Entrevista com Domingos Amorim: “A atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Esqueço-me de tudo quando começo a examinar um processo”.

Domingos Amorim passou sua primeira infância em uma fazenda próxima a Capela, AL, onde, bem cedo de manhã, tomava o leite, ainda quente, tirado da ordenha e se deliciava com o beiju feito na Casa de Farinha. Foi aí, com a filha dos donos da mercearia rural, que teve o seu ‘primeiro alumbramento’.

Domingos se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, onde foi colega de pessoas ilustradas como Renan Calheiros e Aldo Rebelo. Estudou toda a sua vida em colégios públicos. A partir de então, diz, “o ensino público foi se deteriorando, com as honrosas exceções dos Colégios Militares e das Escolas de Aplicação das universidades federais”.

Em um depoimento contagiante, diz que “a atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Ainda que eu esteja com uma grande preocupação, me esqueço de tudo quando começo a examinar um processo”. Reconhece que o trabalho lhe ajuda — como já lhe ajudou — a permanecer firme diante das perplexidades que a vida lhe apresenta.

Refletindo sobre a convivência de gerações no Ministério Público Federal, acredita que “é preciso que depositemos nos mais novos a confiança de que têm aptidão para oxigenar o debate e com isso melhorar ainda mais o que está sendo feito. ‘O ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações'”.

Domingos começou sua carreira no MPF em 1989, na Procuradoria da República em Pernambuco. Ao ser promovido, atuou na Procuradoria Regional da 4ª Região, em Porto Alegre, RS, e hoje, de volta a Recife, PE, trabalha na Procuradoria Regional da 5ª Região, de onde nos concedeu esta entrevista. Veja o nosso 19º ‘dedo de prosa’.

Você é satisfeito com o que faz no MPF, Domingos?

Sim, sou. A atividade do Ministério Público é uma das maiores satisfações que a vida me proporciona. Ainda que eu esteja com uma grande preocupação, me esqueço de tudo quando começo a examinar um processo. É como se ingressasse em um outro mundo muito particular. Para que você tenha uma ideia, isso foi minha salvação no curso de uma doença crônica do meu filho, que durou treze anos entre seu nascimento e sua morte.

Além disso, não vejo nenhuma instituição igual ao MPF, pois a independência funcional existe de direito e de fato para todos aqueles que não estão preocupados em chegar ao ápice da carreira.

Antes de ser procurador da República você foi promotor de justiça. Como foi sua decisão de tentar o concurso para o MPE? Arrepende-se de ter vindo para o MPF?

Eu nasci em Capela, pequena cidade do Estado de Alagoas, quando aos onze anos minha atenção voltou-se para um fato ocorrido em um pequeno quiosque na beira da linha férrea, vizinho à estação. A pessoa que lá vivia acolheu alguém que não tinha onde dormir e foi por ela assassinada no curso da madrugada. Na época, a figura do ‘adjunto de promotor de justiça’ era admitida em Alagoas. Era uma função geralmente ocupada por estudantes de Direito, quase sempre filhos de pessoas com prestígio político. O acusador, neste caso, foi um parente meu já falecido, Luiz Eustáquio da Silveira Moreira, adjunto de promotor, que posteriormente veio a se tornar promotor de justiça efetivo. Ele realizou a missão com sucesso e o réu foi devidamente condenado. Em razão desse fato, despertei para o Ministério Público e resolvi que um dia seria promotor de justiça. Ingressei na Faculdade de Direito da UFAL no início de 1975, mas, influenciado pelo fato de ter três dos meus tios e um irmão como empregados do Banco do Brasil, resolvi interromper o curso após a conclusão do primeiro ano, e assumi, em razão de concurso público, o emprego de ‘auxiliar de escrita’. Mesmo porque, na época, incomodava-me continuar dependendo financeiramente do meu pai.

Dois anos depois, não conseguindo transferência de União dos Palmares, AL, para Maceió, AL, requeri minha exoneração, voltei para a Faculdade, e fui trabalhar no escritório de advocacia de um dos meus tios. No meio do ano de 1981, ao concluir o curso, tomei conhecimento de que estavam abertas as inscrições para o concurso de promotor de justiça, o que me levou a providenciar, de forma imediata, o diploma devidamente registrado, exigência editalícia mais difícil de suprir, inscrever-me e submeter-me ao certame, que foi concluído no final de janeiro de 1982 com minha aprovação. No ano de 1987, no entanto, durante o Governo de Fernando Collor de Mello, as dificuldades financeiras dos membros do Ministério Público do Estado de Alagoas eram piores do que as que atualmente atingem todo o Parquet. Por isso, após a morte de um filho, cujas despesas hospitalares foram bancadas por meu pai, resolvi realizar concurso para o Ministério Público Federal, instituição na qual seus membros, na época, ao lado de receberem vencimentos condignos, estavam lotados em capitais. Aprovado, tomei posse no dia 15.12.1989, vindo trabalhar aqui em Recife, PE, para o quê abri mão de assumir o cargo de Auxiliar de Ensino na UFAL, aprovado que havia sido para lecionar Direito Processual Civil. Encontrei-me totalmente nesta instituição, especialmente porque, diferentemente do que ocorria no âmbito do Ministério Público Estadual, nela não se observa a existência de qualquer ‘hierarquia de fato’.

Então você passou sua primeira infância na zona rural do município de Capela, AL. Que lembranças você tem dessa época, Domingos?

De fato, até pouco tempo depois de completar cinco anos, eu vivi na Fazenda Boa Vista, propriedade rural de cerca de 250 ha, situada em Capela, AL, onde meu pai explorava a cultura da cana-de-açúcar e umas poucas cabeças de gado para o serviço de aragem, carro de boi e produção de leite para a família e empregados. Apesar da distância no tempo, guardo na lembrança alguns fatos que a memória fotografou. Lembro, por exemplo, de estar sentado no parapeito da varanda da ‘Casa Grande’, em dia muito chuvoso, quando observei algo brilhando no local para onde as águas do telhado escorriam, o que me levou a descer da varanda, pegar o objeto no solo e entrar em casa gritando de felicidade por haver achado um ‘anel’; no final das contas, era uma grossa aliança de casamento que meu avô havia perdido.

A lembrança me traz também os dias de sábado, quando os ‘caboclos’, após colherem a mandioca que meu pai lhes permitia cultivar antes da renovação do plantio de cana, a transformavam em farinha; naquelas ocasiões, todos nós, meninos da fazenda, chegávamos à Casa de Farinha para pedir que eles fizessem um beiju quentinho e crocante, que comíamos com grande prazer. Nunca esqueci da ordenha, bem cedo da manhã, quando tomávamos o leite quentinho, logo após ser retirado do peito da vaca. Lembro, finalmente, do dia em que nos mudamos para a cidade, quando o caminhão parou no ‘Barracão’ — que é uma espécie de mercearia rural — da contígua Fazenda Flor dos Campos. Na época um dos proprietários dessa fazenda era o ator Paulo Gracindo. Então, o motorista, a pedido de meu pai, manteve um rápido diálogo com alguém, seguindo viagem.

Mas o que não esqueço mesmo foi o dia em que os donos do Barracão viajaram e deixaram sua filha, cerca de três anos mais velha que eu; eu e ela brincamos de ‘papai e mamãe’ no quarto do casal, tomei umas doses de ‘cachimbo’ — que é uma bebida feita de aguardente, limão e mel, outrora tradicional no interior do Nordeste, que servia para comemorar o nascimento de uma criança — e cheguei em casa embriagado e vomitando. Depois disso, vivi em Capela, AL, o período mais solto da minha vida, durante a década de 60.

E como foram a sua educação e a sua formação cultural na infância e na juventude?

