícil e caro ter arma de fogo que ela é praticamente proibida para 90% da população brasileira. Porte, então, é uma raridade, somente concedido àqueles que tem o porte por prerrogativa funcional, que são os policiais, os magistrados do Poder Judiciário e Ministério Público, os auditores da Receita etc. No entanto, a criminalidade armada só aumenta e os homicídios só aumentam no país. Em 2013 foram 53 mil homicídios! É sempre bom lembrar que sem armas de fogo jamais teríamos Canudos, Contestado, Sabinada, Revolução Farroupilha, dentre outras revoltas contra os abusos do poder central. População desarmada é, sim, população indefesa.

Que disciplinas você está lecionando atualmente? Sente-se vocacionado ao magistério?

Estou lecionando Direito Processual Penal III, que aborda os procedimentos, sentença, nulidades e recursos. Sempre gostei do magistério. Inclusive, minha carteira de trabalho foi assinada aos meus dezesseis anos, como professor de inglês do CCAA de Criciúma, SC, que é minha cidade natal e onde vivi até meus dezoito anos. Durante meu mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina consegui aprovação no concurso para professor substituto e lecionei por dois anos Direito Penal e Criminologia. Meu mestrado foi em Criminologia. Minha orientadora foi a nossa querida Ela Wiecko. Vim para Caçador, que fica a 400 quilômetros da capital, em 2003, contratado pela Universidade do Contestado, hoje extinta.

Sou professor universitário desde o ano 2000, com um intervalo entre 2010 e 2013. Gosto muito de ser professor porque gosto muito de me atualizar, de estudar e de questionar meus próprios fundamentos. Já prometi a mim mesmo que quando meus filhos estiverem maiores passarei a escrever obras jurídicas. Será um novo caminho.

Imagino que seus alunos já façam parte de uma cultura universitária um pouco diferente daquela de que você próprio fez parte no início de seus estudos. Essa observação faz sentido?

Faz sim, sem dúvida. Hoje as coisas estão muito diferentes. Não sinto que a maioria dos alunos esteja realmente interessada em aprender e se superar. Vejo-os preocupados com respostas rápidas para passarem na disciplina e se tornarem bacharéis. Lembro-me que quando estudava, salvo raras exceções, nós buscávamos estudar obras completas da maioria das disciplinas e tínhamos uma interação maior com os professores, provavelmente pelo nosso conhecimento decorrente das leituras. Não vejo isso hoje em meus alunos.

Na sua opinião, Anderson, no nosso atual modelo de sociedade, o Direito deve ser enfatizado como ‘tradição’ ou como ‘revolução’?

O Direito, no meu entender, é uma forma de racionalizar e de controlar os poderes de fato que agem em uma sociedade. O Direito serve à regulação das condutas para dar ao ser humano um meio mais digno para se desenvolver livremente. E quando digo que o Direito controla os poderes de fato da sociedade não estou dizendo que o Direito seja estranho a esses poderes políticos, empresariais, de grupos de pressão, sociedades organizadas etc. Só estou dizendo que o Direito é filho da negociação realizada por esses poderes, e que ele determina uma forma de regulação social possível, diante de tantas contradições de interesses e ideologias. O Direito é o resultado de uma debate e confronto de interesses, conjugados no local da democracia, ou seja, no Poder Legislativo, que impõe as normas de conduta social. Somente os seres humanos podem, em um ambiente livre e democrático, dispor sobre seus interesses e negociá-los, e o fazem dentro da perspectiva da melhor solução possível. Por isso ele é o instrumento que permite o desenvolvimento mais digno dentro de uma sociedade plural. E por ser filho do debate, do conflito e das concessões mútuas, o Direito não pode ser coerente ou sistemático, como querem alguns. O intérprete do Direito tem que ter a humildade de aceitar as contradições das normas, porque o respeito a essas contradições é o respeito ao espírito democrático que moldou sua criação.

Tenho a impressão de que o mundo está muito mudado, Anderson. Hoje convivemos com a Lei da Palmada, com a má-qualidade do ensino nas escolas, com a erotização da infância: o Brasil é um bom lugar para educar seus filhos?

Pois é. Primeiro é preciso saber o que é uma boa educação… Quando os pais sabem que estão educando certo? Essas são questões que me atormentam muito no trato com meus filhos. Até onde ir sem ser castrador e invasivo e quando parar sem ser omisso? Eu crio meus filhos tentando lhes ensinar alguns princípios, especialmente o respeito, a honestidade e a responsabilidade. Não consigo dimensionar que efeitos deletérios — ou, quem sabe, benéficos! — terão esses novos valores da adolescência em suas vidas. Mas creio que os pilares do respeito, honestidade e responsabilidade são a base para a formação de bons seres humanos. Se o Brasil é um país bom para criar meus filhos? Sinceramente, não sei, por me faltar paradigma. Conheço outros países somente como turista, não como morador. E isso me retira a possibilidade de comparação.

