“O que mais dificulta a apuração dos atos de corrupção no Brasil é o fato de que se trata de uma forma institucionalizada de se fazer política”. Veja nossa entrevista com Raquel Branquinho.

Raquel passou parte de sua infância em uma fazenda no interior de Goiás, onde entre entristecida e confusa assistiu ao desaparecimento de seu cachorrinho ‘Vinagre’. Histórias que não são esquecidas… De Goiás para Brasília, a trajetória de uma vida. Hoje, procuradora regional, ela encontra satisfação fora do trabalho no convívio com seus filhos, nas leituras e nas viagens que faz.

Com uma vasta experiência na área do patrimônio público dentro do Ministério Público Federal, ela acredita que a dificuldade em investigar e obter a condenação de agentes públicos corruptos está em que geralmente os maiores prejuízos ao erário decorrem de “uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas”.

A morosidade da justiça brasileira é, para Raquel, um dos maiores fatores de impunidade. Além disso, os órgãos de fiscalização e controle trabalham muitas vezes com a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, com pouca efetividade. Seu testemunho é firme e direto: “Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais”.

De sua participação na investigação e na formulação da acusação que originou a Ação Penal 470 (Mensalão), ela extraiu a lição de que “quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz”.

Acompanhe o nosso 27ª ‘dedo de prosa’, um rico testemunho de uma procuradora que vive, de forma dinâmica e reflexiva, as vitórias e as amarguras da defesa do patrimônio público brasileiro neste começo de século.

 

Eu tenho a impressão de que na administração pública brasileira a imensa maioria dos procedimentos licitatórios ou foi alvo de fraude e que, quando menos, os gastos realizados nos contratos administrativos são mal-feitos. Você também tem essa impressão? Imagina alguma modificação legislativa que pudesse começar a alterar esse quadro?

De fato nós, cidadãos brasileiros, diante de tantas notícias que acompanhamos na mídia dos mais diversos tipos de fraudes em licitações, não podemos dissociar do nosso imaginário que as contratações que envolvem dinheiro público são decorrentes de negociações espúrias.

Na condição de procuradora da República, atuei, durante anos, na área de defesa do patrimônio público e da probidade administrativa em Brasília, especificamente na área de licitação pública. Em razão do contato diário com a matéria, posso afirmar que, infelizmente, não obstante a existência de uma legislação para coibir abusos e estabelecer transparência, eficácia, impessoalidade e limite de preços às aquisições e serviços, é muito alto o índice de fraudes em licitações públicas que resultam em sobrepreço e superfaturamento, decorrentes de prévios ajustes entre representantes do setor público e privado — ajustes quase sempre de difícil ou quase impossível caracterização probatória.

O que mais dificulta a apuração é o fato de que não se trata de crimes praticados por servidores públicos de forma isolada, ou seja, sem grandes conexões, no exercício de sua função. Trata-se, ao meu sentir, de uma forma institucionalizada de se fazer política no Brasil a partir de negociações entre Governo e partidos da base, que dividem, entre si, os principais cargos e funções públicas. Assim, o que comanda o gasto público são os interesses dos partidos políticos. E isso não apenas favorece empresas privadas, que ganham muito por diversos tipos de fraudes, mas também partidos políticos e pessoas físicas, que se beneficiam do retorno de parte desse dinheiro indevidamente pago nessas contratações.

Há necessidade, sim, de mudança da legislação. Principalmente, dos regimes especiais que foram criados nos últimos anos para flexibilizar as contratações públicas. Uma importante alteração, principalmente na área de obras públicas, é a exigência de projeto prévio bem detalhado no aspecto quantitativo e de preços. Outra modificação importante é a da legislação sobre preços referenciais, muito ampla e que, de forma ‘legítima’, em obras de maior vulto, já permite uma margem oculta de lucro em torno de 25% às empreiteiras, consórcios etc.

A morosidade da justiça é geralmente apontada como uma das causas da impunidade em nosso país, principalmente em casos de corrupção com verbas públicas. Que fazer?

Infelizmente, não para desconsiderar o fato de que a morosidade da Justiça é, efetivamente, um dos maiores fatores da impunidade no Brasil, sobretudo nas áreas criminal e de improbidade administrativa. Deveríamos simplificar alguns ritos, sem qualquer alteração no devido processo legal. Por exemplo, as duas fases de defesa antes do recebimento da inicial da ação de improbidade ou da denúncia em algumas espécies de processo criminal.

Poderiam ser criadas varas especializadas para a matéria de improbidade administrativa e as ações de improbidade deveriam ter prioridade na tramitação judicial. Também há algumas alterações possíveis na legislação penal para se permitir a execução provisória da pena em processos julgados em segundo grau de jurisdição; a diminuição das hipóteses de recursos excepcionais, ou seja, que não se atenham à matéria fática; e o desenvolvimento de uma doutrina jurídica que não aplique o garantismo de forma irracional como ocorre no Brasil. Essa última questão nos colocaria na linha dos países mais avançados que conseguem, com muita tranquilidade, equilibrar a garantia do devido processo legal e a efetividade da Justiça.

Como vê a atuação da Controladoria-Geral da União e da Polícia Federal em casos de corrupção nos últimos anos?