Aos sete anos de idade fui matriculado no Grupo Escolar Torquato Cabral, da rede estadual de ensino, onde iniciei a alfabetização e permaneci até a metade da 4ª série; nessa ocasião, meu pai aceitou assumir a gerência do campo da Usina Laginha. Por isso, nos mudamos para União dos Palmares, AL, onde concluí o curso primário no Grupo Escolar Rocha Cavalcanti, também da rede pública estadual. Fiz o exame de admissão ao ginásio e fui estudar no Ginásio Santa Maria Madalena, que imagino ligada à CNEC – Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, instituição que me parece desvinculada do poder público e que se destina a criar escolas nos diversos recantos pobres do país. Depois de um ano na Usina Laginha, como meu pai entendeu que o emprego estava lhe trazendo prejuízos, na medida em que a fazenda tinha sofrido um certo abandono, solicitou exoneração e voltamos felizes para Capela, onde dei continuidade ao curso no Ginásio Maria Imaculada, também da CNEC, até a conclusão da segunda série, quando nos mudamos para Maceió, AL. A propósito, como o Pedro, meu irmão mais velho, estava estudando em Maceió e morando em ‘pensão’, minha mãe convenceu meu pai a alugar uma casa na capital, para que todos os sete filhos continuassem sob sua orientação direta. Isso acabou se consolidando no início do ano de 1970, época em que eu estava próximo aos quatorze anos de idade. Eu e meus demais irmãos, com exceção de Pedro, que estudava no antigo Colégio Estadual de Alagoas, conseguimos matrícula no CEPA – Centro Estadual de Pesquisas Aplicadas, hoje Centro Educacional Antônio Gomes de Barros, do Governo do Estado de Alagoas, onde funcionavam vários colégios. Eu fui encaminhado para o Instituto de Educação, no qual concluí o ginásio. Fui então matriculado na EMS – Escola Moreira e Silva, também no CEPA, onde realizei o curso científico, colégio do qual até hoje sinto saudades.

Aprovado no vestibular, ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas, que na época contava com professores de alto nível, a exemplo de Alfredo Gaspar de Oliveira Mendonça, Zepherino Lavenère Machado, Marcos Bernardes de Mello, Marcelo Lavenère Machado, Paulo Luiz Netto Lobo, Antônio Aleixo Paes de Albuquerque e outros. Lá, após a interrupção do curso por dois anos, em razão da assunção de emprego no Banco do Brasil, concluí o curso em junho de 1981. Devo tudo isso a dona Ivete Tenório de Amorim, em solteira Ivete Tenório de Albuquerque, minha mãe, que apesar de não ter tido a oportunidade de estudar além do curso primário era uma doutora da vida, com inteligência ímpar e uma incrível visão de futuro. Ela me estimulou à leitura desde as primeiras letras, cobrando-me resultados e me levando a criar um senso de responsabilidade que me permitiu ver a necessidade de seguir adiante nos estudos. Isso me propiciaria a obtenção, pelo mérito pessoal e de forma ética, de tudo aquilo que eu sonhasse na vida. Passei a devorar gibis, revistas, jornais, livros com estórias de cowboys. Lembro-me bem que adorava os livretos de um tal Marcial Lafuente Estefanía. Depois comecei a me interessar pela literatura brasileira.

Você teve boas experiências na rede pública de ensino. Acredita que o Brasil possa voltar a ter algo parecido?

É verdade. Quando terminei o curso científico já dava para notar que o ensino não era mais o mesmo, o que fez com que meus pais redirecionassem meus irmãos mais novos, Inês e Fábio, para o Colégio Marista. Desde então, a percepção que tenho é a de que o ensino público foi se deteriorando, tal como todo o Brasil o vê hoje, com as honrosas exceções dos Colégios Militares e das Escolas de Aplicação das universidades federais. Como sou otimista, tenho fé que a qualidade do ensino público há de voltar a ser prioridade dos governantes estaduais e será então restaurada a qualidade de outros tempos. O que dói é ver que o povo brasileiro facilmente se deixa levar por políticos enganadores, sem qualquer compromisso com a educação, fato que vem perpetuando o baixo nível da educação. Quando despertarmos e elegermos estadistas em sequência, o que nunca fizemos, certamente vamos recuperar o tempo perdido. Espero e acredito que isso venha a acontecer.

Seu pai e sua mãe foram pessoas que participaram de modos muito diferentes da sua formação. Estou correto? Carlos Drummond fala da ‘estranha ideia de família que viaja através da carne’. Nessa viagem, Domingos, qual é nossa função como passageiros?

Sim. Creio que era uma questão cultural da época, principalmente nas cidades interioranas. Meu pai, Flávio de Melo Amorim, sempre foi uma pessoa preocupada em suprir as necessidades materiais da família, o que sempre conseguiu a contento, principalmente quando se considera que tinha sete filhos sob sua responsabilidade. Além disso, sempre chegava junto, dentro das suas possibilidades, quando um de nós estava passando por alguma situação de carência financeira. Minha mãe, por sua vez, ao lado de administrar a casa, era a responsável pelo direcionamento de todos nós para os estudos, fazer as correções de rumo em razão de indisciplinas etc. Ela era o farol da nossa casa; enxergava longe. Foi a responsável pelo sucesso de seus sete filhos nos estudos, além de criar em todos nós a consciência de que a competição da vida exige uma postura ética, tal como também víamos no exemplo que igualmente era dado por nosso pai em tudo o que fazia. Com eles aprendemos a ser o que somos e a transmitir os mesmos valores e as mesmas impressões para os nossos filhos, com a certeza e a esperança de que as próximas gerações também saberão preservar as mesmas lições. Certamente é dessa forma que as velhas gerações realizam viagens através da carne. Nós, como passageiros, temos que aproveitar essa viagem para dar alguma contribuição à sociedade e nos aperfeiçoar como seres humanos, deixando para nossos filhos um exemplo de ética e retidão.

Além de você, sua turma de faculdade teve outras figuras ilustres. Você foi colega de turma de Renan Calheiros, do ministro do STJ Humberto Martins e do ministro Aldo Rebelo. Lembra-se de alguma característica marcante da personalidade de algum deles que seja digna de nota?

José Renan de Vasconcelos Calheiros, hoje conhecido ‘Renan Calheiros’, foi meu colega em parte do curso científico, na Escola Moreira e Silva, época em que já demonstrava ser uma pessoa estudiosa, dotada de grande inteligência e igualmente de atributos de liderança. Talvez por dificuldades financeiras da família, ele residia na casa dos pais de um amigo comum, o ex-deputado estadual Manoel Lins Pinheiro, que também era nosso colega, como continuou a ser na Faculdade de Direito. Hoje é infelizmente falecido. De sorte que era uma pessoa extremamente simples. Em 1974, durante o 3º ano, quando eu já possuía uma certa consciência política e torcia pela redemocratização do país — razão pela qual, junto com a maioria da turma, votaria no MDB –, ele me causou uma grande surpresa, pois em conjunto com um grupo de jovens de Murici, sua cidade natal, resolveu lutar em favor de Geraldo Bulhões, da ARENA, candidato da família Omena (então usineiros) à Câmara Federal. Perdi a confiança no seu idealismo. Depois, já líder estudantil, aproximou-se do pessoal do PC do B, e foi posteriormente eleito pelo MDB para deputado estadual. Por fatos como esses, não me admira que tenha se transformado nesse ícone do PMDB sempre governista. No plano pessoal, no entanto, apesar de uma distância superior a trinta anos entre nós, creio que continua a ser a mesma pessoa cordial e boa praça de outros tempos.

Humberto Eustáquio Soares Martins e seu irmão Mário Augusto Soares Martins eram os ‘mauricinhos’ da nossa turma de ingresso no Curso de Direito. Eram filhos do promotor de justiça, posteriormente procurador de justiça, José Martins Filho, depois meu colega e amigo no Ministério Público do Estado de Alagoas, figura boníssima, inteligente, ótimo papo, oratória invejável  etc., que certamente pela pequenez quantitativa da família e detenção de recursos de herança e ganhos com advocacia, podia conceder aos filhos o direito de utilizar automóveis como o Puma, sucesso da época entre os jovens ricos. Eram, contudo, para minha decepção, eleitores da ARENA, ligadíssimos a Divaldo Suruagy, fato que, imagino eu, posteriormente garantiu a Humberto, ainda estudante, a nomeação para o cargo de adjunto de promotor de justiça. Na época eu era fervoroso eleitor de José Costa, que encarnava a grande liderança do MDB no Estado de Alagoas. Apesar de ter memória privilegiada, nunca me pareceu ser um colega dotado de grande criatividade; no entanto, sempre soube cultivar as ligações políticas que o fizeram desembargador, pelo quinto da OAB, e depois ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Por fim, José Aldo Rebelo de Figueiredo, meu vizinho de Viçosa, AL, também da mesma turma do início da Faculdade de Direito, era um colega extremamente simples, sempre de sandálias tipo havaianas — que na época chamávamos de sandálias japonesas — e calça jeans surrada, fato que se devia provavelmente às poucas condições financeiras de sua família; sua permanência em Maceió decorria do emprego que arranjou no Banco do Estado de Alagoas. Estudamos juntos a partir do básico, de modo que pude testemunhar sua postura humilde e ética, sua cultura, inteligência e criatividade invejáveis, que infelizmente eram empanadas pela doutrinação comunista que havia recebido. Vi-o, pela última vez, quando, lotado na PRR4, tomei conhecimento de que iria se encontrar com jornalistas em uma Churrascaria de Porto Alegre, ocasião em que fui até o local e rememoramos, em poucos minutos, os tempos da Faculdade de Direito. É uma grande figura. Imagino que continua o mesmo Aldo Rebelo de antes, que sempre me causou uma ótima impressão.