Mudando de assunto, você cunhou a curiosa expressão ‘ditadura do café expresso’. A que ela se refere? Pensa que a massificação do consumo é inimiga da liberdade nesse particular?

Essa expressão é resultado da constatação dos males que os modismos podem causar, inclusive em culinária e em gastronomia. Hoje virou modinha pedir café expresso, mesmo que a maioria das pessoas não conheçam café e nem o degustem adequadamente. Como se o café expresso fosse um café melhor… Não é um café melhor, porque ‘café expresso’ é uma técnica de extração do café. Há o café passado no pano, no filtro, na cafeteira francesa etc. Essas são outras técnicas de extração do sabor do café para fazer a bebida. A técnica ‘café expresso’ precisa de bons grãos, porque ela é uma técnica que extrai ao máximo as nuances do fruto. Logo, se você usar um grão ruim para tirar um café expresso, principalmente se for esses tipos ‘comerciais’ de supermercado, ele será intragável, será amargo ao extremo, com gosto de queimado, adstringente e desequilibrado. Então, não adianta ir em restaurante chinfrin e pedir um expresso, porque provavelmente o pó e o grão são ruins e a técnica ‘expresso’ o deixará mais intragável ainda. O café passado no coador extrai menos as nuances e é mais aconselhável em locais de que você não conhece a qualidade do pó e do grão. O que tem que ficar claro é que a técnica não faz milagre. Café ruim é sempre café ruim. E café bom é sempre café bom. A técnica apenas contribui com determinados tipos de grão para extrair-lhe o melhor o potencial, mas desde que sejam bons grãos. Se o grão é ruim, não há técnica que faça milagre. E nesse particular, o expresso é a pior delas. Um bom grão moído na hora e passado na cafeteira francesa… para mim é imbatível!

Como é que o Budismo, do qual você se aproximou, vê o sofrimento humano? Aonde nos levam nossos desejos?

No Budismo o sofrimento humano é resultado do carma e do apego. O carma é um aspecto individual e coletivo que influi nossa energia nesta vida em decorrência dos acúmulos de energia de outras vidas. O nascimento no reino humano já é em si meritório. Há outros reinos: dos infernos, dos fantasmas famintos; dos animais; dos deuses invejosos e dos deuses. Porque esse nascimento permite a opção por uma vida voltada à prática do bem; no reino dos animais não há essa opção, porque é um estado de inércia e estupor. Também nos permite a libertação do sofrimento; no reino dos infernos e dos fantasmas famintos o sofrimento é tão intenso que não há um momento de lucidez que permita a opção e a prática do bem.

O sofrimento no reino humano decorre do apego às ilusões causadas pelo Samsara. O Samsara é a aparência de realidade que acreditamos ser a realidade em si. O Samsara somente existe porque deixamos que nossa mente inquieta domine nosso ser e alimente ininterruptamente as fantasias desse estado. A meditação, entendida como a capacidade de romper o ciclo da mente, ou seja, calar a mente, é um dos principais caminhos budistas para a superação do Samsara e o rompimento com o apego — apego a bens materiais, pessoas, auto-imagem, vaidades etc. A meditação seguida da vontade sincera de beneficiar todos os seres é o caminho búdico, que permite atingir a iluminação — superação da falsa separação entre o eu e o todo para a compreensão de que estamos no todo e somos o todo. A meditação permite que você compreenda a verdadeira raiz dos seus desejos, a partir da contemplação de que eles são vazios de sentido. O que dá sentido aos seus desejos é a mente inquieta e iludida, que vive no Samsara. Quando você medita, aquieta a mente e contempla a si mesmo sem uso da linguagem — porque a mente reproduz a linguagem que, no fim das contas, é a forma como conseguimos enxergar o mundo racionalmente –, os desejos passam a se revelar de natureza vazia e você consegue se libertar das compulsões, das ansiedades etc.

O Budismo é uma religião e uma técnica. Você pode praticar o Budismo com conotação teísta ou sem os ritos sacramentais, somente como técnica de libertação da mente. E como disse o Dalai Lama atual, o budismo é uma canoa para chegar ao outro lado do rio. Se você consegue chegar lá nadando ou de outra forma, o budismo não lhe será importante. O importante é que você chegue do outro lado.

Ouvinte de Metallica, Iron Maiden, Black Sabbath e Pink Floyd, você acredita que esses conjuntos musicais conseguiram manter a autenticidade apesar das tentações da indústria cultural? Há um núcleo de valores comuns que os apreciadores do rock compartilham?

Deixa eu te falar uma coisa: eu sou extremamente eclético para música. No rock gosto do metal: Metallica, Iron e Black; e do psicodélico, Pink Floyd. Mas também gosto do punk de Ramones, do rock antigo do Doors e adoro a música brasileira em muitas das suas modalidades — não gosto de axé, funk e sertanejo universitário. Adoro Raul, Chico, Jobim, Luiz Gonzaga, Noel Rosa, Engenheiros, Legião, Paralamas, Zeca Baleiro, Cartola e Cazuza. Depende do humor e do dia. Mas quando ouço rock metal adoro o som do baixo. É fantástico ouvir aqueles graves envolvendo a guitarra!