Infelizmente, no Brasil, há vários órgãos com atribuição de apuração de fatos irregulares, inclusive com sobreposição de atribuições em alguns aspectos, mas o que vemos é a repetição de procedimentos burocráticos, que se arrastam durante anos, acumulam uma quantidade imensa de papel, mas que não trazem nenhuma efetividade ao seu termo.

A CGU, nos últimos doze anos, não obstante tratar-se de órgão vinculado ao Poder Executivo, conseguiu, de certa forma, romper com essa lógica, inovando e estabelecendo dinâmicas de auditoria e corregedoria mais efetivas. A atuação conjunta entre CGU e MPF e por vezes Polícia Federal, nos casos em que atuei, sempre deram bons resultados. Criou-se um arcabouço jurídico que permitiu à CGU trabalhar de forma muito mais efetiva e durante todos esses anos é o único órgão federal que conseguiu chegar aos mais diversos locais do país para apurar a aplicação das verbas públicas federais nos municípios.

Infelizmente, a CGU, como diversos outros órgãos, não obstante a excelência do trabalho do seu corpo técnico, depende de uma diretriz firme, o mais independente possível e com a estrutura material e de pessoal adequadas.

Nos últimos anos, tenho assistido ao paulatino sucateamento da CGU no que se refere aos seus recursos humanos e materiais. A sistemática de fiscalização por sorteio em municípios incomodou muito os gestores municipais e, de certa forma, também foi esvaziada. Agora, houve mudança da sua direção máxima, que sempre esteve nas mãos do então Ministro Jorge Hage que, sem sombra de dúvidas, foi um excelente Controlador, e a minha posição é de espectadora sem grandes expectativas.

O aparelhamento da CGU é algo possível e muito perigoso para o país. O saldo do trabalho da CGU nesses anos, a meu ver, é muito positivo e, ao contrário do TCU, que é um Tribunal cujos julgamentos são naturalmente imbuídos de força política, os relatórios de auditoria da CGU são perenes, ou seja, uma vez aprovados, não são alterados a cada nova revisão, como ocorre no TCU, cujos processos demoram anos para serem concluídos.

Quanto à Polícia Federal, apesar de vários problemas internos, como disputas políticas, a sua também vinculação ao Poder Executivo, tem feito um trabalho razoável no combate à corrupção na parte, ao meu ver, das operações policiais. Ainda falta uma maior especialização dos delegados, agentes e escrivães na investigação de crimes de colarinho branco, inclusive de corrupção. Paralelamente às operações de busca e apreensão e escuta telefônica, é necessário que sejam feitas análises e outros tipos de investigação para robustecer a materialidade e autoria de forma rápida — o que não tem acontecido. São deflagradas grandes operações, que acumulam uma grande quantidade de material e que, depois, carece de análise e uma investigação mais concatenada for falta de pessoal, recursos financeiros ou mesmo interesse.

Que aprendizado você extraiu de sua atuação na investigação que fundamentou a acusação formulada pelo Ministério Público Federal na AP 470 (Mensalão)? Que balanço faz do julgamento já concluído?

Bem, o principal aprendizado é de que quando assume o comando da investigação, atua de forma integrada entre as suas instâncias e possui, minimamente, uma estrutura técnica de apoio para análise de informações, o Ministério Público consegue, em tempo extremamente curto, ajuizar ações penais e outras medidas de forma rápida e eficaz.

A minha atuação no caso permitiu uma consolidação de experiência na investigação de crimes de grande porte, do colarinho branco, que demandam uma investigação muito mais estruturada e organizada entre Ministério Público, Polícia Federal e Poder Judiciário. O caso Mensalão alcançou esse estado da arte e, ao meu ver, por esse motivo, foi muito bem sucedido na sua primeira etapa, ou seja, até o julgamento da ação pela Suprema Corte.

Não obstante discordar da forma como foram aplicadas as penas e também da interferência política do Planalto no julgamento, com a nomeação de Ministros que se mostraram totalmente favoráveis às teses absurdas de defesas de alguns réus, faço um balanço positivo pois foi um leading case no próprio STF e a única ação penal que processou e efetivamente julgou e condenou a cúpula de partidos políticos, do Governo e de banqueiros envolvidos em crimes contra a administração.

Em sua atuação na PRR da 1ª Região certamente você, aliada à sua experiência, tem uma visão privilegiada do trabalho dos colegas da base e de sua perspectiva de frutos uma vez superada a fase de tramitação do processo no primeiro grau de jurisdição. Que sugestões daria aos colegas para ajudar a melhorar a instrução das ações penais contra servidores públicos e das ações por ato de improbidade e aumentar assim suas chances de sucesso?

Bem, se eu pudesse dar uma sugestão aos meus colegas seria para que passem a atuar sempre de forma mais dinâmica, saindo do gabinete para ir ao encontro dos fatos, reunindo-se com a Polícia, com as representações da CGU, do TCU etc. Que, de fato, acompanhem as investigações e não as transformem apenas em meros expedientes burocráticos de entrada e saída do gabinete. As ações de improbidade, assim como as ações criminais, demandam uma prévia fase investigativa para se estabelecer autoria e materialidade, bem consolidadas. Assim, temos que pensar antes de agir para estruturar, na melhor forma possível, as investigações, não dependendo apenas da atuação de outros órgãos, como Polícia Federal, CGU etc.