Você está se perguntando se já não está na hora de passar o bastão para os colegas com maior entusiasmo com o trabalho. Mas você não está me parecendo desanimado…

Estamos passando por um momento de grandes dificuldades, decorrentes do achatamento do subsídio, principalmente porque agora, diferente do que ocorria em outros tempos, parece que existe um objetivo velado do atual Governo de sufocar o Ministério Público e o Poder Judiciário. Vingança em razão do resultado da ação penal do Mensalão? Talvez, mesmo porque esse pessoal gosta mesmo é do poder sem as travas que a democracia impõe, o que se incompatibiliza com os objetivos do Parquet. Apesar disso, aqueles que realmente são vocacionados para o MPF não perderam a vontade de contribuir para que o Direito e a Justiça sejam aperfeiçoados e a sociedade consiga evoluir em direção a um Estado onde os direitos fundamentais de todos os matizes sejam efetivamente respeitados, o que gerará paz, segurança e a igualdade que todos acalentam.

Evidente, no entanto, que nós, os mais velhos, apesar da satisfação que nos dá o trabalho que realizamos em prol do equilíbrio social, temos a consciência de que existe muita gente jovem com novas ideias e muito entusiasmo para dar continuidade e melhorar aquilo que hoje fazemos, como é o natural da vida. Aliás, isso sempre me lembra uma versão de ‘Luzes da Ribalta’, tranquilizadora em relação ao futuro, onde se afirma que ‘o ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações’. Então, é preciso que depositemos nos mais novos a confiança de que têm aptidão para oxigenar o debate e com isso melhorar ainda mais o que está sendo feito.

A última questão, que tenho feito a outros colegas: se daqui a trinta anos um jovem desconhecido lhe perguntar por que terá valido a pena viver até ali, o que provavelmente você dirá? O Ministério Público terá um lugar especial nessa resposta?

Não creio e não tenho a expectativa de viver mais trinta anos. Mas, se isso acontecer, direi a ele, como diria hoje, que a vida me trouxe momentos de grandes sofrimentos, que superei pela pequena crença em Deus, certamente muitíssimo inferior a um grão de mostarda, mas que me fortaleceu para enfrentá-los, do mesmo modo como igualmente me propiciou momentos de grande felicidade. Direi, do mesmo modo, que uma das maiores satisfações que tive foi integrar o Ministério Público, especialmente o Ministério Público Federal, através do qual, dentro das minhas grandes limitações, sempre procurei ter alguma utilidade para a sociedade e fiz amigos que me ajudaram e certamente ainda me ajudarão a trilhar o restante dessa caminhada que percorro entre flores e espinhos.

 

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“Não vivo apenas dias bons dentro da instituição. O Ministério Público Federal não é perfeito. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza”. Entrevista com Márcio Schusterschitz.

Nascido em Minas Gerais e criado em Belo Horizonte, Márcio Schusterschitz trabalha desde o começo de sua carreira na capital paulista, cidade com a qual diz manter uma relação romântica. Para ele, mudar de cidade é uma oportunidade provocadora. “Costumamos estudar e trabalhar com pessoas com um contexto parecido com o nosso. O mundo é muito grande, as pessoas muito diversas e isso nem sempre nos provoca”.

Estar próximo do Márcio é ter a chance de aprender um novo gracejo ou de rir de um de seus chistes. Quando lhe perguntei qual era a sua ‘escola de humor’, ele foi direto: “Minha escola é minha família. Em casa, somos seis irmãos e o ambiente nunca foi muito sério.” A atmosfera lúdica de sua infância repercutiu em sua atual concepção de liberdade: “É o espaço da expressão que permite a dinâmica de uma sociedade engessada pelo jurídico e a manifestação da individualidade em um espaço de predomínio do público. Quanto mais reprovação e mais censura, menos desenvoltura há para se falar. A comunicação não vale apenas para o que já julgaram merecedor de aprovação”.

Sobre a realização profissional, foi sincero: “O MPF não é perfeito. Não vivo apenas dias bons dentro dele. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza. Ainda estou com a ideia de haver melhorado e amadurecido a cada ano.”

Um dos maiores interesses do Márcio está em estudar a História dos Estados Unidos e de suas instituições jurídicas, assunto sobre o qual planeja escrever um livro. Acredita que “a hegemonia americana provavelmente veio mais rápido do que o amadurecimento do país para exercê-la.” Porém, reconhece que boa parte da crítica aos Estados Unidos é produzida dentro do próprio país, no rastro da profunda tradição americana de debate e de discussão.

Nesta entrevista, buscamos evidenciar o Márcio profissional, o pai de família e o estudioso — que, temperado pelo seu habitual bom humor, fazem dele a pessoa de carne e osso que atende por um dos sobrenomes mais impronunciáveis da nossa carreira. Veja nossa 15ª entrevista — mais um dedo de prosa genuinamente mineiro, com pão de queijo e rapadura.

 

Eu tenho ouvido testemunhos dramáticos a respeito do ânimo de alguns de nossos colegas com o dia a dia do trabalho nas diversas procuradorias da República. Você se sente realizado profissionalmente, Márcio?

Sim, eu me sinto realizado. Existe uma distinção entre o que te realiza e o que é perfeito. O perfeito tem o conforto de não existir. Como não poderia deixar de ser, não vivo apenas dias bons dentro da instituição. O Ministério Público Federal não é perfeito. Mas ser procurador da República me deixa feliz, principalmente porque ainda me mobiliza. Acredito que é importante a qualificação, o estudo, a vivência. Apesar de estarmos limitados a uma ou duas promoções em uma carreira inteira – ou, ao que parece, zero – acho que a profissão de procurador da República é uma evolução. Ainda estou com a ideia de haver melhorado e amadurecido a cada ano. Como profissão, além do mais, o Ministério Público Federal me deu muitos dos meus amigos e os recursos para viver minha vida. Tenho vivências na Procuradoria que me deixam feliz e sei que terei outras mais. Isso, de todo modo, é um sentimento pessoal e não uma análise dos rumos corporativos e funcionais do MPF e dos limites de se viver uma carreira de aplicação da lei em um país com suas desconexões, como é o Brasil.

A propósito, em que você tem trabalhado na PRSP ultimamente?

Desde 2011, atuo na área criminal. Houve uma reestruturação da PRSP em 2010 e não continuei na tutela coletiva do consumidor, que era meu ofício até então.

Como surgiu seu interesse pelos temas relacionados à História dos Estados Unidos e ao seu sistema de justiça? Reconhecendo o valor que a sociedade americana tem, a que você atribui o antiamericanismo a que com muita frequência assistimos nas discussões dos mais variados assuntos?

Eu realmente me interesso pela História dos Estados Unidos. Ler é minha distração e o que mais leio é não-ficção. Dentro da não-ficção, tento sempre ler livros de História. Ocorre que a História dos Estados Unidos é, em grande parte, a História do Direito nos Estados Unidos. Acho que o interesse cresceu com a leitura de temas relacionados à Suprema Corte e, a partir daí, à Revolução Americana. Se meu tempo livre permitir, quero escrever um livro sobre a Independência dos Estados Unidos.