Para o filósofo Roger Scruton, “Conservadorismo significa encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa é encontrar o que você odeia e tentar destruir”. Você concorda com ele? Considera-se um conservador no sentido político?

Não sou conservador, mas também não sou revolucionário de Facebook ou de universidade. O que não admito são pessoas que escrevem, estudam e defendem pontos de vista mas não vivem o que defendem. Não consigo aturar pseudo-comunistas que não dividem nem o sinal do wi-fi com seus vizinhos. Ora, a palavra sem a vivência é hipocrisia e mera catarse, porque a pessoa não se aceita como é que quer trazer ao mundo o seu não-ser através da palavra para tentar se afirmar nela. Os ‘socialistas’ e ‘comunistas’ que conheço são todos de fachada, intranquilos consigo mesmos e com problemas de consciência que deveriam resolver no divã. Porque nenhum dos que conheço doa sequer 20% do que ganha para seu vizinho. No entanto, vivem falando em solidariedade, em comunismo, criticam a ganância e os empresários! Não sou conservador no sentido de estar apegado a uma forma ou de amar uma forma. Ao contrário, tenho tendências a ser uma metamorfose ambulante. Mas não sou de dar ou defender opiniões das modinhas politicamente corretas, se eu não as considero como guias de minha conduta de vida. Ou se vive o que se defende ou é melhor se calar. Falar contra o que está aí, mas viver o que está aí é vanguarda de Facebook e de universidade, sem nenhuma sinceridade. Pura hipocrisia. Os que sentem necessidade de defender o que não vivenciam devem procurar com urgência um psicólogo.

Para terminar, o que o futuro reserva ao MPF de hoje?

Eu prefiro não responder a esta questão. Acredito que o momento atual é de transição para algo melhor. Não estou mais tão certo de minhas antigas previsões. Aguardemos um tempo para ver para onde a correnteza nos levará.

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Entrevista com Ryanna Veras: “A sociedade atual é extremamente dinâmica. Temos de escrever nossa história diariamente”.

Orgulhosa da história do Ministério Público Federal e de seu trabalho na instituição, Ryanna acredita que o MPF representa o que há de mais desenvolvido no serviço público brasileiro hoje. Assevera, porém, que diante da dinâmica da sociedade atual, em que novas questões surgem diariamente “temos de escrever nossa história diariamente”.

Ryanna passou sua infância em Santo André, SP, onde tinha uma vida simples mas repleta de amigos. “Brincávamos na rua, de jogos de tabuleiro, saíamos de bicicleta por todo o bairro sem qualquer preocupação. Foi uma época muito especial, com menos insegurança, que infelizmente meu filho não conseguirá experimentar”.

Ryanna começou sua carreira em 2002 na PRM Santo André e desde 2007 trabalha na área criminal da PRSP, na capital paulista. Embora veja como mais positiva para a sociedade a atuação cível do Ministério Público, optou pela área criminal pela afinidade intelectual com a matéria e pelo desafio de, apesar dos percalços, dar um melhor de si em um trabalho marcado pelas desilusões de um sistema de justiça permeado de contradições.

Além de dedicar-se aos seus processos criminais, Ryanna divide seu tempo entre os cuidados com seu filho, a vida espiritual, o trabalho voluntário e as aulas de piano — que a ajudaram a trazer disciplina para as outras atividades. ‘No meio do caminho da vida’, como Dante, reflete: “A vida até os trinta é um grande laboratório de experiências. Depois começa outro período que não é menos bonito e desafiador”.

Entre uma e outra atividade, Ryanna arrumou um tempinho para conversar conosco. Eis o nosso 20º ‘dedo de prosa’, um interlúdio agradável aos ouvidos da alma. Puxem uma cadeira e vejam se não tenho razão.

Você trabalha na área criminal desde que entrou para o MPF, Ryanna?

Não. Eu tive uma breve passagem pela área cível quando de 2002 a 2007 trabalhei na Procuradoria da República em Santo André, que hoje também abrange a Subseção Judiciária de São Bernado do Campo.

A atuação na tutela coletiva não chama a sua atenção hoje?

A nossa atuação no cível é, na minha opinião, muito mais positiva para a sociedade que a atuação criminal. Consegue obter benefícios em larga escala para as pessoas coletivamente. Mas a minha opção pela área criminal tem um misto de afinidade intelectual pela matéria e de um desafio de fazer algo de bom.

Sente que em geral nós temos cumprido com louvor nossas atribuições criminais?

Nessa área o Estado vive um misto de frustração, por não conseguir conter a sensação de insegurança da sociedade; e de autoafirmação, por tentar se mostrar presente por meio de penas retributivas e desumanas. É preciso repensar a política criminal e o papel do Direito Penal na atualidade. E isso me atrai.

Há alguns anos você morou em Londres, onde se tornou Master in Science em Criminal Justice Policy pela London School of Economics. Como foi essa experiência?