Ocasionalmente, analiso inquéritos que tramitam durante anos, com simples carimbos de concessão de prazo por parte do Ministério Público, sem qualquer análise mais acurada, que poderia determinar, logo no início das investigações, diligências bastante simples mas que conduziriam ao seu êxito ao invés do insucesso, como sempre ocorre. Muitas vezes medidas simples são suficientes para se concluir uma investigação, desde que a investigação seja efetivamente acompanhada pelo titular da ação penal.

Como você encontra satisfação pessoal fora do trabalho?

Fora do trabalho, encontro satisfação pessoal no convívio com meus filhos, na leitura e em viagens. Gosto muito de viajar. Também gosto de ler e fazer alguns cursos, principalmente de inglês, pela internet.

Qual é a lembrança mais antiga que você tem de sua infância?

Eu venho de uma família que sempre teve muita dificuldade financeira, mas sempre fui muito incentivada a estudar para ‘mudar de vida’. Uma das lembranças mais antigas que tenho é da época em que morávamos em uma fazenda do meu avô, no interior de Goiás. Eu tinha uns quatro ou cinco anos e sofri muito com a morte de um cachorro chamado ‘Vinagre’, que brincava muito comigo. Disseram, na época, que alguém tinha dado veneno para o Vinagre e eu lembro que sofri muito sem entender o motivo de uma ação dessa natureza.

 

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Entrevista com Domingos Amorim: “A atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Esqueço-me de tudo quando começo a examinar um processo”.

Domingos Amorim passou sua primeira infância em uma fazenda próxima a Capela, AL, onde, bem cedo de manhã, tomava o leite, ainda quente, tirado da ordenha e se deliciava com o beiju feito na Casa de Farinha. Foi aí, com a filha dos donos da mercearia rural, que teve o seu ‘primeiro alumbramento’.

Domingos se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, onde foi colega de pessoas ilustradas como Renan Calheiros e Aldo Rebelo. Estudou toda a sua vida em colégios públicos. A partir de então, diz, “o ensino público foi se deteriorando, com as honrosas exceções dos Colégios Militares e das Escolas de Aplicação das universidades federais”.

Em um depoimento contagiante, diz que “a atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Ainda que eu esteja com uma grande preocupação, me esqueço de tudo quando começo a examinar um processo”. Reconhece que o trabalho lhe ajuda — como já lhe ajudou — a permanecer firme diante das perplexidades que a vida lhe apresenta.

Refletindo sobre a convivência de gerações no Ministério Público Federal, acredita que “é preciso que depositemos nos mais novos a confiança de que têm aptidão para oxigenar o debate e com isso melhorar ainda mais o que está sendo feito. ‘O ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações'”.

Domingos começou sua carreira no MPF em 1989, na Procuradoria da República em Pernambuco. Ao ser promovido, atuou na Procuradoria Regional da 4ª Região, em Porto Alegre, RS, e hoje, de volta a Recife, PE, trabalha na Procuradoria Regional da 5ª Região, de onde nos concedeu esta entrevista. Veja o nosso 19º ‘dedo de prosa’.

Você é satisfeito com o que faz no MPF, Domingos?

Sim, sou. A atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Ainda que eu esteja com uma grande preocupação, me esqueço de tudo quando começo a examinar um processo. É como se ingressasse em um outro mundo muito particular. Para que você tenha uma ideia, isso foi minha salvação no curso de uma doença crônica do meu filho, que durou treze anos entre seu nascimento e sua morte.

Além disso, não vejo nenhuma instituição igual ao MPF, pois a independência funcional existe de direito e de fato para todos aqueles que não estão preocupados em chegar ao ápice da carreira.

Antes de ser procurador da República você foi promotor de justiça. Como foi sua decisão de tentar o concurso para o MPE? Arrepende-se de ter vindo para o MPF?

Eu nasci em Capela, pequena cidade do Estado de Alagoas, quando aos onze anos minha atenção voltou-se para um fato ocorrido em um pequeno quiosque na beira da linha férrea, vizinho à estação. A pessoa que lá vivia acolheu alguém que não tinha onde dormir e foi por ela assassinada no curso da madrugada. Na época, a figura do ‘adjunto de promotor de justiça’ era admitida em Alagoas. Era uma função geralmente ocupada por estudantes de Direito, quase sempre filhos de pessoas com prestígio político. O acusador, neste caso, foi um parente meu já falecido, Luiz Eustáquio da Silveira Moreira, adjunto de promotor, que posteriormente veio a se tornar promotor de justiça efetivo. Ele realizou a missão com sucesso e o réu foi devidamente condenado. Em razão desse fato, despertei para o Ministério Público e resolvi que um dia seria promotor de justiça. Ingressei na Faculdade de Direito da UFAL no início de 1975, mas, influenciado pelo fato de ter três dos meus tios e um irmão como empregados do Banco do Brasil, resolvi interromper o curso após a conclusão do primeiro ano, e assumi, em razão de concurso público, o emprego de ‘auxiliar de escrita’. Mesmo porque, na época, incomodava-me continuar dependendo financeiramente do meu pai.