Sobre o chamado antiamericanismo, acho que a resposta é muito arriscada – o que não me impede de tentar. Os Estados Unidos se tornaram a grande potência mundial. Não acho possível que a hegemonia de alguém seja fonte permanente de admiração para resto do mundo. Além do mais, a hegemonia americana provavelmente veio mais rápido do que o amadurecimento do país para exercê-la. O que parece interessante nisso tudo é que boa parte da crítica aos Estados Unidos é produzida no próprio país. Eles têm uma tradição de debate e discussão muito profunda. Engraçado aí é nossa associação entre Estados Unidos, militarismo e imperialismo. O exército norte-americano era tradicionalmente muito pequeno. A aventura imperial americana, que surge com a guerra com a Espanha – um império, por si só – começa sem muita grandiosidade, em 1898 (Filipinas e Porto Rico). No século XIX, o maior empregador público por lá era o serviço postal. Até a 2ª Guerra, o exército americano era menor do que o das principais potências européias. Foi com a Guerra Fria que se construiu o que se chamou de complexo industrial-militar, uma expressão criada precisamente por um presidente americano, Eisenhower. Mas a 2ª Guerra é, paralelamente, o momento de aprofundamento do humanismo nas relações internacionais (com a descolonização, a criação da ONU, a produção de diversos documentos internacionais e a reconstrução da Europa em um modelo de democracias sociais economicamente integradas). Nesse novo contexto, a hegemonia é potencialmente desgastante. Em um mundo de direitos humanos e liberdade para as novas nações, seria preciso legitimar o poder internacional. A diplomacia do canhão, que vitimou a China no século XIX, por exemplo, não pode mais ser tão crua. Ocorre que os países, Estados Unidos inclusive, não se fizeram tão desinteressados quanto a nova ordem internacional poderia fazer supor. Acho que era mais fácil para a Inglaterra e França no século XVIII do que para os americanos hoje.

Eu já estava querendo lhe perguntar isso há algum tempo: a quem queira conhecer os diversos aspectos e épocas da história americana, quais são, na sua opinião, os dez livros mais úteis e interessantes?

São muitos livros de História e não li mais do que alguns poucos. Existem episódios da História dos Estados Unidos que são importantes pela influência sobre outros e que, nem sempre, temos tanto conhecimento. Acho que, de modo geral, a questão racial, o federalismo e a expansão territorial influenciam a maioria dos eventos. Além do mais, a expansão econômica posterior à Guerra Civil é determinante. Recentemente, o realinhamento dos partidos, com a Nova Direita, durante a década de 1970, ainda pauta a política americana. No meio disso, as presidências de Roosevelt, que redefiniram a relação entre estados e união, governo e sociedade e entre os poderes. O New Deal aumentou as competências da união, a intervenção do governo e os poderes da presidência.

Vou preencher minha lista, então, dentro desses limites, com os dez mais recentes que li: 1. From the New Deal to the New Right (Joseph Lowndes); 2. Kissinger (Walter Isaacson); 3. The Unwinding – An Inner History of the New America (George Packer); 4. The Transformation of Virginia (Rhys Isaac); 5. Washington (Ron Chernow); 6. Justice for All: Earl Warren and the Nation He Made (Jim Newton); 7. John Adams (David McCullough); 8. The First Salute (Barbara Tuchman); 9. Benjamin Franklin (Walter Isaacson); 10. The Dark Side (Jane Mayer). Acompanho os livros que vão sendo publicados pela New York Review of Books e pela parte de livros do New York Times e do Washington Post. A produção editorial é grande por lá e, com a internet e o livro eletrônico, é grande também o acesso tanto aos livros quanto às análises sobre eles. A NYRB é especialmente interessante. Uma coisa curiosa na lista acima. As biografias de Kissinger e Franklin são do mesmo autor da biografia do Steve Jobs.

Mudando de assunto, onde você passou sua infância? Que lembranças traz daquela época?

Passei minha infância em Belo Horizonte, no bairro Gutierrez. O que mais me chama atenção quando penso na minha infância é a mudança e evolução do mundo. Vejo minha infância como um mundo de poucas coisas. Não por limites financeiros, estritamente. Era uma mundo de refrigerante só uma vez por semana, restaurante no dias das mães, três ou quatro canais de televisão. Segunda-feira, todo mundo tinha visto os Trapalhões. Era todo mundo muito dentro dos mesmos limites. Especial do Balão Mágico, uma vez por ano, deixava a criançada ansiosa.

Por outro lado, o mundo ficou mais violento, ou, ao menos, mais medroso. Sou mais medroso hoje, como pai, do que meu pai era comigo. Havia um clube no meu bairro e eu chegava lá sozinho, andando. No primário já ia de ônibus sozinho para a escola. Fiz o primário em uma ótima escola pública. Mas, como não era essa facilidade de um pai ou mãe ficar combinado com o outro algo para fazer com as crianças, as amizades da escola ficavam mais na própria escola. Fora dela, a infância era o clube e os amigos do prédio. Futebol e playmobil. Minhas filhas iriam morrer de tédio. Não havia tanta preocupação em dar ocupação para a criança o dia inteiro. Outra coisa que eu lembro era banana amassada com farinha láctea. Comia e ainda jogava açúcar por cima. Não deve ser algo tão estranho para quem gostava de comer leite condensado congelado.

Pois é. Você é mineiro, formado em Direito pela UFMG, e adotou São Paulo como a sua cidade. Não se sente bem em Minas Gerais? O que foi buscar em São Paulo que nosso Estado não lhe ofereceu?

Minha relação com São Paulo é romântica. Minha mulher é daqui. Não a tivesse conhecido, provavelmente não teria vindo para cá (talvez nem fosse procurador). Fora esse motivo pessoal, desenvolvi uma relação muito boa com São Paulo. Quanto mais agora que tenho filhas e elas são daqui. Logo cedo, cheguei à conclusão que não seria preciso escolher. Pode-se ter os dois Estados e as duas capitais no coração. Nossa capacidade de se sentir bem em um lugar não é limitada assim. Talvez a grande mudança seja mudar. Estar em outra cidade exige a reconstrução da rotina e das relações (tanto as novas, quanto as antigas). Acho que isso é uma oportunidade. Costumamos estudar e trabalhar com pessoas com um contexto parecido com o nosso. O mundo é muito grande, as pessoas muito diversas e isso nem sempre nos provoca.

Minha formação foi toda em Belo Horizonte. Minha profissão toda em São Paulo. O que ocorre, de alguma forma, é a ligação afetiva com Belo Horizonte paralisar um pouco minha percepção da cidade. Sempre que vou, procuro me relacionar com o passado, rever a família e antigos amigos. A ideia acabou invertida, um pouco. Hoje é em Belo Horizonte que vou buscar algo, mas algo mais antigo. Como é natural, acabo desenvolvendo meus planos para a cidade onde moro. O que não me impede de reconhecer que as duas cidades sejam realidades algo distintas. Fora o que a gente pode imaginar da diferença de tamanho (todo mundo sempre pensa no trânsito e violência), vejo uma diferença grande. São Paulo é uma cidade com muita gente chegando. Há empregos e as pessoas pensam mais nas carreiras. Belo Horizonte é uma cidade de servidores, profissionais liberais e empresários locais, principalmente. A vida das pessoas em Belo Horizonte é mais linear, sem muitas mudanças de emprego e de cidade, e as relações fora do ambiente de trabalho acabam sendo mais importantes. Provavelmente estou errado nisso. Mas quero arriscar compartilhar uma impressão para não parecer murista.

Não estou bem certo de que você seja ‘murista’, mas é certamente um ótimo humorista. Você é bem humorado também pessoalmente? Tem preferência por algum humorista em especial? Qual foi a sua ‘escola’?

Minha escola é minha família. Em casa, somos seis irmãos e o ambiente nunca foi muito sério. Depois foi o colégio. Fazendo uma conexão com a pergunta anterior, não deve ser o que as pessoas imaginam, mas existe muita brincadeira em Belo Horizonte. O mineiro se sente confortável com os amigos (vão falar que a culpa é do bar). Sempre percebi assim. O engraçado é que sempre pensei no humor e na brincadeira como algo natural, do encontro com pessoas. Não sou tão vinculado ao humor como arte ou produto. No meu tempo livre, nem sempre me preocupo com coisas humorísticas.

Hoje, praticamente parei de assistir televisão. Minhas últimas séries foram dramas, como o Breaking Bad – que achei sensacional. Gosto de ler, mas não leio quase nada humorístico. Para o humor, prefiro os meios visuais. Meu programa preferido é o Monty Python. Na década de 1990, passava no Multishow. A televisão por assinatura trouxe o seriado. Antes, o grupo era conhecido mais pelos filmes. Apesar do Monty Python ser da década de 1960, 1970, prefiro, de modo geral, o humor de hoje. Não sei se é assim, mas poderia arriscar que o humor tem melhorado. No cinema não vejo muito. Os seriados hoje são mais engraçados e o tamanho do seriado é ideal. O formato do filme é muito longo – embora goste de animação. Agora que sou pai, por exemplo, levo minha filha para ver os desenhos no cinema com prazer, embora os filmes sejam infantis. Isso deve querer dizer algo sobre minha maturidade.