Foi uma experiência única. Conhecer pessoas do mundo todo e debater com elas, tomar contato com um ensino de alta qualidade, e viver a rotina de um outro país é algo maravilhoso. Ao mesmo tempo, é um incentivo ainda maior para trabalhar pelo nosso país, trazer para cá a literatura e o conhecimento que consegui adquirir lá e tentar de alguma forma devolver ao meu país o que foi investido na minha capacitação.

É possível dizer com justiça que você está satisfeita com o seu trabalho no MPF?

Tenho muito orgulho da história do MPF e do meu trabalho na instituição. Acho que o MPF representa o que há de mais desenvolvido no serviço público brasileiro hoje. Trabalha com alto nível de eficiência, com pessoal motivado, baixos índices de corrupção e condições de trabalho razoáveis. Entretanto, ainda há muito a se conquistar. A sociedade atual é extremamente dinâmica e novas questões surgem diariamente. Temos de escrever nossa história diariamente, como um órgão neutro, combativo e sempre ao lado da sociedade na luta pela justiça.

Mudando de assunto, onde você passou sua infância, Ryanna? Que lembranças traz daquela época?

Eu passei minha infância em Santo André, na região do Grande ABC. Tinha uma vida humilde, mas com muitos amigos. Brincávamos na rua, de jogos de tabuleiro, saíamos de bicicleta por todo o bairro sem qualquer preocupação. Foi uma época muito especial, com menos insegurança, que infelizmente meu filho não conseguirá experimentar.

Acredita que alguma circunstância dessa época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Na minha família são todos da área da saúde então tive pouco contato com o mundo das leis. Minha opção pelo Direito foi natural. Eu gostava mais de ciências humanas. Naquela época eu nem tinha noção das opções de carreira que podia ter. Era só Direito, Engenharia ou Medicina… Era tudo muito limitado.

E você ainda toca piano?

O piano é um hobby que mantenho até hoje. Faço aula semanalmente e treino sempre nas horas vagas. Acredito que os treinos de piano me ajudaram a trazer disciplina para todas as outras atividades. Como não sou uma pianista por vocação, preciso repetir muito e estudar para conseguir uma boa performance.

Acredita que a disciplina e a técnica que você adquiriu nas aulas de piano a ajudam de alguma forma na vida e no trabalho?

Sem dúvida. Essa disciplina me ajudou muito nos estudos para o concurso e, hoje em dia, me ajuda na organização da rotina profissional.

Nosso colega João Brandão já me disse que ‘a música é a sonoplastia da vida’… Eu particularmente gostei dessa definição. Existe alguma música que represente adequadamente hoje o que se passa na sua vida interior, Ryanna?

São tantas músicas que fizeram parte da nossa vida, não é verdade? Cada uma traz uma lembrança própria, vozes, cheiros, sensações… Atualmente, estou numa fase muita particular, entrando na segunda metade da vida. É nessa hora em que reflito sobre tudo o que aprendi, o que fiz, quais são os verdadeiros valores da vida. Tenho me dedicado muito à minha vida espiritual e ao trabalho voluntário. Quero fazer a minha parte, deixar um legado para as pessoas e para isso tenho buscado dedicar meu tempo ao que realmente tem valor no mundo. No momento, vou citar Society, do Eddie Vedder. É muito questionadora, como eu estou hoje.

Se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá?

Considero que até os trinta a vida é um grande laboratório de experiências. Devemos nos arriscar, acertar ou errar, sentir, experimentar sensações, viajar, nutrir a alma. É uma fase brilhante da vida. De vitalidade física e de uma imaturidade que é necessária para nos permitir a nos envolver nas mais diversas atividades. Acho que é até os trinta que adquirimos a bagagem que nos será útil para o resto da vida. É uma fase da vida que deve ser desfrutada intensamente. Depois dos trinta começa outro período que não é menos bonito e desafiador. Temos que pensar no que queremos deixar escrito na nossa história e isso é muito assustador. Ninguém quer passar a vida apenas dormindo, trabalhando e viajando. Espero que aos sessenta anos eu tenha feito coisas boas pela minha família, pelos amigos e pela sociedade. Ter histórias de lutas e de superação. Ser um exemplo para meu filho. Poder incentivar os mais jovens.

Imagine-se sobrevoando a história da humanidade. Usando a imagem criada por Antoine de Saint-Exupéry, você vislumbra algumas luzes na planície. Que luzes lhe parecem as mais interessantes? Por quê?

Sem sombra de dúvida eu gostaria muito de ver o Buda Gautama, Jesus, Confúcio… No Tao costumam chamá-los de seres iluminados, pessoas que se fizeram presente neste planeta para mostrar o caminho para a humanidade.

Independentemente da minha religião, é grande a admiração que eu tenho pela gratidão e pelo coração desses homens. Com certeza eles são a luz.

 

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Entrevista com Domingos Amorim: “A atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Esqueço-me de tudo quando começo a examinar um processo”.