Dois anos depois, não conseguindo transferência de União dos Palmares, AL, para Maceió, AL, requeri minha exoneração, voltei para a Faculdade, e fui trabalhar no escritório de advocacia de um dos meus tios. No meio do ano de 1981, ao concluir o curso, tomei conhecimento de que estavam abertas as inscrições para o concurso de promotor de justiça, o que me levou a providenciar, de forma imediata, o diploma devidamente registrado, exigência editalícia mais difícil de suprir, inscrever-me e submeter-me ao certame, que foi concluído no final de janeiro de 1982 com minha aprovação. No ano de 1987, no entanto, durante o Governo de Fernando Collor de Mello, as dificuldades financeiras dos membros do Ministério Público do Estado de Alagoas eram piores do que as que atualmente atingem todo o Parquet. Por isso, após a morte de um filho, cujas despesas hospitalares foram bancadas por meu pai, resolvi realizar concurso para o Ministério Público Federal, instituição na qual seus membros, na época, ao lado de receberem vencimentos condignos, estavam lotados em capitais. Aprovado, tomei posse no dia 15.12.1989, vindo trabalhar aqui em Recife, PE, para o quê abri mão de assumir o cargo de Auxiliar de Ensino na UFAL, aprovado que havia sido para lecionar Direito Processual Civil. Encontrei-me totalmente nesta instituição, especialmente porque, diferentemente do que ocorria no âmbito do Ministério Público Estadual, nela não se observa a existência de qualquer ‘hierarquia de fato’.

Então você passou sua primeira infância na zona rural do município de Capela, AL. Que lembranças você tem dessa época, Domingos?

De fato, até pouco tempo depois de completar cinco anos, eu vivi na Fazenda Boa Vista, propriedade rural de cerca de 250 ha, situada em Capela, AL, onde meu pai explorava a cultura da cana-de-açúcar e umas poucas cabeças de gado para o serviço de aragem, carro de boi e produção de leite para a família e empregados. Apesar da distância no tempo, guardo na lembrança alguns fatos que a memória fotografou. Lembro, por exemplo, de estar sentado no parapeito da varanda da ‘Casa Grande’, em dia muito chuvoso, quando observei algo brilhando no local para onde as águas do telhado escorriam, o que me levou a descer da varanda, pegar o objeto no solo e entrar em casa gritando de felicidade por haver achado um ‘anel’; no final das contas, era uma grossa aliança de casamento que meu avô havia perdido.

A lembrança me traz também os dias de sábado, quando os ‘caboclos’, após colherem a mandioca que meu pai lhes permitia cultivar antes da renovação do plantio de cana, a transformavam em farinha; naquelas ocasiões, todos nós, meninos da fazenda, chegávamos à Casa de Farinha para pedir que eles fizessem um beiju quentinho e crocante, que comíamos com grande prazer. Nunca esqueci da ordenha, bem cedo da manhã, quando tomávamos o leite quentinho, logo após ser retirado do peito da vaca. Lembro, finalmente, do dia em que nos mudamos para a cidade, quando o caminhão parou no ‘Barracão’ — que é uma espécie de mercearia rural — da contígua Fazenda Flor dos Campos. Na época um dos proprietários dessa fazenda era o ator Paulo Gracindo. Então, o motorista, a pedido de meu pai, manteve um rápido diálogo com alguém, seguindo viagem.

Mas o que não esqueço mesmo foi o dia em que os donos do Barracão viajaram e deixaram sua filha, cerca de três anos mais velha que eu; eu e ela brincamos de ‘papai e mamãe’ no quarto do casal, tomei umas doses de ‘cachimbo’ — que é uma bebida feita de aguardente, limão e mel, outrora tradicional no interior do Nordeste, que servia para comemorar o nascimento de uma criança — e cheguei em casa embriagado e vomitando. Depois disso, vivi em Capela, AL, o período mais solto da minha vida, durante a década de 60.

E como foram a sua educação e a sua formação cultural na infância e na juventude?

Aos sete anos de idade fui matriculado no Grupo Escolar Torquato Cabral, da rede estadual de ensino, onde iniciei a alfabetização e permaneci até a metade da 4ª série; nessa ocasião, meu pai aceitou assumir a gerência do campo da Usina Laginha. Por isso, nos mudamos para União dos Palmares, AL, onde concluí o curso primário no Grupo Escolar Rocha Cavalcanti, também da rede pública estadual. Fiz o exame de admissão ao ginásio e fui estudar no Ginásio Santa Maria Madalena, que imagino ligada à CNEC – Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, instituição que me parece desvinculada do poder público e que se destina a criar escolas nos diversos recantos pobres do país. Depois de um ano na Usina Laginha, como meu pai entendeu que o emprego estava lhe trazendo prejuízos, na medida em que a fazenda tinha sofrido um certo abandono, solicitou exoneração e voltamos felizes para Capela, onde dei continuidade ao curso no Ginásio Maria Imaculada, também da CNEC, até a conclusão da segunda série, quando nos mudamos para Maceió, AL. A propósito, como o Pedro, meu irmão mais velho, estava estudando em Maceió e morando em ‘pensão’, minha mãe convenceu meu pai a alugar uma casa na capital, para que todos os sete filhos continuassem sob sua orientação direta. Isso acabou se consolidando no início do ano de 1970, época em que eu estava próximo aos quatorze anos de idade. Eu e meus demais irmãos, com exceção de Pedro, que estudava no antigo Colégio Estadual de Alagoas, conseguimos matrícula no CEPA – Centro Estadual de Pesquisas Aplicadas, hoje Centro Educacional Antônio Gomes de Barros, do Governo do Estado de Alagoas, onde funcionavam vários colégios. Eu fui encaminhado para o Instituto de Educação, no qual concluí o ginásio. Fui então matriculado na EMS – Escola Moreira e Silva, também no CEPA, onde realizei o curso científico, colégio do qual até hoje sinto saudades.