É você quem está dizendo isso… Mas, ainda dentro desse assunto, você deve ter acompanhado algumas críticas feitas, nos últimos dois anos, a alguns comediantes brasileiros. Segundo a compreensão de alguns, alguns deles extrapolaram os ‘limites do humor’. Quais são os limites do humor, Márcio?

Sim, eu acho que existem limites para o humor. O que complica a discussão no Brasil é que nos falta uma tradição de discussões sobre a liberdade de expressão. Eu gosto de ler sobre liberdade de expressão e, de um modo geral, se reconhece ao humor um espaço mais amplo do que às demais formas de expressão. Nosso problema é que costumamos ver a equação apenas do lado das suscetibilidades. Se a expressão sempre perde espaço para as suscetibilidades de quem se sente ofendido, não há verdadeiramente liberdade de expressão. Outro problema é a centralização da discussão em determinados nós de verdade. O sentido da liberdade de expressão é a descentralização. A liberdade de expressão provavelmente fica mais importante agora que a intervenção do Estado e do Direito ficou mais ampla. É o espaço da expressão que permite a dinâmica de uma sociedade engessada pelo jurídico e a manifestação da individualidade em um espaço de predomínio do público.

Além do mais, o poder público tem diversas competências, mas ainda não tem a elevação para se permitir ditar a verdade. Há de certa forma uma inversão. A liberdade de expressão é um espaço de debate que permitia, inclusive, o controle do público. Hoje é um fundamento para o controle pelo público. Não discordo de quem diz que o erro se descobre com mais expressão e não com menos. Quanto mais reprovação e mais censura, menos desenvoltura há para se falar. É o que a doutrina chama de efeito resfriador. Quem enxerga a reprovação de alguém que falou, vai preferir ficar calado. Não é a mensagem do Direito cultivar o silêncio. Quando pautamos a expressão em uma sociedade, escolhemos o melhor discurso antes do próprio debate. A comunicação não vale apenas para o que já julgaram merecedor de aprovação.

Mas, mudando de assunto. Sobre seu interesse pelo Código de Defesa do Consumidor. Você também passa raiva com as operadoras de telefonia celular e de TV por assinatura? Acha que o sistema brasileiro de proteção ao consumidor é eficiente para coibir os abusos que ainda existem nesse contexto?

A realidade do consumidor no Brasil não pode ser boa. Antes de chegar no texto do Código do Consumidor, já é ruim. O Brasil é um país muito caro. Não sei se é culpa do modelo de substituição de importações. Embora o país seja industrializado e produza boa parte dos bens de consumo vendidos aqui, os preços são anormais. A Copa do Mundo não me deixa mentir. A primeira percepção do turista é o custo das coisas. O mercado de consumo no Brasil não funciona para produzir utilidade para o consumidor. Não pode haver outra conclusão em um país em que, de um lado, os bens são caros e, de outro, sua qualidade e variedade muito limitadas. Nos setores regulados, isso é pior. Aí, com as barreiras da regulação, a lógica é, menos ainda, o consumidor. Interessa mais para a firma em um setor regulado se preocupar com a regulação do que com o consumidor. É a regulação que gera o lucro, pois o consumidor tem apenas as opções das empresas autorizadas por ela. Se o consumidor não tem opção de correr, o interessante é saber em quais condições o regulador vai exigir a prestação.

Além do mais, as demandas consumeristas não funcionam bem na Justiça. Se a regulação não funciona, é muito desinteressante para o consumidor ir para o Judiciário. Imagine a relação entre custo e benefício de se pagar um advogado para discutir o valor de uma conta de telefone. Isso sem contar que o Judiciário, além de todos os seus problemas, não funciona bem para demandas privadas. Tanto assim que, nos contratos empresariais, muita coisa já migrou para a arbitragem. Além de lento, o Judiciário brasileiro é dominado pela Fazenda Pública. Basta ler o Diário de Justiça. As Turmas do STJ de Direito Privado, na minha opinião, geram menos esclarecimentos sobre o Direito Privado do que o correspondente em Direito Público e Penal nas demais turmas.

E a última pergunta: como você convenceria um agricultor da zona rural de Inhapim, MG, de que vale a pena investir R$ 6,1 bilhões anuais (segundo a nossa proposta orçamentária para 2015) no funcionamento do Ministério Público Federal?

Os ministérios públicos dos Estados são muito mais capilarizados. É uma daquelas coisas do federalismo brasileiro, onde a pena e a verba são da União, mas os braços são do Estado. Teria que pedir alguma dica para o Promotor de Justiça. Minha primeira necessidade seria a de entender o comparativo do que seriam esses 6 bilhões. Como são gastos 6 bilhões no Brasil? Um estádio? Um astronauta? Um financiamento público? Certamente não o convenceria se tivesse que explicar quanto tempo um processo precisa até acabar ou quantos crimes são descobertos. Mas eu acho que o Ministério Público Federal tem uma função importante para explicar não apenas seu orçamento, mas o orçamento da União. O MP é uma de nossas grandes construções e tem um efeito que deveria derramar. Se o Ministério Público trabalhar bem e controlar o respeito aos princípios da República, como é sua função, estaria fazendo valer seu orçamento e protegendo o uso correto dos outros. Mas acho que, como em uma piscina, não se consegue boiar acima do nível da água – embora não seja necessário afundar.

 

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Entrevista com Aureo Lopes: “As respostas que buscava na Filosofia eu as encontrei na evolução e na ressignificação de minha história pessoal”.

Aureo Lopes é um procurador que não acredita em respostas prontas e nem em ganhos de curto prazo. À frente da ‘Teia Social’, busca através dela “sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho”, pelo “tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais”.

Mestre em Filosofia pela PUC-SP, Aureo diz que não encontrou em seus estudos filosóficos o que ali buscava. Onde encontrou? “Na evolução e ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos”.

Em sua curta experiência na chefia da Procuradoria da República no Estado de São Paulo, aprendeu a ser mais prático, pois “o trabalho na Administração é mais dinâmico que o do gabinete. Lá “você lida com pessoas, mais do que com processos”.

Por falar em dinamismo, Aureo é provavelmente o dono do currículo mais eclético do Ministério Público Federal: antes de ser aprovado no 20º concurso de ingresso vendeu revistas e cursos de inglês porta-a-porta, teve o bar de praia em Tramandaí, RS, vendeu têxteis no varejo, tentou montar uma ONG de suporte a outras ONGs, foi corretor de imóveis, ministrou um culto como pastor protestante, teve um cursinho preparatório para carreiras públicas, onde chegou a lecionar, e, finalmente, foi oficial de promotoria do MPSP.

Admirador de Raul Seixas e estudante primeiranista de piano, reconhece que sua relação com a música é unilateral: “Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim”.

Sobre sua realização no trabalho, sente-se “dividido, como acho que estão muitos colegas”. Segundo acredita, assistimos à “manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros”.

Um colega que resiste, bravamente, diante dos inúmeros problemas que o cotidiano profissional nos oferece; sempre em busca de soluções, de alternativas, de saídas dos labirintos em que, surpresos, com muita frequência nos encontramos.

Eis o Aureo — provavelmente o colega com quem eu particularmente tenho mais ‘horas de papo’ já saldadas (há certamente algumas ainda por saldar — este colóquio é apenas um adiantamento dos juros). Acompanhe nosso 14ª dedo de prosa. Assentados, por favor, que a prosa é boa.

 

Você está à frente da Teia Social, um projeto no âmbito do MPF que “não busca a discussão abstrata de qual é o conhecimento público ‘verdadeiro’, (mas que) em vez disso prefere cuidar da disponibilidade das informações públicas, integração dos conteúdos técnicos, leigos e científicos (transdisciplinaridade) e utilidade do conhecimento para fomentar e auxiliar na solução sustentável e efetiva de problemas públicos”. Como tem sido o seu trabalho na Teia Social? Onde ela poderá levar o MPF?