Domingos Amorim passou sua primeira infância em uma fazenda próxima a Capela, AL, onde, bem cedo de manhã, tomava o leite, ainda quente, tirado da ordenha e se deliciava com o beiju feito na Casa de Farinha. Foi aí, com a filha dos donos da mercearia rural, que teve o seu ‘primeiro alumbramento’.

Domingos se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, onde foi colega de pessoas ilustradas como Renan Calheiros e Aldo Rebelo. Estudou toda a sua vida em colégios públicos. A partir de então, diz, “o ensino público foi se deteriorando, com as honrosas exceções dos Colégios Militares e das Escolas de Aplicação das universidades federais”.

Em um depoimento contagiante, diz que “a atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Ainda que eu esteja com uma grande preocupação, me esqueço de tudo quando começo a examinar um processo”. Reconhece que o trabalho lhe ajuda — como já lhe ajudou — a permanecer firme diante das perplexidades que a vida lhe apresenta.

Refletindo sobre a convivência de gerações no Ministério Público Federal, acredita que “é preciso que depositemos nos mais novos a confiança de que têm aptidão para oxigenar o debate e com isso melhorar ainda mais o que está sendo feito. ‘O ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações'”.

Domingos começou sua carreira no MPF em 1989, na Procuradoria da República em Pernambuco. Ao ser promovido, atuou na Procuradoria Regional da 4ª Região, em Porto Alegre, RS, e hoje, de volta a Recife, PE, trabalha na Procuradoria Regional da 5ª Região, de onde nos concedeu esta entrevista. Veja o nosso 19º ‘dedo de prosa’.

Você é satisfeito com o que faz no MPF, Domingos?

Sim, sou. A atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Ainda que eu esteja com uma grande preocupação, me esqueço de tudo quando começo a examinar um processo. É como se ingressasse em um outro mundo muito particular. Para que você tenha uma ideia, isso foi minha salvação no curso de uma doença crônica do meu filho, que durou treze anos entre seu nascimento e sua morte.

Além disso, não vejo nenhuma instituição igual ao MPF, pois a independência funcional existe de direito e de fato para todos aqueles que não estão preocupados em chegar ao ápice da carreira.

Antes de ser procurador da República você foi promotor de justiça. Como foi sua decisão de tentar o concurso para o MPE? Arrepende-se de ter vindo para o MPF?

Eu nasci em Capela, pequena cidade do Estado de Alagoas, quando aos onze anos minha atenção voltou-se para um fato ocorrido em um pequeno quiosque na beira da linha férrea, vizinho à estação. A pessoa que lá vivia acolheu alguém que não tinha onde dormir e foi por ela assassinada no curso da madrugada. Na época, a figura do ‘adjunto de promotor de justiça’ era admitida em Alagoas. Era uma função geralmente ocupada por estudantes de Direito, quase sempre filhos de pessoas com prestígio político. O acusador, neste caso, foi um parente meu já falecido, Luiz Eustáquio da Silveira Moreira, adjunto de promotor, que posteriormente veio a se tornar promotor de justiça efetivo. Ele realizou a missão com sucesso e o réu foi devidamente condenado. Em razão desse fato, despertei para o Ministério Público e resolvi que um dia seria promotor de justiça. Ingressei na Faculdade de Direito da UFAL no início de 1975, mas, influenciado pelo fato de ter três dos meus tios e um irmão como empregados do Banco do Brasil, resolvi interromper o curso após a conclusão do primeiro ano, e assumi, em razão de concurso público, o emprego de ‘auxiliar de escrita’. Mesmo porque, na época, incomodava-me continuar dependendo financeiramente do meu pai.

Dois anos depois, não conseguindo transferência de União dos Palmares, AL, para Maceió, AL, requeri minha exoneração, voltei para a Faculdade, e fui trabalhar no escritório de advocacia de um dos meus tios. No meio do ano de 1981, ao concluir o curso, tomei conhecimento de que estavam abertas as inscrições para o concurso de promotor de justiça, o que me levou a providenciar, de forma imediata, o diploma devidamente registrado, exigência editalícia mais difícil de suprir, inscrever-me e submeter-me ao certame, que foi concluído no final de janeiro de 1982 com minha aprovação. No ano de 1987, no entanto, durante o Governo de Fernando Collor de Mello, as dificuldades financeiras dos membros do Ministério Público do Estado de Alagoas eram piores do que as que atualmente atingem todo o Parquet. Por isso, após a morte de um filho, cujas despesas hospitalares foram bancadas por meu pai, resolvi realizar concurso para o Ministério Público Federal, instituição na qual seus membros, na época, ao lado de receberem vencimentos condignos, estavam lotados em capitais. Aprovado, tomei posse no dia 15.12.1989, vindo trabalhar aqui em Recife, PE, para o quê abri mão de assumir o cargo de Auxiliar de Ensino na UFAL, aprovado que havia sido para lecionar Direito Processual Civil. Encontrei-me totalmente nesta instituição, especialmente porque, diferentemente do que ocorria no âmbito do Ministério Público Estadual, nela não se observa a existência de qualquer ‘hierarquia de fato’.