Aprovado no vestibular, ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, que na época contava com professores de alto nível, a exemplo de Alfredo Gaspar de Oliveira Mendonça, Zepherino Lavenère Machado, Marcos Bernardes de Mello, Marcelo Lavenère Machado, Paulo Luiz Netto Lobo, Antônio Aleixo Paes de Albuquerque e outros. Lá, após a interrupção do curso por dois anos, em razão da assunção de emprego no Banco do Brasil, concluí o curso em junho de 1981. Devo tudo isso a dona Ivete Tenório de Amorim, em solteira Ivete Tenório de Albuquerque, minha mãe, que apesar de não ter tido a oportunidade de estudar além do curso primário era uma doutora da vida, com inteligência ímpar e uma incrível visão de futuro. Ela me estimulou à leitura desde as primeiras letras, cobrando-me resultados e me levando a criar um senso de responsabilidade que me permitiu ver a necessidade de seguir adiante nos estudos. Isso me propiciaria a obtenção, pelo mérito pessoal e de forma ética, de tudo aquilo que eu sonhasse na vida. Passei a devorar gibis, revistas, jornais, livros com estórias de cowboys. Lembro-me bem que adorava os livretos de um tal Marcial Lafuente Estefanía. Depois comecei a me interessar pela literatura brasileira.

Você teve boas experiências na rede pública de ensino. Acredita que o Brasil possa voltar a ter algo parecido?

É verdade. Quando terminei o curso científico já dava para notar que o ensino não era mais o mesmo, o que fez com que meus pais redirecionassem meus irmãos mais novos, Inês e Fábio, para o Colégio Marista. Desde então, a percepção que tenho é a de que o ensino público foi se deteriorando, tal como todo o Brasil o vê hoje, com as honrosas exceções dos Colégios Militares e das Escolas de Aplicação das universidades federais. Como sou otimista, tenho fé que a qualidade do ensino público há de voltar a ser prioridade dos governantes estaduais e será então restaurada a qualidade de outros tempos. O que dói é ver que o povo brasileiro facilmente se deixa levar por políticos enganadores, sem qualquer compromisso com a educação, fato que vem perpetuando o baixo nível da educação. Quando despertarmos e elegermos estadistas em sequência, o que nunca fizemos, certamente vamos recuperar o tempo perdido. Espero e acredito que isso venha a acontecer.

Seu pai e sua mãe foram pessoas que participaram de modos muito diferentes da sua formação. Estou correto? Carlos Drummond fala da ‘estranha ideia de família que viaja através da carne’. Nessa viagem, Domingos, qual é nossa função como passageiros?

Sim. Creio que era uma questão cultural da época, principalmente nas cidades interioranas. Meu pai, Flávio de Melo Amorim, sempre foi uma pessoa preocupada em suprir as necessidades materiais da família, o que sempre conseguiu a contento, principalmente quando se considera que tinha sete filhos sob sua responsabilidade. Além disso, sempre chegava junto, dentro das suas possibilidades, quando um de nós estava passando por alguma situação de carência financeira. Minha mãe, por sua vez, ao lado de administrar a casa, era a responsável pelo direcionamento de todos nós para os estudos, fazer as correções de rumo em razão de indisciplinas etc. Ela era o farol da nossa casa; enxergava longe. Foi a responsável pelo sucesso de seus sete filhos nos estudos, além de criar em todos nós a consciência de que a competição da vida exige uma postura ética, tal como também víamos no exemplo que igualmente era dado por nosso pai em tudo o que fazia. Com eles aprendemos a ser o que somos e a transmitir os mesmos valores e as mesmas impressões para os nossos filhos, com a certeza e a esperança de que as próximas gerações também saberão preservar as mesmas lições. Certamente é dessa forma que as velhas gerações realizam viagens através da carne. Nós, como passageiros, temos que aproveitar essa viagem para dar alguma contribuição à sociedade e nos aperfeiçoar como seres humanos, deixando para nossos filhos um exemplo de ética e retidão.

Além de você, sua turma de faculdade teve outras figuras ilustres. Você foi colega de turma de Renan Calheiros, do ministro do STJ Humberto Martins e do ministro Aldo Rebelo. Lembra-se de alguma característica marcante da personalidade de algum deles que seja digna de nota?

José Renan de Vasconcelos Calheiros, hoje conhecido ‘Renan Calheiros’, foi meu colega em parte do curso científico, na Escola Moreira e Silva, época em que já demonstrava ser uma pessoa estudiosa, dotada de grande inteligência e igualmente de atributos de liderança. Talvez por dificuldades financeiras da família, ele residia na casa dos pais de um amigo comum, o ex-deputado estadual Manoel Lins Pinheiro, que também era nosso colega, como continuou a ser na Faculdade de Direito. Hoje é infelizmente falecido. De sorte que era uma pessoa extremamente simples. Em 1974, durante o 3º ano, quando eu já possuía uma certa consciência política e torcia pela redemocratização do país — razão pela qual, junto com a maioria da turma, votaria no MDB –, ele me causou uma grande surpresa, pois em conjunto com um grupo de jovens de Murici, sua cidade natal, resolveu lutar em favor de Geraldo Bulhões, da ARENA, candidato da família Omena (então usineiros) à Câmara Federal. Perdi a confiança no seu idealismo. Depois, já líder estudantil, aproximou-se do pessoal do PC do B, e foi posteriormente eleito pelo MDB para deputado estadual. Por fatos como esses, não me admira que tenha se transformado nesse ícone do PMDB sempre governista. No plano pessoal, no entanto, apesar de uma distância superior a trinta anos entre nós, creio que continua a ser a mesma pessoa cordial e boa praça de outros tempos.