A ‘Teia Social’ surgiu como uma iniciativa para tentar sintetizar e sistematizar uma nova abordagem de trabalho. Seu desenvolvimento contém tarefas diversas tais como: a) desenvolvimento de uma ontologia/linguagem geral para um tratamento multidisciplinar e multiorganizacional dos problemas públicos, no qual o Direito e o Ministério Público são apenas alguns dos componentes sociais incluídos no trabalho. b) quanto ao trabalho como procurador, ela apenas atribui uma “identidade” a práticas e valores que venho acumulando na tutela coletiva, como a mediação entre os diversos viéses, a estimativa dos impactos sociais da atuação, atenção à prevenção e ao longo prazo, etc. c) acho que diversos valores e percepções são compartilhados entre a teia social e o planejamento estratégico, e nesse aspecto estamos indo na mesma direção. De diferença geral acho que poderia citar que na teia as energias são concentradas em diálogo para o consenso visando a obtenção de resultados sustentáveis, bem mais que para a punição. Acho que a proposta da teia poderia ser muito útil ao MPF ou aos colegas que pretendessem adotá-la, ainda que parcialmente.

Imagino que a Teia Social venha colocando você em contato com pessoas muito diferentes e com outras instituições públicas e privadas. O que isso lhe tem ensinado sobre a resolução dos conflitos que chegam ao MPF?

É verdade. Esse contato tem-me ensinado que embora nossa carga de trabalho seja grande, e nosso senso de responsabilidade também, estamos, como órgão de controle (que diz como deveria ter sido feito) numa posição mais confortável do que os responsáveis pela execução direta das políticas públicas. Acho que devemos aproveitar essa vantagem de forma produtiva. Aprendi também que, salvo raras exceções, pelo senso comum cada um acha que seu trabalho é mais complexo e importante e que a culpa é dos outros órgãos e que eles só não fazem o que têm que fazer porque não querem. Quando se reúnem todos esses, essas percepções autocentradas têm um potencial explosivo de conflito. Para evitá-lo, temos que nos guiar por princípios (a teia propõe oito) como a inclusão de todos atores sociais, partir do amor aos fatos e não da briga com a realidade, pelo seu contraste com as coisas como deveriam ser, guardar proporcionalidade entre meios e fins, colaborar, adotar a transparência para si e cobrá-la para os demais (a transparência é para o órgão o que a franqueza é para a pessoa), agir de forma a poder continuar agindo do mesmo modo no futuro – sustentabilidade, e assim por diante.

Como foi sua experiência na administração da maior Procuradoria da República do país? Temos bons administradores entre os colegas?

Atuei como procurador chefe em exercício no Ministério Público Federal em primeiro grau em São Paulo de março a outubro de 2012. Aprendi a ser mais prático, que o trabalho na Administração muitas vezes é mais dinâmico que o do gabinete e que você lida com pessoas, mais do que com processos: É uma ótima experiência profissional que contribui para nossa maturidade quanto aos limites da realidade que transcende os autos, e penso que todos os colegas deveriam passar um tempo, ainda que curto, no cargo.

Acho que temos colegas muito talentosos para lidar com os outros e para executar, e implantar as coisas na prática, e essa experiência rápida na chefia iria revelar outros talentos, desmistificar alguns mitos da função e nos dar parâmetros mais completos para os juízos que exercemos sobre os administradores públicos que processamos.

Você é mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. De que tratou em sua dissertação de mestrado? Suas pesquisas o ajudaram a encontrar respostas para as questões que o atormentavam?

O título da minha dissertação de mestrado é “A teia humana: Metateoria do comum, próprio e alheio da pessoa concreta, como possibilidade orgânico-opositiva, entre as verdades do sujeito e do objeto”. Tive que consultá-lo porque, como diz um amigo e colega nosso, é impossível decorá-lo. O trabalho pode ser classificado como de antropologia filosófica e buscou centrar-se nas pessoas concretas como fonte de significado e fundamento central das ideias e valores. Pode ser considerada uma teoria eclética, sem se incomodar com as críticas que buscam caracterizar essa postura como um demérito: há espaço no mundo para todos, todas as ideias, todos os sonhos… Mas se buscamos a exclusão do Outro, não há espaço, porque somos multifacetados e diversos. Para os outros, nós somos os outros. As pesquisas serviram para que eu pudesse deixar partir minha “fé” no conhecimento, que sempre me acompanhou. Ainda gosto, tenho convivência e intimidade com o conhecimento, mas hoje vejo que o homem, as pessoas, são muito mais que isso, que o conhecimento é apenas uma parte, tão importante como outras.

A esse propósito, você tem dito que não encontrou no estudo da Filosofia as respostas para suas inquietações profissionais. Onde você tem encontrado aquilo que não encontrou na Filosofia?

Tenho encontrado essas respostas na evolução e na ressignificação de minha história pessoal, na qual têm importante papel as terapias psicológicas (bioenergética e constelação familiar) que faço há mais de sete anos (a primeira terapeuta foi indicada por um bom amigo). Olho para as minhas origens, para meus desafios pessoais, infantis, como adolescente e como adulto, vejo quantas vezes a vida desfez minhas fantasias e ao mesmo tempo em que me abriu novas oportunidades. Vejo como nossa existência é efêmera, como somos pretensiosos (mostremos ou não), cada um a seu modo e na área escolhida para sê-lo. Isso não nos faz menos humanos, por não atingirmos ideais de perfeição, isso nos faz humanos. Gosto daquela frase: “Somos o que somos, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos”.

Falar em ‘ser’ e em ‘mudança’ nos remete à ideia inicial deste projeto: as luzes. Se você sobrevoasse a história da humanidade e vislumbrasse, como Antoine de Saint-Exupéry, algumas luzes na planície, quem seriam na sua visão as mais interessantes? Por quê?

A vida, que é a vida, não julga. Mas nós julgamos. Somos profissionais e somos pagos para “apontar o dedo” ao que está certo ou errado (e pedir a punição dos injustos). Esse é um peso muito grande, o peso de sermos julgados com o mesmo peso daqueles a que julgamos. Por nós mesmos ou por outros, hoje ou amanhã. Mas muito disso escapa ao nosso controle (afinal, somos filhos do nosso tempo), exceto o autojulgamento. Desse podemos, progressivamente, nos libertar. E merecemos essa liberdade.

Você falou em liberdade e eu lembrei de uma coisa que você comentou: as aulas de piano que você começou a tomar há pouco tempo. Como surgiu esse interesse? Considerando que a linguagem musical tem uma carga simbólica muito rica, que música representaria hoje de modo mais ou menos adequado os conteúdos da sua vida interior, Aureo?

Tenho uma relação unilateral com o tocar música: Eu gosto dela, mas ela não gosta de mim. Tenho tentado e fracassado recorrentemente em aprender um instrumento musical e o piano é mais uma chance (um outro amigo, também colega, diz que o que ele é de fato é “o porta-copos mais caro da América Latina”). Eu gosto de várias músicas, mas as letras sempre foram muito importantes. Se tiver que eleger um músico, é Raul Seixas. Acho um gênio.

Antes de ser procurador da República você já arrendou e explorou um bar de praia e vendeu livros de porta a porta. Como foi que o MPF lhe apareceu como uma perspectiva de trabalho interessante?

Antes de ser procurador eu vendi (tentei) revistas, cursos de inglês, tive o bar na praia (chamava “Twister” e ficava em Tramandaí, RS), vendi têxteis no varejo, tentei montar uma ong de suporte a outras ongs, tirei o Creci e fui corretor de imóveis, ministrei um culto como pastor, tive um cursinho preparatório para carreiras públicas e dei algumas aulas e fui oficial de promotoria do MPSP. Meu querido pai, evidentemente preocupado com onde eu iria parar desse jeito variante, pôs pilha para as carreiras públicas e, dentre elas, o MPF mostrou-se simultaneamente como um desafio e como um ideal profissional fantástico.

E continua tudo tão fantástico como naquela época? Quer dizer: sente-se realizado hoje no trabalho?

Hoje eu me sinto dividido, como acho que estão muitos colegas. De um lado investimento de tempo extra para desenvolver novas formas de trabalho e obter resultados estimulantes. De outro a manutenção de todo um cotidiano de enxugar gelo no meio de um mar de problemas e de expectativas sociais muito grandes sobre nossos ombros. Apesar de tudo isso, me sinto bastante realizado, pois existem novos modos de trabalho que são auspiciosos, e as boas notícias de bons trabalhos de colegas que ouvimos constantemente confirmam isso.

Você se volta hoje contra o que chama de uma tradição e uma prática jurídicas que na sua visão não chegam a solucionar os problemas reais da vida em sociedade. Provavelmente esse sentimento é compartilhado por inúmeros promotores e juízes em todo o país. Há um caminho alternativo viável?