Então você passou sua primeira infância na zona rural do município de Capela, AL. Que lembranças você tem dessa época, Domingos?

De fato, até pouco tempo depois de completar cinco anos, eu vivi na Fazenda Boa Vista, propriedade rural de cerca de 250 ha, situada em Capela, AL, onde meu pai explorava a cultura da cana-de-açúcar e umas poucas cabeças de gado para o serviço de aragem, carro de boi e produção de leite para a família e empregados. Apesar da distância no tempo, guardo na lembrança alguns fatos que a memória fotografou. Lembro, por exemplo, de estar sentado no parapeito da varanda da ‘Casa Grande’, em dia muito chuvoso, quando observei algo brilhando no local para onde as águas do telhado escorriam, o que me levou a descer da varanda, pegar o objeto no solo e entrar em casa gritando de felicidade por haver achado um ‘anel’; no final das contas, era uma grossa aliança de casamento que meu avô havia perdido.

A lembrança me traz também os dias de sábado, quando os ‘caboclos’, após colherem a mandioca que meu pai lhes permitia cultivar antes da renovação do plantio de cana, a transformavam em farinha; naquelas ocasiões, todos nós, meninos da fazenda, chegávamos à Casa de Farinha para pedir que eles fizessem um beiju quentinho e crocante, que comíamos com grande prazer. Nunca esqueci da ordenha, bem cedo da manhã, quando tomávamos o leite quentinho, logo após ser retirado do peito da vaca. Lembro, finalmente, do dia em que nos mudamos para a cidade, quando o caminhão parou no ‘Barracão’ — que é uma espécie de mercearia rural — da contígua Fazenda Flor dos Campos. Na época um dos proprietários dessa fazenda era o ator Paulo Gracindo. Então, o motorista, a pedido de meu pai, manteve um rápido diálogo com alguém, seguindo viagem.

Mas o que não esqueço mesmo foi o dia em que os donos do Barracão viajaram e deixaram sua filha, cerca de três anos mais velha que eu; eu e ela brincamos de ‘papai e mamãe’ no quarto do casal, tomei umas doses de ‘cachimbo’ — que é uma bebida feita de aguardente, limão e mel, outrora tradicional no interior do Nordeste, que servia para comemorar o nascimento de uma criança — e cheguei em casa embriagado e vomitando. Depois disso, vivi em Capela, AL, o período mais solto da minha vida, durante a década de 60.

E como foram a sua educação e a sua formação cultural na infância e na juventude?

Aos sete anos de idade fui matriculado no Grupo Escolar Torquato Cabral, da rede estadual de ensino, onde iniciei a alfabetização e permaneci até a metade da 4ª série; nessa ocasião, meu pai aceitou assumir a gerência do campo da Usina Laginha. Por isso, nos mudamos para União dos Palmares, AL, onde concluí o curso primário no Grupo Escolar Rocha Cavalcanti, também da rede pública estadual. Fiz o exame de admissão ao ginásio e fui estudar no Ginásio Santa Maria Madalena, que imagino ligada à CNEC – Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, instituição que me parece desvinculada do poder público e que se destina a criar escolas nos diversos recantos pobres do país. Depois de um ano na Usina Laginha, como meu pai entendeu que o emprego estava lhe trazendo prejuízos, na medida em que a fazenda tinha sofrido um certo abandono, solicitou exoneração e voltamos felizes para Capela, onde dei continuidade ao curso no Ginásio Maria Imaculada, também da CNEC, até a conclusão da segunda série, quando nos mudamos para Maceió, AL. A propósito, como o Pedro, meu irmão mais velho, estava estudando em Maceió e morando em ‘pensão’, minha mãe convenceu meu pai a alugar uma casa na capital, para que todos os sete filhos continuassem sob sua orientação direta. Isso acabou se consolidando no início do ano de 1970, época em que eu estava próximo aos quatorze anos de idade. Eu e meus demais irmãos, com exceção de Pedro, que estudava no antigo Colégio Estadual de Alagoas, conseguimos matrícula no CEPA – Centro Estadual de Pesquisas Aplicadas, hoje Centro Educacional Antônio Gomes de Barros, do Governo do Estado de Alagoas, onde funcionavam vários colégios. Eu fui encaminhado para o Instituto de Educação, no qual concluí o ginásio. Fui então matriculado na EMS – Escola Moreira e Silva, também no CEPA, onde realizei o curso científico, colégio do qual até hoje sinto saudades.