Humberto Eustáquio Soares Martins e seu irmão Mário Augusto Soares Martins eram os ‘mauricinhos’ da nossa turma de ingresso no Curso de Direito. Eram filhos do promotor de justiça, posteriormente procurador de justiça, José Martins Filho, depois meu colega e amigo no Ministério Público do Estado de Alagoas, figura boníssima, inteligente, ótimo papo, oratória invejável  etc., que certamente pela pequenez quantitativa da família e detenção de recursos de herança e ganhos com advocacia, podia conceder aos filhos o direito de utilizar automóveis como o Puma, sucesso da época entre os jovens ricos. Eram, contudo, para minha decepção, eleitores da ARENA, ligadíssimos a Divaldo Suruagy, fato que, imagino eu, posteriormente garantiu a Humberto, ainda estudante, a nomeação para o cargo de adjunto de promotor de justiça. Na época eu era fervoroso eleitor de José Costa, que encarnava a grande liderança do MDB no Estado de Alagoas. Apesar de ter memória privilegiada, nunca me pareceu ser um colega dotado de grande criatividade; no entanto, sempre soube cultivar as ligações políticas que o fizeram desembargador, pelo quinto da OAB, e depois ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Por fim, José Aldo Rebelo de Figueiredo, meu vizinho de Viçosa, AL, também da mesma turma do início da Faculdade de Direito, era um colega extremamente simples, sempre de sandálias tipo havaianas — que na época chamávamos de sandálias japonesas — e calça jeans surrada, fato que se devia provavelmente às poucas condições financeiras de sua família; sua permanência em Maceió decorria do emprego que arranjou no Banco do Estado de Alagoas. Estudamos juntos a partir do básico, de modo que pude testemunhar sua postura humilde e ética, sua cultura, inteligência e criatividade invejáveis, que infelizmente eram empanadas pela doutrinação comunista que havia recebido. Vi-o, pela última vez, quando, lotado na PRR4, tomei conhecimento de que iria se encontrar com jornalistas em uma Churrascaria de Porto Alegre, ocasião em que fui até o local e rememoramos, em poucos minutos, os tempos da Faculdade de Direito. É uma grande figura. Imagino que continua o mesmo Aldo Rebelo de antes, que sempre me causou uma ótima impressão.

Você está se perguntando se já não está na hora de passar o bastão para os colegas com maior entusiasmo com o trabalho. Mas você não está me parecendo desanimado…

Estamos passando por um momento de grandes dificuldades, decorrentes do achatamento do subsídio, principalmente porque agora, diferente do que ocorria em outros tempos, parece que existe um objetivo velado do atual Governo de sufocar o Ministério Público e o Poder Judiciário. Vingança em razão do resultado da ação penal do Mensalão? Talvez, mesmo porque esse pessoal gosta mesmo é do poder sem as travas que a democracia impõe, o que se incompatibiliza com os objetivos do Parquet. Apesar disso, aqueles que realmente são vocacionados para o MPF não perderam a vontade de contribuir para que o Direito e a Justiça sejam aperfeiçoados e a sociedade consiga evoluir em direção a um Estado onde os direitos fundamentais de todos os matizes sejam efetivamente respeitados, o que gerará paz, segurança e a igualdade que todos acalentam.

Evidente, no entanto, que nós, os mais velhos, apesar da satisfação que nos dá o trabalho que realizamos em prol do equilíbrio social, temos a consciência de que existe muita gente jovem com novas ideias e muito entusiasmo para dar continuidade e melhorar aquilo que hoje fazemos, como é o natural da vida. Aliás, isso sempre me lembra uma versão de ‘Luzes da Ribalta’, tranquilizadora em relação ao futuro, onde se afirma que ‘o ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações’. Então, é preciso que depositemos nos mais novos a confiança de que têm aptidão para oxigenar o debate e com isso melhorar ainda mais o que está sendo feito.

A última questão, que tenho feito a outros colegas: se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá? O Ministério Público terá um lugar especial nessa resposta?

Não creio e não tenho a expectativa de viver mais trinta anos. Mas, se isso acontecer, direi a ele, como diria hoje, que a vida me trouxe momentos de grandes sofrimentos, que superei pela pequena crença em Deus, certamente muitíssimo inferior a um grão de mostarda, mas que me fortaleceu para enfrentá-los, do mesmo modo como igualmente me propiciou momentos de grande felicidade. Direi, do mesmo modo, que uma das maiores satisfações que tive foi integrar o Ministério Público, especialmente o Ministério Público Federal, através do qual, dentro das minhas grandes limitações, sempre procurei ter alguma utilidade para a sociedade e fiz amigos que me ajudaram e certamente ainda me ajudarão a trilhar o restante dessa caminhada que percorro entre flores e espinhos.