Algumas pessoas me falaram que eu era muito crítico com o Direito. Refleti sobre isso e cheguei a conclusão que se desacredito tanto nele é porque o conheço muito, de perto, e nele – durante minha graduação – depositei esperanças demais. Posso olhar para o Direito como uma ciência, uma linguagem, uma estrutura etc, mas, ao final, ele é apenas uma das incontáveis facetas sociais e dimensões humanas, e não podemos esquecer que ele “é feito por pessoas”, “aplicado por pessoas” e feito “para pessoas”, e não há teoria, racionalidade, fechamento de sistema capaz de “exorcizar” esse limite à objetividade que é a beleza da subjetividade, da humanidade.

Acredito, sim, em caminhos alternativos viáveis, e desenvolvo hoje um deles com minha pesquisa da ‘Teia Social – Sistema para a compreensão e solução de problemas públicos’. Mas não acredito em respostas prontas ou fáceis. Não acredito nos ganhos de curto prazo. Não acredito na (mono)disciplinariedade, seja do Direito, seja qualquer outra. Não acredito na desproporcionalidade entre fins e meios. E não acredito em fórmulas que se propõem melhores por meio da exclusão e da negação da existência válida das outras, o conhecido “caminho único”.

 

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Entrevista com Marcelo Moscogliato: “O Ministério Público me atraiu pela liberdade de pensamento e pela autonomia para questionar a realidade jurídica”.

Um entusiasta da liberdade de expressão, eis uma definição adequada, entre tantas outras possíveis, do procurador regional Marcelo Moscogliato. Para ele, “O livre fluxo de informações e opiniões é indispensável à formação do pensamento crítico e responsável; e é fundamental para desconstruir políticas populistas tão comuns na nossa história”.

Que caminhos o levaram ao Direito? “Quando comecei o curso de Direito, aos dezesseis anos, eu não tinha a menor ideia do que queria ser quando crescer. Cheguei ao Direito por exclusão”.

Sobre os possíveis ‘limites do humor, Marcelo diz que “Humor e paródia são duas entre as principais formas de comunicação e educação. Com eles a comunicação flui e se constroem sociedades mais livres. Bloquear ou censurar humor é o mesmo que apagar fogo com gasolina”. Ressalvada a possibilidade de indenização pecuniária ou a paródia reversa em caso de ofensas, acredita que “quanto mais liberdade de expressão, melhor”.

Nascido na zona rural do interior do Paraná, onde teve uma boa infância, reconhece hoje que o seu lugar, no mundo e no Brasil, é a cidade grande, “onde eu posso encontrar e interagir com mais semelhantes diferentes”.

Leia a entrevista que Marcelo nos concedeu da capital paulista.

Em que, basicamente, você tem trabalhado na PRR3? Sente-se realizado com o seu trabalho?

Eu tenho trabalhado com processos criminais há alguns anos e me sinto realizado e útil com as minhas tarefas.

Você faz parte do Instituto Palavra Aberta. Quais são os objetivos desse instituto? O que moveu você a fazer parte dele?

O PalavraAberta se dedica à liberdade de expressão, um tema que me é muito caro. Vivi o restabelecimento da democracia no Brasil quando estava na Faculdade de Direito e aprendi que no nosso país a mais ampla liberdade de expressão é fundamental. Há muito tempo eu entendo que o fluxo livre de informações e opiniões é indispensável à formação do pensamento crítico e responsável, é fundamental para desconstruir políticas populistas (tão comuns na nossa história) e pode nos salvar dos “salvadores da pátria”.

É senso comum dizer que não existem direitos absolutos. Você provavelmente concorda que com a liberdade de expressão não é diferente. Sabendo disso, você é capaz de dizer quais são os limites dessa garantia constitucional? Em outras palavras, o que a garantia constitucional da liberdade de expressão não alcança?

Bom, do ponto de vista individual, a morte é absoluta e na sua presença não há direitos ou negociações possíveis. Quanto aos limites à liberdade de expressão, sempre existirão conflitos em todas as sociedades. Ninguém está imune aos questionamentos e riscos. Mas, não vejo como conflitos à liberdade unicamente. Vejo como conflito de valores e, por exemplo, temos conflitos entre liberdade e equidade, entre liberdade e educação, entre liberdade e saúde. Há inúmeros paradoxos. Mas, é para eles que existem o debate e a democracia ocidental. Por isto, sempre, quanto mais liberdade de expressão, melhor.

Nos últimos dois anos, alguns comediantes brasileiros foram criticados porque, segundo o entendimento de alguns, extrapolaram os ‘limites do humor’. O humor tem limites, Marcelo?

Humor e paródia são duas entre as principais formas de comunicação e educação humana. Com humor e paródia a comunicação flui e se constroem sociedades mais livres. Observe que ditaduras e discursos politicamente e/ou religiosamente corretos não se comportam bem diante de humor e paródia. Caso resultem em ofensa a pessoas ou grupos, o humor, a paródia reversa ou a indenização pecuniária podem ser soluções. Bloquear ou censurar humor é o mesmo que apagar fogo com gasolina.

Você acredita que a internet ainda continuará livre por muito tempo?

Nunca via a internet como livre. Ela é um meio de comunicação fenomenal, revolucionário na nossa era. Mas, nas suas respectivas épocas, a prensa, o telefone e o rádio também foram, só para citar três exemplos. A internet está presa a um sistema físico-mecânico, não virtual. No mundo real, é cabeada e depende de energia. Portanto, depende de muita inteligência, investimento e dinheiro para existir, motivo pelo qual é regrada, negociada e regulada em todo o planeta. O fato de ela ter facilitado o fluxo de informações e incrementado (e muito) a nossa liberdade de expressão não significa que ela é absolutamente livre.

Eu percebo seu interesse no estudo da sistemática dos mercados financeiros e em sua regulamentação. Você acha que no peito dos investidores também bate um coração?

Sim. Investidores somos todos nós. Todos investimos quando poupamos e quando pagamos tributos. Quando poupamos, escolhemos quem administrará o nosso consumo futuro (um banco, uma empresa, nossa família, o nosso colchão, etc.). Quando pagamos tributos, entregamos o nosso consumo futuro nas mãos dos governantes que tomarão decisão em nosso nome (construirão instituições, construirão pontes, construirão estádios, construirão dívidas, elefantes brancos, etc.). Neste último caso, gosto muito do seguinte ditado popular: “o problema de quem diz não gostar de política é esquecer que é governado por quem gosta”.

Onde passou sua infância? Que lembranças traz daquela época? Acredita que alguma circunstância daquela época acabou levando você ao Direito e, especificamente, ao Ministério Público?

Sou do interior do Paraná, da zona rural. Tive uma boa infância, numa família estruturada e segura. O meu Pai era bancário e a minha Mãe era professora pública, tenho dois irmãos e tivemos muita liberdade na nossa formação. Eu cheguei ao Direito por exclusão, porque aos dezesseis anos de idade (quando comecei o curso) eu não tinha a menor ideia (como muitos ainda não tem hoje em dia) do que queria ser quando crescer. Mais do que o Direito, o Ministério Público me atraiu pela liberdade de pensamento e pela autonomia para questionar a realidade jurídica. Antes do MPF, fui Promotor de Justiça por pouco mais de um ano e meio.

Em ‘A rebelião das massas’, publicado em 1930, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset disse que “As cidades estão cheias de gente. As casas, cheias de inquilinos. Os hotéis, cheios de hóspedes. Os trens, cheios de passageiros. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. Os consultórios dos médicos famosos, cheios de pacientes. Os espetáculos, não sendo muito fora de época, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não costumava ser problema agora passa a sê-lo quase de forma contínua: encontrar lugar”. Você concorda com ele? Onde você costuma encontrar seu lugar no mundo e no Brasil?

Ele viu um problema e descreveu. A concentração urbana é uma constante na realidade humana e o movimento não parou. Na verdade, neste início de século, acho que até aumentou. Posso intuir que hoje, mais seres humanos vivem em cidades e não no campo. Isto coloca pressão em toda infraestrutura urbana no planeta, mas não é um movimento que pode ser parado. A cidade tem força gravitacional e atrai, sempre. Na verdade, penso que a infraestrutura deve ser acelerada para acomodar mais, melhor e de forma inteligente todos que chegam e vivem nas cidades. Fora do Brasil há bons exemplos de projetos urbanos de sucesso, em grandes cidades onde a ocupação dos espaços públicos (praças, parques, reservas, transporte) e privados (moradias e negócios) é mais inteligente.