Aprovado no vestibular, ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, que na época contava com professores de alto nível, a exemplo de Alfredo Gaspar de Oliveira Mendonça, Zepherino Lavenère Machado, Marcos Bernardes de Mello, Marcelo Lavenère Machado, Paulo Luiz Netto Lobo, Antônio Aleixo Paes de Albuquerque e outros. Lá, após a interrupção do curso por dois anos, em razão da assunção de emprego no Banco do Brasil, concluí o curso em junho de 1981. Devo tudo isso a dona Ivete Tenório de Amorim, em solteira Ivete Tenório de Albuquerque, minha mãe, que apesar de não ter tido a oportunidade de estudar além do curso primário era uma doutora da vida, com inteligência ímpar e uma incrível visão de futuro. Ela me estimulou à leitura desde as primeiras letras, cobrando-me resultados e me levando a criar um senso de responsabilidade que me permitiu ver a necessidade de seguir adiante nos estudos. Isso me propiciaria a obtenção, pelo mérito pessoal e de forma ética, de tudo aquilo que eu sonhasse na vida. Passei a devorar gibis, revistas, jornais, livros com estórias de cowboys. Lembro-me bem que adorava os livretos de um tal Marcial Lafuente Estefanía. Depois comecei a me interessar pela literatura brasileira.

Você teve boas experiências na rede pública de ensino. Acredita que o Brasil possa voltar a ter algo parecido?

É verdade. Quando terminei o curso científico já dava para notar que o ensino não era mais o mesmo, o que fez com que meus pais redirecionassem meus irmãos mais novos, Inês e Fábio, para o Colégio Marista. Desde então, a percepção que tenho é a de que o ensino público foi se deteriorando, tal como todo o Brasil o vê hoje, com as honrosas exceções dos Colégios Militares e das Escolas de Aplicação das universidades federais. Como sou otimista, tenho fé que a qualidade do ensino público há de voltar a ser prioridade dos governantes estaduais e será então restaurada a qualidade de outros tempos. O que dói é ver que o povo brasileiro facilmente se deixa levar por políticos enganadores, sem qualquer compromisso com a educação, fato que vem perpetuando o baixo nível da educação. Quando despertarmos e elegermos estadistas em sequência, o que nunca fizemos, certamente vamos recuperar o tempo perdido. Espero e acredito que isso venha a acontecer.

Seu pai e sua mãe foram pessoas que participaram de modos muito diferentes da sua formação. Estou correto? Carlos Drummond fala da ‘estranha ideia de família que viaja através da carne’. Nessa viagem, Domingos, qual é nossa função como passageiros?

Sim. Creio que era uma questão cultural da época, principalmente nas cidades interioranas. Meu pai, Flávio de Melo Amorim, sempre foi uma pessoa preocupada em suprir as necessidades materiais da família, o que sempre conseguiu a contento, principalmente quando se considera que tinha sete filhos sob sua responsabilidade. Além disso, sempre chegava junto, dentro das suas possibilidades, quando um de nós estava passando por alguma situação de carência financeira. Minha mãe, por sua vez, ao lado de administrar a casa, era a responsável pelo direcionamento de todos nós para os estudos, fazer as correções de rumo em razão de indisciplinas etc. Ela era o farol da nossa casa; enxergava longe. Foi a responsável pelo sucesso de seus sete filhos nos estudos, além de criar em todos nós a consciência de que a competição da vida exige uma postura ética, tal como também víamos no exemplo que igualmente era dado por nosso pai em tudo o que fazia. Com eles aprendemos a ser o que somos e a transmitir os mesmos valores e as mesmas impressões para os nossos filhos, com a certeza e a esperança de que as próximas gerações também saberão preservar as mesmas lições. Certamente é dessa forma que as velhas gerações realizam viagens através da carne. Nós, como passageiros, temos que aproveitar essa viagem para dar alguma contribuição à sociedade e nos aperfeiçoar como seres humanos, deixando para nossos filhos um exemplo de ética e retidão.

Além de você, sua turma de faculdade teve outras figuras ilustres. Você foi colega de turma de Renan Calheiros, do ministro do STJ Humberto Martins e do ministro Aldo Rebelo. Lembra-se de alguma característica marcante da personalidade de algum deles que seja digna de nota?

José Renan de Vasconcelos Calheiros, hoje conhecido ‘Renan Calheiros’, foi meu colega em parte do curso científico, na Escola Moreira e Silva, época em que já demonstrava ser uma pessoa estudiosa, dotada de grande inteligência e igualmente de atributos de liderança. Talvez por dificuldades financeiras da família, ele residia na casa dos pais de um amigo comum, o ex-deputado estadual Manoel Lins Pinheiro, que também era nosso colega, como continuou a ser na Faculdade de Direito. Hoje é infelizmente falecido. De sorte que era uma pessoa extremamente simples. Em 1974, durante o 3º ano, quando eu já possuía uma certa consciência política e torcia pela redemocratização do país — razão pela qual, junto com a maioria da turma, votaria no MDB –, ele me causou uma grande surpresa, pois em conjunto com um grupo de jovens de Murici, sua cidade natal, resolveu lutar em favor de Geraldo Bulhões, da ARENA, candidato da família Omena (então usineiros) à Câmara Federal. Perdi a confiança no seu idealismo. Depois, já líder estudantil, aproximou-se do pessoal do PC do B, e foi posteriormente eleito pelo MDB para deputado estadual. Por fatos como esses, não me admira que tenha se transformado nesse ícone do PMDB sempre governista. No plano pessoal, no entanto, apesar de uma distância superior a trinta anos entre nós, creio que continua a ser a mesma pessoa cordial e boa praça de outros tempos.