 

Links de interesse:

Entrevista com André Dias: “O julgamento da Ação Penal n. 470 deixou uma grande lição ao Ministério Público: jamais devemos nos omitir em adotar todas as medidas processuais que estejam ao nosso ao alcance”.

Criado em Pirapora, MG, André tem uma relação de amor profundo com o Rio São Francisco e uma infância repleta de boas lembranças: “é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio. Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais”.

Leitor voraz de clássicos da literatura universal, a começar pelos pré-socráticos, reconhece como suas principais influências a Bíblia Sagrada, Nietzsche, Dostoiévski e Philip Pettit.

Antes de ingressar no MPF — onde iniciou a carreira na PRM Angra dos Reis –, André foi promotor de justiça em Minas Gerais, o que lhe dá um excelente trânsito entre os colegas do MPMG, com quem mantém uma cooperação, profícua, que merece ser adotada como referência entre as montanhas de Minas.

Porque vê o STF, hoje, como “um tribunal político, no pior sentido do termo”, acredita que “o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível do poder político”.

Um duro crítico da atuação de nossos tribunais superiores, um trabalhador incansável contra a corrupção que assola os municípios do Norte de Minas Gerais, um leitor de Dante, Stendhal, Goethe, Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa; enfim, um procurador combativo e um devorador de livros. É com ele, de Montes Claros, MG, que trocamos o nosso 11º dedo de prosa — entre a luz e a sombra. Uma prosa mineira, naturalmente.

 

Você acredita no combate à corrupção no Brasil o trabalho da justiça tem ocupado posição importante? Às vezes sinto que o trabalho punitivo, embora necessário, não tem alcançado a essência do problema…

Penso que, infelizmente, nossa Justiça é um espelho das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, o que se reflete substancialmente na prestação jurisdicional em face da corrupção, seja em matéria penal (em que a seletividade secundária beira as raias do absurdo), seja em matéria cível lato sensu, inclusive a nível preventivo, em que nosso Poder Judiciário, mediante uma pletora de subterfúgios e interpretações surreais, promove a blindagem dos nichos de poder político e econômico, pouco importando as facções ou as ideologias subjacentes. Nesse contexto, o combate à corrupção torna-se absolutamente inócuo, porque a resposta da Justiça é pífia e risível, sob qualquer parâmetro de comparação (seja externo, no cotejo a praxe judiciária de países minimamente desenvolvidos, seja interno, no confronto com a rigidez com que a Justiça brasileira reprime os “ilícitos” das classes menos favorecidas e dos movimentos sociais). A resposta jurisdicional é monstruosamente desproporcional, quase fictícia, sem o mínimo de eficácia para inibir e reprimir a criminalidade do poder, e talvez seja este o principal fator, em nosso país, por que o combate à corrupção não tem tido o condão de concorrer decisivamente às necessárias mudanças macroestruturais do grupamento social (tal qual, por exemplo, a bem sucedida experiência italiana).

Egresso do Ministério Público de Minas Gerais, como você vê, na sua região, a diferença entre as estruturas de um e de outro órgão nas lides diárias? Acredita que o MPF pode aprender algo com o trabalho do MPE-MG?

Meu amigo, assim como você e outros valorosos colegas de MPF (como Helder Magno e Edmundo Dias), tive a honra de integrar os quadros do MPMG nos idos de 2003/2005. Penso que o Parquet mineiro evoluiu muito nestes últimos anos, e, a nível estrutural, o principal avanço foi a implantação de coordenadorias regionais (patrimônio público, meio ambiente e outras) e temáticas (bacias hidrográficas e outras), a ensejar a solução de conflitos num contexto alargado, com a sistematização da colheita e processamento de informações e a promoção articulada de trabalhos em rede, estrategicamente deliberados.

Você acompanhou de perto o processo do Mensalão. O que, na sua visão, todo colega deveria saber e absorver em seu trabalho após a experiência por que passou o STF?

Como expus alhures, penso que o julgamento da Ação Penal 470, pelo STF, foi permeado de avanços (especialmente em teoria das provas) e retrocessos (notadamente em sede de aplicação e dosimetria das penas), e estes predominaram ao cabo, no julgamento dos embargos infringentes (blindagem teórica do colarinho branco ao crime de quadrilha, derrogação judicial do crime de lavagem de dinheiro quando o delito antecedente for corrupção, etc). Todavia, as evoluções ou involuções daquele julgamento, no mais das vezes, não se relacionam diretamente ao trabalho do Ministério Público. A ausência de arguição da suspeição de um Ministro que, supostamente, teria relações próximas com alguns dos réus, talvez seja a maior lição ao MP: jamais se omitir em adotar todas as medidas processuais ao alcance, na tutela dos interesses da coletividade, ainda que isso possa significar desgastes com quem quer que seja, inclusive membros da mais alta corte do país.

Como vê a atuação do STF hoje? Se pudesse fazer duas alterações estruturais (relativas à competência, ao rito etc), visando à melhoria dos serviços, quais seriam?

Vejo o STF de hoje como um tribunal político, no pior sentido do termo. O problema estrutural por excelência reside no processo de escolha dos Ministros, que, de um lado, favorece escolhas estratégicas em prol exclusivo de facções políticas e de grupos econômicos, e, de outro, estimula a subserviência e o clientelismo dos candidatos ao mais alto cargo do Poder Judiciário perante aqueles interesses. Creio que o caminho esteja em um processo interinstitucional plural de escolha dos integrantes da Suprema Corte, com a menor ingerência possível dos detentores do poder político.