No mundo e no Brasil, o meu lugar é a cidade grande, onde eu posso encontrar e interagir com mais semelhantes diferentes.

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Entrevista com Mário Medeiros: “O artista consegue captar e explicar coisas que nos passariam totalmente despercebidas; a arte aguça a compreensão”.

“Nosso trabalho no Ministério Público é um belo trabalho, mas não é melhor que todos os demais”. É assim que Mário Medeiros vê e valoriza o trabalho que faz no Ministério Público Federal. Observador dos costumes institucionais, deplora duas posturas de trabalho que lhe parecem imaturas: “a do procurador-Robespierre (faça-se a Justiça, ainda que pereça o MP) e a do procurador-Savonarola (iluminado que se acredita imbuído de uma missão civilizatória)”.

Depois de passar alguns anos entre as montanhas de Minas Gerais, removeu-se para a PRM Vitória da Conquista e, mais recentemente, para Salvador, BA. Seus cinco anos de experiência em uma PRM o levaram a concluir que a política institucional em relação às unidades no interior dos Estados ainda é uma variação em torno da ideia de que “a lotação em PRMs é destinada aos que se iniciam na carreira que, por isso mesmo, devem se conformar e aguardar o momento oportuno de se removerem para as capitais”.

Recém-chegado de Florença — onde participou como ouvinte de dois cursos: Língua Italiana e História da Arte –, Mário entende que “o prazer estético derivado da arte funciona como a melhor ‘válvula de escape’ para as angústias e atribulações do cotidiano”. A esse propósito, diz que a leitura do primeiro volume de ‘Em Busca do Tempo Perdido’, de Marcel Proust, marcou profundamente seu imaginário: “Estilo magnífico, sensibilidade sobre-humana e uma análise do ciúme absolutamente espetacular”.

Acompanhe aqui a entrevista que Mário nos concedeu enquanto se preparava para assumir, na condição de substituto, a Procuradoria Regional Eleitoral no Estado da Bahia nas Eleições de 2014.

Que saldo pessoal ficou de seus cinco anos na PRM Vitória da Conquista? Acredita que a cúpula de nossa instituição reconhece com justiça o nosso trabalho feito em pequenas PRMs?

O saldo penso ser positivo. Os primeiros anos foram muito difíceis: sozinho, elevadíssima movimentação processual, alto grau de exposição. Com a criação de um segundo ofício as dificuldades se arrefeceram significativamente. Paralelamente, os bons resultados do trabalho realizado foram surgindo, notadamente as condenações de agentes públicos ímprobos (com o reconhecimento disso pela comunidade), melhoria das condições de determinadas minorias e a realização de busca ativa de contaminados por amianto.

Quanto ao reconhecimento institucional, não posso julgar o meu caso especificamente, mesmo porque como tímido que sou, evito maior exposição. Entretanto, impossível deixar de lamentar a existência de um pensamento que, se não é disseminado pela cúpula da instituição, pelo menos já foi abertamente defendido por pelo menos um destacado integrante dela, segundo o qual a lotação em PRMs é destinada aos que se iniciam na carreira e que, por isso mesmo, devem se conformar e aguardar o momento oportuno de se removerem para as capitais. O pensamento é duplamente errado. Por um lado, há colegas já antigos em PRMs, que querem residir no interior. Por outro, o fato de os seus ofícios eventualmente serem ocupadas por colegas novos não justifica em absoluto nenhuma distinção na destinação de recursos humanos e materiais para o trabalho (pelo contrário, frequentemente eles são mais necessários em PRMs que nas capitais).

Que lugar o trabalho no MPF ocupa na sua vida hoje, Mário? Posso dizer, sem exagero, que você é uma pessoa satisfeita com o que faz na Procuradoria da República?

Sem dúvida, dedico a maior parte do meu tempo ao trabalho. Penso que fiz a escolha certa, mas me frusto com a percepção de que não avançamos ainda para uma equitativa divisão da carga de trabalho. Não concordo, também, com duas posturas de trabalho frequentes mas que me parecem imaturas: a do procurador-Robespierre (faça-se a Justiça, ainda que pereça o MP) e a do procurador-Savonarola (iluminado que se acredita imbuído de uma missão civilizatória).

Para mim, o nosso é um belo trabalho, mas não melhor que todos os demais.

Você acaba de chegar da Itália, onde participou de dois cursos. De que se trata?

Um curso de idioma italiano e um curso de História da Arte. Ambos realizados em Florença e sem nenhuma finalidade institucional; apenas diletantismo…

Suas últimas leituras indicam um interesse pela história da arte. Parafraseando o título de um interessante livro do escritor Alain de Botton, acredita que a arte pode ‘mudar a nossa vida’? Se sim, como essa mudança ocorre?

Acredito que sim. O artista, ainda que muitas vezes de modo intuitivo e graças à sua sensibilidade, consegue captar e explicar coisas que passariam totalmente despercebidas. Revela-nos o mundo. Por outro lado, o prazer estético derivado da arte funciona como a melhor “válvula de escape” que conheço para as angústias e atribulações do cotidiano. Finalmente, a arte aguça a compreensão. Acho que foi por essa razão que Engels disse haver aprendido mais com Balzac do que com todos os outros profissionais, historiadores, economistas e estatísticos juntos.

Você passou alguns anos trabalhando em Belo Horizonte. O mineiro tem um jeito próprio de ser, naturalmente. Como você apresentaria ‘o jeito mineiro de ser’ aos baianos?

Evito sempre as generalizações e os clichês, mas sempre faço a seguinte comparação: em Belo Horizonte você pensa que tem quatro ou cinco amigos verdadeiros, mas tem uns vinte; em Salvador, acredita ter uns vinte, mas na realidade tem quatro ou cinco. As diferenças estão todas aí: menos expansivos e acolhedores mas, ao mesmo tempo, mais fiéis, verdadeiros e solidários.

Se um garoto lhe parasse no caminho da casa para o trabalho e lhe perguntasse ‘o que você está indo fazer’, acha que teria uma resposta interessante a lhe dar?

Douraria a pilha, mas certamente preferiria as brincadeiras do menino ao trabalho que iria fazer… Mas temos que dar o exemplo, não é?

Você tem lido literatura de ficção? Consegue dizer os três livros de ficção que mais o marcaram e por quê?

“Em busca do tempo perdido” (mais precisamente o volume “No caminho de Swann”) é o livro que mais me marcou. Periodicamente retorno a ele. Estilo magnífico, sensibilidade sobre-humana e uma análise do ciúme absolutamente espetacular. A leitura de “Crime e Castigo” também me marcou muito, por razões diferentes da maioria das pessoas. É que, ao contrário do senso comum, não consegui perceber no livro nenhum “estudo sobre o processo de formação da culpa”. Desde então, passei a desconfiar muito de alguns eruditos que apenas repetem o que ouviram ou leram a respeito. O terceiro livro que mencionarei marcou-me por haver sido para mim a transição da literatura infanto-juvenil para a adulta: “O falcão maltês”, de Dashiel Hammet.

Você acredita que no combate à corrupção no Brasil o trabalho da justiça tem ocupado posição importante? Às vezes sinto que o trabalho punitivo, embora necessário, não tem alcançado a essência do problema…

O trabalho punitivo da justiça tem que ser feito, para reafirmação do sistema jurídico como meio de resolução de conflitos. Mas concordo que o trabalho punitivo do ponto de vista político é acessório. Os melhores resultados surgem quando há consciência de que os valores protegidos pela lei devam prevalecer. Isso ficou claro para mim em dois exemplos: nepotismo e obrigatoriedade do uso do cinto de segurança. No caso do nepotismo, lembro-me que quando criança era absolutamente normal e de se esperar que alguém eleito para cargo público empregasse a parentela. Hoje isso é repudiado pela quase unanimidade das pessoas. Moralmente tornou-se inaceitável, mas não era. Quanto ao cinto de segurança, ao menos na Bahia todos queriam usá-lo mas temiam ser vistos como maus motoristas (especialmente os homens). Assim, quando se anunciaram normas mais rígidas, embora todos achassem que elas não seriam efetivamente fiscalizadas, imediatamente passaram a utilizar o cinto de segurança. Curiosamente, a lei serviu de desculpa para os motoristas fazerem o que sempre quiseram, mas tinham vergonha.

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