Humberto Eustáquio Soares Martins e seu irmão Mário Augusto Soares Martins eram os ‘mauricinhos’ da nossa turma de ingresso no Curso de Direito. Eram filhos do promotor de justiça, posteriormente procurador de justiça, José Martins Filho, depois meu colega e amigo no Ministério Público do Estado de Alagoas, figura boníssima, inteligente, ótimo papo, oratória invejável  etc., que certamente pela pequenez quantitativa da família e detenção de recursos de herança e ganhos com advocacia, podia conceder aos filhos o direito de utilizar automóveis como o Puma, sucesso da época entre os jovens ricos. Eram, contudo, para minha decepção, eleitores da ARENA, ligadíssimos a Divaldo Suruagy, fato que, imagino eu, posteriormente garantiu a Humberto, ainda estudante, a nomeação para o cargo de adjunto de promotor de justiça. Na época eu era fervoroso eleitor de José Costa, que encarnava a grande liderança do MDB no Estado de Alagoas. Apesar de ter memória privilegiada, nunca me pareceu ser um colega dotado de grande criatividade; no entanto, sempre soube cultivar as ligações políticas que o fizeram desembargador, pelo quinto da OAB, e depois ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Por fim, José Aldo Rebelo de Figueiredo, meu vizinho de Viçosa, AL, também da mesma turma do início da Faculdade de Direito, era um colega extremamente simples, sempre de sandálias tipo havaianas — que na época chamávamos de sandálias japonesas — e calça jeans surrada, fato que se devia provavelmente às poucas condições financeiras de sua família; sua permanência em Maceió decorria do emprego que arranjou no Banco do Estado de Alagoas. Estudamos juntos a partir do básico, de modo que pude testemunhar sua postura humilde e ética, sua cultura, inteligência e criatividade invejáveis, que infelizmente eram empanadas pela doutrinação comunista que havia recebido. Vi-o, pela última vez, quando, lotado na PRR4, tomei conhecimento de que iria se encontrar com jornalistas em uma Churrascaria de Porto Alegre, ocasião em que fui até o local e rememoramos, em poucos minutos, os tempos da Faculdade de Direito. É uma grande figura. Imagino que continua o mesmo Aldo Rebelo de antes, que sempre me causou uma ótima impressão.

Você está se perguntando se já não está na hora de passar o bastão para os colegas com maior entusiasmo com o trabalho. Mas você não está me parecendo desanimado…

Estamos passando por um momento de grandes dificuldades, decorrentes do achatamento do subsídio, principalmente porque agora, diferente do que ocorria em outros tempos, parece que existe um objetivo velado do atual Governo de sufocar o Ministério Público e o Poder Judiciário. Vingança em razão do resultado da ação penal do Mensalão? Talvez, mesmo porque esse pessoal gosta mesmo é do poder sem as travas que a democracia impõe, o que se incompatibiliza com os objetivos do Parquet. Apesar disso, aqueles que realmente são vocacionados para o MPF não perderam a vontade de contribuir para que o Direito e a Justiça sejam aperfeiçoados e a sociedade consiga evoluir em direção a um Estado onde os direitos fundamentais de todos os matizes sejam efetivamente respeitados, o que gerará paz, segurança e a igualdade que todos acalentam.

Evidente, no entanto, que nós, os mais velhos, apesar da satisfação que nos dá o trabalho que realizamos em prol do equilíbrio social, temos a consciência de que existe muita gente jovem com novas ideias e muito entusiasmo para dar continuidade e melhorar aquilo que hoje fazemos, como é o natural da vida. Aliás, isso sempre me lembra uma versão de ‘Luzes da Ribalta’, tranquilizadora em relação ao futuro, onde se afirma que ‘o ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações’. Então, é preciso que depositemos nos mais novos a confiança de que têm aptidão para oxigenar o debate e com isso melhorar ainda mais o que está sendo feito.

A última questão, que tenho feito a outros colegas: se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá? O Ministério Público terá um lugar especial nessa resposta?

Não creio e não tenho a expectativa de viver mais trinta anos. Mas, se isso acontecer, direi a ele, como diria hoje, que a vida me trouxe momentos de grandes sofrimentos, que superei pela pequena crença em Deus, certamente muitíssimo inferior a um grão de mostarda, mas que me fortaleceu para enfrentá-los, do mesmo modo como igualmente me propiciou momentos de grande felicidade. Direi, do mesmo modo, que uma das maiores satisfações que tive foi integrar o Ministério Público, especialmente o Ministério Público Federal, através do qual, dentro das minhas grandes limitações, sempre procurei ter alguma utilidade para a sociedade e fiz amigos que me ajudaram e certamente ainda me ajudarão a trilhar o restante dessa caminhada que percorro entre flores e espinhos.

 

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