O MPF começou, há alguns anos, uma rotina de correições ordinárias em suas unidades em todo o país. A atividade se debruça sobre a fiscalização do cumprimento dos prazos nos procedimentos e processos judiciais e na verificação da estrutura das procuradorias. Essa atividade fiscalizatória, extremamente necessária, fornece-nos um atestado de regularidade do exercício de nosso ministério público. Como lançar nossas redes em águas mais profundas, André?

A atuação correicional é imprescindível para assegurar a transparência, a regularidade e a operosidade do exercício da função ministerial. Acontece que, hoje, esta atividade ainda se dá a nível superficial, pelo critério quantitativo-estatístico, que se revela absolutamente insuficiente, porque números podem ser artificialmente fabricados e inflados, sem qualquer relevo social. Penso que se devem pensar standards objetivos de aferição qualitativa, vinculados menos à frieza dos números e mais em termos de verificação do efetivo desempenho de trabalhos prospectivos, de larga monta e impacto social.

De suas leituras na área da literatura, da história, da filosofia e da psicologia, que livros — e por que — mais influenciaram sua vida e sua forma de pensar hoje?

Na literatura, Dante, Stendhal, Goethe, Poe, Machado de Assis e Guimarães Rosa deixaram fortes marcas em meu espírito, mas, sem dúvida, o maior impacto adveio do contato com a obra de Dostoiévski, aos dezesseis anos, especialmente “Crime e Castigo” e “Memórias do Subsolo”, que revolvem os arcanos da experiência humana. Na filosofia, os pré-socráticos, Bacon, Spinoza, Kant, Sartre, Foucault, dentre tantos outros, mas sem dúvidas foi a leitura de todo o Nietzsche, aos vinte anos, a responsável pela grande guinada de meu pensamento – embora eu tenha sérias reservas quanto a alguma de suas idéias, e, a nível dos conceitos estereótipos, praticamente em nada seja “nietzschiano”. Na filosofia política, que muito prezo, minha predileção é por uma linha de pensamento hoje denominada “republicanismo neo-romano”, que remonta a Cícero, Tito Lívio, Tácito e outros na Roma antiga, Maquiavel na Renascença Italiana, Milton e Harrington no período das revoluções inglesas, Rousseau em França pré-revolução, e, na atualidade Quentin Skinner, Maurizio Viroli, Jean-Fabien Spitz, tendo sua versão mais perfeita na obra de Philip Pettit. Em psicologia, sempre tive sérias discordâncias com a linha freudiana, tive meus tempos de abertura ao pensamento de Jung, mas confesso que nada teve muita influência. Por fim, foi a leitura integral e atenta de todos os livros da Bíblia, em 1999, a experiência de maior impacto em minha vida. Quanto à história, sou entusiasta da metodologia da “Escola de Cambridge” (Pocock, Skinner e outros), mas nenhum livro me marcou tanto quanto a “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides.

Onde passou sua infância? Qual é a melhor lembrança que você tem de sua meninice?

Passei toda a minha infância em Pirapora, MG (com viagens constantes a Montes Claros, Bocaiúva e Olhos D’Água, família paterna). Não existe “a” melhor lembrança, porque é todo um período de luz e alegria. Fui criado solto, brincando e jogando bola na rua, tomando banhos de rio (dali vem minha relação de amor profundo com o Rio São Francisco). Avós maternos, tios e primos, todos criados juntos, iguais. Muito amor, carinho, respeito e valores morais recebidos dos meus pais. Enfim, só boas lembranças.

Em seu livro ‘O Nobre Deputado’, o juiz de direito Márlon Reis transcreveu o testemunho de um senador da República para quem “o resultado de qualquer eleição brasileira já está[va] definido muito antes do encerramento da votação. Muito antes da abertura das urnas. A vontade do eleitor individual não vale nada no processo. O que conta é a quantidade de dinheiro arrecadado para a campanha vencedora, que usa a verba num infalível esquema de compra de votos. Arrecadou mais, pagou mais. Pagou mais, levou”. Não há grandes surpresas nesse depoimento, a não ser naquilo em que ele busca afirmar a universalidade da prática. Imagino que você não veja as coisas de modo muito diverso. Você trabalha em uma PRM que tem atribuição sobre dezenas de pequenos municípios do Norte de Minas Gerais e também por isso conhece um pouco o imaginário geral dos moradores dessa região. Acredita que esse problema essencial para a vitalidade da democracia faça parte das preocupações (ou mesmo do entendimento) da maioria da população? Não haveria aí nessa falta de educação uma quebra do princípio democrático?

Sem dúvida, essas questões essenciais passam ao largo das preocupações das massas, porém muito dessa letargia decorre da descrença nas instituições constituídas e da desinformação, daí que a quebra da circularidade deste processo passa, necessariamente, pela efetividade do controle social e da ação dos órgãos de fiscalização, atacando e rompendo os elos desta cadeia perversa de captura do poder; pela ampla e massiva divulgação, publicidade e conscientização por meio da imprensa e das redes sociais; e pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento das vias formais de ensino e educação, ministrando bases seguras para a autodeterminação da vontade popular democrática.

 

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